Autônomo, solidário e competente: o discurso neoliberal sobre a participação política institucional infanto-juvenil

Autonomous, Solidary, and Competent: The Neoliberal Discourse on Institutional Political Participation of Children and Adolescents

  • Juliana Montenegro Brasileiro
  • Silvio Jose Benelli
Neste artigo, buscamos analisar os efeitos do neoliberalismo no discurso socioassistencial sobre a participação política institucional de crianças e adolescentes. A partir de uma análise documental, identificamos três principais categorias: a estrutura do atendimento socioassistencial para crianças e adolescentes, as características do público atendido e as perspectivas sobre participação. Após a exposição desses indicadores, discutimos os dados em dois núcleos de significação: 1) entre a figura do menor e do cidadão, que aborda o lugar político da criança e do adolescente no discurso institucional, e 2) a atuação política institucional. Nossa análise sugere que a consolidação do neoliberalismo influenciou a formulação das políticas públicas brasileiras a partir dos anos 1990, enfatizando o cidadão-usuário como responsável pela garantia dos próprios direitos, com foco no desenvolvimento de capacidades e competências para atender às novas exigências do mercado. Essa lógica, centrada no individualismo, debilita os laços sociais e compromete a luta por direitos coletivos.
    Palavras chave:
  • Psicologia Social
  • Participação
  • Assistência Social
  • Juventude
In this article, we aim to analyse the effects of neoliberalism on socio-assistance discourse regarding the institutional political participation of children and adolescents. Through a documentary analysis, we identified three main categories: the structure of social welfare services for children and adolescents, the characteristics of the population served, and perspectives on participation. Following the presentation of these indicators, we discuss the data within two key themes: 1) the figure of the minor versus the citizen, addressing the political position of children and adolescents in institutional discourse, and 2) institutional political engagement. Our analysis suggests that the consolidation of neoliberalism has shaped the formulation of Brazilian public policies since the 1990s, emphasizing the citizen-user as responsible for securing their own rights, with a focus on developing the capacities and competencies needed to meet new market demands. This logic, centred on individualism, weakens social bonds and undermines the collective struggle for rights.
    Keywords:
  • Social Psychology
  • Participation
  • Social Welfare
  • Youth

1 Apresentação

A Convenção dos Direitos das Crianças (CDC) (UNESCO, 1996), em âmbito internacional, e o Estatuto das Crianças e dos Adolescentes (ECA) (Lei nº 8.069, 1990), no plano nacional, foram marcos históricos que promoveram a institucionalização dos direitos da criança e do adolescente à participação política. A partir desses eventos, houve uma mudança paradigmática (Benelli e Costa-Rosa, 2012): crianças e adolescentes se tornaram sujeitos de direitos e, portanto, cidadãos. Esse processo, no entanto, inclui contradições entre discursos e representações historicamente construídos sobre a infância. No Brasil, o paradigma dos sujeitos de direitos tem disputado práticas e significados discursivos com a lógica menorista, caracterizada pelos modos de atenção legitimados pelo Código de Menores (Decreto nº 17.943-A, 1927; Lei nº 6.697, 1979). Ademais, a participação política institucional também tem sido determinada pelas características sociais e econômicas do período neoliberal.

Com as mudanças paradigmáticas realizadas no Brasil na década de 1990, os estabelecimentos de Saúde, Educação e Assistência Social incorporaram princípios de participação institucional de crianças e adolescentes em suas diretrizes. Contudo, a lógica menorista e adultocentrada ainda persiste em seus discursos e práticas institucionais. Além disso, os objetivos desses estabelecimentos passaram a se alinhar aos interesses do mercado, sob a influência do neoliberalismo. Para identificar e compreender tais discursos e práticas, em especial nas particularidades dos estabelecimentos socioassistenciais, realizamos uma análise de documentos sobre a participação política institucional de crianças e adolescentes. Nosso objetivo é apresentar uma síntese sobre os efeitos do neoliberalismo no discurso socioassistencial, refletindo sobre os limites e possibilidades para a participação infanto-juvenil nesse contexto.

2 O que é a participação política institucional?

O termo “participação” abrange movimentos sociais, eleições, assembleias, conselhos de políticas públicas, eventos políticos e processos participativos institucionais (Gohn, 2011). Na Psicologia Social, os estudos sobre participação política concentram-se tradicionalmente em movimentos sociais (Orihuela e Saldívar, 2021). No entanto, no final do século XX, com a popularização de processos deliberativos e participativos, a participação política institucional se difundiu como área de investigação.

De forma geral, a participação política institucional se refere aos processos que são organizados e regulamentados pelas instituições democráticas e governamentais (Santos, 2019), as quais estabelecem os limites e possibilidades da participação cidadã. Esses espaços participativos e/ou deliberativos objetivam legitimar as decisões estatais, promovendo a participação cidadã como complemento ao papel restrito exercido na dimensão representativa (Escobar, 2017).

A relação entre os cidadãos e as instituições democráticas é marcada por diversas contradições, tais como a restrição da liberdade de expressão dos cidadãos devido ao controle estatal sobre a participação (Wiesenfeld e Sánchez, 2012), a presença de hierarquias rígidas de poder entre a equipe técnico-política e os participantes (Santos et al., 2018) e a promoção do voluntariado em detrimento de uma participação política mais efetiva (Zamorano, 2008). Devido ao seu caráter controverso (Dagnino, 2004b), a participação política institucional abrange formas contraditórias de envolvimento político, que podem coexistir em um mesmo espaço, desde a vertente liberal até possibilidades mais autogestivas radicais.

