“Não foi só culpa da chuva”: análise de notícias jornalísticas sobre um desastre socioambiental

“It wasn’t just the rain’s fault”: analysis of newspaper reports on a socio-environmental disaster

  • Juliana Catarine Barbosa da Silva
  • Roberth Miniguini Tavanti
  • Mary Jane P. Spink
  • Maria Auxiliadora Teixeira Ribeiro
Desastres socioambientais têm sido recorrentes no Brasil e no mundo. Entre eles, um deslizamento de encostas no litoral norte de São Paulo, em fevereiro de 2023, causou 65 mortes, 1.009 desalojados e 1.346 desabrigados. É objetivo desta pesquisa é entender a dinâmica da atribuição de culpa e responsabilidade pelo ocorrido nas matérias do jornal Folha de S. Paulo. Foram analisadas as matérias publicadas entre os dias 20 de fevereiro e 12 de março, utilizando como aporte teórico os estudos sobre a construção das notícias nas mídias, sendo identificados três temas: a explicação do desastre; as moradias em áreas de risco e a atuação da defesa civil. A intensidade da chuva foi inicialmente responsabilizada; os moradores foram posicionados como vítimas da falta de políticas habitacionais e a defesa civil foi culpabilizada pelas falhas no sistema de gestão de riscos, incluindo a falta de estratégias de alerta e de informações sobre ações de enfrentamento.
    Palavras chave:
  • Desastres
  • Comunicação de Massa
  • Comunicação
  • Mudanças climáticas
Socio-environmental disasters have been recurring in Brazil and around the world. Among them, a landslide on the northern coast of São Paulo in February 2023 resulted in 65 deaths, 1,009 displaced individuals, and 1,346 homeless individuals. The objective of this research is to understand the dynamics of blame and responsibility attribution for the incident in articles from the Folha de S. Paulo newspaper. The articles published between February 20th and March 12th were analyzed, using studies on the construction of news in the media as a theoretical contribution, identifying three main themes: the explanation of the disaster, housing in risk-prone areas, and the role of civil defense. Initially, the intensity of the rain was held responsible; residents were portrayed as victims of the lack of housing policies, and civil defense was blamed for failures in the risk management system, including the absence of alert strategies and information regarding coping measures.
    Keywords:
  • Disasters
  • Mass Media
  • Communication
  • Climate Change

1 Introdução

Em virtude de um desastre, deslizamento de encostas, ocorrido no litoral norte de São Paulo, em fevereiro de 2023, desenvolvemos esta pesquisa com o objetivo de analisar a cobertura sobre o evento do jornal Folha de S. Paulo para entender a dinâmica da atribuição de culpa e responsabilidade pelo ocorrido. Escolhemos trabalhar com as notícias de jornal seguindo longa tradição de interesse pela mídia, em estudos realizados no âmbito da rede de pesquisa sobre práticas discursivas no cotidiano, dado seu potencial de circulação de repertórios, que se tornam disponíveis para a produção de sentidos (Spink, M. J. et al., 2021; Spink, M. J. et al., 2002; Spink, M. J. e Spink, P., 2006).

Nesse enquadre, as matérias de jornal são tomadas como documentos de domínio público:

Os documentos de domínio público são produtos sociais tornados públicos. Eticamente estão abertos para análise por pertencerem ao espaço público, por terem sido tornados públicos de uma forma que permite a responsabilização. Podem refletir as transformações lentas em posições e posturas institucionais assumidas pelos aparelhos simbólicos que permeiam o dia a dia ou, no âmbito das redes sociais, pelos agrupamentos e coletivos que dão forma ao informal, refletindo o ir e vir de versões circulantes assumidas ou advogadas. (Spink, P., 2004/2013, p. 112)

Os jornais têm longa história, sendo uma das primeiras fontes de informação voltadas ao público. Atualmente, entretanto constituem um entre muitos meios de comunicação destinados ao grande público que utilizam tecnologias distintas e têm objetivos variados (culturais, informativos, publicitários, por exemplo). Competem, portanto, com essas outras modalidades tendo desenvolvido e aprimorado estratégias de sedução de leitores.

Considerando a longa trajetória, alguns princípios são compartilhados pelos jornais, pelo menos aqueles que têm a informação como fundamento. O papel da Mídia inclui: 1) Prover informação completa, confiável e (até certo ponto) sem interesses próprios sobre informações que afetam a vida da coletividade; 2) Organizar um espaço de discussão sobre temas que geram ansiedades e preocupações no público; 3) Agir como watchdog1 sobre a performance de centros de poder do governo e das grandes corporações.

Trata-se de tarefa hercúlea, considerando que a transmissão de informações se dá em um contexto no qual a confiança do público em autoridades governamentais e especialistas (sobretudo aqueles que são empregados por agências governamentais e grandes corporações) foi erodida. E, paralelamente, aumentam as preocupações sobre as implicações dos desenvolvimentos tecnocientíficos para a saúde e o ambiente (Beck, 1992). Des

ta maneira, é uma das funções da mídia, no papel de watchdog, trazer ao público o debate sobre inovações tecnológicas e políticas governamentais.

Considerando especificamente as notícias sobre riscos, Emma Hughes et al. (2006) falam de transformações no modus operandi da mídia, elencando dois modelos. Um tradicional, que tende a ver a mídia como um sistema de transporte de informações sobre risco derivadas de especialistas, com um mínimo de interferência e introdução de ruídos. Ou seja, transmitir as mensagens sobre risco para leitores individuais que precisam decifrar e dar sentido às notícias com base nos repertórios que dispõem. Isso se aplica inclusive aos modelos de amplificação dos riscos, a exemplo das teorizações de Kasperson (Kasperson et al., 1988). É como se as mídias fossem caixas pretas, não levando em consideração as especificidades programáticas e organizacionais das diferentes mídias e o contexto competitivo (competição pela atenção de leitores) em que atuam.

