Ao longo da história ocidental, a maternidade vem sendo descrita por diversos autores como um valor social inseparável à condição da identidade feminina (Priore, 2007; Swain, 2007). Na cultura ocidental, a mulher tende a ser vista a partir de sua natureza biológica, e consequentemente, sua capacidade de gerar e ser mãe está associada à construção de sua identidade como mulher (Badinter, 1998). Esta ideia vai ao encontro da prescrição patriarcal, regulada por mitos e discursos, que pressupõem que a maternidade é uma experiência fundamental ao sentimento de completude das mulheres (Narvaz e Koller, 2007).
Tais concepções são corroboradas pelo estudo de José Luis A. Estramiana e Beatriz F. Ruiz (2006) que, através da análise das representações sociais do corpo da mulher, revelaram o quanto esse corpo representa o símbolo da reprodução e da fecundidade, em que o papel de mãe é enaltecido como a perfeição dos valores de uma sociedade. Desta forma, o corpo da mulher é utilizado para gravar normas morais e a biologia feminina justifica tal ordem social como uma ordem natural.
Para contrapor as ideias normativas de feminilidade, maternidade e os discursos de maternidade compulsória, os estudos feministas junto aos estudos de gênero (Nogueira, 2001; Rocha-Coutinho, 2003; Strey, 2007; Swain, 2007), surgiram para romper com tais pressupostos, muitas vezes legitimados pela ciência normativa e sexista, presentes no discurso acadêmico-social. Gênero é fundamentalmente conceituado como uma construção social, histórica e linguística – diferente de sexo que se refere à identidade biológica de uma pessoa. Consequentemente, gênero é um conceito plural e se transforma ao longo do tempo, contrapondo-se aos argumentos essencialistas que entendem que há uma essência feminina ou masculina natural, universal ou imutável (Louro, 1996). Segundo Martha G. Narvaz e Silvia H. Koller (2007), produções discursivas legitimam desigualdades de gênero e normatizam papéis e lugares nas relações. Marlene N. Strey (2007) complementa apontando que as interações familiares promovem a construção de ideologias e estereótipos de gênero que são transmitidos transgeracionalmente e implicando consequências importantes sobre como os papéis de gênero serão vivenciados em cada família e reproduzidos na sociedade.
Jessie Taft (em Dauder, 2004), em 1915 publicou uma tese pioneira nos estudos feministas apontando os conflitos psicológicos e os constrangimentos sociais sofridos pelas mulheres do início do século XX. Tal estudo aborda a ética familiar e a ética do trabalho, demonstrando o quanto as mulheres estavam destinadas a viver em um isolamento doméstico, cumprindo funções de esposa e mãe. Ao questionar: o que se espera da mulher cujo único entorno reconhecido é o lar? A psicóloga e assistente social norte-americana argumentou que enquanto a sociedade seguir considerando os valores centrados nas mulheres e na família, elas seguirão recebendo passivamente os valores de uma sociedade mais ampla, sem o direito e oportunidade à crítica (Dauder, 2004).
Passados cem anos da publicação dessa tese, escrita por uma mulher à frente de seu tempo, e que sofreu duras consequências em função disso, pode-se considerar, que tais “descobertas” abriram caminho para debates importantes em torno do papel da mulher na sociedade. No entanto, predominou ao longo de todo o século XX estudos e teorias voltados a afirmar diferenças sexuais para sustentar a inferioridade feminina (Nogueira, 2001).
As heranças de valores ancorados na lógica do patriarcado ainda são profundas e estão enraizadas em parte da sociedade atual. Exemplo disso são os diferentes estudos (Barbosa e Rocha-Coutinho, 2007; Souza e Ferreira, 2005; Trindade e Enumo, 2002) que demonstram que a concepção da maternidade como essência da condição feminina ainda se faz presente nas representações sociais de grande parte das mulheres. Quando as mulheres são mães, estas se sentem reconhecidas socialmente. Por outro lado, as mulheres não-mães são estigmatizadas, desvalorizadas e recebem rótulos negativos por não atenderem às expectativas sociais, sendo vistas como mulheres incapazes de sustentar relações pessoais e /ou que canalizam suas carências para o trabalho. O peso de tais estereótipos e preconceitos interfere negativamente na autoestima das mulheres não-mães.
Neste sentido, se uma mulher já está em desvantagem frente à sociedade, apenas por ser mulher, uma mulher que não é mãe, estaria à margem de tudo que se esperaria da condição feminina. Em função disso, Strey (2007) destaca que a pressão cultural sobre as mulheres, no que concerne à competência na maternidade, pode ser considerada como uma das mais fortes e persistentes.
Seguindo essa lógica, qual o papel de uma mulher? O que cabe a ela enquanto pessoa do sexo feminino realizar para a sociedade? São tais questionamentos que emergem numa tentativa de construir parâmetros de conduta, resultado de uma sociedade normalizadora (Moreira e Nardi, 2009), e, embora não existam respostas para tais questionamentos, a busca por conceitos explicativos com suportes teóricos a tais dúvidas é constante, contraditória e paradoxal.
Outro paradoxo da nossa sociedade atual é encontrado nos estudos feministas de Lisandra E. Moreira e Henrique C. Nardi (2009), os quais trazem uma atualização nas normas do exercício da maternidade na contemporaneidade, incluindo um conjunto de exigências a um modo de ser mãe. Três enunciados destacam-se: o número de filhos adequado (dois é bom), o tempo e a idade certos de ser mãe (por volta dos 30 anos) e as condições econômicas para a maternidade. Essa norma da maternidade, apesar de ser produzida socialmente, passa a ser naturalizada e produz um modo de ser mãe que passa a ser considerado mais adequado, enquanto outras maternidades passam a ser desprestigiadas.