3 Que tipo de democracia?

Para o pensamento marxista, os limites da participação são definidos pelo Modo de Produção vigente (Marx e Engels, 1845/2017). No caso do Modo de Produção Capitalista (MPC), a democracia é um instrumento das elites para ampliar o poder, segundo as leis do mercado. Nesse sentido, a democracia liberal não está em conflito com a luta de classes e tão pouco com os processos de exclusão social e histórica de determinados grupos.

Por causa dos limites da democracia na sociedade de classes, Marx (1976/2010) traça uma distinção entre emancipação política e emancipação humana. Essa democracia liberal pode auxiliar as classes subalternas a adquirir certo grau de emancipação política, mas não a alcançar o nível da emancipação humana. Isto é, as conquistas políticas no interior da democracia burguesa deixam “de pé os pilares do edifício” (Marx, 1976/2010, p. 154). O requisito fundamental para a emancipação humana é a destruição da sociedade de classes e de suas objetivações, incluindo as formas burguesas da democracia.

Os processos participativos e deliberativos que são promovidos no âmbito da forma democrática burguesa podem ampliar a emancipação política de grupos das classes operárias, como com a redução da mortalidade infantil (Gonçalves, 2014), o incremento do conhecimento político (Zhang, 2019) e a possibilidade de influência política (Lüchmann, 2007). Contudo, essas conquistas podem ser limitadas pelo alinhamento do Estado aos interesses do mercado, conforme a lógica neoliberal.

4 O que é o neoliberalismo?

Segundo Gérard Duménil e Dominique Lévy (2000), o neoliberalismo consolidou o poder das finanças, especialmente dos bancos, no final dos anos 1970. As crises capitalistas permitiram que essas instituições intensificassem a exploração da classe proletária e de países periféricos, ampliando a miséria e o desemprego (Ianni, 2019).

No Brasil, a Constituição de 1988 (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988), elaborada após a ditadura empresarial-militar, apesar de ampliar políticas sociais, incorporou traços conservadores e abriu espaço para a atuação do Terceiro Setor, diluindo o radicalismo em programas de Assistência Social e Saúde (Behring e Boschetti, 2011; Benelli, 2022). David Harvey (2005) destaca que a promessa de liberdades individuais foi o principal pilar ideológico desse processo, com o “bem-estar” do mercado assumindo centralidade nas políticas estatais. É importante ressaltar, no entanto, que o período que sucede à redemocratização brasileira não tem sido homogêneo, mas marcado pelas disputas de diferentes projetos por partidos políticos da direita e da esquerda brasileira. A partir do movimento das contradições existentes, algumas conquistas foram realizadas, tal como a publicação do comentário geral sobre o artigo 12º da CDC (Comité de los Derechos del Niño, 2009), o qual esclarece o status da criança como portadora do direito de se expressar livremente em todos os assuntos que lhe afetam. Esse comentário foi reforçado por uma publicação posterior do mesmo comitê, em 2013. No Brasil, em 2013, também houve a aprovação da resolução 159 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA, 2013), a qual dispõe sobre o processo de participação de crianças e adolescentes em espaços de discussão relacionados aos seus direitos. Essa resolução incentiva a participação de crianças e adolescentes em espaços de convivência e de construção da cidadania. Observa-se, portanto, que as decisões políticas que ocorrem durante o neoliberalismo dependem, em grande medida, das correlações de forças de cada momento, o que pode favorecer um avanço ou retrocesso em termos da implementação dos direitos participativos de crianças e adolescentes.

5 Efeitos do discurso neoliberal sobre a participação infanto-juvenil

Para crianças e adolescentes, a consolidação do sistema neoliberal trouxe consequências alarmantes, engrossando as estatísticas de desigualdade social, miséria e violência no final do século XX1. Apesar da luta para que esse público saia da invisibilidade política, a participação social e política é limitada pela ausência de propostas políticas sérias de distribuição de renda, educação e saúde, o que faz com que os direitos à participação sejam, por vezes, inefetivos e compensatórios (Rizzini e Pilotti, 2011).

As políticas públicas para crianças e adolescentes no Brasil foram elaboradas para as crianças pobres, baseadas em uma visão romântica da infância e influenciadas pelas práticas filantrópicas e caritativas dos séculos XVII e XVIII (Cunningham, 2020). O Código de Menores (Decreto nº 17.943-A, 1927; Lei nº 6.697, 1979) norteou as ações estatais até ser substituído pelo ECA (Lei nº 8.069, 1990). Durante a vigência do Código de Menores, a atuação estatal visava coagir, punir e “corrigir” os “vícios morais” associados à pobreza, delinquência e criminalidade, prática conhecida como “lógica menorista” (Benelli e Costa-Rosa, 2012).

Com a adoção da CDC pela ONU em 1989, crianças passaram a ser vistas como sujeitos de direitos. O ECA refletiu esse novo paradigma, inserindo esse público em políticas públicas como a Assistência Social, por meio de estabelecimentos como CRAS e CREAS. Contudo, o paradigma de sujeito de direitos ainda coexiste com a lógica menorista (Benelli, 2016; Benelli e Costa-Rosa, 2012).