Essa visão tradicional vem sendo substituída por um outro modelo mais dinâmico, que enfatiza o papel ativo das diversas fontes e atores que atuam na construção social da mensagem. Nesse enquadre:

Para a mídia, a estrutura narrativa dramatúrgica é crucial: deve haver uma história a ser contada sobre intenções e motivos, vítimas, vilões e heróis, todos encenados em um ambiente específico. As consequências humanas são detalhadas, assim como os significados e emoções. Questões de culpa, responsabilidade e confiança são atuais e se entrelaçam com questões sobre causação e especulações sobre efeitos plausíveis. (Boholm, 2003, p. 173)

1.1 O que faz um evento ser notícia

A construção da notícia tem por base dois fatores: (a) a organização do processo de produção, por exemplo, o artigo de Mary Jane Spink et al., 2001 e a tese de Mariana Gervasio (2022), incluído a relação dos jornalistas com suas fontes, e (b) a concepção que jornalistas profissionais têm do que faz uma “boa” notícia – as características que fazem um evento ser newsworthy e o acervo disponível para a construção da matéria (imagens, gráficos e fotos).

Considerando o primeiro fator, Cláudia Malinverni (2016) apresenta a noção de newsmaking, que diz respeito ao processo de produção da notícia, permitindo, assim, compreender e identificar a “lógica produtiva da comunicação jornalística de massa em estreita articulação e vinculação com rotinas de organização do trabalho e da cultura profissional”. (p. 50).

Nessa perspectiva, os acontecimentos do cotidiano constituem a fonte primária do jornalismo. Como apontado por Mariana Gervasio (2022), “As notícias nunca são a realidade em si, mas uma das narrativas possíveis sobre os acontecimentos sociais, tendo como fonte primária o acontecimento cotidiano (voluntário, natural ou provocado), que ocorre em superabundância”. (p. 49).

Não sendo possível noticiar tudo o que ocorre na vida social, os meios de comunicação, por meio da organização do trabalho, estabelecem um procedimento de seleção e de preferência, dando visibilidade a determinados fatos em detrimento de outros. (Spink, M. J. et al., 2001).

Newsmaking inclui dois procedimentos: agendamento (agenda-setting) e o enquadramento (framing). O agendamento tem como hipótese que a imprensa apresenta ao público temas sobre os quais é necessário ter uma opinião por serem parte da agenda pública. Malinverni (2016) considera que desse modo as pessoas ignoram ou prestam atenção em elementos específicos do cenário público, tendendo a incluir ou excluir do seu conhecimento aquilo que a cobertura jornalística inclui ou exclui do seu conteúdo. Obviamente, o agendamento não é criação pura de uma dada mídia jornalística; a agenda é produto de um processo constante de retroalimentação entre público e conteúdos jornalísticos e ambos são influenciados por valores e crenças de um dado momento da vida social.

Já o enquadramento é entendido como um segundo nível do agendamento, pois “é utilizado para examinar os padrões de ênfase e o tom das mensagens da mídia” (Gervasio, 2022, p. 51), ou seja, tem por foco as estratégias discursivas utilizadas na produção da notícia. Nesse processo de enquadramento jornalístico, o autor da notícia salienta ou omite informações de acordo com o que acredita ser mais bem aceito pelo receptor, conforme suas crenças e símbolos culturalmente familiares.

Nessa concepção, a comunicação de riscos é vista como um processo contínuo de construção. Jornalistas e produtores de programas criam relatos de riscos a partir dos materiais obtidos por meio de rotinas estabelecidas de vigilância, pesquisa e montagem. Linguagem e imagens se combinam na página ou na tela para formar uma variedade de significados. (Hughes et al., 2006, p. 252)

Seguimos um esquema proposto por Gervasio (2022), que elabora esse aspecto explicitando cinco tipos de enquadramentos: de jogo, estratégico, episódico, de conflito e temático. É esse último, que aplicamos às notícias sobre o desastre no litoral norte.

Esse framing deve explorar as relações entre antecedentes e consequências segundo diferentes perspectivas, principalmente considerando as expectativas dos principais envolvidos e afetados. Deve também trazer uma camada de complexidade, examinando influências macroestruturais, tendências históricas, alternativas, possibilidades, exemplos de outras regiões ou países, possíveis obstáculos etc. (Gervasio, 2022, p. 53)

Por ser o objetivo desta pesquisa, analisar como a FSP reportou o desastre no litoral norte, nossas considerações sobre mídia se inserem nas teorizações sobre como os jornais noticiam questões relacionadas a riscos, seguindo reflexões de Hughes et al. (2006).

Para eles, o espaço que os jornais dedicam às notícias sobre risco nunca refletem as hierarquias de risco definidas pela ciência. Por exemplo, um desastre relacionado a um acidente de avião recebe mais atenção do que fatalidades relacionadas ao câncer, que mata muito mais pessoas. Os padrões de notícias na mídia também não refletem a trajetória de um determinado risco (tomado aqui como probabilidade de ocorrência de algum evento). Assim, ao longo do tempo diminuíram reportagens sobre envenenamento por salmonella, embora o número de casos tenha aumentado; na direção oposta, aumentou o número de notícias sobre poluição de rios, embora os níveis de poluição tenham diminuído.

O que faz um evento ser newsworthy? Pesquisas citadas por Hughes et al. (2006) indicam que a mídia tende a focar em riscos que causam morte ou afetam um grande número de pessoas — os desastres na aviação, por exemplo — em detrimento daqueles cujos efeitos são cumulativos (por exemplo, mortes em acidentes de carro). Para atrair a atenção do público, há um fator importante — o ângulo humano: as narrativas pessoais de vivência do evento. Trata-se da evidência vivencial, que é o forte componente do teor de veracidade de uma notícia.

