Neste artigo, discutiremos relações entre feminismos e masculinidades a partir de histórias produzidas no ficcionar de encontros da primeira autora, sendo orientada pelas demais autoras deste trabalho, com jovens em passagem pelo sistema socioeducativo. Traremos histórias e memórias que assumem um caráter ficcional como ferramenta de escrita potente para dar visibilidade aos percursos pelos quais, em sua trajetória de formação e de pesquisa com juventudes negras, a própria pesquisadora passa a se afirmar como uma mulher negra interessada em intervir e pesquisar com masculinidades, a partir do tornar-se uma feminista negra. Importante ainda situar, de antemão, que as experiências discutidas aqui dizem respeito à trajetória da primeira autora como preceptora de um projeto de extensão da Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas (UNCISAL) no ano de 2018 e, posteriormente, como pesquisadora de doutorado colaboradora na realização de oficinas junto à equipe de um Serviço de Execução de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto (SEMSE) em um Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) na cidade de Porto Alegre em 2019.
Na primeira experiência, como preceptora do projeto de extensão, desenvolvi oficinas em equipe junto a jovens em uma Unidade de Internação Provisória Masculina localizada na região metropolitana da capital alagoana. Na segunda, a partir de uma parceria com a equipe técnica de um CREAS, participei de atendimentos, acolhimentos individuais e coletivos, visitas domiciliares, reuniões de microrrede e construção de oficinas temáticas pactuadas com jovens atendidos no serviço de medidas socioeducativas em meio aberto. Passei a acompanhar, por aproximadamente seis meses, um emaranhado de chegadas, saídas, conversas e documentos. Sem entrevista nem gravador, somente a memória — falha, fugidia e inventiva como é. A escrita de notas e diários de campo marcava no papel algo que afetava e passava pelo corpo em meio a um redemoinho de acontecimentos.
Esses encontros com mundos juvenis forneceram pistas para pensar a pesquisa nos acontecimentos da vida cotidiana (Genesini et al., 2020), tensionando lugares instituídos e criando a potência da circulação por territórios na cidade, o que se configurou também como possibilidade de romper com discursos ligados ao estigma da vulnerabilidade e da falta, apostando na circulação por espaços comunitários como museus, institutos de música e hortas comunitárias. Nas andanças pelos territórios, o exercício coletivo que se fazia era olhar para as potencialidades, memórias e histórias contadas sobre a cidade.
Algumas questões que emergiram nos contatos com a rede socioeducativa porto-alegrense apontavam para a violência de Estado, a partir de denúncias de famílias e órgãos da rede socioassistencial de que a polícia militar estaria torturando, espancando e levando adolescentes apreendidos com drogas para comunidades de facções rivais, em vez de encaminhar para a apuração e o devido processo judicial. Como o processo socioeducativo inicia-se com a abordagem policial, a fala-acontecimento de que os adolescentes não estavam chegando na rede, a partir de denúncias de práticas ilegais de punição, antes da devida apuração de possíveis envolvimentos com atos infracionais, indica a complexidade dos modos pelos quais as políticas estatais produzem vida e morte. Sinaliza também articulações entre memória curta e memória larga (Cusicanqui, 2010), pois a polícia torturar jovens nas periferias, evitando a condução a uma delegacia, mostra como a violência colonial reatualiza práticas de extermínio em territórios negros e pobres.
A memória larga refere-se a uma memória de longa duração que perpassa gerações e carrega consigo todo um substrato de violências coloniais, enquanto a memória curta remete a uma história recente, contemporânea, em que se pode fazer rupturas ou reproduções de violências coloniais. Para Silvia Cusicanqui (2010), é fundamental considerar que ambas se articulam na construção de uma memória coletiva, pois não se reduzem a uma cronologia, mas apontam um entrecruzamento entre passado, presente e futuro, indicando que o passado se estende pelo presente e abre um futuro que já está no tempo presente. A partir do conceito de memória de Silvia Cusicanqui, é possível afirmarmos que o projeto colonial não está definitivamente consolidado como vencedor da história, pois as feridas de nossa história colonial provocam não somente dor, mas também a fúria necessária para as lutas do presente. Para Lélia Gonzalez (1984), a memória possibilita restituir uma história que não foi escrita, indicando o lugar de emergência de uma verdade estruturada como ficção — e fora da qual não existe, posto que toda realidade é sempre ficcional.