O neoliberalismo dos anos 1990 trouxe mudanças significativas às políticas públicas, incluindo o discurso de oportunidades, capacidades e competências. A noção de “oportunidades” nos textos e discursos governamentais se associou às obrigações e responsabilidades como elementos da nova noção de cidadania exigida no neoliberalismo (Morrison, 2003; Natera, 2004) A teoria das “capacidades”, que se apresenta como neutra, também oculta uma base moral liberal, especialmente na ênfase da necessidade do controle das emoções (Zamorano, 2008). Além disso, o conceito de “cidadania ativa” emergiu como resposta à “cidadania fraca”, manter a competitividade econômica em um cenário de individualização (Davies, 2012). Com a retirada do Estado na garantia de direitos, há a promoção do voluntariado como substituto da participação política, buscando mitigar os impactos negativos da reforma neoliberal (Benelli, 2022; Benelli e Costa-Rosa, 2012).

5.1 O vocabulário neoliberal sobre a cidadania infanto-juvenil

Bruno Alysson Soares Rodrigues et al. (2012) afirmam que, nos anos 1990, o Banco Mundial influenciou países da América Latina a adotarem objetivos educacionais alinhados à lógica neoliberal, promovendo a educação como instrumento de docilização da subjetividade (Meszáros, 2012). Para Carlos José Libâneo (2012), o Banco Mundial foi um dos responsáveis pelo desmonte da Educação Básica, ao introduzir a “nova escola” pública, que priorizava a integração social em detrimento do conhecimento. Esse projeto construtivista visava substituir um sistema pedagógico tradicional através das pedagogias do “aprender a aprender” (Duarte, 2011). Em 1996, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), sob a presidência de Jacques Delors, elaboraram um relatório com diretrizes educacionais globais (UNESCO, 1996), que destacou as “competências” divididas nos quatro pilares: aprender a ser, conviver, fazer e aprender (Duarte, 2011).

O relatório da UNESCO foi parte da resposta capitalista para adequar países “em desenvolvimento”, como o Brasil, aos moldes do capitalismo globalizado. Ele destacou o papel da educação na formação da subjetividade humana, preparando trabalhadores para um sistema mais flexível de produção (Duarte, 2011; Libâneo, 2012). A noção de “aprender a aprender” também aparece nas políticas sociais, um fenômeno que Betina Hillesheim e Letícia Lorenzoni Lasta (2019) chamam de “educacionalização do social”. As autoras mostram que, desde os anos 1980, a educação tem sido vista como solução para mazelas sociais, como a pobreza.

Os textos sobre cidadania infanto-juvenil frequentemente mencionam o “protagonismo juvenil”, termo que surgiu na década de 1990, especialmente entre organizações do terceiro setor voltadas para jovens em periferias brasileiras. Regina Magalhães Souza (2006, 2009) explica que esse conceito se refere a um método ou pedagogia que transforma o educando de passivo a ativo. Apesar de sua imprecisão, o protagonismo juvenil passou a ser visto como um modelo desejável de cidadania e participação. O protagonismo é visto como uma forma de integrar jovens pobres ao acesso a serviços comunitários e ao mercado de trabalho, embora o incentivo ao empreendedorismo não seja acompanhado de políticas de garantia de emprego. Os documentos expressam uma supervalorização das ações cotidianas, como pequenas iniciativas e petições, o que pode levar ao esvaziamento da política (Souza, 2006). A participação ativa nessas instâncias é substituída pela prestação gratuita de bens e serviços, ou seja, pelo trabalho voluntário.

6 Objetivo

Analisar os efeitos do neoliberalismo no discurso socioassistencial sobre a participação política institucional, refletindo sobre seus limites e possibilidades.

7 Método

7.1 Pressupostos teóricos-metodológicos

Partimos dos pressupostos teórico-metodológicos marxianos para fundamentar nossa análise, sendo a relação dialética entre aparência e essência um dos principais pontos. Isso significa que o essencial a um objeto de estudo ultrapassa aquilo que podemos apreender imediatamente. É necessário se apropriar das mediações e determinações do objeto para compreendê-lo em sua totalidade. Parte disso envolve identificar suas principais contradições, sem as quais o movimento constitutivo da realidade social não seria possível. Assim, se busca revelar as conexões e correlações internas, isto é, a genética do fenômeno ao invés de seu fenótipo, de modo a superar o senso comum. Além disso, se entende que a totalidade da realidade histórica-social é um complexo social, no qual as determinações políticas, sociais, culturais e econômicas não devem ser analisadas separadamente.

7.2 Procedimento de coleta de dados

Realizamos uma pesquisa documental como parte do estudo da pesquisa de doutorado, da qual apresentamos um recorte nesse artigo. Documentos são materiais que não receberam tratamento acadêmico, mas que são fontes de informações sobre as relações humanas em determinado contexto histórico (Ludke e Marli, 1986, pp. 24–44). A pesquisa documental compreende a revisão bibliográfica e emprega um conjunto de técnicas para analisar uma ampla diversidade de documentos.

No levantamento dos documentos analisados utilizamos sites previamente conhecidos como fontes de produção de materiais socioassistenciais, tais como o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDECA) e os sites de prefeituras como São Paulo, Rio de Janeiro e Ceará. Recorremos também às páginas oficiais do Governo Federal, como https://www.gov.br/cidadania/pt-br/acoes-e-programas/assistencia-social e https://www.gov.br/cidadania/pt-br. Palavras-chaves tais como: participação política, participação social, participação, protagonismo, cidadania e democracia foram combinadas com os termos criança, adolescente, jovem, infanto-juvenil e com a locução “assistência social” para localizar nesses sites e em sistemas de busca os materiais relacionados com o tema da participação infanto-juvenil na Assistência Social. O material selecionado se divide em documentos sobre a socioeducação, o protagonismo juvenil e a participação política (ver Tabela 1).