Ainda considerando a relação da mídia com risco, há também o fator proximidade, ou possibilidade de identificação com o evento. Ou seja, a relevância de um risco está associada à proximidade cultural, política ou geográfica. Por exemplo, muitos leitores da FSP têm familiaridade com as praias do litoral norte de São Paulo, sedentos por notícias e acompanhamento dos desdobramentos.

De particular interesse para a pesquisa ora relatada, é a dinâmica de culpabilização e responsabilização por um determinado evento de risco.

O interesse da mídia tende a ser intensificado quando há conflito evidente entre as partes interessadas, falhas percebidas no governo ou evidências claras de interesses pessoais promovendo uma posição específica ou tentando silenciar ou desacreditar vozes de oposição. Da mesma forma, uma história pode desaparecer da visão pública assim que a culpa for atribuída a pessoas comuns em vez de especialistas ou autoridades. (Hughes et al., 2006, p. 258)

O debate sobre culpa e responsabilização surge por meio de várias matrizes de pensamento como no direito (Bandeira, 2008; Fontes, 1999) e na filosofia, sendo analisadas pelo prisma da vida política e das múltiplas possibilidade e impossibilidades de escolha (Soares, 2021), enquanto o presente texto discute esses temas pela perspectiva das práticas discursivas no âmbito da psicologia social (Spink, M. J., 2004/2013). Considera a linguagem em uso entendendo-a como prática social, situada historicamente e dimensionada em seus aspectos performáticos e/ou de produção de sentidos em um contexto social e interacional.

Vale ressaltar, nesse enquadre, o conceito de posicionamento (Davies e Harré, 1990), pois a produção de sentidos no cotidiano é sempre uma produção discursiva de pessoas em interação, em contextos específicos, atravessados por relações de poder. Em outras palavras,

A força constitutiva das práticas discursivas está em poder prover posições de pessoa: uma posição incorpora repertórios interpretativos, assim como uma localização num jogo de relações inevitavelmente permeado por relações de poder. As práticas discursivas, portanto, implicam necessariamente o uso de repertórios e posicionamentos identitários. (Spink, M. J., 2004/2013, p. 37)

Propomos, desse modo, que a mídia jornalística não é apenas um meio poderoso de criar e fazer circular conteúdos simbólicos, mas possui um poder de posicionar pessoas diante dos processos de atribuição de culpa e/ou responsabilização como, neste caso, das notícias sobre o desastre no Sahy, contribuindo, assim, para a construção de novos espaços de interação, produção e circulação de sentidos.

2 Procedimentos

A mídia é um poderoso recurso para alimentar nossos processos de produção de sentidos, sobretudo diante de crises, catástrofes e eventos que rompem com a banalidade do cotidiano. É uma das fontes de informações que nos possibilita entender porque um evento dramático, como um desastre que afeta muitas pessoas, ocorre. Daí o foco desta pesquisa: a dinâmica de culpabilização e responsabilização pelo desastre nas praias do litoral norte de São Paulo, seguindo as notícias da cobertura da Folha de S. Paulo. O evento ocorreu no dia 19 de fevereiro de 2023, foi duramente descrito pela mídia e por especialistas como uma tragédia anunciada que registrou 65 mortos, 1009 desalojados e 1346 desabrigados.

Por que escolher a FSP? Poderíamos justificar por ser este um jornal de grande circulação no território local e nacional, ser reconhecido como formador de opinião, bem como ser referência de informação para outras mídias do país. A razão desta escolha, entretanto, foi puramente pragmática. Como assinantes da versão digital, pudemos criar um corpus de notícias para análise. Cabe especificar que a Folha de S. Paulo utiliza a seguinte estrutura: jornal eletrônico (on-line), que funciona como um portal de notícias 24 horas; e jornal digitalizado, que reproduz o jornal impresso. A modalidade selecionada para compor o corpus da pesquisa foi o jornal digitalizado, disponível exclusivamente para assinantes. O acervo consiste em matérias publicadas de 20 de fevereiro, um dia após o desastre, a 12 de março. A inserção de matérias no corpus de pesquisa teve como parâmetro a existência de notícias sobre o desastre, na primeira página do jornal.

A análise realizada englobou dois procedimentos. O primeiro teve por objetivo apresentar uma visão de conjunto da cobertura do desastre em todo o período destacado. O segundo envolveu a análise discursiva das matérias, identificando as temáticas ali presentes, que resultou na definição de três temas: (1) a explicação sobre a ocorrência do desastre, fortemente pautado pela noção de evento climático extremo; (2) a questão das moradias em áreas de risco e (3) a atuação da defesa civil, com ênfase nos sistemas de alerta.

3 Visão de conjunto das reportagens

Para cumprir com o primeiro procedimento de análise, identificamos a localização de cada uma das notícias publicadas pelo jornal a Folha de S. Paulo sobre o desastre socioambiental. São exemplos: primeiro caderno, caderno Cotidiano 1, 2, 3 e 4 e caderno Ambiente. Na sequência, realizamos uma caracterização das notícias com foco na descrição detalhada delas. Consideramos neste procedimento: os títulos e subtítulos utilizados nas notícias sobre o desastre; as fotos e demais imagens publicadas pelo jornal (gráficos, infográficos etc.); e, a identificação dos interlocutores nomeados nas notícias (defesa civil, governos, especialistas, bombeiros, exército, PM, ONG, moradores, empresários, entre outros) durante toda a cobertura jornalística.

