As famílias, em uma perspectiva sócio-histórica, são compreendidas como primeiro grupo social no qual os seres humanos se humanizam e aprendem a significar suas relações, afetos e emoções. São responsáveis pelos cuidados, educação e socialização dos sujeitos (Lima-Neta e Kahhale, 2019). A família não é uma instituição natural, mas social e culturalmente constituída (Cisne, 2015) e, enquanto tal, transcende os laços biológicos e não se restringe a eles, é construída também por laços afetivos e vínculos entre seus membros, assumindo múltiplas formas de ser e existir.
Historicamente, as famílias têm contribuído para a reprodução de valores sociais e para a divisão sexual do trabalho entre trabalho reprodutivo e produtivo. As mulheres têm sido responsabilizadas pelos cuidados reprodutivos, pelo trabalho doméstico não remunerado, enquanto os homens têm sido destinados a prover, tornando-se responsáveis pelo trabalho produtivo e remunerado (Cisne, 2015). Apesar da concepção de família ter sofrido modificações ao longo do tempo, a família patriarcal, cis-heterossexual, normativa e nuclear — aquela composta por pai, mãe e filhos e filhas — predomina e, ainda hoje, é referência reproduzida (Mioto, 2020).
Dentre os múltiplos elementos sócio-históricos que impactam as famílias está a religião. É certo que a religião pode contribuir na constituição das subjetividades formando a consciência individual e social, e impactando a forma do sujeito compreender o mundo e a realidade que o atravessa. Os discursos religiosos conferem sentido às vivências e sentimentos de homens e mulheres e estruturam modos de agir, pensar, sentir e se relacionar (César, 2021; Oshiro, 2017).
Esse estudo se centra nos segmentos evangélicos pentecostais e neopentecostais que advém do protestantismo e de dissonâncias com as igrejas protestantes tradicionais. Ambas oferecem teologia simples e acessível, têm mais adeptos entre a população com menor rendimento econômico e enfatizam que a resolução de conflitos se centra na fé dos/as fiéis. A igreja neopentecostal tem como pilar central a teologia da prosperidade, assim, parte do pressuposto de que Deus proverá com bens materiais e prosperidade financeira a quem tem fé e auxilia a igreja, além da crença na expulsão do Diabo (Pinezi, 2015).
Essas igrejas se revelam “como agências de cura divina, de alívio de tensões, de prosperidade financeira e de soluções mágico-religiosas para os relacionamentos, especialmente os de ordem familiar, e para os problemas de saúde” (Pinezi, 2015, pp. 5-6). No Brasil, as igrejas pentecostais com maior número de adeptos/as são a Assembleia de Deus e Congregação Cristã, já as neopentecostais são a Igreja Universal do Reino de Deus e a Igreja Internacional da Graça de Deus (Instituto de Pesquisas Datafolha, 2016).
As instituições religiosas contribuem para a construção de um modelo normativo e hegemônico de família (Mioto, 2020). Esse processo tem reverberado inclusive na criação de leis e políticas públicas, bem como no entendimento jurídico, legislativo e executivo sobre o significado da família e a naturalização do modelo cisheteropatriarcal e nuclear. José Soares (2021) enfatiza que durante o governo bolsonarista a valorização da família tradicional burguesa e do cisheteropatriarcado-capitalista-racista, somado ao fundamentalismo religioso, intentou legitimar ações e políticas conservadoras.
Nessa perspectiva, a família tradicional burguesa tornou-se um aparato de promoção política nos últimos anos, no Brasil (Mioto, 2020; Soares, 2021). Regina Mioto (2020, p. 37) salienta que “ao mesmo tempo em que se discursa em nome da proteção da família, solapa-se as suas bases de sustentação, especialmente das famílias pobres, ao realizar o desmonte da seguridade social, da educação e de outras políticas setoriais”.
Apesar de as famílias — notadamente aquelas que performam os modelos ditos tradicionais — terem sido um instrumento de ascensão política, quando se consideram as estratégias políticas de enfrentamento às violências contra as mulheres há ainda muita ambiguidade e contradição, uma vez que elas se pautam em modos dicotômicos de sanarem a violência, ora centrando-se na “vítima” ora no “agressor”. Outros aspectos que tangencia as ações políticas são os discursos moralizantes (Soares, 2021) que naturalizam as desigualdades de gênero.
Nesse bojo, em uma relação dialética, ao mesmo tempo que os valores e discursos religiosos contribuem para a consolidação de papéis, crenças, concepções e relações que potencializam os sujeitos e a sociedade, historicamente, legitimam identidades e formas de viver que podem resultar em violências domésticas, inclusive na violência letal contra mulheres (Nunes e Souza, 2021a). Se por um lado, no imaginário social, muitas vezes, as famílias são concebidas de modo romântico enquanto espaço de aconchego e segurança, por outro, podem ser também contextos de violências domésticas e feminicídios (Meneghel e Portella, 2017).
Em outro estudo identificamos a existência de crenças, discursos e valores religiosos hierárquicos, patriarcais e opressores que promovem a manutenção das mulheres, no contexto familiar e social, em posição subalterna e fomentam as violências domésticas. Além disso, os discursos religiosos pautados na interpretação dos textos sagrados favorecem a dominação masculina, enaltecem o sofrimento e cultivam a crença de que o casamento é sagrado. Logo, esse vínculo não pode ser desfeito, mesmo em casos de violência doméstica e tentativas de feminicídio (Nunes e Souza, 2021a).