Título do documento Responsáveis pela publicação Ano
Volume 1: socioeducação: igualdade como direito, diferença como riqueza CENPEC et al. 2007
Volume 2: conceitos e Políticas CENPEC et al. 2007
Socioeducação: estrutura e funcionamento da comunidade educativa Costa 2006
Protagonismo juvenil: gincana da cidadania Aracati 2002
Participação política de crianças e adolescentes CEDECA 2017

Tabela 1

Informações sobre os documentos analisados

7.3 Procedimento de análise de dados

Analisamos os dados segundo as diretrizes dos núcleos de significação, proposta por Maria Junqueira Aguiar e Sergio Ozella (2013). São três as principais etapas interdependentes. A partir de uma primeira leitura flutuante de todo o material, são selecionados pré-indicadores que indicam formas de pensar e significados relevantes para o conjunto analisado. Uma segunda etapa é a sistematização dos pré-indicadores em indicadores, agrupando aqueles que são complementares, similares ou opostos. Finalmente, organizamos os núcleos de significação. Nessa etapa, os indicadores são reagrupados de acordo com a literatura revisada (ver Figura 1) e analisados a partir da literatura revisada.

Imagen

Figura 1

Organização dos pré-indicadores, indicadores e núcleos de significação

8 Resultados e discussão

Os resultados estão organizados de acordo com os indicadores encontrados. Após a apresentação dos pontos principais de cada indicador, discutimos os dois núcleos de significação que construímos para interpretá-los.

8.1 A estrutura do atendimento socioassistencial para crianças e adolescentes

Nesse item, apresentamos as citações dos documentos selecionados para a análise que se referem aos objetivos e às diretrizes do atendimento socioassistencial para crianças e adolescentes.

Nos textos analisados, com exceção da cartilha do CEDECA (2017), o vocabulário sobre a cidadania infanto-juvenil não aparece com frequência. No entanto, se destaca que os objetivos dos serviços socioassistenciais sejam apresentados como o fortalecimento da participação da sociedade civil, “dentro de uma perspectiva de respeito às diferenças e às individualidades dos cidadãos usuários das ações desta política” (SMADS et al., 2007a, p. 7, itálico nosso). Assim, a princípio, o foco da política visa os cidadãos usuários. As ações dos serviços socioassistenciais incentivam a população atendida a tomar “posição de protagonista de processos específicos” (SMADS et al., 2007a, p. 7, itálico nosso) e que sejam “qualificadas para contribuir, executar e se responsabilizar pelos resultados” (SMADS et al., 2007a, p. 7). Para isso, os serviços socioassistenciais utilizam técnicas de “fortalecimento das relações dos vínculos familiares e de ampliação do capital humano” (SMADS et al., 2007a, p. 11, itálico nosso). A família também é um eixo central na organização da política de Assistência Social, pois possibilita, junto às relações comunitárias, a “constituição de redes de apoio e empreendimentos colaborativos” (SMADS et al., 2007b, p. 11, itálico nosso). O termo “capital humano”, segundo Samuel Bowles e Herbert Gintis (2014) coloca em posição de igualdade os trabalhadores e os empresários capitalistas. O desenvolvimento de um determinado indivíduo seria, nessa perspectiva, o resultado de suas escolhas individuais e de suas capacidades pessoais.

Segundo os documentos analisados, os estabelecimentos assistenciais capacitam os cidadãos para acessar e participar dos serviços, pois só assim seria possível viabilizar a inclusão e a cidadania (SMADS et al., 2007a, p. 11). Essa capacitação é resultado da “oferta de oportunidades de convívio em espaços de estar, em atividades socioculturais e de lazer” (SMADS et al., 2007a, p. 11, itálico nosso). O tema das oportunidades aparece também nos cadernos da SMADS et al. (2007a, 2007b), ressaltando como os serviços favorecem a “integração entre Estado famílias e comunidades, proporcionando oportunidades de acesso” (SMADS et al., 2007a, p. 9, itálico nosso). Propõem-se que os estabelecimentos assistenciais desenvolvam serviços por meio dos quais “ofertam aos cidadãos um conjunto diversificado de oportunidades de aprendizagem que objetivam… o desenvolvimento da autoconfiança e de capacidades com vistas a construção de um novo projeto de sociedade” (SMADS et al., 2007a, p. 6, itálico nosso). A cidadania, portanto, é compreendida como o resultado do usufruto das oportunidades dadas pelo Estado para a população. Destacamos nesse conjunto de dados a apresentação do público atendido como cidadão-usuário, isto é, consumidor dos serviços, e o oferecimento dos serviços como oportunidades.

8.2 Sobre o público atendido

Nos textos analisados, é possível observar uma ambiguidade no discurso sobre a população atendida. Por um lado, são caracterizados como vulneráveis e em risco. Por outro, também se busca ressaltar suas “forças, de resistências, riquezas socioculturais e humanas, capazes de gerar ressonância criativa” (SMADS et al., 2007a, p. 36). Essa é uma ambivalência que precisa ser sustentada pelo discurso para que se justifique e se mantenha a necessidade do serviço (atender aos vulneráveis), sem assumir as garantias da efetivação dos direitos da população atendida.