Partimos aqui de uma perspectiva feminista antirracista, para a qual os dividendos do sistema patriarcal são ganhos advindos de uma dinâmica social pautada pelo exercício do poder, controle, exploração e dominação masculina sustentada por uma lógica binária, hierárquica e opositora de masculino e feminino, como detalha Túlio Custódio na introdução da obra A gente é da hora: homens negros e masculinidade, de bell hooks. Todavia, os homens negros não estão aprisionados irreversivelmente a essa lógica. Conforme bell hooks (2022), embora a maioria dos homens negros e das mulheres negras adote o pensamento patriarcal, é possível tecer uma política de autorrecuperação.
O movimento feminista estabelece modos de abordar as dores femininas e oferecer autorrecuperação, mas isso não se restringe somente às mulheres. A política de autorrecuperação e autodeterminação também diz respeito às masculinidades negras, alvo de violência e dominação na cultura de supremacia branca. bell hooks (2022) sugere que “ouvir e aprender com mulheres negras progressistas é uma forma de os homens negros começarem o trabalho de autorrecuperação” (p. 229), em busca de tornaram-se homens negros antimachistas. Desaprender o auto-ódio e a masculinidade patriarcal é um trabalho coletivo a ser realizado com base em uma ética amorosa.
As experiências pela rede socioeducativa tensionaram a operar deslocamentos na pesquisa: das políticas públicas estatais para um acompanhar e narrar acontecimentos e histórias que se dão nas brechas da zona colonial, onde jovens inscrevem a própria existência como insurgência. Menciono esse percurso não como passado longínquo, mas como duração de uma experiência que reverbera em mim e no modo como as questões de pesquisa foram se transformando. Também é necessário dizer que o tempo de pesquisa foi atravessado pela pandemia de COVID-19. Se, por um lado, a pandemia nos colocou diante da tarefa de reconhecer a iminência do colapso de uma sociedade doente de velocidade e de progresso, por outro lado ela me possibilitou abrir camadas nos acontecimentos, dar um passo atrás e olhar com mais atenção para o já vivido no percurso de encontros com jovens nas políticas socioeducativas alagoanas.
Assim, tomo a escrita como uma máquina de lentidão que possibilita conceber o tempo como pássaro em pleno voo e empreender tentativas de aliviar a alma do choque da velocidade, lançando a sonda do pensamento para produzir uma narração sobre os acontecimentos. Inspirada por Vivian Abenshushan (2013/2020), me demoro em alguns acontecimentos, evitando a velocidade e buscando a lentidão das coisas, interrogando o que os rastros e resíduos da memória podem dizer sobre histórias que, de outro modo, talvez não fossem narradas. Assim, aposto na escrita como máquina de lentidão, “um artefato lento, até mesmo vagaroso, parecido a uma bicicleta ou a um pesado moinho, em que a velocidade seria finalmente domesticada” (Abenshushan, 2013/2020, p. 20).
Tomo a escrita, portanto, como uma bicicleta silenciosa e lenta percorrendo as avenidas da noite na contramão. Indo em direção contrária aos fluxos estabelecidos, busco uma escrita desprendida do excesso de velocidade ensurdecedor. No ensaio de Vivian Abenshushan (2013/2020), encontro pistas metodológicas para uma escrita como máquina de lentidão: a) a digressão como recurso que multiplica o tempo no interior de uma obra, b) amplificar quinze minutos ou um par de horas, c) fazer recuar uma trama cada vez que ela avança, d) encontrar formas de não ser pontual, e) olhar os detalhes acidentais em câmera lenta, f) interrogar, mesmo se não houver tempo para fazê-lo, g) mover-se entre as coisas como um molusco, h) escrever às margens, questionando os próprios fundamentos.
Outra inspiração importante é a ideia de histórias mínimas trazidas na palma da mão, criada pelo escritor Yasunari Kawabata, o primeiro escritor japonês a ganhar um Prêmio Nobel, no ano de 1968, cuja obra mescla pitadas de surrealismo, erotismo e psicanálise, com especial interesse a questões femininas. Tomei conhecimento desse autor a partir do livro A casa na Rua Mango, publicado originalmente em 1984 por Sandra Cisneros, escritora mexicana feminista que dedicou esse livro às mulheres. Ela conta sobre seu processo de escrita de pequeníssimas histórias inspiradas em Kawabata, em Gabriel García Márquez e Jorge Luis Borges, dentre outros. Então ela diz que a mulher que foi um dia queria escrever histórias que rompessem fronteiras entre gêneros literários e formassem um conjunto de textos sucintos e maleáveis como galhos de árvores, que pudessem ser lidos de mais de um modo.