Em linhas gerais, foram identificadas 105 notícias e/ou chamadas para as reportagens sobre o desastre socioambiental, no litoral norte de São Paulo. Vale dizer que foram incluídas neste cálculo, as notícias na íntegra localizadas nos cadernos Cotidiano 1, 2, 3 e 4 e Ambiente 1 (05/03/23), bem como às chamadas nas capas e demais notícias publicadas no primeiro caderno (capa, editorial, opinião, painel do leitor). Dentre as edições dos 22 dias selecionados, em apenas 4 dias não houve notícias na capa do jornal (19/02/23, 03/03/23, 09/03/23 e 11/03/23). Quanto às matérias publicadas no dia 19 de fevereiro, não há informações sobre o desastre, pois referem-se aos acontecimentos do dia anterior. No dia 3 de março, apesar de não ter notícias destacadas na capa, foram identificadas duas, no caderno Cotidiano B2, seguindo os outros dois dias sem notícias sobre o desastre.

Além do uso estratégico de fotos (total de 49) com maior impacto de sensibilização e/ou apelo ao leitor pelos múltiplos efeitos e magnitude da tragédia, foram também utilizados outros recursos de caráter explicativo das notícias – os infográficos. Neste caso o uso deste recurso foi recorrente nas notícias (total de 25 infográficos), sendo estes constituídos por imagens compostas em ilustrações e recursos gráficos, como, por exemplo, mapas das áreas afetadas, imagens da paisagem, fotos retiradas das redes sociais, do rosto das pessoas que morreram, dentre outras situações ilustrativas do desastre.

No tocante ao destaque dado às matérias de capa do jornal, em 11 dias identificamos notícias e fotos como manchete da FSP. Ou seja, nos dias 20, 21 e 23 de fevereiro identificamos matérias sobre o desastre como sendo a notícia principal e a foto principal da capa. Nos dias 22 e 25 de fevereiro e 5, 7 e 10 de março, o destaque dado na capa trazia somente fotos do desastre como imagem principal. No dia 24 de fevereiro, a notícia principal da capa, porém sem imagens; e, nos dias 8, 10 e 12 de março, chamadas para os cadernos com fotos em destaque. Por fim, constatamos que em 7 dias — 26, 27 e 28 de fevereiro e 1, 2, 4 e 6 de março — houve chamadas para as notícias dos cadernos, porém sem fotos ou notícias em destaque.

A seguir, apresentamos o segundo procedimento de análise das matérias, destacando os três temas norteados pelo objetivo de entender a dinâmica da atribuição de culpa e responsabilidade pelo ocorrido: as explicações sobre a causa do desastre; as moradias em área de risco e a atuação da defesa civil. Esta análise recorre ao que torna a notícia publicável (newsworthy) considerando os dois procedimentos: agendamento — o que deve ser apontado de modo que o público leitor possa entender o que ocorreu — e o enquadramento, o tom das mensagens focalizando as imagens, os discursos governamentais e dos afetados pelo desastre, incluindo as consequências em número de mortes e da temporalidade para a recuperação.

3.1 Chuva recorde! A protagonista do desastre

A chuva recorde é a primeira personagem destacada pelas notícias publicadas na primeira página do jornal, em 20 de fevereiro de 2023, no dia seguinte ao desastre, como a responsável pelo ocorrido. Quem a nomeia como tal são os meteorologistas e o governo do Estado. Os argumentos utilizados para sustentar essa explicação trazem expressões hiperbólicas, como: “o mais intenso temporal registrado na história do país”, dos primeiros e “em 24h choveu mais de 600 mm, equivale a 600 litros de água por m² no período”, do segundo (Lima Neto et al., 2023, seção “Cotidiano B1”).

O efeito, que essas narrativas em situações de desastres pretendem produzir, responsabiliza exclusivamente a natureza pelos danos, isentando assim qualquer ser humano de responsabilidade. O que é possível deduzir da manchete jornalística ao noticiar “Chuva recorde leva morte e destruição ao litoral paulista” e da foto de Caio Gomes (Lima Neto et al., 2023, “Cotidiano B1”), ao lado, que figura um trecho da estrada em Ilhabela (SP), com carros e árvores caídos, em um asfalto cedido. Em uma escala menor, um infográfico sinaliza as cidades e estradas afetadas. Essa explicação vincula-se à concepção, na qual a causa dos desastres é situada em um agente externo e é definido como um desastre natural, desconsiderando o contexto social, econômico e político, de tal evento (Marchezini, 2009).

As informações sobre o ocorrido seguem nas páginas do Cotidiano, detalhando a magnitude da chuva e seus efeitos, cujo título principal da primeira página deste caderno — “Chuva recorde no litoral paulista deixa 36 mortos e fecha estradas” (Lima Neto et al., 2023, “Cotidiano B1”) foi levado para a manchete do jornal, naquele dia, sem especificar um quantitativo de mortos.

A chuva, como protagonista, é a causadora das mortes e do fechamento das estradas. O governo estadual é o informante, que especifica a quantidade excessiva de água, expressa em milímetros, diferenciando-a nos diversos lugares: “em menos de 24h o acumulado de chuva ultrapassou os 600 mm em alguns pontos do litoral — Bertioga (683 mm) e São Sebastião (625 mm)” (Lima Neto et al., 2023, “Cotidiano B1”).

Ao declarar que o governo é o informante, não explicita qual foi o órgão ou a autoridade. A imagem, de autoria do corpo de bombeiros, do deslizamento de uma encosta que bloqueou a estrada Rio-Santos na região de Ubatuba ocupa um terço da página, seguindo abaixo uma pequena foto, tirada por Daniela Andrade, de pessoas sendo resgatadas em frente a uma casa, enquanto a informação abaixo dela, é sobre o número de mortos no município de São Sebastião. Ao lado dessa imagem, um infográfico com o título: “Temporal deixa rastro de destruição no litoral de São Paulo” (Lima Neto et al., 2023, “Cotidiano B1”), mantém a chuva como o causador do evento, representando com números, os municípios da região afetada e descrevendo a quantidade de chuva em milímetros, caída em 24h, em cada um deles, além de informações sobre o local em que houve interdições das estradas.