Os feminicídios são compreendidos como assassinatos de mulheres em decorrência do seu gênero feminino, frequentemente, estão associados às violências domésticas e familiares (Lei nº 14.994, 2024). Usualmente, os feminicídios são o ápice trágico da trajetória de vida violenta percorrida pelas mulheres (Meneghel e Portella, 2017; Roichman, 2020) e se constituem em expressões de poder e controle por parte dos autores das agressões (Bolzan e Piber, 2019). Existem diversos tipos de feminicídios, dentre eles, o predominante na sociedade brasileira é o feminicídio íntimo, caracterizado por ser cometido por homem com o qual a vítima tenha tido vínculo ou relação íntima de afeto, como, por exemplo, o ex-marido, namorado, amante, entre outros (Bolzan e Piber, 2019).
A intersecção entre experiência religiosa, violência doméstica e feminicídios tem sido pouco problematizada pela literatura, notadamente pela Psicologia e estudos feministas, assim, as estatísticas são incipientes. Em pesquisa acerca das vivências de tentativas de feminicídio em mulheres com experiência religiosa, identificamos que a maioria era evangélica (63,4%), seguida por 16,7% de católicas, 13,3% de espíritas e 6,6% pertencentes a outras religiões (Nunes e Souza, 2021a). Dados esses que evidenciam a necessidade de estudos que se debrucem sobre a articulação entre religiosidade e violência doméstica.
Ademais, embora a literatura venha problematizando os feminicídios a partir de diferentes perspectivas — feministas, jurídicas, sociológicas, psicológicas, da saúde etc. — há invisibilidade acerca do papel das famílias, especialmente daquelas religiosas, na proteção e cuidado das mulheres com vistas a prevenir contextos de violência doméstica (Bolzan e Piber, 2019; García et al., 2021; Meneghel e Portella, 2017; Nunes e Souza, 2021a, 2021b; Roichman, 2020). Partindo desses elementos, em uma perspectiva sócio-histórica e feminista, buscamos investigar os sentidos atribuídos por mulheres evangélicas que vivenciaram tentativas de feminicídio sobre o papel das famílias nessa conjuntura.
O estudo integra o projeto de pesquisa “Violência, Gênero e Família: Implicações na Psicologia e Sociedade” aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Goiás, sob o parecer CAAE 26933614.4.0000.5083. É uma pesquisa qualitativa norteada nos estudos da subjetividade de Fernando Rey (2006). Para o autor, o ato de pesquisar é uma construção entre pesquisada/o e pesquisadoras/es. As apreensões de sentidos e significados são desenvolvidas nessa relação, no contexto histórico em que ambas se localizam, nas questões culturais e sociais em que se encontram.
As participantes foram localizadas a partir da divulgação de formulário eletrônico em nossas redes sociais (Facebook, Instagram e Whatsapp) e de outras/os/es pesquisadoras/es que investigam a temática. O formulário eletrônico, além de localizar as possíveis participantes, buscou conhecer o perfil identitário e identificar as vivências de tentativas de feminicídio. Ademais, ao final do preenchimento do formulário, as participantes eram convidadas a participarem da entrevista.
Nessa segunda etapa, foram realizadas entrevistas com as participantes que manifestaram interesse em participar do estudo e que atendiam aos seguintes critérios de participação: a) se autoidentificar como mulher, b) ter 18 anos ou mais, c) ter significativa experiência religiosa no segmento evangélico (neo)pentecostal, d) ter vivenciado tentativa de feminicídio íntimo. O estudo contou com oito participantes. Elas possuíam média de idade de trinta e nove (39) anos, ensino superior (completo ou incompleto) e se identificavam como evangélicas há mais de dez (10) anos, conforme tabela 1. As participantes foram identificadas por meio de pseudônimos.
Participante | Estado civil | Raça/etnia | Escolaridade* | Idade | Estado |
---|---|---|---|---|---|
Luísa | Solteira | Parda | ESC | 30 | Alagoas |
Alice | Divorciada | Branca | ESI | 55 | Goiás |
Júlia | Casada | Branca | ESC | 43 | Paraná |
Teresa | Divorciada | Branca | EMC | 44 | Pernambuco |
Bárbara | Viúva | Parda | ESC | 36 | São Paulo |
Letícia | Solteira | Branca | EFI | 29 | Rio Grande do Sul |
Bianca | Divorciada | Branca | EMC | 30 | São Paulo |
Laura | Outro | Parda | ESC | 45 | Minas Gerais |
Tabela 1
Perfil identitário das participantes
As entrevistas foram desenvolvidas a partir de um roteiro semidirigido, de modo online, gravadas em vídeo e, posteriormente, transcritas na íntegra. As perguntas da entrevista tangenciaram as vivências de tentativas de feminicídios, os afetos e sentimentos decorrentes dessas vivências, as relações familiares, a possibilidade de ajuda e suporte recebido pela família, pelas instituições religiosas e pela comunidade de fé, bem como, as estratégias para enfrentamento da violência. Em face aos conteúdos sensíveis, no manejo da entrevista privilegiamos a construção de um ambiente que permitisse a expressão sem muitas interrupções e a oferta de ajuda psicológica e social, caso fosse de interesse das participantes.