Outro ponto fundamental são as alternativas apresentadas para a vulnerabilidade dos jovens atendidos. Segundo os documentos analisados, a vulnerabilidade deve ser reduzida, pois pode “levar o jovem a se envolver em situações de perigo, violência, infrações, como o tráfico” (SMADS et al., 2007b, p. 30). A solução para isso consistiria na inserção dessa população jovem no mercado de trabalho. “Os jovens pedem trabalho, querem assumir o gasto com seus desejos” (SMADS et al., 2007b, p. 30). Mas que tipo de alternativa de emprego seria essa? Em outra passagem do mesmo documento, lemos:

Os jovens (15–18) nesta faixa etária possuem uma relação de experimentação com o mundo do trabalho. O trabalho é reconhecido por eles como possibilidade de obter uma renda e conquistar assim uma certa autonomia; por isso mesmo o interesse pelo “bico”, pelo trabalho temporário… É preciso reconhecer a necessidade de complementação de renda familiar e as exigências do mundo do trabalho e investir na ação intersetorial visando o aprimoramento profissional dos adultos e a formação educacional do jovem. (SMADS et al., 2007b, p. 30)

A alternativa proposta para os adolescentes atendidos concentra-se no trabalho precarizado, conhecido como “bico”. No entanto, o mesmo trabalho informal é apontado como um fator gerador de vulnerabilidades na transição para a juventude. Isso revela, portanto, uma contradição interna nas ideias apresentadas.

Esses grupos de jovens [providos financeiramente] têm acessos diferenciados à cultura, ao lazer, ao trabalho, à escolarização, à circulação nas cidades, nos estados e no país. Os primeiros [jovens pobres] veem-se empurrados para o mercado de trabalho para suprir as próprias necessidades e as de suas famílias. A eles é reservada a informalidade e o subemprego. Isso, sem falar no índice de desemprego. (SMADS et al., 2007b, p. 38)

Nos documentos analisados, os adolescentes são definidos como instáveis e frenéticos, partindo de uma concepção acrítica sobre o desenvolvimento humano. Nessa mesma perspectiva, os jovens são apresentados como sujeitos que pertencem a um novo tempo histórico, sem causas políticas definidas. “Os jovens de hoje preferem ver-se como pessoas inseridas numa rede de relações, mas que não se deixam envolver por macroestruturas. Eles preferem agir individualmente” (Costa, 2006, p. 85). Nessa perspectiva, essa população busca “olhar para o que está acontecendo à sua volta e preferem intervir para não obter um novo modelo de sociedade” (Costa, 2006, p. 85, itálico nosso). Essa geração de jovem seria mais pragmática, individualista e orientada pelos aspectos de formação da identidade. Além disso, essa passagem ressalta que a posição política adotada pelo autor do texto rejeita possíveis alternativas ao sistema capitalista vigente.

Outro aspecto relevante é a ênfase atribuída à dimensão subjetiva, em detrimento das condições objetivas e materiais, como fator central na entrada dos jovens no tráfico. Nesse sentido, segundo a perspectiva apresentada por Antonio Carlos Gomes Costa (2006) e Aracati (2002), os educadores e funcionários, no contexto do atendimento socioassistencial, devem concentrar-se em se posicionar como modelos para os jovens, promovendo a aceitação e a compreensão de suas necessidades afetivas.

Porque o jovem que cometeu um ato infracional, na maioria dos casos, não dá certo na escola, no trabalho e na vida não pela falta de encaminhamentos para a escola ou oportunidades de profissionalização, mas porque lhe faltou acesso a uma educação mais ampla, que lhe impossibilitasse aprender a ser e aprender a conviver. (Costa, 2006, p. 57)

Essa ausência de valores do “aprender a ser” e “aprender a conviver” resultaria em “apatia, indiferença, agressividade e outras reações, sentimentos e comportamentos destrutivos diante de oportunidades educativas que lhe são oferecidas” (Costa, 2006, p. 58). E prossegue afirmando que:

O primeiro e mais decisivo passo para o educando superar suas dificuldades pessoais é a sua reconciliação consigo mesmo e com os outros. Muito mais importante que alimentação, lugar para dormir, roupa, matrícula na escola etc., esse educando precisa que suas necessidades de estima sejam satisfeitas, isto é, precisa sentir-se compreendido e aceito. Quem não se sente compreendido e aceito por pelo menos uma pessoa, neste mundo, pode tornar-se um perigo para si mesmo e para os outros. (Costa, 2006, p. 56)

A partir de uma análise psicologizante, a dimensão afetivo-motivacional se destaca como a necessidade primordial, colocando a resposta a nível individual e retirando, inclusive, a crucialidade da sobrevivência material no mundo:

Quando somente tentamos repor ao adolescente em dificuldade bens materiais e não-materiais de que estava privado… estamos incidindo apenas na superfície do problema, sem alcançar as dimensões mais profundas e mais determinantes de sua atitude básica diante da vida. (Costa, 2006, p. 58)

Na mesma perspectiva que Costa (2006), Aracati (2002) argumenta que o jovem deve ser resiliente, o que significa:

Ter uma perspectiva positiva… objetivos para o futuro… fazem [os jovens resilientes] parte (e sentem-se parte) de grupos como grêmios, grupos de bairro, etc. Vê pontos positivos em suas vivências… [possui] capacidade de curtir pequenas alegrias, é capaz de rir de si mesmo… [possui] fé, possui planos de realização… possui ídolos, disposição para aprender e opera no modelo do desafio. (Aracati, 2002, p. 3)

Para Costa (2006), a pessoa resiliente é aquela que, diante de situações difíceis, se esforça para lembrar ao máximo em momentos gratificantes e felizes de sua experiência passada.