É na segunda página do Cotidiano, ainda do dia 20, que a Defesa Civil aparece afirmando que os volumes registrados pelos pluviômetros foram “excepcionais e recordes para a cidade” (Castelani, 2023a, seção “Cotidiano B2”). O título dessa página enfatiza as consequências: “Em São Sebastião (SP), ONG diz ter contado 17 corpos em comunidade” e o subtítulo denuncia a causa: “Chuva soterrou casas e deixou mortos e feridos no litoral paulista; prefeito diz que número de vítimas deve subir” (Castelani, 2023a, seção “Cotidiano B2”), mantendo naquela data a chuva como a responsável.

Ainda nessa página, uma coluna intitulada “Temporal que atingiu litoral paulista é evento climático extremo” (2023, 20/02), acrescenta uma explicação científica, apresentada por uma meteorologista do Centro de Pesquisas Meteorológicas da Unicamp, que afirma ser um fenômeno pouco frequente no Brasil. Em seguida, são trazidas as explicações da Defesa Civil sobre o significado do volume de chuva, que 1 mm significa 1 litro de água por metro quadrado. Esses detalhamentos, trazidos por uma especialista e por um órgão público, fortalecem o argumento de que a chuva foi, sem dúvida, a responsável. A foto, creditada a um leitor da FSP sem nome, colocada nessa página também corrobora para comprovar tais informações, ao mostrar uma rua alagada com água barrenta, localizada em um bairro de São Sebastião e registrada depois do temporal.

No dia seguinte, 21 de fevereiro de 2023, a capa do jornal ainda traz como manchete a notícia sobre o desastre no litoral — “SP conta mortos e 2500 sem casa após temporal no litoral” (2023, 21/02). Embora a imagem maior ocupe a primeira parte da página, trazendo a foto, creditada a Nelson Almeida, de um morador no meio de pedras e entulhos, o espaço abaixo divide a atenção do leitor, com imagens de um bloco carnavalesco do Rio de Janeiro. As informações descritas logo no início destacam as chuvas do sábado e domingo como causadoras do número de desabrigados ou desalojados, tendo a Defesa Civil como informante. Em seguida, envereda para a politização do evento, trazendo os posicionamentos do governado do Estado e do presidente da República, que não se referem à responsabilização e nem às suas causas.

O primeiro caderno do Cotidiano, nesse dia 21, traz uma extensa reportagem sob o título — “Mortos da chuva sobem para 40 em SP, e resgate busca 40 desaparecidos” (Castelani et al., 2023, seção “Cotidiano B1”). Essa expressão “Mortos da chuva” sinaliza a manutenção da chuva como responsável pelas mortes, reafirmada no início da reportagem — “subiu para 40 o número de mortes causadas pelas chuvas no litoral de São Paulo” (Castelani et al., 2023, seção “Cotidiano B1”). Informação obtida no boletim divulgado pelo governo do Estado. São contabilizadas as mortes, os desaparecidos, desabrigados e desalojados. A foto principal, de autoria de Bruno Santos, mostra um corpo chegando de helicóptero à base aérea da Marinha em São Sebastião. Um infográfico é apresentado na parte inferior da página, mostrando a situação das estradas e várias informações são trazidas sobre as possibilidades de circulação e de recuperação.

É no segundo caderno do Cotidiano, ainda no dia 21, que inicia uma mudança no discurso de responsabilização da chuva, abaixo de uma ampla reportagem que traz o relato dos sobreviventes, sob o título — Sobreviventes relatam desespero e gratidão. A reportagem é assinada por Lucas Lacerda (2023), com o título — Cidades já sabem dos riscos, porém não reforçam a prevenção. Sinaliza uma série de recursos, que poderiam ser acessados para evitar as mortes, apontando outros responsáveis.

Esse redirecionamento da responsabilização, para a implicação dos humanos no desastre é veiculado, quando as reportagens trazem as narrativas dos afetados e o registro fotográfico dos corpos das vítimas.

3.2 Por que construir casas em áreas de risco?

De modo a entender o processo de culpabilização, foram analisadas todas as matérias do período de 19 a 28 de fevereiro referentes à construção de moradias nas encostas (Cotidiano B2 - 21/02/23; Capa e Cotidiano B2, 23/02/23; Cotidiano B2, 24/02/23; Capa e Cotidiano B1, 25/02/23; Cotidiano B1, 27/02/23). Incluímos também o editorial publicado em 02 de março por tratar especificamente da construção em encostas.

No conjunto de matérias analisadas fica evidente que não há falta de informação, nem para a população, nem para as autoridades locais. A matéria publicada no caderno Cotidiano B2 em 21 de fevereiro, dois dias após o desastre, traz depoimentos de sobreviventes, entre os quais duas mulheres que haviam perdido suas casas em outro deslizamento, ocorrido em 2019, em uma praia próxima àquela localidade. Ou seja, deslizamentos, embora sem tanta gravidade em termos de mortes e desabamentos, são recorrentes na região, tendo em vista as características geológicas da Serra do Mar.

Contudo, seguindo a linha de argumento das reportagens da FSP, o problema não se restringe à Serra do Mar. Na matéria publicada em 23 de fevereiro, o ministro da Integração e Desenvolvimento Regional, Waldez Góes, afirmou que “há 14 mil pontos com risco de deslizamento de terra em todo o país, onde vivem um total de 4 milhões de pessoas” (Fernandes, 2023a, seção “Cotidiano B2”). A construção de mais moradias populares, assim como a recomposição orçamentária do Programa PAC Encostas, foi apontada por ele como solução. Nessa mesma toada, o presidente Lula, por ocasião de um sobrevoo na região afetada, pediu “que não sejam mais construídas casas em encostas de morro, a fim de evitar novas tragédias” (Fernandes, 2023a, seção “Cotidiano B2”). Entretanto, nem todas as casas em áreas de morro e encostas têm riscos semelhantes. A matéria publicada em 24 de fevereiro tem por título “Casarões vazios criam vila fantasma após chuva em São Sebastião” (Castelani, 2023b, seção “Cotidiano B1”). Para quem conhece a região, a praia da Barra do Sahy fica entre dois morros, ambos com casas nas encostas. Mas essas resistiram, embora tenha havido desmoronamentos nos morros. “Diferentemente do que ocorreu na Vila Sahy, longe da praia e onde moram os pobres, não houve mortes nesses morros” (Castelani, 2023b, seção “Cotidiano B1”). O arquiteto Fábio Marangolo, morador da região explica: “as casas que resistiram ao temporal foram construídas sobre lajes de pedra, por isso poderão ser recuperadas” (Castelani, 2023b, seção “Cotidiano B1”). Marangolo acrescenta: “Aqui o pessoal tem muito dinheiro” (Castelani, 2023b, seção “Cotidiano B1”).

