Dimensão da política na institucionalização do movimento LGBT em Pernambuco - Brasil

Political dimension in the institutionalization of the LGBT movement in Pernambuco - Brazil

  • Benedito Medrado
  • Jáder Ferreira Leite
  • Daniel Coelho
  • Juliana Costa
  • Túlio Vinícius Andrade Souza
  • Luiz Henrique Coelho de Siqueira Teixeira
  • Maria Conceição Martins Santana
  • Jackson Cavalcanti Junior
Considerando a carência de estudos sobre a emergência do movimento homossexual em Pernambuco no início dos anos oitenta do século 20, objetivamos por meio das produções discursivas geradas pela mídia impressa: a) analisar a construção discursiva sobre “movimento político” na produção midiática sobre o Grupo de Atuação Homossexual (Gatho) em Pernambuco, no cenário da redemocratização; b) Mapear repertórios sobre homossexualidade na produção midiática sobre o Gatho e sua ação política; c) Identificar atores e atrizes, entre disputas e coalizões, na conformação das notícias sobre esse grupo. Os resultados apontam que o Gatho buscou se posicionar como sujeito político, confrontando esferas institucionais e abrindo campos de aliança com outros movimentos sociais, partido político e imprensa. Também agiu para a produção de novos repertórios de modo a combater discriminações em torno da homossexualidade, aportando um debate sobre a necessidade de garantia de direitos, historicamente negados à população LGBT.
    Palavras chave:
  • Política
  • Movimento social
  • LGBT
  • Democracia
  • Mídia impressa
Considering the lack of studies about the emergence of the homosexual movement in Pernambuco in the early eighties of the 20th century, we aimed through the discursive productions generated by the printed media: (a) analyze the discursive construction about “political movement” in the media production about the Grupo de Atuação Homossexual (Gatho) in Pernambuco, in the scenario of the redemocratization; (b) map repertoires about homosexuality in the media production about the Gatho and its political action; (c) identify actors and actresses, among disputes and coalitions, in the conformation of the news about this group. The results point out that Gatho sought to position itself as a political subject, as it began to confront institutional spheres and open fields of alliance with other social movements, political parties, and the press. It also acted to produce new repertoires to combat discrimination around homosexuality, contributing to a debate about the need to guarantee rights, historically denied to the LGBT population.
    Keywords:
  • Politics
  • Social movements
  • LGBT
  • Democracy
  • Press media

1 Introdução

O período ditatorial no Brasil, ocorrido entre os anos de 1964 e 1985, foi marcado por bastante repressão política e instabilidade social. Podemos afirmar que várias foram as fases da ditadura militar brasileira, entre elas o período denominado “abertura” política, onde os detentores do poder empreendiam estratégias que afirmavam constituir um projeto de reabertura democrática no país, mas que na verdade tinham como objetivo acalmar a sociedade civil, concedendo o mínimo possível exigido por esta, postergando, assim, uma efetiva democratização (Pereira, 1983).

No entanto, segundo Francisco Carlos Teixeira da Silva (2003), a fase final da abertura política brasileira foi marcada pela oposição popular, pois eram evidentes os sinais de saturação da ditadura. O movimento popular, assim, cresceu e ocupou as ruas, primeiro com o objetivo de lutar pela anistia e pelo retorno de pessoas exiladas, depois, em 1983, a luta se deu no sentido da reivindicação por eleições diretas com o movimento “Diretas Já!”. Nesse sentido:

A proposta de Diretas Já! representava um rompimento radical com a abertura limitada e pactuada que o regime vinha implantando e levaria, através da eleição de um presidente pelo voto direto, com uma Constituinte, a uma ruptura constitucional extremamente desfavorável para as forças que implantaram a ditadura militar no país. (Silva, 2003, p. 273)

Ainda nessa lógica, trabalhadores(as) urbanos(as) e rurais, sindicatos, a ala progressista da Igreja Católica, artistas e intelectuais, a imprensa, entre outros(as) atores/atrizes políticos (as), desempenharam um papel ativo na crítica ao regime, incluindo o seu processo de abertura (Silva, 2003). Diante de todo esse contexto, a promulgação da Lei da Anistia em 1978, o relaxamento da censura e da repressão, entre outros fatores, foram encarados pelos movimentos sociais como oportunidades políticas. Assim, as mobilizações estudantis e sindicalistas, por exemplo, passaram a inspirar outras fontes de protesto. Junto a isso, ao longo da década de 70, o movimento negro começou a se organizar politicamente com o objetivo de denunciar e combater o racismo enraizado na sociedade brasileira. O movimento feminista também passou a se destacar bastante a partir do ano de 1975, com a realização de eventos propostos pela Organização das Nações Unidas (ONU) e relacionados ao Ano Internacional da Mulher (Cruz, 2015).

Nesse contexto foi também marcante a mobilização de vários grupos em defesa dos direitos de pessoas homossexuais (Green, 2014), culminando no surgimento do movimento homossexual em várias regiões do país que, segundo Luiz Augusto Possamai Borges et al., (2020), já apresentava um caráter de intersecção com outras lutas da época, a exemplo dos movimentos negro e feminista e uma troca de experiências em âmbito transnacional, a partir de diálogos com outros movimentos homossexuais, como era o caso da Argentina e de países onde, sobretudo, intelectuais brasileiros(as),

tinham passado o exílio em função da ditadura militar e que, naquele momento, retornavam ao país.