A partir dessa autora, ponho a jovem “mulher que fui” em diálogo com “a mulher que sou” e, nesse interstício, há um caminho que se tornou fecundo graças a outras mulheres. Sandra Cisneros (2020) me diz sobre o pai que quer vê-la casada e com filhos, ou que ela se torne a garota do tempo da televisão. A filha não quer casar nem ter filhos, por enquanto. Não quer ser a garota do tempo da televisão. Ela vislumbra outras coisas para fazer na vida agora, como viajar, publicar um livro, ver a aurora boreal. Aprender a dançar, que tal? Para mim, a cura que inevitavelmente me liga a outras mulheres vem com riso e dança. Como provocou Ailton Krenak (2020), seria possível dançar com os pés à beira do abismo?
Tomando a escrita como gesto político de produção de mundos, trago lampejos de memórias que enunciam insurgências de jovens no cotidiano, vidas que poderiam passar sem deixar rastro, não fosse o choque de seus destinos com o poder (Foucault, 1977/2006). As histórias na palma da mão assinalam rastros de mim, indicam como cheguei a um posicionamento feminista antirracista. Remetem a histórias curtas que cabem na palma da mão e histórias que trago comigo, que estão na minha mão, embora não digam respeito somente a mim. Com elas retomo memórias da socioeducação e demarco que masculinidades e feminilidades não constituem uma antítese, não devem ser situadas em polos opostos.
Na minha história como estudante e pesquisadora, trago-as como rastros da memória no presente, seguindo uma concepção de memória não linear e passado como uma das camadas do presente. Trata-se de encontros narrativos que “não se sustentam somente em sua extensão cronológica, mas na duração sensível que percorre nossos corpos, a partir da experiência que os produzem” (Genesini et al., 2020, p. 5). Por isso, ocupo-me de tais narrativas sem preocupação em estabelecer continuidade entre elas. Em vez disso, opto por manter justamente suas descontinuidades como forma de dar visibilidade a acontecimentos múltiplos, heterogêneos e disruptivos. Se há um fio condutor que as liga são insubmissões cotidianas. Todos os nomes mencionados são fictícios. Além disso, vale ressaltar a existência de elementos de caráter ficcional na composição dessas histórias.
Em uma manhã de terça-feira, estamos aguardando Renato para o acolhimento inicial. Após mais de um ano da data do ato infracional, a Vara da Infância e da Juventude encaminhou-o agora para cumprimento de prestação de serviços à comunidade por suposto roubo de um veículo. Entra na sala um rapaz negro, alto, magro. Quando perguntado se ele queria falar algo a respeito do que constava no processo, ele diz que não praticou roubo, que não houve audiência com ele e enfatiza: “sobre isso aí eu não quero nem falar, entendeu?”
Mais adiante no atendimento, perguntam a ele por que não veio com sua mãe, esclarecendo que ele pode vir com ela mesmo que tenha atingido a maioridade e que é sempre importante a equipe conhecer alguém da família. Sua resposta é imediata e precisa: “não quero minha mãe aqui, não chamei porque não quero”. Convidamos para participar das oficinas conosco e ele disse que também não gostaria.
Aos dezenove anos, ele está seguindo o rumo esperado socialmente: trabalhando e estudando, e agora é convocado a cumprir PSC. Os gestos de recusa de Renato podem enunciar um cuidado em querer poupar a mãe de estar ali, e também fazem pensar na sagacidade de quem se deu conta de como o aparato judicial funciona. A mãe é acionada como figura frequentemente convocada a ser informante, para exercer vigilância sobre o filho, ao mesmo tempo em que é corresponsabilizada e culpabilizada por comportamentos de seus filhos.