A maternidade, então, não pode ser tratada como uma norma e sim como uma possibilidade na vida das mulheres. O desenvolvimento humano abrange processos de maturação inexoráveis a constituição de “ser humano”, no entanto as etapas de vidas, e mais especificamente, as estruturas vitais, são singulares e apresentam um componente psicossocial importante na forma como cada indivíduo constrói sua trajetória ao longo da vida.
Ancorado nos pressupostos de sua teoria do Desenvolvimento, Daniel Levinson (1996) propõe que as estruturas vitais são constituídas de vários componentes, tais como: casamento/família, ocupação, rede de amizades, envolvimento com a comunidade, tempo livre e lazer, religião e assim por diante. Suas descobertas empíricas sobre o processo de desenvolvimento apontam que os adultos se desenvolvem por meio da alternância de períodos de relativa continuidade ou construção da estrutura, com períodos de transição ou mudança de estrutura. Em sua concepção teórica, as transições vitais se centraram nos aniversários dos 20, 30, 40 anos e assim por diante. Esses aniversários são marcos críticos, nos quais as pessoas necessitam superar determinadas tarefas desenvolvimentais a fim de alcançar outro patamar evolutivo de vida. Levinson (1996) afirma que a habilidade de criar, revisar e recriar estruturas vitais satisfatórias depende de um crescente processo de individuação ao longo do tempo. Isso significa conhecer as próprias forças, fraquezas, desejos e valores suficientemente bem para fazer boas escolhas na direção do que a própria pessoa deseja, em detrimento das vontades e expectativas dos outros.
No entanto, Connie J. G. Gersick & Kathy. E. Kram (2002), apontaram uma lacuna entre o trabalho inicial de Levinson e as ideias das teóricas feministas, pois não se pode afirmar como as mulheres idealmente se individuam e desenvolvem suas vidas e vínculos, já que as mesmas sofrem opressões quanto ao seu papel na sociedade. Desse modo, este estudo parte do objetivo de investigar a maternidade enquanto componente do ciclo vital das mulheres, buscando descrever os processos de individuação e de libertação emocional, segundo a teoria de Levinson (1996), e compreender os fatores que limitam e tornam as mulheres cativas de normas, papéis, comportamentos impostos e dos quais não conseguem se libertar (Burlae, 2004). Nesse sentido, o presente trabalho busca identificar as estruturas vitais relacionadas às vivências de maternidade, buscando conhecer os aspectos limitadores e facilitadores de tais vivências, a partir do levantamento do relato biográfico de seis mulheres entrevistadas.
Diante disso, a proposta deste estudo é problematizar a questão da maternidade, utilizando o dito, o não dito, o que é esperado, o que está posto, o que está escrito, prescrito... Enfim, busca-se a partir deste estudo ampliar a discussão e o conhecimento sobre tão complexo e contraditório conceito, que faz parte das estruturas vitais de tantas mulheres e é capaz de produzir vivências de liberdade ou de cativeiro, nem sempre reconhecidas por elas como tais.
Para dar conta dos objetivos propostos, este estudo tem um delineamento exploratório-descritivo de caráter qualitativo. As participantes são seis mulheres com mais de 40 anos de idade, não havendo limite de idade a partir dessa faixa etária. A escolha pela idade inicial parte da teoria do Desenvolvimento de Levinson (1996) que entende que o desenvolvimento adulto de uma pessoa perpassa pelas diversas possibilidades de estrutura vital. Assim, entende-se que as mulheres acima de 40 anos já viveram tempo suficiente para lidar com questões de desenvolvimento e poderiam contribuir substancialmente no estudo sobre a vida das mulheres. A escolha das participantes foi por conveniência, e deu-se a partir dos relacionamentos e indicações das pessoas envolvidas no Grupo de Pesquisa que executou a investigação.
Foi utilizada a Entrevista Biográfica proposta por Gersick e Kram (2002). Nesta entrevista são previstos três encontros com cada participante, onde são tratados temas relativos à vida das mesmas, no sentido do passado, presente e futuro, utilizando-se uma entrevista semi-estruturada.
Os dados obtidos nas entrevistas foram analisados à luz da Análise do Discurso, proposto por Rosalind Gill (2002), baseando-se nos pressupostos epistemológicos dos estudos de gênero, perspectiva feminista, teoria do Desenvolvimento de Levinson (1996) e visão sistêmica. O primeiro passo para a análise dos dados foi a transcrição literal das entrevistas. Após imersão no corpus do texto, foi feita a análise temática, ou seja, a procura por temas com conteúdo comum e pelas funções desses temas. Embora o corpus do texto possa estar aberto a uma multidão de possíveis questões, a análise dos dados interpretará o texto à luz do referencial teórico que incorpora o objetivo desta pesquisa (Bauer e Gaskell, 2010). Assim, a partir dos relatos das mulheres, este estudo buscou conhecer como o conceito de maternidade é compreendido e vivenciado, procurando destacar vivências de libertação e cativeiro, segundo a Teoria do Espaço Consciente de Krista K. Burlae (2004). A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da PUCRS, sob o protocolo CEP: n° 1009/07.
Dentre as seis mulheres selecionadas para as entrevistas, foi possível traçar um perfil com características específicas de cada um das participantes, que são apresentadas com nomes fictícios, todos iniciando com a letra A: Ariane tem 40 anos, é casada, tem 1 filho, possui curso superior e trabalha como empresária; Aline tem 42 anos, é casada , tem dois filhos, possui ensino médio e trabalha como empresária; Ângela tem 42 anos, é solteira, não tem filhos, possui curso superior e trabalha no setor financeiro; Anita tem 53 anos, é solteira, tem 3 filhos, está cursando a faculdade, é funcionária pública e investe na carreira artística; Antônia tem 57 anos, é divorciada, tem 3 filhos, possui curso superior e MBA e trabalha em um cargo político; Antonieta tem 72 anos, é viúva, tem 15 filhos, cursou o ensino fundamental e trabalhou no meio rural.