As entrevistas foram analisadas a partir dos núcleos de significação. Nessa perspectiva, é possível conhecer os modos como os sujeitos compreendem a realidade, seus pensamentos e emoções. Atrelados à historicidade e à dialética, vão permitir a interpretação das informações apreendidas durante as entrevistas (Aguiar e Ozella, 2013). Foram constituídos os seguintes núcleos de significados: a) Sofrimento ético-político, responsabilização feminina e rede de apoio para enfrentamento das violências; b) Naturalização da violência, indissolubilidade do matrimônio e desamparo das mulheres frente às tentativas de feminicídio.
Com exceção de Letícia, no contexto da entrevista, as participantes haviam rompido os relacionamentos violentos há mais de um ano. No processo de rompimento, indicaram terem tido a possibilidade de ressignificarem as vivências religiosas e familiares. Um elemento atravessador diz respeito à formação: três eram teólogas ou estavam concluindo o curso de teologia; muitas delas tinham alta escolaridade. Esses aspectos, em nossa compreensão, contribuíram para aceitarem participar do estudo e, para além, assumirem leitura crítica e reflexiva acerca dos discursos e práticas religiosas vivenciadas na própria trajetória, junto à comunidade religiosa e às famílias.
As participantes vivenciaram inúmeras formas de violências domésticas e tentativas de feminicídios, com e sem uso de instrumentos. Foram identificadas tentativas de feminicídios com utilização de automóveis, nas quais os homens dirigiam de modo inconsequente, ameaçando a vida delas e situações de abandono em lugares de risco, como em rodovias durante a madrugada. Além disso, ocorreram tentativas de feminicídios, utilizando armas brancas, como facas, e armas de fogo. Muitas participantes relataram ter vivenciado duas ou mais tentativas de feminicídios.
A materialidade da vida concreta, em uma relação dialética com os aspectos internos, determina a constituição da subjetividade dos indivíduos (Rey, 2006). Desse modo, as vivências de violências em suas trajetórias resultaram em mudanças tanto objetivas quanto subjetivas (César, 2021; Oshiro, 2017), assim, vivências de violências contínuas e extremas provocaram impactos físicos, sociais, afetivos, simbólicos, territoriais, entre outros.
Nessa perspectiva, algumas participantes precisaram mudar de residências, cidades e até mesmo de país, experiência essa que envolveu significativos prejuízos materiais em suas vidas. A possibilidade de mudança domiciliar, certamente, foi viabilizada por condições financeiras e sociais denotando aspectos de classe. Essa é uma possibilidade de garantir a vida que não está acessível à maioria das mulheres em contextos de violência. Com relação às questões subjetivas, as participantes apontaram mudanças no entendimento acerca dos dogmas e das crenças religiosas, bem como as relações de gênero.
Hoje ele é ex, ele já pegou armas para me matar já pegou armas e… e eu tenho três filhas quando elas eram pequenas ele colocou nós quatro assim e falou eu vou matar todas vocês, eu já fui muito, muito espancada, ele me batia bastante, e, no entanto, ele estava na igreja posando de mocinho. (Alice, entrevista semidirigida, novembro de 2020)
Chegou um momento que eu já não suportei mais, porque assim eu fui violentada sexualmente, porque ele quando chegava embriagado, entendeu?! Fazia sexo sem a minha permissão e eu tinha que ficar calada, ele tentou me matar assim, me levou para um viaduto me deixou nesse viaduto de madrugada, me assustava dizendo que ia me matar, e outra vez me jogou dentro de uma favela. (Teresa, entrevista semidirigida, novembro de 2020)
As participantes tiveram distintas vivências com relação às respostas das famílias diante das violências sofridas. Houve família que conferiu apoio e acolhimento como a de Júlia, Laura e Bianca, que forneceu suporte tanto material quanto emocional no contexto da tentativa de feminicídio. Com relação à assistência material, as participantes destacaram o auxílio com a mudança de cidade, acolhimento em suas residências e apoio financeiro. Ao pontuarem sobre o suporte emocional e afetivo, ressaltaram que foi de suma importância poderem compartilhar as dores, as angústias e os traumas de terem vivenciado as tentativas de feminicídios e se sentirem acolhidas pelas famílias.
Minha família assim foi maravilhosa, não tenho palavras para descrever o quanto a minha família foi importante nesse momento, e é triste quem não tem a família nesse momento. (Bianca, entrevista semidirigida, dezembro de 2020)
A casa da minha mãe é toda fechada, muro alto, portão eletrônico, meu pai colocou câmera no portão, sabe?! É tudo aqui, a minha família eles fazem tudo para me proteger. (Laura, entrevista semidirigida, janeiro de 2021)
Em outra perspectiva, participantes como Bárbara e Alice relataram que suas famílias não as apoiaram no enfrentamento às violências, mesmo sabendo da realidade de opressão vivenciada por elas. Pelo contrário, as responsabilizaram pelas agressões sofridas, não contribuíram para o rompimento do matrimônio violento, bem como, não as aconselharam a procurarem os órgãos competentes para o enfrentamento às violências contra mulheres. Esse aspecto indica que o encontro entre o discurso familiar e o discurso religioso parece se sobrepor à efetivação de leis e políticas de cuidado e proteção às mulheres em contextos de violência, ou seja, à garantia de direito delas em prol da manutenção da própria família.