Outro ponto marcante trazido por Borges et al., (2020) diz respeito às novas demandas e questões visibilizadas pelo movimento homossexual da época que, nas palavras de Júlio Assis Simões (2005), vinham “trazendo à cena pública o anseio de que a homossexualidade, como toda forma de amor e desejo, pudesse ser vivida e exaltada sem restrições” (p. 13). Tais reivindicações, articuladas às dos movimentos negro e feminista tensionavam as diretrizes clássicas das lutas políticas promovidas pelos setores de esquerda no país, pautadas, sobremaneira, pelo marcador social de classe e utopia revolucionária macropolítica. Essas novas demandas situavam questões e dilemas específicos vividos por esses atores/atrizes que, em boa medida, passavam pelo reconhecimento de suas identidades culturais, sexuais e pela dimensão de cidadania na medida em que muitos de seus direitos eram negados pela estrutura patriarcal, racista e heterossexista de nossa sociedade.

Esse tensionamento permeou as formas de luta empreendidas pelo movimento homossexual que, embora nessa época assim fosse nomeado, já se colocava em pauta tanto a articulação e coalizão com outros movimentos, como também as diferenças internas pelas demandas de mulheres lésbicas, travestis e transexuais. A insuficiência no caráter de representatividade que o termo “movimento homossexual” adotado na época continha fez com que, posteriormente, se adotasse as siglas como marcadoras dessas diferenças, culminando no que se nomeia hoje por movimento LGBTTQIA+1, numa demonstração expressa da pluralidade de sujeitos(as) políticos(as) e identidades variadas em torno da diversidade sexual e de gênero.

Rodrigo Rodrigues da Cruz (2015) aponta que o movimento homossexual, tendo emergido em meio aos ciclos de protesto no cenário da redemocratização, não se constituiu à margem dos processos de institucionalização política, em especial pela articulação, mesmo que tensa, com os setores da esquerda e, posteriormente, com os partidos políticos, notadamente o Partido dos Trabalhadores que, segundo o mesmo autor, teve uma participação importante de ativistas do movimento homossexual na sua construção. Nessa mesma linha, James Naylor Green (2014) relata aproximações entre ativistas gays e organizações políticas de esquerda, em parte vinculadas a partidos políticos ainda em busca de legalidade dado o regime militar em voga.

Nesses termos, são inúmeros(as) os(as) atores/atrizes que conformaram coalizões e disputas no âmbito do movimento homossexual: coalizões construídas em meio a pautas consensuais em torno dos direitos humanos, cidadania, identidade cultural e disputas e tensões em torno das especificidades das demandas, do nível ou grau de permeabilidade junto ao campo da política institucional, como as organizações de esquerda e os partidos políticos, mais ainda quanto aos confrontos relativos ao Estado autoritário.

Júlio Assis Simões e Regina Facchini (2009), no livro Na trilha do arco-íris: do movimento homossexual ao LGTB, situam a história do Movimento LGBT no Brasil em três ondas. Na primeira (1978-1983), surge o Grupo Somos em São Paulo e o Jornal Lampião da Esquina, o Rio de Janeiro. O período ainda era de ditadura no Brasil, mas dessa forma foi possível dar os primeiros passos para a consolidação do movimento por aqui.

Na década de 1980, o movimento LGBT passou por momentos desafiadores. Nesse período muitos estudiosos e o próprio movimento consideram que houve um relaxamento das lutas. Outros, a exemplo de Cruz (2015), consideram que houve uma mudança de foco do movimento, que direcionou suas ações à política institucional. Esse novo direcionamento introduziu no movimento LGBT o engajamento coletivo no campo da política pública institucional e partidária. Esse engajamento, principalmente no campo da esquerda, fez com que nas eleições de 1982 fossem eleitos para as casas legislativas um número considerável de aliados às pautas LGBT.

É importante considerar que a década de 80 também foi marcada pelo surgimento da AIDS em todo o mundo e que este foi um período de muita desinformação entre a população, gerando pânico e preconceito na e para a comunidade gay. Entretanto, é neste momento de pânico que o movimento social e o governo da época retomam o diálogo na busca por meios de combate à doença em nosso país.

Foi exatamente nessa retomada de diálogo que Júlio Assis Simões e Regina Facchini (2009) situam a segunda onda do Movimento Social LGBT no Brasil (1984-1992). Essa onda foi caracterizada pelo surgimento das primeiras políticas governamentais voltadas ao combate à epidemia de AIDS. A terceira onda (1992-2005) trouxe a realização das primeiras Paradas do Orgulho LGBT e a criação da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT). Este foi um período de muitas conquistas e implementação de políticas públicas para a população LGBT.

A breve historiografia sobre o movimento homossexual brasileiro ora apresentada aponta o conjunto dessas questões (James Green et al., 2018) e situa a variedade dos grupos e coletivos que emergiram em distintas regiões do país. Dentre eles, destaca-se o Grupo de Atuação Homossexual (Gatho), criado no ano de 1980, na cidade de Olinda/PE.

O Grupo Somos de São Paulo, utilizando do espaço de correspondência do jornal Lampião da Esquina, começou a fomentar a criação de outros grupos por direitos da população LGBT no Brasil na década de 80. Desta forma, em uma de suas edições foi publicada a realização do primeiro encontro de homossexuais do País no qual foi apresentada a relação dos grupos que foram criados e, entre eles, estava o Grupo de Atuação Homossexual (Gatho) de Pernambuco (Zanata, 2011).