Os resultados deste estudo serão apresentados procurando destacar como os discursos sobre a maternidade se apresentam nas falas das seis mulheres entrevistadas. O conteúdo das narrativas acerca da maternidade será apresentado em quatro tópicos, elaboradas a partir do aporte teórico das estruturas vitais proposto por Levinson (1996): Vivências da maternidade enquanto filhas; A (não) escolha pela maternidade; Vivências da maternidade e Expectativas futuras acerca da maternidade.
Das seis mulheres entrevistadas, três delas trouxeram a relação com suas mães em suas falas. As vivências da maternidade, no que concerne a aspectos como vínculo e cuidado, são transmitidas transgeracionalmente pelas famílias, e tem um importante papel na forma como maternidade é concebida nas gerações posteriores. Essas situações podem ser verificadas a partir dos relatos das entrevistadas:
Anita (53 anos) relata que sua mãe morreu quando ela tinha cinco anos, mas tem lembranças boas desse período: “E acho que iria voltar para isso. Pra esse aconchego, pra família, pai, mãe, casa bonita, casa pintada, minha mãe impecável nas coisas, sempre tudo limpinho” (Anita, entrevista pessoal, 23 de agosto de 2011). Após esse período, ela passou a viver com os avós de origem humilde. Dessa época, Anita destaca os aspectos de pobreza e os valores familiares que aprendeu:
A minha família é muito pobre (...) e eles não tinham uma grande preocupação em nos colocar na escola, pra estudar, mas eles tinham a preocupação da honestidade, os filhos tinham que ser honestos, tinham que ser verdadeiros, lá em casa não era admitida a mentira” (Anita, entrevista pessoal, 23 de agosto de 2011).
Anita destaca o avô como figura modelo para a sua formação: “Essas orientações que ele tinha pra mim foi fundamental, porque isso vai te dando uma base, uma base de sentimento, uma base de curiosidade de querer saber mais, de querer ir mais” (Anita, entrevista pessoal, 23 de agosto de 2011).
A vivência de Anita revela que a maternidade pode ser exercida por diferentes pessoas, não ficando colada na figura da mulher, podendo circular entre homens e mulheres, e entre membros da família. Apesar da prescrição normativa patriarcal, há famílias que inventam outros papéis familiares e relações na cotidianidade de suas experiências (Narvaz e Koller, 2006). Gláucia Diniz e Vera Coelho (2005) colocam que não existe um único modelo de família e, na verdade, desconhecemos a multiplicidade de organizações familiares.
Ângela (42 anos), ao contrário de Anita, mantém uma relação bastante próxima com sua mãe até os dias atuais, e os aprendizados que teve com ela, enquanto mãe e mulher estão muito presentes na forma como ela construiu e percebe a sua vida: “O que me trouxe até aqui acho que foi o que a minha mãe me passou” (Ângela, entrevista pessoal, 10 de outubro de 2011). Ângela relata que ela e sua mãe tiveram grandes dificuldades para sobreviver. Sua mãe teve de abdicar de muita coisa para mantê-la, no entanto, embora as dificuldades fossem muitas, o valor aos estudos foi preservado: “De alguma forma a minha mãe me passou que o importante era estudar. Então isso pra mim foi um libertador. Foi o estudo” (Ângela, entrevista pessoal, 10 de outubro de 2011). Atualmente Ângela vive em outra realidade econômica e sente que o estudo foi um aspecto libertador em sua vida.
Os pais de Ângela se separaram quando ela tinha 7 anos e a partir daí sua mãe passou a trabalhar como empregada doméstica em casas de família. Pode-se inferir que o sacrifício vivido pela mãe de Ângela e o incentivo aos estudos da filha perpassam por uma ideologia de gênero, e Strey (2007) coloca que por meio da linguagem e das ações, pais/mães transmitem e reforçam suas próprias ideias a respeito das questões de gênero. Perpassando de mãe para filha, houve a construção de uma identidade feminina, na qual o estudo assume um lugar de valor, carregando o significado de libertação de normas, papéis e comportamentos impostos às mulheres, conforme proposto por Burlae (2004).
De todas as entrevistadas, Ângela foi a única que teve a oportunidade de vivenciar a relação filha-mãe durante diferentes momentos do ciclo vital de ambas. A partir de seus relatos, é possível identificar o vínculo estabelecido entre filha e mãe até os dias atuais:
Os pais não nos enxergam como seres completos, né. Minha mãe sempre me via como a filhinha caçula, menininha e coisa e tal. E depois que eu saí de casa minha mãe começou a me ver mais como... um par, do que necessariamente só como filha. Eu perco, perdi alguma coisa, né. Mas ganhei outra, e minha mãe também (Ângela, entrevista pessoal, 10 de outubro de 2011).
A partir da leitura de Levinson (1996) e da associação com o conteúdo dessa entrevista, é possível perceber o quanto as diferentes estruturas vitais ao longo do ciclo de vida vão modificando as percepções e relações entre os envolvidos. Exemplo disso é o desabafo de Ângela frente às mudanças do ciclo vital que está vivenciando: “agora que minha mãe ta velha e precisa que eu cuide dela, eu me revoltei muito com isso, porque é bem ruim, né, quando a gente inverte os papeis” (Ângela, entrevista pessoal, 10 de outubro de 2011). Ou seja, na relação filha-mãe, Ângela foi cuidada e agora cuida de sua mãe, demonstrando uma série de elementos que podem compor a questão da maternidade ao longo do ciclo vital.