Lili Pougy (2010, p. 83) argumenta que “a família é uma instituição indubitavelmente violenta para as mulheres porque está acima de qualquer suspeita e sua preservação se sobrepõe à integridade física, moral e emocional de seus membros”. O risco de feminicídio é ampliado quando as instituições sociais — como a família e a igreja —, assim como o Estado, falham em protegê-las. Diante do desamparo político, social, familiar e afetivo, a vulnerabilidade das mulheres é acentuada, e o incentivo a enfrentarem a violência de modo individual ou permanecerem nessa situação, é exacerbado.
Participantes como Luísa e Letícia, com receios de preocuparem as famílias, não contaram sobre suas vivências de violências. Além disso, Letícia enfatizou que tinha medo de que as agressões praticadas pelo seu companheiro fossem direcionadas também a sua família, isso fez com que ela escondesse a gravidade da situação. Já a família de Teresa, a princípio, negou auxiliá-la no enfrentamento da violência, mas depois reconsiderou a decisão, acolhendo-a de volta a sua residência de origem.
Eu no sétimo ano de casada eu fui assim, eu não aguento mais isso, é traição, violência, essas coisas tudo, aí eu olhei, aí ele foi falar para o meu pai que eu tava querendo separar, meu pai falava, falou bem assim: “na minha casa mulher nenhuma separa de homem!. Aí com ficou a minha…é….na minha cabeça que eu ia para o inferno se eu me separasse eu ia para o inferno, eu tinha que aguentar. (Alice, entrevista semidirigida, novembro de 2020)
Ao abordarmos as violências domésticas é importante ressaltar que elas envolvem dinâmicas complexas, como os afetos e dependências econômicas e/ou emocionais, preocupação com filhos/as/es, entre outras questões que podem existir entre os/as/es envolvidos/as/es nessa relação, tornando o seu rompimento árduo (Jung e Campos, 2019). Além disso, as mulheres religiosas podem ter maiores dificuldades em compreenderem que vivem relações violentas, pois a doutrina religiosa enfatiza a estrutura patriarcal, a obediência e o autoritarismo masculino (Oshiro, 2017; César, 2021).
As mulheres, dificilmente, conseguem romper o relacionamento violento sozinhas, é preciso uma rede de apoio e segurança (Terra et al., 2015). Nessa perspectiva, as famílias são instituições singulares como rede de apoio, contudo, nem sempre se efetivam como espaço de proteção da vida e da dignidade das mulheres. Somado a isso, muitas mulheres possuem vergonha, culpa e medo de compartilharem suas experiências com outras pessoas e familiares, principalmente dentro de um contexto conservador, no qual são responsáveis pela manutenção do relacionamento (Terra et al., 2015). Essa situação foi relatada por algumas participantes, cujas famílias só souberam das situações de violência quando essas se tornaram exacerbadas, havendo risco letal.
Porque eu acho que a gente também não encontra muito apoio, sabe assim, não é um apoio de que o outro vá fazer por você, mas talvez seja assim, faça que eu tô te apoiando que eu tô contigo, tente sair que vai dar certo, são essas palavras as vezes, né?! (Teresa, entrevista semidirigida, novembro de 2020)
A gente sempre se coloca no lugar de culpado, ele, ou a pessoa, eu vou dizer é manipulador porque ele sempre foi, ele sempre me fazia que eu me sentisse culpada, e eu falava para a minha família “não, ele não tem culpa de mim bater porque eu sempre vou e começo essa briga”. (Bianca, entrevista semidirigida, dezembro de 2020)
Mas eu nunca… em casa, eu não, não conversava nada e a minha família não sabe um terço do que eu passei na mão dele, porque… não… por vergonha… mas pra… porque eu sei se eu dizer minha mãe vai ficar muito amedrontada e não vai deixar, tipo, eu viver. (Luísa, entrevista semidirigida, novembro de 2020)
O sentimento de culpa, medo e desamparo relatados pelas participantes decorrem do contexto social de violência em que se encontravam, acarretando sofrimentos ético-políticos. Como aponta Bader Sawaia (2001), o sofrimento ético-político “surge da situação de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice inútil da sociedade” (p. 56). É constituído por uma dimensão ética e política na medida que perpassa a esfera coletiva e é ocasionado pela ineficiência do Estado em solucionar uma demanda e/ou no interesse pela manutenção de um fenômeno. Com base nesses preceitos, entendemos os sofrimentos acarretados pelas violências contra mulheres e tentativas de feminicídio como um sofrimento ético-político.
Diante do medo, da vergonha, da culpa e da responsabilização das mulheres pelo “sucesso” do relacionamento (Terra et al., 2015), algumas participantes esconderam de suas famílias as vivências de violência. Isso pode ter aumentado a desproteção e vulnerabilidade delas, uma vez que, pelos discursos, não se tratava de famílias violentas. Todavia, em situações nas quais as famílias também são agressivas, relatar as violências podem assujeitá-las a um contexto de revitimização, ou seja, as famílias podem responsabilizar as mulheres pelas violências sofridas e não ofertar auxílio para o enfrentamento dessas violências, como no relato de Alice e Bárbara.