O Grupo de Atuação Homossexual (Gatho) iniciou suas atividades enquanto movimento social em Pernambuco, sendo o primeiro grupo homossexual organizado do Estado, tendo como objetivo a luta pelos direitos dos homossexuais e o combate à violência em Pernambuco. Um ano depois o Gatho já realizava o 1º Encontro de Grupos Homossexuais Organizados do Nordeste, que se propôs a discutir: repressão policial, familiar, política, no trabalho, na escola, na legislação e nos meios de comunicação de massa. Este encontro também foi relevante pois se propôs a discutir questões pertinentes a travestis, michês e lésbicas, temas ainda não pautados pelo Grupo (Política Estadual de Saúde Integral LGBT de Pernambuco, 2015).

O Gatho passou a ser conhecido em parte pela veiculação de matérias jornalísticas impressas sobre sua fundação, ações desenvolvidas, participação em debates promovidos por entidades acadêmicas, partidárias e sindicais. Também a mídia impressa fazia referência ao movimento em matérias que temas como preconceito, HIV/AIDS, violência policial, cenário político local e atividades culturais, festas carnavalescas se faziam presente.

Nesse sentido, cabe-nos questionar como o Gatho foi assimilado nas matérias jornalísticas como movimento político? Que repertórios são acionados para tratar da homossexualidade nas matérias veiculadas? Que atrizes/atores são convocadas/os em tais produções discursivas e que tensões/alianças se dão entre si?

Desse modo, considerando a carência de estudos sobre esse momento de emergência do movimento homossexual em Pernambuco, bem como as produções discursivas geradas pela mídia impressa (sobretudo jornais de circulação no estado) em torno do Gatho, o presente trabalho tem por objetivos: a) analisar a construção discursiva sobre “movimento político” na produção midiática sobre o movimento LGBT em Pernambuco, no cenário da reabertura democrática; b) mapear repertórios sobre homossexualidade na produção midiática sobre o Gatho e sua ação política; e c) identificar atores e atrizes, entre disputas e coalizões, na conformação das notícias sobre este grupo.

2 Procedimentos metodológicos

O presente artigo se insere em uma pesquisa mais ampla intitulada de “Produções culturais em gênero, sexualidade e direito: agenciamentos possíveis em tempos adversos”. A partir do contato com o campo/tema desenvolvemos uma proposta específica para a dimensão da política na institucionalização do movimento LGBT de Pernambuco.

É importante ressaltar que utilizamos a estratégia da triangulação de pesquisadores(as). Tradicionalmente utilizada nas pesquisas quantitativas, esse tipo de triangulação visa garantir a validação de instrumentos de análise ou avaliação. No presente estudo, o uso da triangulação de pesquisadores(as) se dá como estratégia de garantir uma análise mais rica, densa e plural, na medida em que a escolha dos procedimentos e das categorias passou por processos de negociação entre pessoas diversas (Lyra, 2008; Lyra e Medrado, 2010).

Assim como na pesquisa mais ampla, a perspectiva metodológica adotada parte de uma abordagem qualitativa. Além disso, partimos do referencial teórico/epistemológico feminista em articulação com o Construcionismo Social para nos debruçarmos nos estudos das práticas discursivas e produção de sentidos. De acordo com Mary Jane Spink e Rose Mary Frezza (2013), no estudo das práticas discursivas, é necessário levar em consideração a função, a construção e a variação presentes em tais práticas. A função diz respeito ao discurso como produtor de realidade, como ação. A construção refere-se aos repertórios linguísticos que são utilizados. Por último, a variação é consequência da função e da construção, pois “se o discurso é construído para a ação, diferentes situações implicariam a construção de diferentes discursos” (p. 20).

Como uma das unidades da construção das práticas discursivas, os repertórios são dispositivos linguísticos que utilizamos para construir, caracterizar, avaliar versões das ações, eventos e outros fenômenos (Aragaki et al., 2014). Em outras palavras, são elementos que apreendemos ao longo da vida e utilizamos na produção de sentidos. Assim, com base no estudo dos repertórios, é possível dar visibilidade não apenas aos usos desses repertórios, como também a como os argumentos são construídos (Aragaki et al., 2014).

Diante disso, buscamos analisar, como já apresentado, as práticas discursivas sobre “movimento político” na produção midiática sobre o movimento LGBT em Pernambuco, no cenário da reabertura democrática, por meio de matérias jornalísticas veiculadas sobre o movimento Gatho, o que insere a presente pesquisa na sua relação com os documentos de domínio público. De acordo com Jeferson Bernardes e Vera Menegon (2007), os documentos de domínio público (revistas, jornais, contratos, relatórios, atas, etc.) ao mesmo tempo em que são produtos, também são atores sociais. São práticas discursivas que se expressam nas inter-relações face a face e em textos escritos.

Partimos então da premissa de que os documentos de domínio público são fortes veículos de produção e circulação de sentido. Segundo Peter Spink (2013), tais documentos refletem pelo menos três práticas discursivas que fazem parte integral de qualquer análise, sendo elas: “a peça de publicação, as razões de tornar público, incluindo os endereçamentos e o relato que é tornado público — seu conteúdo” (p. 213).

A proposta de trabalho com materiais de comunicação/mídia consistiu, inicialmente, em uma seleção e organização dos mesmos. Para isso, foi feita uma busca de materiais jornalísticos nas seguintes bases de dados: Hemeroteca Digital Brasileira, Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), como também buscas no Google e no Facebook. Para tanto, utilizamos os seguintes termos: Gatho, Movimento de atuação homossexual. O recorte temporal estabelecido foi dos anos 1980 até 1986, período que situa o processo de abertura política. Resultaram, dessa busca, 31 produções, que foram organizadas em um quadro descritivo, objetivando facilitar a visualização de possíveis elementos analíticos.