Quando as vivências na relação filha-mãe são traumáticas, as expectativas postas no conceito de maternidade podem ficar carregadas de sentimentos de frustração, abandono e raiva, como é o caso de Antonieta (72 anos): tanto ela quanto o irmão passaram de mão em mão, sentindo falta da mãe e passando fome. Antonieta descreve que com o tempo foi ficando “com muita raiva da mãe” (Antonieta, entrevista pessoal, 5 de dezembro de 2011), a quem culpa por todas as dificuldades vivenciadas em seus primeiros anos de vida até a adolescência. Segundo ela “até uma cachorra cuida dos filhotes até que eles são grandes” e sua mãe abandonou os filhos (Antonieta, entrevista pessoal, 5 de dezembro de 2011).
Percebe-se que tanto a falta de mãe quanto a sua onipresença nas relações de afeto e cuidado podem propiciar sentimentos de vazio, depressão e descontinuidade no projeto vital das pessoas. Exemplo disso é o depoimento de Ângela (42 anos), que ao contrário das demais entrevistadas, teve a oportunidade de “ser filha” e “ter mãe” durante todas as fases do ciclo vital, até o momento da entrevista: “Minha mãe morrendo, eu vou me sentir sozinha no mundo. Sem vínculo” (Ângela, entrevista pessoal, 10 de outubro de 2011). Percebe-se no seu caso, uma dificuldade de re-qualificar os vínculos de proximidade e afetividade com sua mãe, o que a impede de desenvolver novas relações com outras pessoas: “Daí que eu me dei conta que eu nunca tinha desejado essa outra coisa que era uma família, uma família que fosse um companheiro e o que mais viesse junto, né” (Ângela, entrevista pessoal, 10 de outubro de 2011).
Nesse sentido, no que tange às vivências de maternidade enfatizando as relações filha-mãe, é possível entender, desde a ótica de Krista Burlae (2004), que tais experiências podem ser preditivas de vivências de libertação ou transformar-se em profundos cativeiros. Os registros dessas trocas primárias podem propiciar um desenvolvimento saudável ou podem vir a ocasionar uma paralisia no desenvolvimento interpessoal, interferindo negativamente na continuidade de projetos vitais e gerando um empobrecimento nas vivências de outras trocas afetivas.
Nas seis entrevistas, observa-se uma diversidade de formas, contextos e posicionamentos acerca da escolha ou não pela maternidade.
Ariane (40 anos) traz em seu relato a escolha pela maternidade dedicando uma parte de sua vida para “cumprir” o projeto familiar: dos 34 para os 35 anos, ela foi morar no Rio de Janeiro para acompanhar o marido, abandonando sua profissão e passando a ser “puramente mãe e dona de casa”, assumindo uma posição de mãe e esposa. Como ela mesma define: “eu troquei minha profissão, minha independência pelo meu marido ou para ter um filho” (Ariane, entrevista pessoal, 18 de setembro de 2011).
Grupta e McMahon (1999 e 1995, citados por Strey, 2007) colocam que certas transições, como tornar-se mãe, geram transformações comportamentais, mesmo naquelas mulheres que possuem comportamentos de gênero diferentes daqueles ditados pela sociedade. Assim, quando se tornam mãe, as mulheres sofrem um processo de “ajustamento social”, adotando características e identidade requeridas pela cultura.
A concepção de que para ser mãe é necessário abdicar de outras funções é exacerbada quando a maternidade é compreendida como uma função inviável de ser compartilhada com outras pessoas. Ariane exemplifica esta idéia:
Elas não abrem mão da profissão, elas não abrem mão de nada para ter um filho. Elas podem até ter um filho, mas elas não abrem mão daquilo para ter um filho, né, elas vão ter o filho paralelamente com aquilo e como elas vão criar esse filho, isso é um problema que depois elas vão ver. A minha postura já foi diferente. O dia que eu resolvi ter um filho, eu resolvi ser mãe, né e ser mãe é uma coisa muito complicada (Ariane, entrevista pessoal, 18 de setembro de 2011).
As expectativas de que apenas a mãe é capaz de dar conta da criação de um filho, conferem um valor de exclusividade à maternidade. O imaginário social acerca da maternidade está carregado de idealizações e expectativas que pressupõem uma autosuficiência naturalizada frente ao papel de ser mãe (Rocha-Coutinho, 2003). Segundo Andrea Rapoport e Cesar A. Piccinini (2004), mesmo que as redes de apoio aos cuidados dos filhos tenham se tornado comuns, o cuidado alternativo é visto com uma ótica negativa por muitas mães, devido a diversos fatores, dentre eles o receio em deixar as crianças aos cuidados de outro(a).
A percepção de Ariane acerca da função materna revela muito do que está presente no imaginário social acerca das expectativas de uma maternidade competente:
Você pega uma criança que teve a mãe do lado, orientando, ensinando, sabe? Acompanhando, tem diferença sim. Na escola você percebe isso e nota a confiança da criança nesse pai e nessa mãe, né, a troca, a gente nota isso. O meu filho, ele troca muito, ele conversa muito, ele conta tudo pra gente, ele não esconde nada, mas por que? Porque a mãe sempre teve do lado, ele nunca precisou trocar com a babá (Ariane, entrevista pessoal, 18 de setembro de 2011).
Desde o ponto de vista de Ariane, a responsabilidade e o planejamento da criação de um filho, requerem que a mulher afaste-se de sua carreira profissional, para se manter no papel de mãe de forma integral, o que acaba por desqualificar a mulher frente ao mercado de trabalho.
No entanto, após tal escolha, Ariane relata que se revoltou muito, que se sentia muito inútil, uma pessoa vazia, porque todo seu conhecimento não servia para nada. Sentia que tinha jogado no lixo tudo aquilo que havia batalhado, e se enxergava como uma “simples serviçal”: “a serviçal que fazia comida, a serviçal que cuidava do filho, a serviçal que levava filho, que buscava filho e pessoalmente, eu não tinha satisfação nenhuma comigo, eu não me sentia valorizada por nada, eu não me valorizava mais” (Ariane, entrevista pessoal, 18 de setembro de 2011). Neste momento, pode-se perceber claramente que a forma como Ariane concebe a maternidade transformou-se no que Burlae (2004) define como cativeiro, mesmo que paradoxalmente permeiem satisfações quanto ao seu bom desempenho no papel de mãe.