É importante salientar também que algumas participantes estavam geograficamente distantes de suas famílias, fato que dificultou o envolvimento e o (re)conhecimento sobre as dinâmicas violentas dos relacionamentos. Em virtude de estar longe da família extensa, a comunidade religiosa assumiu o papel que outrora era realizado pela família de origem, se constituindo, a princípio, como uma instituição de acolhimento e apoio. Entretanto, quando as participantes recorreram a essas instituições buscando amparo, foram desassistidas e responsabilizadas pelas violências sofridas. Esse foi o caso de Júlia, vítima de estupro e de tentativa de feminicídio, que pela distância geográfica da sua família de origem, buscou a comunidade religiosa almejando amparo e acolhimento. Apesar de ter sido acolhida pelo pastor — inclusive se referia a ele pela expressão “pai pastor” — a entrevistada relatou que de maneira geral a sua comunidade religiosa a julgou, reiterando que não havia ocorrido um estupro e sim uma relação sexual consentida, uma vez que ela tinha ido até a residência do ex-companheiro de forma autônoma em uma das tentativas de feminicídio.
No caso de Júlia, a comunidade religiosa não compreendeu sua vivência como grave violência e sim como uma relação sexual consentida. Todos os dias mulheres são estupradas, responsabilizadas e culpabilizadas pelas violências sofridas (García et al., 2021). Esta atribuição vincula-se à forma como as relações de gênero e o corpo feminino são empreendidas na sociedade e nas instituições que a compõem, como as religiosas (Nunes e Souza, 2021a; 2021b). Desse modo, identificamos que os valores religiosos judaico-cristãos estruturam as relações sociais solidificando as hierarquias entre papéis sociais historicamente vinculados ao gênero masculino e feminino (Nunes e Souza, 2021a).
Ao problematizarmos o suporte e a ajuda familiar no enfrentamento às violências, destacamos a família de Teresa. Ao saber do desejo em se divorciar do companheiro agressor, a família, pautada em valores religiosos, expressou descontentamento com o retorno dela para a residência de origem. Contudo, houve uma mudança de posição e a família recebeu Teresa em sua antiga casa. No relato dela não ficou evidente o que motivou a mudança de concepção, todavia, estar de volta àquele ambiente não significou o encerramento das violências sofridas. Ela vivenciou novas formas de violências praticadas pelo seu sobrinho, logo, as violências, inicialmente perpetradas pelo parceiro, passaram a ser efetivadas por outra figura masculina do núcleo familiar.
E agora eu sofri de um sobrinho meu, ele tomou um certo comportamento com meu pai, ai eu fui defender meu pai, porque meu pai é idoso e, e ele me vio… violentou, ele me bateu, me puxou me deu um murro, quando eu caí ele me chutou bastante, me machucou bastante e agora eu tô enfrentando uma nova fase de violência de novo de um contexto muito parecido com o do passado, porque assim, como eu tomei a decisão de prestar queixa […] algumas pessoas da minha família estão é contra mim, entendeu que era para ter deixado isso pra lá… e eu acho que tudo é uma consequência e eu acho que aonde as pessoas, que ficavam na igreja, eles acham que, que tem que ir pedir perdão que você tem que perdoar e acabou por ali, eu acho que não é mais por aí. (Teresa, entrevista semidirigida, novembro de 2020)
No caso de Teresa, as condutas familiares consistiram no aconselhamento em direção ao perdão, em detrimento da denúncia e responsabilização do autor das agressões. As violências intrafamiliares envolvem o desejo de poder e controle sobre os membros da família (Bolzan e Piber, 2019), assim para as autoras, “a violência no âmbito familiar deve ser percebida não como resultado de eventos escabrosos ou de comportamentos patológicos, mas sim como um conjunto de práticas aprendidas, através de uma organização social calcada na desigualdade” (Bolzan e Piber, 2019, p. 213).
Partindo da desigualdade estrutural, o papel das famílias como provedoras atravessa a identidade masculina, sendo atribuído socialmente aos homens a responsabilidade de manutenção dessa instituição, de controle e de vigilância, entre outros elementos que conferem a eles senso de propriedade. Esse modelo familiar patriarcal ainda prevalece na sociedade e legitima os comportamentos masculinos (Cisne, 2015; Mioto, 2020).