O quadro descritivo foi organizado de forma a apresentar as seguintes informações das produções encontradas: fonte (qual base de dados); ano; data de publicação; título da produção midiática; autor/a; periódico (jornal); coluna/sessão; tamanho da coluna (em número de palavras); tamanho do trecho (em número de palavras); se existiam ou não elementos não textuais e link. Esse quadro foi construído em forma de planilha no Microsoft Excel.

A partir dessa visualização geral possibilitada pelo mencionado quadro e da organização das informações, foi proposta a realização de uma leitura situada (“não flutuante”) para identificar possíveis eixos temáticos/analíticos que chamassem atenção de cada um/a dos/as pesquisadores/as. Esse exercício de primeiras aproximações foi sistematizado em forma de um quadro de impressões analíticas, utilizando o Microsoft Word, contendo duas colunas: uma com o eixo temático emergente e a segunda com excertos das matérias previamente encontradas que pudessem exemplificar aquela escolha. Aqui, inicia-se um processo mais aprofundado de aproximação pessoal com as matérias.

Dando continuidade aos procedimentos, um novo quadro de análise foi construído, também no Microsoft Word. Dessa vez, a proposta de preenchimento do quadro continha as seguintes informações: título da matéria; tema central; vozes/interlocutores citados; nomeações sobre gênero e sexualidade; repertórios sobre gênero e sexualidade e, por fim, os aspectos estéticos, ou seja, as percepções dos/as pesquisadores/as sobre a funcionalidade de elementos como cores, formas, personagens, angulações, ambientes dos materiais em análise.

Esse exercício possibilitou a sistematização de matérias jornalísticas que se constituíram como produções discursivas com potencial para dialogar com os objetivos do presente trabalho, problemáticas e objetivos específicos para o cotejo e manejo das informações já organizadas.

3 Resultados e discussão

O processo de apresentação e discussão do material está organizado em eixos, na busca de estabelecer um diálogo com os objetivos do trabalho e as produções discursivas tomadas como foco de análise. Desse modo, estabelecemos os seguintes eixos: Repertórios sobre homossexualidade na produção midiática sobre o Gatho; O Gatho como movimento político na produção jornalística impressa; e Atores e atrizes em coalizões e disputas.

3.1 Repertórios sobre homossexualidade na produção midiática sobre o Gatho e sua ação política

A produção jornalística consultada discorre uma variedade de repertórios alusivos à homossexualidade que de início já se pode apontar um campo de disputas discursivas em torno da nomeação desse ator que se visibiliza pela ação política do Gatho.

De um lado, termos consagrados no imaginário social e nas conversas cotidianas fazem aparição nas matérias, reforçando estereótipos, preconceitos e desqualificação de pessoas homossexuais. Veja-se a título de ilustração a matéria assinada por Arthur Carvalho (1980), intitulada GATHO, em que o autor, mesmo imbuído de um esforço argumentativo de combater preconceitos e defender a liberdade de expressão de homossexuais, recorre a um conjunto de termos discriminatórios, tais como: “sodomita”, “boneca”, bichas”, além de acionar repertórios que associam homossexuais a características como “inteligentes, sensíveis, agradáveis”.

Nesse sentido, há uma relativa literatura sob variadas filiações teóricas que apontam como tais repertórios alimentam estereótipos, estigmas e preconceitos em torno da homossexualidade, com importantes impactos para em seus contextos familiares, laborais e de acesso aos serviços de saúde (Garcia e Souza, 2010; Guimarães, 2018; Lacerda et al., 2002). Por sua vez, a própria classificação dicotômica que circunscreve os sujeitos em heterossexuais e homossexuais, pautada numa estrutura social heteronormativa, concorre para a produção de “hierarquias, desigualdades e opressões, gerando, como efeito de verdade a ilusão de um sujeito estável, dotado de uma identidade expressa em seu “sexo” e, igualmente, comportamentos coerentes e regulares” (Medrado e Carneiro, 2017).

Em busca de desconstruir tais estigmas, o Gatho luta por uma narrativa que destitua a homossexualidade desse lugar marginalizado. Em uma matéria intitulada Bonecas: direito ao prazer é fundamental (Gatho, 1980), o movimento se posiciona em resposta a um jornal da cidade que publicou um texto associando a homossexualidade à criminalidade, denuncia que homossexuais são vítimas de opressão e perseguição, e que o direito ao prazer é fundamental. Nesse material, é possível notar um esforço do Gatho no sentido de se posicionar diante das violências sofridas — sejam elas físicas ou simbólicas — através de uma disseminação de conhecimentos sobre a realidade dos homossexuais e recorrendo a expressões como “homossexualismo”, termo que mais tarde será questionado pelos próprios ativistas do movimento LGBT. O que chama atenção nessa matéria é que, a despeito do jornal ter possibilitado um ‘espaço de fala’ para o Gatho, o título da mesma recorre a um termo altamente pejorativo ao referir-se a homossexuais como “bonecas”, evidenciando tensões em torno dessas nomeações.

Outra matéria que vai ao encontro do que foi apresentado acima, trata-se do pequeno texto intitulado SEXUALIDADE: para onde vão os homossexuais? (Azevedo, 1981). O escritor da matéria cita que “em defesa do homossexualismo”, o Gatho está divulgando uma nota informativa. Mesmo o jornal utilizando um termo de cunho pejorativo — analisando com a perspectiva atual do movimento LGBT — ele endossa o texto do grupo em questão e coloca o trecho desta nota em que o grupo defende: “Afirmamos que a sexualidade (a disposição psicológica do indivíduo para a sua satisfação sexual) nada tem a ver com o sexo biológico (o fato de ser homem ou mulher). Sexualidade é algo muito mais amplo que a relação homem-mulher reconhecida e estabelecida socialmente. Entendemos que na nossa sociedade a repressão à sexualidade não está isolada das outras formas de repressão social”. Assim, ao problematizar formas discursivas tradicionais sobre o que se entende por sexualidade, o movimento abre possibilidades de inaugurar práticas discursivas que desloquem concepções arraigadas e lancem para o debate público, ensejando a dimensão de variação presente em tais práticas (Spink e Frezza, 2013).