A vivência da maternidade pode despertar em algumas mulheres um sentimento de completude, conferindo-lhe um novo status perante a sociedade e nas relações de poder (Souza e Ferreira, 2005). No entanto, para algumas mulheres, a maternidade também pode se tornar uma grande fonte de conflitos, culpas e ambivalência. A pressão social, a ausência de assistência e expectativas internas sobre a competência na maternidade interferem na autoestima das mulheres (Carvalho e Coelho, 2005).
Após ter passado por essa experiência de vida, Ariane defende que hoje ela tem que ter alguma coisa paralela, tem que se sentir útil, valorizada e ser paga:
Eu acho que a mulher tem que ser paga por alguma coisa, porque, no momento que ela é paga, que ela recebe, ela dá valor ao trabalho dela, ela sente que o trabalho ta sendo valorizado e isso faz com que ela cresça (Ariane, entrevista pessoal, 18 de setembro de 2011).
As vivências ao longo da vida oportunizam que experiências sejam re-avaliadas desde diferentes perspectivas e o amadurecimento favorece mudanças e oportuniza um re-dimensionamento sobre aspectos dinâmicos da vida, como no caso da maternidade. Para Levinson (1996), nenhuma estrutura vital é adaptativa permanentemente. Escolhas específicas em uma determinada idade podem ser percebidas como adequadas, mas como inconvenientes ou com outro significado em outra época.
Ao comparar as percepções de Ariane sobre suas escolhas passadas - abandonar a profissão para seguir o marido e criar o filho e posteriormente valorizar o papel da mulher no mundo do trabalho - fica claro o quanto a ambivalência faz parte do processo de concepção de maternidade de Ariane. A exemplo de Ariane, outras mulheres também podem expressar ideias e sentimentos confusos acerca dos atravessamentos entre o papel de mulher, de profissional, de esposa e o papel de mãe, indicando a coexistência de papéis “velhos” e “novos”.
Segundo Maria Consuêlo Passos (2005), as funções familiares passam por mutações transgeracionais, porém ainda há a interação do “novo” e do “velho”, mantendo nas relações fragmentos de identidade e papéis do passado. Então, é a partir da vivência do “velho” que a elaboração do “novo” surge, promovendo uma constante atualização do ambiente social e oportunizando tomadas de consciência e transformações do sujeito e da família.
Ao contrário de Ariane (40 anos), Antônia (57 anos), ao se casar e ter filhos agregou as funções exigidas pela nova família junto ao trabalho:
Então, depois de um ano meio nasceu o segundo, depois de três anos nasceu o terceiro filho, mas sempre assim, eu conciliando a casa, a gestão da casa, da empregada, babá e o trabalho, sempre muito trabalho, sempre envolvida, nunca parei de trabalhar, nunca precisei deixar trabalho, sair, cuidar de filho doente. Sempre eu fiz uma gestão bem adequada disso (Antônia, entrevista pessoal, 28 de novembro de 2011).
Leila Sanches de Almeida (2007) coloca que se torna cada vez mais presente as mães buscarem auxílio para lidar com a maternidade, pois além dos cuidados maternos, a jornada de trabalho torna-se parte de suas vidas.
O ponto em comum entre Ariane e Antônia pode ser encontrado na associação de maternagem e cuidado da família como tarefa e competência da mulher, interferindo na administração dos projetos pessoais e profissionais. Mulheres, mães e esposas, muitas vezes são ensinadas a abdicar de suas vontades e planos em prol do desenvolvimento da família. Essas mudanças e adequações podem representar um peso em suas vidas, mas ao mesmo tempo podem ser compreendidas como uma função derivada de seu papel de mãe.
As declarações de Antônia são bem elucidativas quanto à forma como o papel de mulher, mãe e esposa foram administradas, pois além de se dedicar à gerência de sua família, Antônia descreve o apoio que deu ao ex-marido na construção de sua carreira profissional: “Eu que tomava conta da casa, dos filhos, do trabalho, da empregada, eu comandava tudo e deixava ele livre para ele construir a carreira dele, gerente de banco que ele é” (Antônia, entrevista pessoal, 28 de novembro de 2011). Para que esse planejamento fosse possível, Antônia destaca que teve que abdicar de certas coisas: “Nesse período era só trabalho e casa, não tinha aspiração de viajar, estudar. Não tinha isso. Tinha bem focado isso, a família, desenvolver a família, a estrutura do marido crescer, pros meninos crescerem orientados, crescerem bem” (Antônia, entrevista pessoal, 28 de novembro de 2011).
Aline (42 anos), mãe de dois filhos adolescentes, traz outra possibilidade: centra sua vida em torno do trabalho, desde pequena até os dias de hoje, sendo sua fonte de maior satisfação. Ela tem o trabalho como um parceiro e não considera a família menos importante, mas esta segue em paralelo. Diante disso, pode-se considerar que a relação entre trabalho e maternidade, pode oportunizar vivências de libertação e aumentar a satisfação das mulheres frente a seu planejamento de vida.
Seguindo a diversidade nos modos e contextos frente às escolhas pela maternidade, Anita (53 anos), mãe de três filhos, revela que nunca foi uma pessoa de planejar, mas ao referir-se ao papel de mãe ela declara: “Tenho que agradecer sempre, que é o presente dos filhos que eu tenho, que eu vou levar pra vida inteira” (Anita, entrevista pessoal, 23 de agosto de 2011). Antonieta (72 anos), que teve quinze filhos, também não planejou sua maternidade, mas traz que naquela época as pessoas eram “bobas” (Antonieta, entrevista pessoal, 28 de novembro de 2011) e não sabiam como controlar o número de filhos que tinham.