Eu tive abuso é, abuso psicológico desde a minha infância com o meu pai. Meu pai era um homem narcisista e usava a religião como forma de opressão, de obediência, de, o homem é a cabeça da mulher e quem… A mulher que é solteira então, Cristo que é a cabeça dela, então ela tem que ser mais santa dos que as casadas, então algumas abobrinhas nesse sentido, então a minha vivência com esse tipo de violência desde que eu me entendo por gente, mas que eu vim perceber mesmo só depois que o, quando o meu ex-marido tentou me matar com três tiros e tal. (Bárbara, entrevista semidirigida, dezembro de 2020)
As relações familiares, ao mesmo tempo que podem propiciar acolhimento e amparo, como apontam Maria Irene Lima-Neta e Edna Kahhale (2019, p. 213) “podem gerar distanciamentos afetivos, desconstruir potências e gerar sofrimento físico e psíquico, anular o protagonismo. As relações dialógicas e vinculares por si só não têm uma única qualidade e direção, mas são construções dinâmicas que sofrem as mais diversas influências”. Nos relatos de participantes como Bárbara, Alice e Teresa observamos que as crenças religiosas acerca dos comportamentos das mulheres e o modo pelo qual elas deviam exercer os papéis femininos de mães e esposas consistem em influências que norteiam as dinâmicas familiares, como será aprofundado no núcleo a seguir.
As concepções de família apontadas pelas participantes foram determinadas, entre outros aspectos, pelas trajetórias de vida religiosas. Bianca, por exemplo, relatou que teve relações sexuais e engravidou. Diante dessa situação, se sentiu impelida a se casar com o ex-companheiro em virtude dos preceitos religiosos, ainda que sua família tivesse se posicionado como contrária a essa decisão.
Eu continuo acreditando em Deus, mas acho que tem pessoas que fecham muito a mente e aí acaba acontecendo o que aconteceu comigo, eu fechava muito a minha mente e eu achava que eu tinha que casar com ele porque a religião era isso e eu acabei me enfiando em uma enrascada que já era bem, bem prevista né?! (Bianca, entrevista semidirigida, dezembro de 2020)
Os discursos religiosos constituem a subjetividade dos sujeitos fomentando a forma como interpretam e leem o mundo (César, 2021; Nunes e Souza, 2021a; Oshiro, 2017). Por conseguinte, os textos, valores e ensinamentos religiosos se tornam referências a serem seguidos, engendrando a moral e a ética, constituindo o modo como as mulheres são vistas pelas pessoas da comunidade religiosa e a forma como elas próprias se veem. As participantes relataram que, a partir dos aprendizados dos preceitos religiosos, acreditavam que deveriam perdoar os companheiros pelas violências sofridas, suportar o sofrimento e, assim, permanecer no relacionamento violento. Essas compreensões, dialeticamente tecidas tanto pelas famílias de origem quanto pela comunidade religiosa a que pertenciam, tiveram papel significativo na constituição de suas subjetividades.
No começo meu pai não aceitou, eu não quero filha separada dentro de casa, porque aqui no interior eles acham que toda mulher com licença para a palavra, acha que vai ser puta, que vai ficar com um e com outro, mas não é por aí, quando eu separei eu disse eu quero ter paz, eu quero ter sossego, pelo menos eu tinha que tirar aquela angústia de mim de que eu ia morrer a qualquer momento, porque né, quando ele chegava em casa eu tinha muito medo, porque eu não sabia se eu ia permanecer viva, né?! (Teresa, entrevista semidirigida, novembro de 2020)
O meu pai por exemplo era a voz de Deus e depois o meu marido era a minha cabeça, como que eu vou brigar com a minha cabeça? (Bárbara, entrevista semidirigida, dezembro de 2020)
No bojo da experiência religiosa, a moralidade promove julgamentos e produz vergonha às pessoas que não cumprem as expectativas sociais e familiares a elas direcionadas (César, 2021; Oshiro, 2017). Como exemplo, Teresa e Alice relataram estar vivenciando diariamente o medo e o receio de serem mortas pelo companheiro, contudo, diante do contexto que viviam, o divórcio seria sinônimo do reconhecimento familiar e comunitário enquanto “putas”, ou seja, teriam sua moral e seu valor como mulheres diminuídos e desqualificados. Essas perspectivas interferiram significativamente nas decisões das participantes fazendo-as se manterem no relacionamento agressivo, retardando a possibilidade de rompimento e aumentando as chances de um feminicídio, conforme relata a literatura (Bolzan e Piber, 2019; Meneghel e Portella, 2017; Roichman, 2020).
Quando a família, as instituições sociais e o Estado assumem discursos e práticas moralizantes, o desfecho é o aumento das violências e mortes de mulheres. Frente a esse contexto vulnerável e violento, as políticas públicas podem se constituir em um caminho construído pelo Estado em direção ao enfrentamento dessa questão social. Contudo, quando apresentam perspectiva moralizadora ou culpabilizadora, ao invés de garantirem a vida das mulheres, as políticas públicas tornam-se espaço de exclusão e reviolência.
Para Teresa, o receio em não permanecer viva fez com que buscasse consentimento familiar para que saísse da sua moradia com o ex-companheiro e retornasse para a residência de origem. Outrossim, para Alice, a conversa com o pai e o medo de ser castigada por Deus, ao dissolver o matrimônio, fez com que continuasse casada até o momento em que rompeu com os valores religiosos, ressignificando o relacionamento e a vivência da violência e religiosa.
A violência no casamento visa afirmar as identidades masculinas e femininas e os papéis de gênero. Logo, perpassa a forma como os homens compreendem as atribuições das mulheres e a forma como elas devem se portar perante as relações. “Em uma sociedade em que o valor e o poder são atribuídos aos homens, uma mulher ‘largada do marido’ está numa condição desfavorável em relação a uma mulher casada, ou seja, o casamento tem que ser mantido a todo e qualquer custo” (Santos e Araújo, 2010, p. 39). Essa forma de compreender os casamentos faz com que muitas mulheres continuem vivenciando relacionamentos violentos sem ter o apoio necessário para a superação desse grave fenômeno social, correndo risco de serem mortas.