Podemos notar, então, uma importante iniciativa do Gatho no sentido de buscar modificar os repertórios alusivos da época acerca da homossexualidade, repertório esse bastante acionado pela mídia jornalística. O artigo de Carlos Humberto Ferreira Silva Júnior (2019) discorre acerca desse aspecto quando discute sobre o Lampião da Esquina, jornal criado em abril de 1978 que tinha entre os seus objetivos realizar críticas à forma como os veículos de comunicação retratavam a homossexualidade. Estes veículos, em grande parte das vezes, criavam uma imagem bastante estereotipada dos homossexuais, ligando-os, além disso, até mesmo à criminalidade no intuito de fomentar o preconceito contra gays.

Ainda nessa lógica, esforço semelhante empreendido pelo grupo aparece em outros espaços, como constam em algumas matérias como Flagrantes (“Flagrantes”, 1980) e Homossexualismo é tema de debates hoje na Católica (“Homossexualismo é tema…”, 1980). Essas matérias se configuram como um material de divulgação da participação do GATHO em espaços onde a homossexualidade seria um tema de debates e discussões. No caso das matérias supracitadas, é divulgada a participação do Grupo de Atuação Homossexual em um seminário intitulado “A Questão Homossexual”, ocorrido no curso de Psicologia da Universidade Católica de Pernambuco e promovido pelo Grupo de Estudos Psicanalíticos – Greps. Ambas apontam que a participação do Gatho no evento foi através da apresentação de depoimentos, mas não explicitam quais os conteúdos desses depoimentos.

O grupo também participou do Encontro Científico de Estudantes de Medicina (ECEM), como consta na matéria intitulada Ecem (Chaves, 1982). Todavia, ao contrário da participação citada no parágrafo anterior, nesse caso o material jornalístico deixa mais explícito de que forma se deu a atuação do Gatho nesse evento. O grupo organizou um curso, através de palestras e debates, sobre o que o jornal chama de “questão homossexual”. Além disso, a participação do grupo no referido evento seria encerrada com as falas do próprio, bem como do grupo Auê do Rio de Janeiro, do Grupo Gay da Bahia e do Nós Também, de João Pessoa. De acordo com a matéria, essas falas teriam como objetivo explicitar as causas de surgimento de cada um desses grupos, do trabalho que realizavam em suas respectivas comunidades, e das perspectivas do Movimento Homossexual no Brasil.

Os jornais AUÊ e Movimento também trazem em suas matérias, citadas anteriormente, uma crítica aos meios midiáticos da época uma vez que pontuam o caráter estigmatizante dos meios de comunicação quando vão retratar o movimento LGBT. Irineu Ribeiro (2010 apud Araújo, 2020) faz a mesma crítica aos meios de comunicação em seu livro intitulado A TV no Armário. Ribeiro critica a forma estigmatizante e pejorativa que a mídia retratou a Parada do Orgulho LGBT de São Paulo no ano de 2007. O autor afirma que os meios de comunicação mostravam as formas mais caricaturadas da comunidade LGBT a partir das Drag Queens e que isso ia de encontro com o que o próprio movimento LGBT luta: a diversidade e pluralidade.

É válido analisar como um posicionamento heteronormativo também é cobrado, por parte de alguns leitores, dos jornalistas. Na matéria intitulada GATHO e GGB (Carvalho, 1983), o escritor cita que recebeu diversas mensagens chamando-o de “virando a casaca” e “assumindo definitivamente” unicamente pelo fato de que este jornalista apoiou o grupo Gatho em uma outra matéria. Eudes Araújo (2020) fez uma análise, com base no fundamentalismo cristão, de como a mídia pode se valer de repertórios caricaturados, pejorativos e estigmatizantes para que o seu público aceite tal matéria e tenha mais aversão ao conteúdo apresentado. Rondini et al., (2017) chamam essa imposição colocada pelos leitores do jornal sobre o escritor como “Ditadura Heteronormativa”, isto é, o padrão heterossexual e cisgênero que é colocado como verdade absoluta e que deve ser seguido e legitimado pelos cidadãos. Quando Arthur Carvalho apoiou o grupo Gatho, ele saiu desse padrão esperado e recebe tais críticas dos leitores.

É possível notar, assim, que parte considerável da ação política do Gatho se dava no sentido de promover discussões que enriquecessem o debate acerca da homossexualidade, não só para pessoas que se identificavam com orientações sexuais consideradas, na época, desviantes, mas para a sociedade em geral. É possível que, com isso, o grupo buscasse superar o ideário popular que ligava sempre a homossexualidade a elementos negativos, como a criminalidade, o que era reforçado pela mídia da época. Essa promoção da discussão se dava, como analisado, a partir de atos presenciais, como nos eventos promovidos pelo próprio grupo ou os quais ele era convidado, ou por meio de notas de repúdio e de informações que eram enviadas aos jornais locais.

Em diálogo com um dos ex-integrantes do grupo, nos foi informado que, á época, o Gatho realizou palestras num clube de mães, em bairro de periferia da cidade de Recife, quando inclusive receberam placa alusiva a essa participação e também foram entrevistados no programa “Super Manhã”, do radialista Geraldo Freire, quando ele estava na Rádio Clube de Pernambuco.