Lélia Gonzalez, a partir das noções de mulata, doméstica e mãe preta, sinaliza que os processos de criminalização de jovens negros remetem à desqualificação de suas mães enquanto mulheres negras e principais alvos do racismo e do sexismo. O filho da negra é aquele que:
Tem umas qualidades que não estão com nada: irresponsabilidade, incapacidade intelectual, criancice, etc. e tal. Daí, é natural que seja perseguido pela polícia, pois não gosta de trabalho, sabe? Se não trabalha, é malandro e se é malandro é ladrão. Logo, tem que ser preso, naturalmente. Menor negro só pode ser pivete ou trombadinha, pois filho de peixe, peixinho é. (Gonzalez, 1984, p. 226)
A mulata, cujo corpo é ostensivamente sexualizado no carnaval, único instante em que a mulher negra se transforma na rainha, desejada e deusa do samba, e a empregada doméstica, como serviçal que lava, passa e cozinha todos os dias, desprovida de qualquer brilho carnavalesco, são desdobramentos da figura da mucama. O corpo da mulher negra escravizada como propriedade para o trabalho forçado e para prestar satisfação sexual a seus senhores, a partir dos estupros e do controle do exercício de sua sexualidade e afetividade, é ainda o corpo da mulher negra anônima, habitante da periferia, que precisa segurar a barra familiar praticamente sozinha, uma vez que “seu homem, seus irmãos ou seus filhos são objeto de perseguição policial sistemática (esquadrões da morte, mãos brancas estão aí matando negros à vontade; observe-se que são negros jovens, com menos de trinta anos” (Gonzalez, 1984, p. 231).
Patricia Hill Collins (1990/2019) situa a produção das imagens de controle como importante dimensão ideológica do racismo e do sexismo, propagadas sobre as mulheres, especialmente as negras, a fim de traçar condições em que as injustiças sociais pareçam naturais, normais e inevitáveis na vida cotidiana. A mãe dependente do Estado, chamada posteriormente de rainha da assistência social no contexto estadunidense, não passa de uma versão atualizada da imagem da negra procriadora inventada durante a escravização. Uma mãe ruim, acomodada, satisfeita com auxílios e benefícios estatais. Essa imagem de controle remete à ideia de que mães negras não transmitem a ética do trabalho para seus filhos, nem dispõem de uma figura de autoridade masculina. Por isso, tornam-se supostamente dependentes dos cofres públicos, deteriorando o Estado.
Entendo a recusa de Renato ao comparecimento de sua mãe ao estabelecimento socioeducativo como um gesto de cuidado e uma afirmação político-existencial. Embora paute-se, oficialmente, pelo discurso da ressignificação do ato infracional, o sistema socioeducativo funciona pela reiteração do passado como uma espécie de marca indelével. Renato pode desconhecer ou preferir esquecer os motivos que o levaram a uma sentença judicial, mas é para jovens como ele que a máquina judicial é azeitada continuamente, informando quais são os corpos destinados ao subemprego, à vigilância e ao circuito prisional. Sua recusa é sagaz.
Propusemos brincar de cabra-cega, a conhecida brincadeira em que vendamos os olhos de alguém e deixamo-lo ir ao encontro de outras pessoas. Queríamos a ludicidade, mas também provocar questões sobre corpos, masculinidades, normas de gênero. A atividade foi conduzida ao som da música Redescobrir, do Gonzaguinha. Ainda ouço os ecos dos risos, a sala, o refeitório, a forma como os meninos de olhos vendados adivinhavam quem era quem: por uma tatuagem, pelo jeito do corte de cabelo, por marcas na pele, sem receio de colocar-se em contato com o outro. O agenciamento de afecções ultrapassa qualquer dimensão cronológica de tempo. Irrompe em mim como se aquele momento tivesse acendido uma fogueira nos corpos-meninos, incontidos, flutuantes.
Gabriel contou que um dia tinha saído correndo pelo pátio da unidade de internação provisória com uma pipa na mão, sem linha nem nada. Apenas correndo de um lado para o outro. Os demais riram muito, insinuaram que ele estava ficando doido. E o monitor disse algo como: parece que a cadeia está pesando para você, já está afetando sua mente! Pausa e mais risos na sala… Para mim, o gesto de Gabriel, em vez de indicar ausência, faz-se justamente como estratégia de produção de saúde mental, potência de um corpo-infância não esquecido. A pipa de Gabriel e o jogo da cabra-cega presentificaram no meu pensamento o poema de Sérgio Vaz (2007, p. 63):
A Felicidade era um lugar estranho,
lá, os meninos, após a chuva, comiam o arco-íris
e saiam coloridos pela rua jogando futebol.