Os pobres, portanto, seriam vítimas de um processo perverso de especulação imobiliária.

De um lado da rodovia Rio-Santos, mar ao fundo, não é difícil achar lotes à venda por mais de R$ 1 milhão e uma oferta variada de casas luxuosas com preços acima de R$5 milhões. Do outro lado, a menos de 1 km de distância, famílias moram em condições precárias, muitas vezes à espera de regulamentação fundiária ou em áreas de risco. (Castelani, 2023b, seção “Cotidiano B1”)

Especulação possível devido à falta de um planejamento de urbanização e, nessa direção, o dedo da culpa é apontado diretamente para a prefeitura de São Sebastião. Na matéria de 27 de fevereiro (Haddad, 2023) há uma cronologia sobre a omissão da prefeitura tendo em vista que São Sebastião havia recebido pelo menos 4 alertas sobre o risco no Sahy, com base em levantamentos realizados a partir do ano 2000. Entre eles, há um estudo sobre as áreas de risco elaborado pela Universidade Mackenzie em 2013, a pedido da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo); o Plano Municipal de Redução de Riscos elaborado pelo IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas/USP), em 2018 e o levantamento realizado em 2000 (entregue em 2021) a pedido do Ministério Público. O parecer conclui que a manutenção do Núcleo Congelado [como o documento se refere à Vila Sahy] no local e no formato em que se encontra configura é tragédia previamente anunciada.

Portanto, a prefeitura emerge como sendo o pivô desta tragédia que já estava anunciada. O projeto da CDHU visava tanto a reurbanização como o reassentamento de quase 108 famílias da Vila Sahy, mas o convênio com a CDHU ficou parado na prefeitura que justifica esta paralisação pela dificuldade de desapropriação da área prevista, localizada em Maresias, em um jogo de empurra da culpa: prefeitura informa que moradores de Maresias barraram o projeto; moradores, via Sociedade de Amigos de Maresias, afirmam que não eram contra o projeto.

Então, o que fazer com os desabrigados? E com aqueles que ainda estão morando em áreas de risco? O compromisso assumido pelo governador Tarcísio de Freitas foi de construção de moradias para reassentamento dos desabrigados e, devido à dificuldade de encontrar lotes adequados, a solução seria edificar conjuntos menores, verticalizados (“Longe das Encostas…”, 2023).

Porém esse imbróglio entre habitação, especulação imobiliária e falta de fiscalização tende a continuar. O Editorial supracitado alerta para outros desafios:

Por fim, há uma preocupação pertinente sobre a possibilidade de que futuros apartamentos sociais ou casinhas geminadas venham a se tornar propriedade de forasteiros recém-chegados. Assim aconteceu no passado (…). Os mais pobres voltariam mais uma vez a ocupar os morros instáveis e as tragédias tornariam a repetir-se nos piores verões — assim como promessas do poder público que nunca chegam. (“Longe das Encostas…”, 2023, seção “Editorial”)

3.3 De salvadora a vilã em meio ao caos: a atuação da defesa civil

O desastre ocorrido na Barra do Sahy foi marcado pela atuação de vários agentes da sociedade civil, entes públicos em nível municipal, estadual e federal. A presente seção descreve como os órgãos oficiais de defesa civil são apresentados e posicionados ao longo das notícias, sobretudo, quanto às responsabilidades frente ao desastre e como a própria defesa civil posiciona os demais atores na situação de desastre. As matérias selecionadas, do dia 20/02/23 a 04/03/23 de 2023, concentram as referências sobre a defesa civil e sua atuação no desastre em debate.

A defesa civil é nomeada desde as primeiras reportagens publicadas sobre o desastre. Inicialmente, destaca-se a função orientadora do órgão, no que compete a afirmativa de que a “defesa civil pede que as pessoas evitem a área” atingida pelas fortes chuvas (“Chuva recorde leva morte e destruição…”, 2023, seção “Capa”). Apresenta-se também como instituição centralizadora das informações sobre o ocorrido: quantas pessoas foram atingidas até o momento, quantidade de desaparecidos, mortos, desalojados e desabrigados. E atua, juntamente com o corpo de bombeiros e agentes públicos das Forças Armadas (Exército, Marinha e Polícia Militar), diretamente nos locais em que os deslizamentos de encostas e desabamentos ocorreram.

Enquanto algumas notícias relatam a importância das ações do órgão durante o processo de resgate, a matéria intitulada “Cidades já sabiam dos riscos, porém não reforçam prevenção” (Lacerda, 2023, seção “Cotidiano B2”) sinaliza que mesmo com o alerta de chuvas emitido pelo Cemaden (Centro de Monitoramento e Alerta de Desastre Naturais), no dia 16/02/23, as providências preventivas não foram devidamente tomadas. Ou seja, ao passo que são visualizados os danos produzidos durante o evento, observa-se também uma maior responsabilização da Defesa Civil pelo ocorrido.