Quanto às experiências negativas, dolorosas e traumáticas, aquelas que, em determinado momento ou etapa de sua vida, foram-lhe motivo de dano ou ameaça, o resiliente tende, de uma maneira deliberada e intensa, a relativizá-las e abstraí-las ao máximo. Isso é feito de duas maneiras: pelo humor e pela racionalização. (Costa, 2006, p. 78)

Na análise do autor sobre as circunstâncias, o resiliente não deve “se prender ao detalhe, nem se perder no cenário mais amplo” (Costa, 2006, p. 79), se caracterizando como alguém que possui apego ao tempo presente, aderindo ao “seu sim às grandes motivações da existência (o amor, o trabalho, a fé), mas também pela atenção permanente, pela abertura e pela inclinação saudavelmente curiosa e desejante dos pequenos nadas, das pequenas alegrias” (Costa, 2006, p. 80).

8.3 Perspectivas sobre cidadania

Sobre essa temática, encontramos algumas diferenças importantes entre os documentos da SMADS et al. (2007a; 2007b), de Costa (2006), de Aracati (2002) e a cartilha do CEDECA (2017). A cartilha não se dirige somente aos funcionários dos estabelecimentos socioassistenciais, mas também às crianças e aos adolescentes. Outro ponto relevante é que a cartilha do CEDECA adjetiva “política” à participação, enquanto os demais documentos preferem expressões como “participação social”, “participação democrática” e “participação na vida pública”. Apesar desses apontamentos, a cartilha do CEDECA possui semelhanças com os demais documentos analisados. A principal delas é a ênfase na ideia de cidadania ativa. O cidadão ativo, segundo esse discurso, deve ser atuante no controle social de um Estado considerado corrupto, burocrático e pouco democrático.

Surge então o cidadão ativo, atuante no controle social do Estado e que participa de fato da vida política, no lugar do cidadão passivo, aquela pessoa destinatária dos serviços/bens estatais. E um elemento fundamental para a nossa conversa é que além disso, esse cidadão se diferencia da condição de ser apenas um eleitor. Nesse sentido, compreende-se que o exercício da cidadania é muito mais que votar, então abrem-se caminhos para a participação política das pessoas que não são eleitoras e para o reconhecimento da sua cidadania. (CEDECA, 2017, p. 13)

Na particularidade da cidadania infanto-juvenil, Costa (2006) explica que o cidadão ideal é aquele que é Autônomo, Solidário e Competente (ASC):

Autônomo, porque capaz de apoiar-se em seus próprios valores, crenças e princípios para resolver problemas, avaliar e tomar decisões bem-fundamentadas. Solidário, porque capaz de atuar em favor de causas, com uma postura desinteressada, favorável ao bem comum. E competente, porque capaz de viver e conviver em uma sociedade moderna, ingressando, permanecendo e ascendendo no mundo do trabalho. (p. 63)

Em nossa análise, entendemos que o projeto ASC se refere à formação de um sujeito adequado às necessidades de mercado. O documento de Aracati (2002) também ressalta o ASC como ideal, enfatizando o desenvolvimento da competência pessoal (aprender a ser), a competência social (aprender a conviver), a competência produtiva (aprender a fazer) e a competência cognitiva (aprender a aprender). Nos cadernos do CENPEC também é possível identificar uma dimensão pragmática da cidadania, voltada à necessidade de formar sujeitos aptos a resolver problemas cotidianos. As habilidades democráticas satisfazem uma convivência grupal imediata, em que predomina ações de tolerância e práticas de resolução de conflito. Além disso, a “boa” cidadania é ensinada pela preservação dos equipamentos públicos, o respeito às autoridades e aprender a questionar somente quando for necessário.

8.4 Perspectivas sobre participação

Nos documentos analisados, dois conceitos de participação se destacaram: 1) participação como voluntariado e 2) participação como forma de desenvolvimento pessoal.

8.4.1 Participação como voluntariado

Nos textos analisados, a participação está, de maneira geral, relacionada com o “sentido coletivo” e o “bem comum”. Nesse contexto, a socioeducação é entendida como um espaço de promoção da convivência e da participação na vida pública. No material selecionado, a participação, por vezes, é confundida com a questão da convivência, reduzindo a primeira à segunda. Com exceção da cartilha do CEDECA (2017), não é possível identificar a expressão participação política nos demais textos analisados.

O compromisso ético e político com a propriedade coletiva é restrito a ações voluntárias, imediatas, acríticas e pontuais, tais como:

Cuidar do jardim da praça, preocupar-se com o destino do lixo, apreciar e preservar a arte que está nas ruas são passos iniciais e importantes, pois os bens coletivos são heranças, traços que temos em comum que contribuem para a construção de laços de pertencimento e coesão social. Esses laços fortalecem o comprometimento com o bem público e impulsionam a participação em movimentos reivindicatórios. (SMADS et al., 2007a, p. 15)

Ainda, a SMADS et al. (2007a) afirma que a participação ocorre em diversas instâncias: “na escola, na empresa, na família, no bairro, nas fábricas, nos sindicatos, partidos políticos, movimentos e organizações da sociedade civil, ou seja, a participação é possível em todos os espaços de convivência” (p. 30). É possível observar que, para o documento analisado, a participação na família e no bairro estão no mesmo patamar da participação em sindicatos e partidos políticos.

8.4.2 Participação como forma de desenvolvimento pessoal

Essa participação acontece a partir da “coesão grupal, criando espaços democráticos que favoreçam o encontro, o diálogo e a reflexão” (SMADS et al., 2007a, p. 40, grifo nosso). Nesse caso, a participação se reduz às habilidades de convivência social propostas pela SMADS, et al (2007a, 2007b). O principal objetivo é ampliar o acesso aos serviços, desenvolver competências e talentos dos grupos atendidos, o que proporcionaria condições de participação democrática e convivência social.