O futuro era decidido no par-ou-ímpar
e o passado simplesmente não existia.
A entrada naquele lugar incomoda meu corpo, provoca tensão nos músculos e um peso nos ombros. Ao passar pelo monitor que abre o portão azul tão alto quanto o muro, os cães vêm correndo ao nosso encontro. São eles que nos recebem. Se não fossem eles, não haveria ali algo que se pudesse chamar de recepção. Minha presença circunscreve um corpo feminino numa instituição cujos códigos de conduta são masculinizados.
Há corpos-meninos que deslocam o tempo todo o lugar de sujeito e deslocam-me também de um pretenso saber sobre eles. Naquela sala, encontrei Lucas, garoto negro, atento e observador, que me disse gostar de poesia e literatura. Depois de uns dias, ele foi transferido. Enviei-lhe o livro que eu havia prometido através de um outro jovem, que iria para a mesma unidade de internação. Metamorfose, de Franz Kafka. Esse gesto de despedida era quase um pedido de que ele não voltasse para a “tranca”.
O corpo-menino se transforma em corpo-uniformizado. Um corpo franzino, que trazia uma leveza de humor e um anseio de que levássemos poesia, o que podia incendiar a instituição de algum modo. Escrevo sobre ele para não esquecer seu rosto nem seu sorriso nem seu nome. Aliás, o nome talvez vá se diluindo por aí entre laudos, pareceres e relatórios.
Numa noite dessas sonhei com um monstro, com uma imensa boca aberta vindo em minha direção. Diante do seu tamanho eu não tinha como correr para escapar. A saída que encontrei foi tentar segurar a boca do monstro com minhas mãos. Somente assim não me abocanhava de vez. Acordei com o suor escorrendo pelo rosto.
Depois me lembrei de um conto de Jorge Luis Borges (1998), em que Jaromir Hladik, sentenciado à execução, passa suas últimas noites entre o terror, a insônia e a imaginação. Na esperança de que o real não coincida com o imaginado, ele inventa sua morte. As noites de sonho se prolongam como piscinas fundas e escuras em que ele submerge. E, assim, sua vida vai se desdobrando numa sequência de mortes dosadas. Noites em que ele detém o tempo, até chegar o dia em que está diante dos soldados. Ali ele conclui sua obra inacabada, escreve um final para ela dispondo somente da memória. Entre o labirinto do sonho e a ficção do tempo.
Ar rarefeito. Da janela do quarto vejo a madrugada arrastar os barulhos da rua. Por onde ele anda? Será que recebeu o livro? Às vezes tenho a impressão de que, ultimamente, o que mais tenho feito é tentar segurar a boca da fera com as minhas mãos. Só me resta encontrar estratégia para não ser devorada. Prefiro não dormir, por enquanto. Permanecer acordada é o que me dá possibilidade de sonho.
Não havia como Ariel passar imperceptível entre os demais meninos vestidos de camisa azul-turquesa, bermuda azul-marinho e chinelo de dedo. Embora calado ficasse o tempo todo, olhava com receio como quem espreitava tudo em volta para poder melhor defender-se. Naquele dia, especialmente, a partir de um resquício qualquer de desafeto, levantou-se um ar de ameaça instalado. Não entendi bem como começou a treta, mas o monitor avisou que Ariel pediu para se recolher ao alojamento.
Ele disse que alguém ali estava investigando se ele era do Primeiro Comando da Capital, pois caso fosse deveria ser morto. Contou que estava sozinho e preferia que a família não o visitasse. “É só eu e Deus aqui… Ele pode vir, que não vai arrancar minha cabeça”. Começou a falar em um tom mais alto e a atrair a atenção dos demais em volta. Fiquei preocupada, disse que não agisse de modo impensado para não se prejudicar. Comentei que procuraria saber depois como ele estava e que havia muitas pessoas que não permitiriam atos de violência contra ele.
Enquanto conversei com Ariel, alguém disse ao monitor que ele estava ameaçando outro interno na sala. Minutos depois, um monitor nos disse que Ariel estava em crise de abstinência e, por isso, sentia-se perseguido. Quase sempre é mais fácil duvidar de uma denúncia de ameaça do que admitir conflitos nas relações. Talvez fosse uma forma de silenciamento e desqualificação de sua angústia e medo, a partir da patologização.