O Gatho cumpria, assim, uma importante ação de lançar junto ao campo social, novas práticas discursivas que pudessem disputar ou inaugurar repertórios em torno da homossexualidade, para além de seu caráter estigmatizado, gerando efeitos de subjetivação em sintonia com os anseios de abertura democrática da época.

3.2 O Gatho como movimento político na produção jornalística impressa

Algumas matérias apresentam o Gatho como um movimento recentemente criado para tratar da defesa dos direitos de homossexuais, de combater os preconceitos dirigidos a esse grupo, divulgando à cena pública um conjunto de ações do movimento que vão permitindo sua inserção no campo político, seja no sentido da relação com outros movimentos, seja com agentes da política institucional (partidos políticos, agentes do Estado), na perspectiva de que essa relação possa implicar não só na visibilidade da “questão homossexual”, como tratada em algumas matérias, mas de abrir um espaço de conquistas de direitos para esse segmento social.

Nesses termos, Fernanda Ximenes e Benedito Medrado (2017) destacam que a agenda de alguns movimentos sociais tem se pautado em referências identitárias (a exemplo do movimento negro, feminista e LGBT) de modo a possibilitar a emergência de sujeitos políticos que acionam disputas em torno dessas referências. É o que sugere a matéria veiculada no dia 27 de julho de 1986 no Diário de Pernambuco, intitulada Orientação sexual (Craveiro, 1986), em que o Gatho recorre à defesa da expressão orientação sexual a fim de minimizar os efeitos discriminatórios sobre a homossexualidade. A matéria informa:

O Grupo de Atuação Homossexual de Pernambuco enviou ofício ao presidente da comissão de estudos constitucionais, Afonso Arinos de Melo Franco, no sentido de reafirmar a não discriminação do cidadão pela cor, pelo credo, pela raça e pela ‘orientação sexual’. O ponto básico é este: o Grupo defende a expressão orientação sexual; para ele, o que melhor qualifica o conjunto da hetero-homo-bissexualidade. (p. A-11)

A comissão, criada pelo então presidente José Sarney em 1985 e composta de variados intelectuais do meio jurídico, tinha como finalidade redigir uma proposta que auxiliasse o Congresso Nacional nas discussões sobre a futura constituição brasileira, promulgada em 1988 (Salgado, 2005). A autora discute que a referida comissão acabou não tendo sua proposta apreciada pela Assembleia Constituinte após intensos debates entre os parlamentares da época, uma vez que a defesa de alguns deles era pela presença direta de entidades e organizações da sociedade civil na elaboração do texto constitucional, embalados pela atmosfera de luta pela democracia que tomava corpo no país. Esta proposta também não foi aprovada. Interessante se faz observar a partir da matéria como o Gatho se filiou e se inseriu nessa atmosfera, na medida em que provoca atores institucionais a considerar demandas do movimento que então se figuravam pela referência identitária.

Outras matérias, publicadas anteriormente, dão conta de como a articulação política do Gatho ganhava dimensões regional e nacional, ao divulgar os encontros por ele realizados ou dos quais participou, como o evento preparatório para o II Encontro de Homossexuais Organizados, ocorrido no Rio de Janeiro, contando com a participação de representante dos grupos de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizonte, Bahia e Recife-Olinda (Chaves, 1980) e o 1º Encontro de Grupos Homossexuais Organizados do Nordeste, ocorrido em Recife, que contou com a participação do Grupo de Atuação Homossexual, do Nós Também, de João Pessoa, do Grupo Gay da Bahia, de Salvador e do Adé-Dúdu, também de Salvador. A matéria intitulada de Encontro (Chaves, 1981a) informa que o objetivo do mesmo foi fortalecer, em toda a região, o ativismo homossexual, bem como promover debates sobre a atuação, dinâmica e especificidades regionais de cada grupo.

Nesse contexto, não podemos deixar de destacar que, para além dos objetivos que o material jornalístico apontou em torno desses encontros, também possibilitavam um espaço de socialização em uma época que ainda se presenciava atos de repressão (MacRae, 1997). Dessa forma, a reunião desses grupos possivelmente também era uma possibilidade de encontros entre colegas e amigos, que lutavam por uma mesma causa.

Assim, por meio da mídia impressa é possível vislumbrar como o movimento homossexual vai se constituindo de forma relativamente articulada entre os estados do país, buscando uma visibilidade mais ampla no cenário nacional e regional, embora sem desconsiderar as particularidades locais em que está inserido, na costura de parcerias com outros atores/atrizes que, entre coalizações e disputas, vai se tecendo como movimento político. É o que será tratado no tópico a seguir.

3.3 Atores e atrizes em coalizões e disputas

Neste tópico do texto nos debruçaremos sobre os atores e atrizes evocados nas matérias jornalísticas analisadas. Para tanto, nos inspiramos no modelo de análise de Araújo Júnior (2000). O autor, realizando uma discussão sobre atores e atrizes de uma política pública, aponta que estes e estas podem ser pessoas, organizações sociais, instituições, que contribuem direta ou indiretamente na construção da mesma. Ainda, segundo ele, nesse processo de análise, é necessário atentar-se às seguintes etapas: 1) identificação dos/as principais atores e atrizes; 2) observar suas posições e mobilizações em relação à política; 3) compreender as relações de forças, como também possíveis alianças e disputas.

Apesar da temática aqui em questão não ser sobre construção de políticas públicas, consideramos o modelo de Araújo Júnior (2000) interessante para pensarmos os atores e atrizes em coalizões e disputas na construção discursiva sobre “movimento político” LGBT de Pernambuco. Diante disso, nosso primeiro movimento foi o de identificar os/as principais atores e atrizes que entram em cena na temática aqui trabalhada, que foram agrupados a partir das categorias (tabela 1).