Bárbara, assim como Alice, vivenciou desde a infância violências praticadas pelo seu pai contra sua mãe e sua família, escutando como justificativa para o controle e para a violência, os ensinamentos e valores religiosos. Após sobreviver a uma tentativa de feminicídio, no qual o então companheiro tentou matá-la com três tiros, Bárbara constituiu novos sentidos às relações familiares e à violência experimentada no casamento. Durante a tentativa de feminicídio, o então marido trocou tiros com a polícia, que estava ali tentando proteger Bárbara, e ele acabou sendo morto. A família da participante — com exceção da mãe e da irmã — que não apoiava qualquer iniciativa em direção ao rompimento da relação violenta, diante da tentativa de feminicídio responsabilizou-a pela morte do feminicida. Inclusive, no contexto da entrevista, Bárbara vivenciava ameaças de morte da família do falecido marido, dado o desfecho trágico dessa experiência de violência.
Em muitas circunstâncias, as mulheres buscam auxílio para a superação da violência no núcleo familiar, esperando receber “compreensão, a solidariedade, a proteção e a melhoria das condições econômicas” (Santi et al., 2010, p. 420). Todavia, ao invés de receberem o apoio requerido, são reviolentadas, agravando seus sofrimentos. Diversas famílias esperam e almejam que as mulheres suportem a violência em prol da manutenção do casamento. Nesse contexto, o rompimento com o relacionamento violento para mulheres como Bárbara e Alice também envolveu o rompimento com a família.
A família dele abandonou meus filhos, abandonou a gente e depois disso, eu tenho passado por… Aí eu comecei a enfrentar o machismo até dentro da minha família, o meu pai que não podia ir lá em casa se não ele arrebentava a cara do meu pai como ele dizia, meu pai chegou a falar pra mim assim “ah, eu tava pensando […] eu tava pensando tanto no Carlos essa semana”, “ah é, cê tava pensando nele?”, “ah é eu tô, eu tava pensando que quando vocês eram crianças se a sua mãe não lavasse a sua roupa eu ficava louco, porque a sua mãe não cuidava de mim, aí falaram pra mim que quando o Carlos morreu não tinha roupa dele limpa pra colocar nele, então dá para entender porque ele fez isso com você”. (Bárbara, entrevista semidirigida, dezembro de 2020)
As violências vivenciadas por Bárbara eram plurais e decorrem de diferentes espaços familiares: passam pela violência no casamento, pela culpabilização familiar e paterna, pela tentativa de aniquilação do seu corpo biológico e, especialmente, pela aniquilação de sua subjetividade. Apesar das mudanças sociais, o matrimônio ainda é compreendido como sagrado e indissolúvel (Santos e Araújo, 2010). Do ponto de vista religioso, há a compreensão do matrimônio como sagrado, este deve ser mantido, ainda que no seu bojo esteja presente inúmeros sofrimentos éticos-políticos (Sawaia, 2001), como a violência e a desigualdade relatados por Bárbara.
Nesse contexto, a dominação masculina se efetiva pelo lugar do homem enquanto chefe da família (aquele que lidera, exerce poder e autoridade sobre demais membros) e da mulher como chefe do lar (aquela responsável pelas funções doméstica e dos cuidados) (Cisne, 2015). Partindo desses elementos, a vida de Bárbara parece valer menos do que a roupa lavada, ou seja, as históricas responsabilidades domésticas são mais significativas do que a sua própria vida. Assim, de uma perspectiva social, religiosa e familiar, sua vida só tem sentido na reprodução do trabalho doméstico.
Nos casos de Alice e Bárbara, a naturalização da violência teve raízes na infância e desenvolveu-se pela vida adulta, sendo primeiramente exercida por figuras paternas religiosas e autoritárias e, posteriormente, pelos maridos. A ordem patriarcal esteve presente em toda a trajetória de vida a partir do poder centrado nos homens (Cisne, 2015).
Então, ele era cooperador da Congregação e aí a gente tinha que ser o espelho para os outros, a família do ministério tem que ser o espelho da irmandade, e aí o meu pai usava essa religião para nos vigiar dentro de casa, era três meninas e dois meninos, mas eu tive muita sorte da minha mãe, apesar dela não ter muita instrução ela, ela dentro dela rugia uma feminista, então a minha mãe ela tentou fazer, dá um contraponto, apesar dela também ser vítima de abuso psicológico do meu pai usando a fé. (Bárbara, entrevista semidirigida, dezembro de 2020)
Ele me batia bastante, e, no entanto, ele estava na igreja posando de mocinho, meu pai também uma pessoa muito religiosa, mas batia na minha mãe. Essa… essa assim, tudo é normal, eu apanhando, minha mãe apanhou então tá normal, aí a igreja, a única posição da igreja, não sei se é interessante falar, mas eu… eu… a posição da igreja era sempre falar assim: “a irmã ora, né?! Seu marido vai mudar né”, como a gente esse discurso até hoje. (Alice, entrevista semidirigida, novembro de 2020)
Valdir Florisbal Jung e Carmen Hein de Campos (2019, p. 86) assinalam que “quando a criança é exposta a situações de violência, a tendência é de que ela passe a naturalizá-la e reproduza o mesmo comportamento nas suas relações futuras, seja com o cônjuge ou filhos, dando continuidade a um novo ciclo de violência”. Já Claudia Maria Poleti Oshiro (2017) enfatiza que ser socializado em famílias e ambientes religiosos pode contribuir para que valores como obediência, subalternidade e submissão feminina sejam assimilados e entendidos como naturais pelas crianças e adolescentes.