Semanas depois, reencontrei Ariel. O tempo contado nas paredes. O tempo contado em esperas por uma decisão judicial. Na mesma sala, mas agora movida por outros agenciamentos afetivos, escutei seus colegas de alojamento dizerem que a mãe faleceu e o pai está no presídio. Ele chegou a morar na rua, dormir no cemitério para estar perto de sua mãe de algum modo, dormir debaixo de carros também. Na rua tentaram matá-lo, o que deixou uma cicatriz em seu corpo.
Um dos meninos disse que sabe que ele não tem família, enquanto os demais ali têm. Então propôs dividir sua família e alimentos nos dias de visita. Ariel permanecia com a cabeça baixa, quieto, mas lágrimas escorriam em seu rosto. Vi os olhos marejados de um dos monitores no canto da sala. No narrar coletivo de sua história, havia mais do que miséria e violência. O ato de narrar dizia sobre a coragem e sustentação de uma centelha de reconhecimento humano.
O juiz parecia não saber o que fazer com Ariel. Poderia liberá-lo, mas sabia que ele voltaria às ruas. Assim, determinou medida de internação. Antes da transferência, perguntei o que ele faria quando pudesse obter liberdade.
- Vou voltar pro mundão do crime.
- Por quê? indaguei consternada.
- Minha mente é muito fraca e minha vida muito curta!
[Perguntei ainda se ele aguentaria continuar num lugar como aquele].
- Oxe, isso aqui é o inferno! respondeu-me e depois ponderou que não gostaria de passar por um lugar como aquele novamente.
Ariel tinha em seus olhos negros a raiva, o desamparo e a força reunidos. Eu não soube ao certo dos vais e vens entre as grades. Disseram que retornou às ruas fétidas do centro da cidade, vagando pela Praça Marechal Deodoro, ao lado de um imponente prédio do poder judiciário e de um teatro que ele jamais frequentara aos finais de semana.
Na praça se reunia uma multidão de seres da noite, sem sono e sem destino. Uma esperança infame ainda ata esses corpos aos fios da vida-morte. Numa marcha silenciosa de homens e mulheres, Ariel um dia ergueu-se entre os corpos que “[v]inham armados. Cada um com um livro no bolso. Era o Livro Preto de Ariel. Eles eram da Ordem dos Arqueiros de Zeferina. Falavam um a um o nome de seus mortos.” (Santos, 2019, p. 253). Em meio à negra multidão, estendeu a mão para me entregar o livro e olhou em meus olhos:
- Você sabe que também é preta, né?
Era dezembro de 2019. Após um simpósio, seguido de sessão de autógrafos durante o Encontro Nacional da Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO), pedi a Hamilton Borges — escritor baiano e uma das lideranças da Organização Política “Reaja ou será morta, Reaja ou será morto” — que ele assinasse meu exemplar do livro. Naqueles breves instantes, tivemos uma rápida troca de ideias em que ele me perguntou de qual cidade eu vinha. E Hamilton me lançou, de modo certeiro: mas você sabe que também é preta, né? Após aquela tarde, cheguei no local em que estava hospedada com uma angústia que me pedia para sair para a rua e ver gente, distrair, conversar. A indagação me veio como um gesto de cumplicidade cuidadosa, diante de um turbilhão de acontecimentos que me desestabilizavam nas relações estabelecidas na cidade em que estava residindo para realização do doutorado. E naquele momento a pergunta de Hamilton atravessou meu corpo.
Em algumas perspectivas de formação acadêmica, aprendemos a pesquisar de modo tão rígido que parece não haver lugar para o cotidiano. Alerto que as histórias à palma da mão falam o tempo todo das coisas cotidianas. A palavra é a maneira pela qual tiro a poeira dos acontecimentos e discuto a esfera política que compõe os gestos corriqueiros, histórias e acontecimentos do dia a dia. Por isso, “busco fazer com que minhas palavras estejam o mais perto possível do mundo, numa tentativa de mostrar que a teoria feminista é o que fazemos quando vivemos nossa vida como feministas” (Ahmed, 2022, p. 29). Sara Ahmed diz que importa onde encontramos o feminismo. Portanto, vale a pena indagar sobre como me torno uma feminista. Conjugo propositalmente o verbo tornar no presente do indicativo, pois entendo que se trata de uma ação em andamento, não encerrada, mas em curso.