Porém, mesmo nos tempos atuais, ainda há a percepção de maternidade como uma função primordial na vida de uma mulher/esposa, o que pode ser observado na fala de Ariane (40 anos):
Eu como mãe, sempre soube de tudo, então, eu noto que a mulher de hoje, ela não ta mais abrindo mão, ela não faz opção de ser mãe por ser mãe, ela faz opção de ser mãe porque é um conceito e existe uma cobrança da sociedade, do marido, da família, porque se casar tem que ter filho, sabe (Ariane, entrevista pessoal, 18 de setembro de 2011).
Diversos estudos apontam que mesmo havendo uma divisão de tarefas mais igualitária na contemporaneidade, o papel de cuidadora ainda é associado às mulheres (Dias e Aquino 2006; Mattar e Diniz, 2012; Wagner, Predebon, Mossman e Verza, 2005). Noções culturais sobre a maternidade têm impacto sobre todas as mulheres, mesmo as que não tiveram filhos, tais como mulheres que são impelidas a realizar a maternagem de irmãos mais novos e sobrinhos (Carvalho e Coelho, 2005). Este foi o caso de Antônia (57 anos) que, acabou ajudando na criação das irmãs e do irmão: “eu ajudei a criar meus irmãos, ajudei a educar, ajudei a trabalhar na minha casa... muito” (Antônia, entrevista pessoal, 28 de novembro de 2011).
Ângela (42 anos) é a única mulher que não aborda o tema da maternidade diretamente, sendo que sua biografia centra-se na sua infância, na relação com sua mãe, e no trabalho. Perpassa em seu discurso que nunca sonhou em ser mãe e ter uma família, no entanto a ênfase em suas falas está posta na dificuldade de investimento num relacionamento amoroso, no medo de ficar sozinha e no desejo atual de se conhecer:
Hoje em dia, eu busco mais, é, aprender sobre mim. Não tenho mais nenhum interesse de aprender nada, sobre a minha profissão. (...) Eu quero aprender sobre mim. Eu quero me conhecer melhor, eu quero entender por que que isso, porque que aquilo... Ahm, porque daí eu vou me aceitar melhor, né? (Ângela, entrevista pessoal, 10 de outubro de 2011).
Neste contexto, ela trás à tona a questão de ficar sozinha: “Se eu por algum motivo escolho ficar sozinha, eu acho que se eu entender o porquê, eu vou ficar melhor assim, ou de repente eu entendo por que não quero isso, esse conteúdo pra mim” (Ângela, entrevista pessoal, 10 de outubro de 2011).
Quanto à escolha ou não pela maternidade, percebe-se nos relatos uma diversidade de posicionamentos. Os conceitos não são estáticos e sim dinâmicos, explicitando que as concepções acerca da maternidade variam ao longo do ciclo vital, conforme as experiências de vida singulares de cada mulher.
A partir das entrevistas das cinco mulheres mães, pode-se observar que a vivência da maternidade está constituída por relações de gênero, construções sociais, motivação, limites e desafios. As histórias das mulheres sinalizam o caráter dinâmico da maternidade, que não acontece sozinha no tempo e no espaço, mas é concomitante com o trabalho, a vida profissional, a vida amorosa e conjugal das entrevistadas.
Nas cinco mulheres mães, a maternidade e o trabalho aparecem entrelaçados. No caso de Aline (42 anos), um não exclui o outro, mas ao contrário, um justifica o outro. Atualmente, Aline tem o objetivo de pagar a faculdade da filha e fará isso através de seu negócio, o que a leva focar mais tempo no trabalho. Aline também tem a percepção de que atualmente os filhos estão custando caro, diferente dos custos que gerou aos seus pais.
Ariane (40 anos) traz a mesma preocupação em trabalhar mais para garantir o futuro do filho:
Eu ralo muito mais agora com quarenta anos, do que eu ralava com vinte, (...) Eu vejo assim, não é um problema só meu, todo mundo ta nessa roda viva, o mundo ta nessa roda viva, porque todo mundo tem que ralar, porque tem um filho para criar, porque tem que pensar no futuro do filho (Ariane, entrevista pessoal, 18 de setembro de 2011).
Nestes dois relatos, observa-se o que Moreira e Nardi (2009) trazem sobre a normalidade da maternidade adequada, a qual perpassa por investimentos financeiros, a fim de garantir melhores condições de vida aos filhos, sem lhes causar privações. Segundo os autores, com a urbanização, a responsabilidade dos pais passa a ser maior, pois o filho, que antes ajudava na manutenção da casa, agora é mais uma despesa.
Ariane traz outra relação entre a maternidade e o trabalho. No momento, seu filho está na pré-adolescência e pela sua fase Ariane acredita que educar seu filho é o que mais exige de sua energia. Por outro lado, no momento o que mais lhe traz satisfação é o trabalho (fazendo uma clara relação com o “ser mulher”): “O que eu acho mais satisfatório na minha vida hoje? Sentir-me útil, estar de volta no mercado de trabalho, ta trabalhando, ta crescendo” (Ariane, entrevista pessoal, 18 de setembro de 2011).
Observa-se a associação do trabalho como fonte de subjetivação e empoderamento da mulher. Assim, embora a maternidade assuma um status importante na vida das mulheres que optaram por ser mãe, o trabalho também aparece como um aspecto constitutivo na identidade das entrevistadas. Neste sentido, tais experiências podem estar associadas a vivências de libertação e à evitação de cativeiros (Burlae, 2004).
Em determinadas situações, a responsabilidade na criação dos filhos recai sobre as mulheres de forma traumática, em função da falta de rede de apoio. Nesses casos, a mãe passa a ser a única provedora e cuidadora, por falta de opção e não por uma escolha. Exemplo de Antonieta (72 anos) ao relatar que o marido saía para trabalhar e sumia por semanas. Segundo ela, o pai de seus filhos nunca perguntava se havia comida para as crianças. Ela se “virava” capinando na roça e “o ovo frito tinha que ser dividido por três das crianças” (Antonieta, entrevista pessoal, 5 de dezembro de 2011.