É importante salientar que em nossa análise não tivemos como foco observar a frequência ou variedade de atores e atrizes. Nos interessou observar o uso discursivo desses/as atores e atrizes diante da construção argumentativa das matérias jornalísticas sobre a formação do Gatho.

Atores / atrizes Descrição
Imprensa Pessoas e/ou grupos vinculados aos meios de comunicação. Aqui também se faz referência a jornais.
Movimentos sociais e artísticos Movimentos sociais organizados como movimento feminista e outros movimentos homossexuais. Também aparecem aqui “os negros”, “os índios”, “as mulheres”, “os trabalhadores”, Pessoas e/ou grupos voltados para questões artísticas, incluindo blocos carnavalescos, atriz, ator, escritores/as.
Partidos Políticos Pessoas e/ou grupos referenciadas a partir da identificação político-partidária
Comunidade acadêmica Pessoas e/ou instituições vinculadas ao ensino superior. Inclui universidade, professores/as, estudantes, cursos de graduação, centros de pesquisa, diretório acadêmico.

Tabela 1

Atores e atrizes identificados nas matérias jornalísticas

3.3.1 Imprensa

A imprensa aparece com uma marca paradoxal em suas produções discursivas em torno da homossexualidade e do movimento homossexual. Por um lado, se posiciona de modo a se aliar com o Gatho, abrindo-lhe espaço para publicação de notícias sobre o movimento ou textos do próprio Gatho, por outro, sustenta formas discriminatórias e estigmatizantes com as quais o movimento passará a combater inclusive no âmbito da imprensa jornalística.

A matéria Bonecas: direito ao prazer é fundamental (Gatho, 1980) corresponde a uma nota enviada à imprensa pelo Gatho em que contra-argumenta a publicação de um jornal local que associava homossexuais à criminalidade. O movimento busca desconstruir o texto jornalístico denunciando o modo preconceituoso e estigmatizante com que tratou a questão. Assim afirma o Gatho na nota:

Crimes envolvendo heterossexuais acontecem todos os dias. Entretanto, a imagem vendida pelos jornais mostra um dado estatisticamente falso, isto é, que homossexualismo gera violência. É flagrante o desrespeito ao homossexual em prol de uma maior rentabilidade para o jornal, com o aumento substancial da tiragem diária. A nível de (sic) opinião pública, a consequência mais desastrosa é o reforço da discriminação. (p. A-7)

Benedito Medrado (2013) chama atenção para o modo como, na atualidade, a mídia se configura como uma poderosa força em nosso cotidiano. Afirma: “É inegável que, na sociedade contemporânea, a mídia assumiu um papel fundamental no processo de construção e circulação de repertórios, tendo em vista, principalmente, sua afluência de público e, consequente influência sobre o cotidiano das pessoas” (p. 216-217). Em sua contra-argumentação, o Gatho parece entender essa influência, ao ver na matéria em questão sua capacidade de fazer circular repertórios na esfera social que contribuam para a perpetuação e o reforço de repertórios e práticas discursivas desqualificadoras e estigmatizantes em torno da homossexualidade.

Já na matéria de nome Sexualidade (Chaves, 1981b), o jornalista refere que um informativo escrito pelo Gatho tem ganhado visibilidade em meios sindicais, jornalistas e políticos. Endossado pelo colunista da matéria que nela reproduz parte da nota, o Gatho chama atenção para que se problematiza a sexualidade não como uma dimensão restrita a uma condição biológica, mas psicológica e social e que sua repressão não está dissociada de uma repressão também social. Aqui podemos mirar como, diferentemente da situação anterior, há uma possibilidade de aliança entre integrantes da imprensa com o ideário defendido pelo movimento.

3.4 Movimentos sociais

O contexto de redemocratização brasileira é o momento, como já citado anteriormente, de efervescência da participação popular, representando um papel de crítica ativa ao regime (Silva, 2003). É nesse cenário que os movimentos sociais como os movimentos negro, feminista e homossexual emergem na cena política na luta pelos direitos humanos. Diante disso e não à toa, são esses atores e atrizes que são nomeados nas reportagens para a construção argumentativa que fortalece o GATHO.

Nas reportagens, em geral, esses movimentos são mencionados não como movimento político, mas como “os negros”, “as mulheres”, “os trabalhadores”, “os índios”. Tais atores e atrizes são acionados como “minorias perseguidas”, como refere Arthur Carvalho (1980) em sua reportagem sobre o Gatho. Segundo o jornalista, “acho que não somente os homossexuais como qualquer minoria perseguida tem o direito de se organizar para enfrentar as maiorias opressoras” (p. A-7). Cabe-nos questionar se a identificação desses grupos não como movimento político, mas pelo traço identitário, teria relação com a não ocorrência de uma institucionalização desses movimentos no âmbito local no período de divulgação da matéria, ou se denuncia um não reconhecimento dos mesmos como atores/atrizes políticos/as.

O Gatho, em uma nota defendendo o direito ao prazer, também convoca essas referências identitárias ao dizer que “os homossexuais, os negros, as mulheres, os índios e os trabalhadores são forçados a uma condição indigna para o ser humano” (Gatho, 1980).