Dessa forma, as vivências de violência intrafamiliar na infância podem contribuir para a aceitação e a compreensão de que essas características fazem parte dos relacionamentos, promovendo a naturalização de casamentos violentos. Outrossim, é mister ressaltarmos que a naturalização das violências pode contribuir para o ápice da violência contra as mulheres, ou seja, os feminicídios, à medida que estes geralmente ocorrem após um longo percurso de subjugamento, subalternidade e agressões que vão se agravando até acarretar a morte delas (Meneghel e Portella, 2017).
Investigamos os sentidos atribuídos por mulheres evangélicas que vivenciaram tentativas de feminicídio sobre o papel das famílias nessa conjuntura. Os sentidos constituídos acerca do papel das famílias evangélicas foram marcados por diferentes ações e posturas, muitas vezes contraditórias e pouco acolhedoras frente a situações de violência, exclusão e vulnerabilidade historicamente vivenciadas pelas mulheres.
Para as mulheres que receberam apoio familiar, os sentidos das famílias vinculavam-se ao contexto de proteção e afeto, mesmo diante do imperativo religioso. Nesse contexto, a família mostrou-se como instituição significativa no processo de socialização, na (re)constituição das relações, vínculos e afetos das mulheres e, notadamente, no enfrentamento das violências e prevenção de feminicídios.
Quanto às mulheres que não receberam acolhimento e amparo, o significado da família esteve implicado em formas de desproteção e reviolência. A dinâmica religiosa e a moralidade cristã presentes na vida familiar acarretaram sofrimentos àquelas já vivenciadas na cotidianidade das relações conjugais. Na ótica das mulheres, a rigidez dos discursos religiosos dada pela impossibilidade de rompimento do casamento e pela supremacia masculina na vida familiar e social contribuíram para a agudização das violências domésticas.
Alinhado ao discurso familiar e religioso que envolve desproteção e moralização das condutas, escolhas e modos de viver das mulheres, há o Estado que, no encontro com o patriarcado, negligencia a garantia do direito à vida e compactua com a morte delas. Enquanto marca do governo bolsonarista fascista — que estava no poder no curso de realização desse estudo —, a manutenção da estrutura cisheteropatriarcal-capitalista-racista e a valorização da família tradicional burguesa, em conjunção ao fundamentalismo religioso, foram terreno fértil para a implementação de políticas conservadoras. Diante da falha do Estado em proteger a vida das mulheres, o papel das famílias, tanto em fornecer apoio financeiro quanto emocional, parece ser imprescindível à manutenção da vida.
Por outro lado, nesse contexto, as vivências religiosas, especialmente as evangélicas, podem comprometer o enfrentamento das violências contra as mulheres e dos feminicídios. Considerando a complexidade, gravidade e as múltiplas intersecções que perpassam esses fenômenos, é certo que as famílias religiosas merecem especial atenção no que concerne à efetivação de políticas públicas. Juntamente à consolidação de políticas públicas de proteção e garantia do direito à vida das mulheres, é primordial o enfrentamento a estruturas de opressão e hierarquização das relações sociais.
Frente às limitações da pesquisa, que tangenciaram o reduzido número de participantes e a impossibilidade de realizar as entrevistas com as famílias, sugerimos novas investigações que possam expandir as análises acerca das redes de apoio e os impactos das tentativas de feminicídios nos/as demais membros familiares. Outrossim, ressaltamos como limitação o uso de instrumentos digitais na entrevista, escolha metodológica que permitiu alcançar somente mulheres que tinham acesso a esses canais, logo, não foi possível abranger diversidade maior de participantes a fim de obter outras perspectivas sobre a temática.
Nosso interesse esteve centrado em compreender a relação das mulheres com as instituições religiosas e familiares, assumindo como foco central a experiência de violência doméstica e riscos de feminicídio nessa conjuntura. Ressaltamos que não teve como objetivo compreender a relação das participantes com a (des)proteção do Estado, sendo importantes novos estudos nessa direção e a partir de uma perspectiva sócio-histórica e interseccional.
Por fim, a superação da violência nesse contexto implica em tensionar o espaço que as instituições religiosas assumem na vida social, assim como provocar a tecitura de vivências religiosas comprometidas com mudanças e com a formação de líderes religiosos/as com perspectiva, crítica e histórica sobre as relações familiares, de gênero, classe e raça/etnia. Essa desafiadora tarefa tem sido tensionada pela teologia feminista e pelo movimento de mulheres religiosas a partir de questionamentos sobre as relações de poder, as mulheres e as populações em situação de exclusão.
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