A crítica à prefeitura de São Sebastião, referida na matéria por não convocar a Defesa Civil para uma ação, é descrita com riqueza de detalhes sobre as falhas e a falta de preparo, para que as ações em defesa civil fossem realizadas: número reduzido de profissionais do corpo técnico próprio ao órgão; um plano de contingência municipal que não contava com o recurso das sirenes de alerta; falta de equipamentos que auxiliam na previsão do tempo e realização das ações. Na reportagem, é pontuado que cidades vizinhas, como Santos e São Vicente, com os devidos investimentos, conseguiram reduzir a quantidade de acidentes fatais em morros. Ainda que a reportagem nomeie o ocorrido como acidente, apresenta argumentos da possibilidade de sua prevenção.

Na matéria intitulada: “Sobreviventes relatam desespero e gratidão”, (Castelani e Richmond, 2023, seção “Cotidiano B2”) depoimentos de vítimas trazem à tona o histórico de desastres ocorridos nessa região do litoral. Destacamos as falas de Evelyn Sabino: “Já aconteceu com nossa família. Acontece todo verão aqui no litoral” (Castelani e Richmond, 2023, seção “Cotidiano B2”). E posiciona a Defesa Civil em duas situações distintas, na primeira: “um aviso da Defesa Civil chegou antes do desmoronamento” (Castelani e Richmond, 2023, seção “Cotidiano B2”), fazendo referência ao deslizamento, em Barequeçaba, em 2019. Na segunda: “desta vez, não deu tempo” (Castelani e Richmond, 2023, seção “Cotidiano B2”). Esse órgão público é considerado pelas vítimas como essencial para a proteção da vida em comunidades afetadas por riscos de desastres.

O secretário-chefe da Defesa Civil, coronel Henguel Pereira, reafirma a função orientadora do órgão frente às possibilidades de novos deslizamentos, posicionando, ao mesmo tempo, os moradores das comunidades locais como co-responsáveis na gestão dos riscos de desastres: “É importante que todos tenham a percepção de risco” (Fernandes, 2023a).

Na reportagem intitulada “Governo de São Paulo foi alertado de perigo no Sahy 48 horas antes” (2023, seção “Cotidiano B2”), vários atores estão presentes para discutir o ocorrido: a Defesa Civil estadual posiciona-se defensivamente, ao pontuar que alertas via SMS foram enviados à população e foram realizados comunicados pelas redes sociais da Defesa Civil estadual e municipal; o Cemaden reforça o alerta feito para defesa civil estadual; governos estaduais e municipais pontuam que a população foi comunicada via SMS; Isabela Palhares, autora da matéria, afirma que as mensagens divulgadas não alertavam sobre risco de desmoronamento. Ainda na reportagem, Eduardo Mário Mendiondo do Ceped (Centro de Estudos e Pesquisas sobre Desastres) da Universidade de São Paulo (USP) ressalta a pouca eficácia de mensagens de texto, quando não são acompanhadas por orientações sobre como proceder e as estratégias de alerta associadas ao uso de sirenes precisam estar articuladas à criação de rotas de fuga em áreas de risco e orientações prévias aos moradores.

O caderno Cotidiano B1, (Oliveira et al., 2023), dando continuidade ao debate sobre ações de prevenção, apresenta um exemplo protagonizado pela Defesa Civil da cidade do Guarujá, baixada santista, em que, nos dias anteriores às fortes chuvas, foram realizadas visitas em campo, possibilitando assim que a população fosse informada dos riscos da chuva iminente. Segundo a análise de especialistas, tais ações foram fundamentais para a redução dos danos do desastre naquela região. Conforme a notícia publicada na FSP: “segundo a gestão municipal, alguns moradores entenderam os riscos que corriam em permanecer nos imóveis e os deixaram de forma voluntária, antes da chuva” (Oliveira et al., 2023, seção “Cotidiano B1”). Tal notícia pode ser interpretada também como uma crítica à falta de ações de prevenção mais efetivas por parte da Defesa Civil de São Sebastião.

No caderno Cotidiano B1 do mesmo dia discute-se o plano de contingência de São Sebastião. Samuel Fernandes (2023b), autor da reportagem, com a colaboração do especialista do Cemaden, Osvaldo Moraes, destaca a função dos referidos documentos, apontando-os como recursos essenciais para o gerenciamento de risco, tanto no que compete às estratégias de prevenção aos desastres como para os momentos de resposta e reconstrução. Vale mencionar que a prefeitura de São Sebastião divulgou nota informando que o plano de contingências municipal tem sido atualizado desde o ano de 2017, no entanto, o documento em questão não foi fornecido pela prefeitura, quando solicitado pela equipe da reportagem.

Ao passo que a responsabilidade da Defesa Civil é enfatizada pela Folha de S. Paulo e os diversos interlocutores presentes em suas reportagens, os investimentos significativos no órgão chegam apenas após o desastre: “O governador Tarcísio de Freitas (republicanos) esteve na região e decretou estado de calamidade pública para as cidades […]. Ele também determinou a liberação de R$ 7 milhões para a Defesa Civil atuar no auxílio às vítimas” (Lima Neto et al., 2023, seção “Cotidiano B1”).

Tal situação é corroborada pela chamada de capa do dia 04/03/23 intitulada “70% dos brasileiros vivem em cidades sob risco de desastre” (2023, seção “Capa”). Nesta matéria é citado um documento oficial, que aborda as capacidades e necessidades das Defesas Civis nos municípios brasileiros (Ministério do Desenvolvimento Regional, 2021). Dentre os dados publicados nesta notícia, destacamos: 67% das Defesas Civis nos municípios sofrem com falta de verbas, de pessoal ou de estrutura e que 72% delas não contam com orçamento próprio para a área.