Falar sobre como me torno uma feminista negra me leva aos rastros de encontros com jovens em passagens pelo sistema socioeducativo. Do fascínio do Estado pelas mortes nas periferias ao livro preto de Ariel, é a minha história entrelaçada a desses jovens com os quais estive ao longo da minha formação, como estagiária, preceptora e doutoranda. Na condição de especialista de um saber psi, portanto em posição privilegiada de poder nas relações institucionais, eu sabia que meu corpo poderia ocupar o lugar de socioeducanda e não de estagiária, psicóloga ou pesquisadora. Entretanto, não ocupou esse lugar graças a investimentos educacionais, redes de suporte familiar e social, políticas públicas que me alcançaram. Não cabe naturalizar aspectos desiguais e uma série de violações de direitos existentes nas trajetórias de jovens em socioeducação. Ainda assim, o que me conectava ao trabalho socioeducativo era o fato de partilhar algumas semelhanças com Ariel, Renato, Lucas e outros jovens. Lidar com uma maioria de pretos e pretas nas instituições socioeducativas apontava, desde ali, as questões raciais em suas articulações com desigualdades de gênero e classe.
Opto por não apagar os rastros e memórias desses encontros e o faço não para buscar uma suposta relação causa-efeito entre o passado e o presente, tampouco para situar uma origem de acontecimentos. Mas sim para dizer que me reconhecer como uma mulher negra, estudar violências e reinvenções de si e do mundo são aspectos de um mesmo processo de vida, em que algumas questões me acompanham e vão se transformando ao mesmo tempo. Foi a experiência de tornar-me e reconhecer-me como uma mulher preta que me levou ao campo de estudo dos feminismos. Para tanto, precisei sair de uma zona cinzenta, como diz Sueli Carneiro (2011), de um lugar de confusão racial que atravessa a constituição do Brasil, assentado no mito da democracia racial que, por sua vez, produziu a ideia falaciosa de que somos um país miscigenado com oportunidades iguais de existência, como discutiu Abdias do Nascimento (1978).
Em uma entrevista, bell hooks (1994/2013) questionou-se sobre a importância da obra de Paulo Freire em sua trajetória. Apesar de objeções a autores como Paulo Freire, Franz Fanon e Aimé Césaire por ignorarem o sexismo em suas obras, ela entendeu que na obra de Paulo Freire há um reconhecimento da subjetividade de sujeitos colonizados que ela não identificou em feministas europeias. Ela afirmou que, em nenhum momento, deixou de estar consciente do sexismo da linguagem de Freire nem do modo como ele e outros intelectuais e pensadores críticos progressistas construíram um paradigma falocêntrico, em que a liberdade e a masculinidade patriarcal estão vinculadas como se correspondem uma à outra. Apesar dessa questão constituir um ponto crítico na obra do autor, bell hooks (1994/2013) apontou a necessidade de aliar o questionamento ao reconhecimento do que considera valioso em sua obra.
A autora afirma, então, que encontrar Paulo Freire foi como matar a sede em um momento em que estava sedenta por encontrar formas de libertação da mentalidade colonizadora dominante. Para ela, isso se assemelha ao modo como as pessoas lidam com o consumo de água no chamado Primeiro Mundo. Uma vez que os privilegiados podem se dar ao luxo de desperdiçar e jogar fora o que consideram impuro, compram água mineral para não beber água da torneira, ainda que haja uma maioria sem acesso e em luta até mesmo para obter essa água considerada impura. E aí ela nos convida a considerar a obra freireana como água que contém um pouco de terra e nem por isso deixa de matar a sede, pois pode ser água viva para o pensamento.