Uma passagem do documento explica, por exemplo, que a vivência em grupo e comunidade é formada por um conjunto de hábitos individuais. A violência e a corrupção são problemas sociais entendidos como hábitos e costumes dessas relações grupais. Por essa razão, o combate a essas problemáticas se realiza no “movimento de combate aos hábitos”:

Só prestarmos atenção em nosso modo de viver em grupo, perceberemos uma série de hábitos individuais, usos praticados pelas comunidades e costumes desenvolvidos culturalmente… Diz como nos relacionamos, quais são nossos valores e o que precisamos e queremos mudar porque não nos satisfaz. Atualmente, estamos indignados com a corrupção e a violência. Essa indignação pode gerar movimentos de combate aos hábitos, usos e costumes que sustentam esses atos. E culminar com a criação de leis que evitem atos corruptos e garantam o direito à vida, por exemplo. (SMADS et al., 2007b, p. 25)

Outro enxerto ilustra a participação como forma de desenvolvimento individual, escolha pessoal e, portanto, responsabilização dos indivíduos pela formação social. Nesse caso, o coletivo não é mais do que um agrupamento de sujeitos que possuem uma relação casual e instrumental entre eles. O desejo individual de uma “sociedade melhor” seria o fator comum entre todos aqueles que participam.

Participar é um direito e uma responsabilidade de todos os cidadãos. Direito de tomar parte nas decisões que afetam sua vida. Responsabilidade, no sentido de assumir compromissos que visem à construção de uma sociedade melhor para todas as pessoas. A participação é um compromisso individual e coletivo. Participar significa assumir um compromisso com outras pessoas em torno de um objetivo comum. Cada cidadão pode participar de uma ação coletiva de acordo com seus desejos, habilidades e competências. (SMADS et al., 2007b, p. 29)

Essas características da participação, com ênfase no individual e em projetos pessoais, alcançam seu pleno potencial quando aplicadas ao protagonismo juvenil. O protagonismo juvenil seria responsável por fortalecer a democracia, promovendo a autonomia e a autoconfiança dos protagonistas (Aracati, 2002; Costa, 2006). Segundo Aracati (2002), o protagonismo considera o jovem como parte na solução de problemas. Esse movimento objetiva desconstruir as visões de jovem como um problema social que surgiram em meados do século XX, propondo o protagonismo como forma de integração social (Souza, 2006). Nesse sentido, o jovem é entendido como uma “fonte de iniciativa”. Segundo os textos, o protagonismo busca promover o desenvolvimento pessoal e social, com foco pragmático na experiência em detrimento da apropriação teórica, impossibilitando a práxis política como unidade entre teoria e prática. Para essa formação do jovem como protagonista, “o objetivo da educação para valores: dotar o adolescente de bons critérios para avaliar situações e tomar decisões” (Costa, 2006, p. 5). O resultado principal é a formação de jovens autônomos.

O protagonismo juvenil possui relações estreitas com o empreendedorismo, pois “busca criar espaços estruturados a partir dos quais o educando possa ir empreendendo, ele próprio, a construção do seu ser em termos pessoais e sociais” (Costa, 2006, p. 87). Para Costa (2006), essa seria a educação emancipadora. Para formar o indivíduo como cidadão, Costa (2006) sugere a complementariedade entre a educação para valores, o protagonismo juvenil e a cultura da trabalhidade. Esses fatores contribuiriam para o ideal do jovem Autônomo, Solidário e Competente. Segundo o autor, a educação para os valores “trabalha o jovem como pessoa… contribuindo para o desenvolvimento de sua autonomia, ou seja, de sua capacidade para decidir” (p. 99). O protagonismo juvenil, por sua vez, “trabalha o jovem como cidadão… contribuindo para o desenvolvimento de sua solidariedade, ou seja, de sua capacidade para atuar como solução e não como problema” (p. 99). A cultura da trabalhidade “trabalha o jovem como profissional… contribuindo para o desenvolvimento de suas competências, isto é, na sua capacidade de viabilizar-se num mundo de trabalho transformado pela globalização dos mercados” (p. 99).

8.5 Núcleo de significação 1. Entre a figura do menor e do cidadão: o lugar político da criança e do adolescente no discurso institucional

A relação entre as funções atribuídas aos serviços socioassistenciais e a forma como o público atendido é significada no discurso analisado pode ser sintetizada na unidade de contrários entre o Sujeito Desprotegido (isto é, a população pobre que é alvo das políticas públicas e que requer proteção social) e o Sujeito Protegido (isto é, a classe média e elite, que são considerados protegidos pela renda advinda de um trabalho e pelos vínculos de pertencimento social). Nesse contexto, identificamos no discurso analisado como a luta de classes se materializa. Como retoma Benelli (2022, apud Patto, 1990, p. 209), o público dos serviços socioassistenciais é o pobre, que também é considerado indolente, sexualmente promíscuo, primitivo e violento. Nos documentos analisados, é possível identificar a associação do público atendido também com os fenômenos da delinquência, da criminalidade, do tráfico de drogas e das gangues, reproduzindo o discurso menorista que é avesso às noções de cidadania e participação política.