O que pode ser observado ao longo das matérias selecionadas, é que a Defesa Civil, mesmo sendo apresentada como personagem centralizador das ações realizadas, ainda é descrita como um órgão que poderia fazer mais. O desastre ocorrido na Barra do Sahy é marcado pela falta de gerenciamento de riscos, sobretudo, nas localidades situadas em áreas de maior vulnerabilidade, sinalizando a incapacidade do órgão em nível estadual e municipal quanto às ações de prevenção, como utilização adequada de alertas com sirenes, plano de contingência, treinamento, orientações sobre rotas de fuga, dentre outros. Tais questões estão em consonância com Norma Valencio et al. (2009) quando apontam para a precária cultura preventiva existente no Brasil, situação que está presente inclusive em órgãos especializados como a Defesa Civil.

4 Considerações finais

O objetivo desta pesquisa foi analisar a construção discursiva de culpa e responsabilização em relação ao desastre ocorrido no litoral norte de São Paulo em fevereiro de 2023. Por sua magnitude, capacidade de destruição, número de mortes e de desabrigados, o evento foi amplamente noticiado pela mídia, incluindo o jornal Folha de S. Paulo. Observamos que as matérias seguiram o ritmo do próprio desastre: no início, o ente responsável, a chuva, mais intensa do que o normalmente esperado, foi apresentada por meio de gráficos, imagens dos deslizamentos e entrevistas com especialistas em geologia e clima. A atenção logo passou para as vítimas dos deslizamentos, com imagens dramáticas de casas e carros soterrados e depoimentos tanto das vítimas como também de voluntários. A questão das moradias em áreas de risco se fez presente, porém os moradores foram posicionados como vítimas da falta de políticas habitacionais e de gestão de riscos por parte da prefeitura. Emerge, assim, o terceiro tema que remete especificamente às falhas no sistema de gestão de riscos, seja pela falta de estratégias de alerta, seja pela falta de informações sobre ações de enfrentamento no caso de desastres.

A observação sobre a associação das matérias e o ritmo dos desastres decorre da análise realizada. Diversos documentos destacam a responsabilidade da mídia na comunicação sobre desastres, oferecendo subsídios sobre como informar o público (por exemplo, Machado et al., 2017; Leoni et al., 2011). Porém, cabe a cada meio de comunicação adaptar as diretrizes à sua política editorial.

Algumas pesquisas focaram os interstícios da comunicação. Por exemplo, Michele Antunes et al. (2022) analisaram 10 anos de reportagens do jornal Diário de Notícias sobre desastres hidrológicos em Portugal. Contudo, a análise apresenta uma visão geral das dimensões utilizadas na cobertura o que não possibilita entender sua relação com o desdobramento do próprio desastre.

Uma abordagem mais próxima a esse texto foi encontrada na pesquisa de Jussara Spolaor (2012), que analisou todas as reportagens do Jornal de Santa Catarina sobre as enchentes ocorridas em 2008 e 2011. Nesse caso, as matérias foram analisadas diariamente, sendo possível visualizar que o sequenciamento dos temas segue um padrão semelhante ao que encontramos na pesquisa aqui relatada: da ênfase na mensuração, às medidas de socorro, aos impactos e busca por soluções. É possível, assim, propor que os desastres geram um ritmo de ações que leva do estranhamento inicial diante de algo inusitado à emergência propriamente dita e à eventual busca por soluções, momento em que emerge a dinâmica de culpabilização e responsabilização no caso dos agentes humanos, o que, por sua vez, é refletido na maneira como os eventos são reportados.

Destacamos algumas particularidades nesse evento. A primeira se refere à ação conjunta dos três poderes: federal, com visitas do presidente Lula ao local; estadual, com intensa participação do governador de São Paulo Tarcísio de Freitas; e municipal, com a inevitável presença e cobranças ao prefeito de São Sebastião, Felipe Augusto. O evento ocorreu logo no início do governo de Lula e de Tarcísio, o primeiro ainda no processo de legitimação de sua eleição e o outro, aliado de Bolsonaro, já considerado um possível candidato para as eleições presidenciais de 2026.

A segunda particularidade concerne a resposta à questão habitacional, seja na acomodação de pessoas desabrigadas em curto prazo, seja na construção de moradia social em médio prazo. Embora o foco na questão da habitação a médio prazo tenha sido mais presente no segundo conjunto de matérias, escapando, portanto, da análise realizada nesta pesquisa, o tema se fez presente em várias matérias que acompanharam a busca por terrenos propícios à construção de moradias para as pessoas desabrigadas. Um conjunto habitacional com 518 imóveis foi construído em São Sebastião e entregue em fevereiro de 2024, um ano após o desastre.

É importante enfatizar os desafios enfrentados pelos órgãos da Defesa Civil dos municípios afetados na implementação de uma política pública voltada à gestão integral de riscos e desastres, considerando ser esta região montanhosa conhecida pela vulnerabilidade geológica, que somada às intervenções antrópicas, como a urbanização sem planejamento, podem levar a desastres socioambientais. Tal perspectiva implica em uma responsabilização do governo não somente no momento da resposta ao desastre, conforme exemplificado nesta análise, mas para além disso, inclui outros processos relacionados às ações de prevenção, preparação, mitigação e reestruturação (Lei n.º 12.608, 2012).

“Não foi só culpa da chuva”, a frase que intitula o presente texto foi retirada da imagem de protesto realizado por moradores da Barra do Sahy e publicada na capa da Folha de S. Paulo de 12 de março de 2023. Neste sentido, a adoção do termo desastre socioambiental em detrimento do termo desastre natural (Cartaxo e Shiota, 2020) no presente texto torna-se proposital com intuito de ressaltar as marcas antrópicas da situação vivenciada no desastre de fevereiro de 2023. Fenômenos como os aqui discutidos vêm se repetindo periodicamente no território brasileiro, marcando a necessidade urgente de que uma cultura de prevenção seja instaurada, com foco na dimensão ético-política de preservação da vida.

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