Assim, observa-se que a construção do senso de responsabilidade na criação dos filhos está atravessado por fatores psicossociais e culturais importantes. No relato de Antonieta predomina uma carga maior de responsabilidades sobre o papel da mãe-mulher, mas também remete à estrutura social desigual e sexista imposta pela ordem capitalista patriarcal, que isentam os homens, o Estado e a comunidade de sua responsabilidade social. Narvaz e Koller (2006) colocam que os discursos científicos atribuem a uma falha individual aos fatores que dificultam o exercício da "maternidade normativa", descolando-os do contexto histórico e social que os produziram.
Na família patriarcal burguesa, o papel prescrito às mulheres é o de que sejam cuidadoras do marido, do lar e dos filhos (Narvaz e Koller, 2006). Assim como o relato de Antônia (57 anos), que tomava conta da casa, dos filhos e do trabalho, para o marido desenvolver sua carreira profissional, Ariane (40 anos), também assumiu o papel prescrito às mulheres:
Acordar por livre e espontânea vontade. Isto não existe hoje, nem sexta, nem sábado, nem domingo, nem segunda. Não tem, todos os dias, seja sábado, seja domingo, tem um planejamento. E não é o meu planejamento, é o meu filho, é meu marido, não sobra tempo (Ariane, entrevista pessoal, 18 de setembro de 2011).
No caso de Ariane, a entrevista acabou interferindo na forma como ela se percebia na família, e a partir da experiência de ser entrevistada, ela mudou sua postura diante do filho e do marido:
Então, eu acho que o próprio trabalho que você está desenvolvendo, mexeu com algumas coisas, me fez repensar algumas coisas e essas coisas começaram a ser mudadas, eu comecei a mudar um pouco, né, e tipo assim, não me senti culpada de tipo assim, sair de casa e deixar meu filho dormindo, nem fiz o café da amanhã para ele, nossa, isso jamais eu faria, porque eu tenho que ser dona de casa também, né, era assim que eu pensava. Deixei de pensar nisso, mudei, estou mudando, sabe? E engraçado que essa minha mudança começou a aparecer também para eles (Ariane, entrevista pessoal, 18 de setembro de 2011).
A estrutura familiar, que segundo Salvador Minuchin (1990) é composta por padrões transacionais de funcionamento e caracterizadas por normas e regras nem sempre explícitas entre os membros do sistema, sofre alterações quando algum membro da família passa a questionar seu papel no sistema familiar. No caso de Ariane, a tentativa de modificar o padrão de dedicação exclusiva à família, reverberou em todo o sistema familiar, e introduziu novas possibilidades para ela “sentir-se” mãe em sua família.
Antônia (57 anos) e Anita (53 anos) vivem momentos similares acerca da maternidade: “filhos criados”. Antonia faz associação do sucesso dos filhos como uma fonte de satisfação e sentimento de “dever cumprido”:
Hoje eu estou num momento ímpar da minha vida. Três filhos criados, educados... profissionalmente, duas faculdades, fazendo MBA, que mostra o caminho a seguir e que coisas que eu tenho que corrigir na minha vida. Isso me dá a certeza de que eu consegui muitas coisas boas na minha vida (Antônia, entrevista pessoal, 28 de novembro de 2011).
Novamente a maternidade e a realização profissional aparecem entrelaçadas no discurso das mulheres entrevistadas.
Anita, que sente muita alegria por ser mãe de seus filhos, está vivendo diferentes processos do ciclo vital de uma forma bem intensa:
Eu to vivendo os dois momentos, o momento do nascimento, da espera, o momento da espera do nascimento de alguém, de um neto. E vivendo a espera da morte de alguém, de um namorado que ta muito próximo também. E que não tem volta. Vivendo um momento terminal (Anita, entrevista pessoal, 23 de agosto de 2011).
Essa fala de Anita remete ao aqui-agora da vida, em que diferentes acontecimentos se intercalam e sobrepõem-se. Também está voltada às possibilidades futuras, dessa nova relação a ser constituída com seu neto, assim como de uma possível nova relação de maternidade com a filha atualmente grávida.
De uma maneira geral, observa-se nos relatos das entrevistadas um forte grau de comprometimento com o papel de mãe, fazendo com que as vivências de maternidade, ocupem um espaço significativo no discurso e na subjetivação dessas mulheres na família e na sociedade.
Os aspectos maternidade e ciclo vital envolvem experiências do presente junto a expectativas de futuro, atravessados por temores, desejos e reavaliações frente ao que já foi vivido. Embora as entrevistadas tenham declarado a satisfação com a maternidade, algumas deixam claro o quanto tiveram de abdicar de alguns prazeres ou adiar seus planos individuais em prol da família. Exemplo de Aline (42 anos), que depois de formar os filhos, espera trabalhar menos, com mais oportunidade para passear e viajar, intercalando trabalho e lazer. Ariane (40 anos) também deposita no futuro uma perspectiva de vida que parece que a maternidade não lhe permite desfrutar no momento atual. “Eu espero que no futuro eu tenha um tempo para mim, tempo para fazer coisas que hoje eu não tenho tempo e não consigo fazer, ter uma vida mais tranquila” (Ariane, entrevista pessoal, 18 de setembro de 2011).
Segundo Juliana Eugênia Caixeta e Silviane Barbato (2004), as mulheres tendem a focar em si mesmas quando vêem seus filhos seguindo para uma vida autônoma. O julgamento de “tarefa cumprida” destas mães as leva a repensar em modificações sociais que antes assumiam. Este movimento de saída das mulheres faz com que elas tenham a possibilidade de procurar diferentes atividades que não envolvam o cuidado do lar.