Uma das saídas apontada pelos textos analisados para lidar com o tráfico de drogas é oferecer o “bico”, um trabalho informal, para que o adolescente não veja no tráfico uma alternativa para pagar pelos objetos de consumo que deseja possuir. Outra se concentra no papel da Psicologia e da Pedagogia e na estratégia de individualização de problemas sociais, tratando-os como algo da ordem do afeto, da psique e da escolha individual, no plano de uma subjetividade privatizada. Nesse sentido, a política pública de Assistência Social é reduzida a uma oportunidade de empreendimento individual. Segundo Melissa Rodrigues Almeida (2018), essa é uma das maneiras de socializar os sujeitos para que sejam flexíveis e moldáveis às mudanças constantes das necessidades do Mercado. Exemplos do caso da psicologização dos problemas sociais podem ser observados especialmente nos trechos de Costa (2006) e Aracati, os quais sugerem a pedagogia do aprender a aprender como ferramenta para prevenir atos infracionais, assim como a resiliência, a “atitude positiva”, “senso de humor” e “otimismo”. Esses conceitos advindos Pedagogia e Psicologia se articulam para a difusão das noções de empreendedorismo, como solução para a terceirização, o desmonte dos direitos sociais e trabalhistas e a intensificação da mercantilização da vida humana (Antunes e Alves, 2004). Ademais, também se enfatiza no discurso analisado o tema do protagonista, um termo próximo ao empreendedorismo (Souza, 2006; 2009).

8.6 Núcleo de significação 2. A atuação política institucional

Identificamos na análise documental um entrelaçamento entre as concepções de cidadania e de participação. A cartilha do CEDECA propõe uma concepção da cidadania infanto-juvenil como parte de um processo de transformação social, ainda que no contexto dos limites liberais, aliado à participação popular e política. Os cadernos da SMADS et al. (2007a 2007b) e o livro de Costa (2006) enfatizam a cidadania infanto-juvenil como um projeto formativo, o qual é sintetizado por Costa (2006) como a formação de um cidadão Autônomo, Solidário e Competente (ASC). Nessa perspectiva, o protagonismo seria responsável pelo desenvolvimento dos indivíduos como “fonte de iniciativa” e, portanto, de autonomia. Como pessoa autônoma, o jovem busca espaços para empreender seu desenvolvimento pessoal e a escolha de seus valores para tomar decisões como “solução e não como problema” para o contexto social no qual está inserido. Assim, identificamos que o protagonismo juvenil se resume ao aspecto Autônomo do projeto ASC. As definições sobre protagonismo juvenil, no discurso analisado, também relacionam a Autonomia com a Solidariedade, pois compreende que a ação individual a nível local é primordial para a promoção de uma “sociedade melhor”, contribuindo para uma participação pasteurizada (Chavez, 2009). Nesse sentido, a participação não seria caracterizada como política, mas como social. A dimensão solidária é desenvolvida pela participação voluntária, na qual a participação na vida pública é confundida como sinônimo de “convivência” e “participação social”.

A participação em grupos é também entendida como forma de desenvolvimento pessoal, isto é, relacionada como nível da Competência no projeto ASC. As habilidades de competência consistem em um conjunto de normas para a convivência grupal. Nesse caso, o grupo seria uma soma de indivíduos, um instrumento para o desenvolvimento individual. Mesmo quando os textos analisados utilizam a expressão “participação na vida pública”, resulta impreciso. Em uma tentativa de abranger mais modalidades de participação, a exclusão da dimensão política permite que se reduza a participação a qualquer intervenção a nível grupal ou comunitário.

9 Conclusões

Neste artigo, objetivamos analisar os efeitos do neoliberalismo no discurso socioassistencial sobre a participação política institucional de crianças e adolescentes. A partir de uma análise documental, identificamos dois núcleos de significação: 1) entre a figura do menor e do cidadão: o lugar político da criança e do adolescente no discurso institucional e 2) a atuação política institucional.

Nossa análise sugere que a consolidação do neoliberalismo influenciou a formulação e implementação das políticas públicas brasileiras a partir dos anos 1990, incluindo novos termos como oportunidades, capacidades e competências (Natera, 2004; Zamorano, 2008). Em parcerias com organizações do Terceiro Setor, o trabalho social desenvolvido pelas equipes dos estabelecimentos socioassistenciais passou a centralizar na figura do cidadão-usuário a responsabilidade pela garantia dos próprios direitos (Dagnino, 2004b). O papel dos estabelecimentos socioassistenciais, nesse contexto, consiste em socializar crianças e adolescentes para que se tornem o “cidadão ideal”, que, em síntese, seria autônomo, solidário e competente — o oposto das características de como os sujeitos atendidos são apresentados pelo mesmo discurso.

A predominância dos termos pertencentes ao discurso mercadológico está de acordo com o que outros autores encontraram em seus estudos sobre os discursos produzidos no âmbito da Política de Assistência Social (Benelli, 2016, 2022). As posições políticas presentes nos documentos analisados oferecem uma saída das mazelas sociais no plano subjetivo (Silva, 2018).

Identificamos uma afinidade entre os termos protagonismo juvenil e empreendedorismo, que reproduz a lógica empresarial ao nível da participação política (Souza, 2006).

Nosso estudo avança ao investigar os efeitos do neoliberalismo na participação política institucional, explorando suas principais contradições. Sugerimos que futuras investigações priorizem a coleta de dados de campo para aprofundar as análises que desenvolvemos. Além disso, é essencial que novos estudos busquem esclarecer os diferentes significados atribuídos à participação, com vistas a promover uma maior sistematização conceitual.

10 Agradecimentos e financiamento

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior — Brasil (CAPES) — Código de Financiamento 001.

11 Contribuição de autoria

Juliana Montenegro Brasileiro: redação - rascunho original; conceitualização

Sílvio José Benelli: supervisão; redação - revisão e edição

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