Como já referido no presente texto, a emergência do movimento homossexual não se fez particularizada ou descolada de outras formas de luta política, mas buscando coalizões e ponto comuns de demandas que passavam, em boa medida, pela violação de direitos, pela discriminação (de cor, gênero e orientação sexual). Se inicialmente essas coalizões eram compostas por subgrupos definidos por suas marcas identitárias, assistiremos com os efeitos práticos dessas alianças e com reflexões advindas da crítica feminista, uma discussão que reconhece que essas identidades subordinadas se intercruzam e se interpenetram, de modo que os processos de opressão se realizam de forma combinada, como discute Kimberlé Crenshaw (2002), ao abordar o conceito de interseccionalidade para dar conta desse processo que entrecruza as formas de exploração e opressão.

3.4.1 Partidos políticos

A abertura política ensejou grandes debates nacionais em torno da criação de alguns partidos políticos, sobretudo de esquerda, que buscaram incorporar em suas agendas as inúmeras demandas de movimentos sociais, grupos políticos e entidades sindicais. Nesses termos, o então criado Partido dos Trabalhadores (1980) foi um dos que estabeleceu importantes aproximações com o movimento homossexual e posteriormente LGBT (Cruz, 2015). Houve importantes fluxos entre o movimento e o partido e podemos entender parte desse processo a partir do que destacam Simões e Facchini (200) quanto à organização política do movimento LGBT ter sido capaz de incidir em diversos segmentos da sociedade, projetando grande visibilidade nacional em torno de suas pautas.

No caso do movimento pernambucano não foi diferente. As aproximações entre ambos também renderam algumas matérias jornalísticas, como a que destaca a participação do Gatho na convenção estadual do Partido dos Trabalhadores, no ano de 1981 em que o partido discutia o lançamento de candidaturas próprias para o governo do Estado e senado federal. Assinada por Adalberto Ribeiro (1981), a notícia destaca a presença do movimento, inclusive com um tom intrigante:

Chamar de festiva é pouco para descrever a convenção do PT. Houve apresentação de grupos folclóricos, discussão política, protestos contra a política dos Estados Unidos em El Salvador e a ditadura da Polônia, e até a presença de um chamado (grifo nosso) “grupo de atuação homossexual” que foi levar solidariedade ao Partido dos Trabalhadores. (p. A-2)

Estaria o jornalista lançando a existência do Gatho a um nível de irrelevância política? Estaria ele desavisado das modalidades de luta política inauguradas para além dos repertórios tradicionais da militância naquele contexto?

Talvez a notícia veiculada sob o título de Cientistas sociais vão debater quadro político (“Cientistas sociais vão…” 1982), seja a mais evidente em enunciar as inúmeras coalizões estabelecidas entre partidos políticos e movimentos sociais naquele contexto. A matéria faz alusão a um seminário organizado por acadêmicos da Universidade Federal de Pernambuco em parceria com fundações locais, movimentos sociais e partidos políticos para “examinarem o processo de absorção das demandas da sociedade pelas organizações partidárias em geral” (p. A-4). O Gatho esteve presente em uma sessão do seminário denominada “As Minorias e os Partidos”. Cruz (2015) pontua que essas relações são por vezes tensas e ensejam graus de complexidade em seu processo de análise, uma vez que põem em xeque dicotomias consolidadas entre, de um lado, a política institucional e, de outro, os movimentos sociais, de modo a considerar que essas fronteiras parecem mais porosas do que se imagina e os fluxos entre atores e atrizes da cena política são carregados de idas e vindas com efeitos variados em seus modos de condução das agendas de luta.

4 Considerações finais

A emergência do movimento homossexual em Pernambuco, a partir do Grupo de Atuação Homossexual – Gatho, deu-se, como em grande parte do país, situada no cenário de efervescência da abertura política em que inúmeros movimentos sociais ganharam destaque.

Ao retomar os nossos objetivos para o presente trabalho, destacamos que chamou a atenção que, desde o início, o Gatho forjou parcerias e coalizões com outros movimentos homossexuais da região Nordeste e mesmo do país, imprimindo um caráter ampliado das demandas por direitos negados, de denúncia das inúmeras violações sofridas e das variadas formas de preconceito e discriminação vividos pela população homossexual em todo o país. Assim, foram intensos os encontros, reuniões e trocas de experiências. Embora a pauta política do movimento fosse construída pela referência identitária como uma nova marca nas formas de ativismo político, não impediu que alianças pudessem ser costuradas a fim de se estabelecer lutas ampliadas e que atendessem pontos comuns dos sujeitos políticos em disputa.

Dessas alianças, os movimentos sociais e o partido político se destacaram nas matérias analisadas no presente estudo. Com ambos, o Gatho pôde estabelecer aproximações, organizar ações políticas e se fazer visível enquanto ator político. A imprensa pode ser vista como uma referência ambígua na sua relação com o movimento, na medida em que suas matérias mediavam repertórios, ora legitimando a ação do movimento, ora ampliando as formas de preconceito e discriminação. Nesses casos, o movimento tratava de produzir uma contranarrativa que, abrindo diálogo com a sociedade, pudesse minimizar os efeitos danosos que tais matérias tinham junto ao público leitor.

Também podemos destacar como o Gatho se mobilizou para redimensionar o campo discursivo em torno da homossexualidade, buscando superar repertórios distorcidos, estigmatizantes e patologizantes em favor de uma linguagem que pudesse comunicar a complexidade que envolve o tema da sexualidade humana e sua relação com as instituições sociais.

Por fim, esperamos que pesquisas futuras possam aprofundar alguns aspectos desse momento histórico fundamental de germinação de um importante sujeito político na cena pernambucana, a exemplo da relação do Gatho com os movimentos culturais e artísticos da época, bem como do legado que esse período construiu para novos(as) atores e atrizes da cena LGBT pernambucana.

Agradecemos ao CNPq pelo suporte financeiro à presente pesquisa.

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