Antônia (57 anos) já está vivendo este momento. A ideia de ter cumprido satisfatoriamente sua tarefa na criação dos filhos parece auxiliar Antônia a traçar novos objetivos de vida:
E o que eu vejo é assim, missão cumprida e uma nova etapa da minha vida pra começar todas essas: mais um MBA, um mestrado talvez, e essa proposta de trabalho diferente, de mudar de cidade, pra uma cidade totalmente diferente, pra Brasília que vai me... é um começo de novo (Antônia, entrevista pessoal, 28 de novembro de 2011).
O envelhecimento também é um ponto de preocupação descrito pelas entrevistadas. Aline (42 anos), por exemplo, comenta que quando “ficar velhinha” (Aline, entrevista pessoal 2 de setembro de 2011), quer ser uma velha feliz, mas principalmente sem atrapalhar os outros. Aline percebe uma diferença entre a geração de seus pais e a sua: seus pais são de uma geração que ficam velhos para ficar dependentes dos filhos, enquanto a sua quer ficar independente, viver bem, viver feliz, mas não dependente dos filhos, não ser um parasita e não escravizar ninguém. Aline gostaria de viver a sua vida como vive hoje: “independente, sem interferência e sem atrapalhar a vida dos filhos” (Aline, entrevista pessoal 2 de setembro de 2011).
O mesmo ocorre no discurso de Ariane (40 anos). Seu maior medo para o futuro é ser dependente fisicamente de alguém: “Então, se eu conseguir chegar nos 65 bem, não dependendo de ninguém dali para frente é lucro, é lucro” (Ariane, entrevista pessoal, 18 de setembro de 2011).
Anita (53 anos) também revela seus temores futuros, no entanto não faz menção aos seus três filhos: “Uma das coisas que eu tenho medo é de ficar sozinha. Tenho medo de solidão, tenho medo de doença, tenho medo de ficar velha, sozinha, doente. (...) E esse é meu grande medo” (Anita, entrevista pessoal, 23 de agosto de 2011). Antonieta (72 anos) diz que está velha, anêmica, e agora ela e o irmão conversam muito sobre quem irá morrer primeiro: “A vida foi indo, indo...” (Antonieta, entrevista pessoal, 5 de dezembro de 2011).
Frente a tais resultados, pode-se observar que o passar do tempo oferece novas experiências de vida e de aprendizagem e também é marcado por preocupações com o futuro em termos de saúde e qualidade de vida.
A partir do que foi investigado, é possível perceber que as concepções de maternidade são complexas, multifatoriais e apresentam diferentes implicações na vida das mulheres. Experiências singulares podem ser transformadoras, libertadoras ou conduzirem a vivências de cativeiro. A complexidade de tal fenômeno pode ser observada a partir da vasta produção da literatura acerca da temática, e da variabilidade de conceitos explicativos elaborados desde diferentes perspectivas teóricas. Aspectos culturais e psicossociais também interferem na (des)construção do conceito de maternidade, pois ao nos depararmos com insígnias veiculadas nos meios de comunicação e recitadas pelas pessoas em geral, como “toda mulher é mãe” ou “ser mãe é padecer no paraíso” observa-se uma proliferação de mensagens carregadas de valores baseados na submissão e naturalização de conceitos.
O presente estudo procurou problematizar a questão da maternidade, a partir de pressupostos epistemológicos que envolvem estudos de gênero, perspectiva feminista e visão sistêmica. O debate sobre maternidade e vida de mulher não se encerra aqui, pois o objetivo deste estudo é ampliar a discussão sobre esse fenômeno a fim de promover o entendimento acerca da relação entre vivências de cativeiro e libertação frente à experiência da maternidade. Cabe destacar, no entanto, que o entendimento entre o que representa uma vivência de cativeiro ou de libertação deve ser relativizado, uma vez que aos olhos de cada um, existe uma série de valores que nem sempre são possíveis de serem questionados ou interpretados.
A partir do que foi investigado, é possível concluir que as vivências de maternidade são aspectos constitutivos na vida das mulheres entrevistadas. Os discursos analisados parecem revelar que na vida dessas mulheres, permeiam registros da mãe que “se teve”, que “se é”, que “se quer ser” ou simplesmente da mulher que optou por “não ser mãe”. Isto é, independente da forma como a maternidade é construída ou vivenciada pelas mulheres investigadas, é possível constatar que a concepção de maternidade é singular na vida dessas mulheres.
Embora não seja um determinante de como as mulheres conduzem a sua vida, a maternidade é um aspecto que ocupa grande espaço nos discursos e nas vivências das mulheres entrevistadas. Em função disso, as vivências de maternidade interferem na forma como a mulher se subjetiva e se percebe no mundo, podendo estar associadas a sentimentos de libertação ou de cativeiro. A proposta deste trabalho é sinalizar que ser mãe e ser mulher são processos distintos. Talvez tal (des)construção esteja mais clara na literatura do que na prática do cotidiano. Prova disso são os discursos e sentimentos ambivalentes de mulheres que se constituem espelhando-se na sua (in)competência através da maternidade.
Em consonância ao que foi proposto por Levinson (1996), foi possível identificar que para essas mulheres, as vivências de maternidade se consolidaram em estruturas vitais importantes para o processo de criar, revisar e recriar estruturas vitais. A partir da análise do discurso das seis mulheres entrevistadas, foi possível observar que co-existem vivências diversas acerca da maternidade, o que enriquece o entendimento sobre a temática. Esse estudo não se encerra em uma única concepção de maternidade, mas aponta que visões ou perspectivas mais conservadoras interagem com perspectivas mais críticas sobre o que realmente compete à mulher no que tange a maternidade. Em função disso, a maternidade compulsória deve ser rompida e problematizada, uma vez que ser mulher e ser mãe são processos de construção identitários distintos.
Registramos agradecimento ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pelo apoio financeiro.
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