A fala de bell hooks coloca questões tais como: com quem é possível formar alianças numa perspectiva feminista antirracista? O que jogar fora e o que manter em diálogo crítico nas nossas pesquisas? Como produzir formas de conhecimento e de vida, baseadas na coexistência, mais do que em epistemologias e maneiras assépticas de lidar com o próprio percurso? bell hooks aprendeu com a obra de Paulo Freire, pegou determinados fios e os teceu na pedagogia feminista defendida em seu trabalho como escritora e professora. Com jovens em passagens pela socioeducação, aprendi que não nos reduzimos às violências, pois escapamos, reinventamos e recriamos possibilidades. Aprendi a me dar conta de certas complexidades, pois ao mesmo tempo que a masculinidade patriarcal possibilita exercer poder e privilégios, situa pessoas negras em um circuito violento em que nossos corpos são alvos principais de aprisionamento. Como sair dos circuitos infernais de violência continua sendo uma questão-chave para a população negra brasileira.
Com bell hooks, aprendi a dar a mim mesma a liberdade de pegar alguns fios de histórias e tecer uma pedagogia feminista antirracista. A potência de uma pedagogia feminista antirracista consiste, a meu ver, em sabermos como e com quem nos fortalecer diante das violências raciais. Isso se dá entre nós, mulheres negras, e com homens dispostos a exercer uma masculinidade não violenta, como pontua Françoise Vergès (2021) ao discutir políticas de proteção antirracistas desde um feminismo decolonial. Uma das questões apontadas por ela sobre as relações entre feminismos e masculinidades é que apenas identificar e punir homens violentos naturaliza a violência de alguns, sobretudo negros e imigrantes, sem atacar as estruturas de dominação da violência patriarcal, quais sejam: o neoliberalismo, redução do orçamento público e fortalecimento do militarismo na regulação da vida cotidiana. Françoise Vergès destaca que não somente raça é um conceito fabricado nas entranhas do colonialismo, como também o conceito de gênero é uma ficção potente, de maneira que ao falarmos em “igualdade de gênero” e “relações de gênero” devemos levar em consideração que o gênero não é representado da mesma forma em todos os lugares e, para além disso, o modo como as noções de masculinidade e feminilidade constituem pilares do patriarcado capitalista não é homogêneo.
Ela chama atenção para a existência de masculinidades cúmplices, formadas por homens:
Que não militam pelo protótipo hegemônico associado ao virilismo, mas se contentam em receber dividendos do patriarcado, em gozar de todos os privilégios resultantes das discriminações às mulheres, em se beneficiar de vantagens materiais, prestígio e autoridade sem precisar fazer nenhum esforço nessa direção. (Vergès, 2021, não paginado)
Considero essa ponderação crucial para não esquecermos que é possível que, mesmo os homens que buscam romper com a noção hegemônica de virilidade e seus pressupostos heteronormativos, podem desfrutar dos dividendos do patriarcado, em conformidade com o que bell hooks (2022) também pontua quando discute masculinidades negras e patriarcado.
Françoise Vergès (2021) não descarta a necessidade de discutir e enfrentar violências de gênero perpetuadas por homens, mas aponta para como a chamada “proteção” do Estado e dos mecanismos jurídicos faz com que determinados homens sejam alvo de punição e outros não, bem como determinadas mulheres sejam alvo de proteção enquanto as mulheres racializadas podem ser objetificadas e tidas como vidas supérfluas. Mulheres racializadas são aquelas vistas como não brancas e não ocidentais, morando na condição de imigrantes ou refugiadas na Europa e nos Estados Unidos (Vergès, 2020).
O mesmo Estado que encarcera homens, majoritariamente negros, e afirma agir em prol da proteção, perpetua crimes como estupro e feminicídio. Isso acentua a cumplicidade entre Estado, polícia, patriarcado, racismo e capitalismo. Assim, a autora argumenta que uma perspectiva feminista antirracista defende o fim das prisões, que ocultam jogos de poder e possuem uma tolerância seletiva, pois o fim da violência contra as mulheres não ocorrerá jogando homens negros em um sistema que devora homens e mulheres e atinge não somente detentos e detentas, como também famílias e comunidades inteiras. Sob uma perspectiva feminista decolonial e antirracista, não há como reformar instituições de privação de liberdade.
Há uma importante crítica de Françoise Vergès (2021) ao feminismo civilizatório, também chamado por ela de feminismo carcerário/punitivista, que, ao confiar ao Estado a resolução de conflitos, salva as mulheres judicializando os homens. Como também assinalou Angela Davis (2003/2020), o complexo industrial-prisional estadunidense remete à escravização e ao militarismo contemporâneo, recorrendo ao empreendimento colonial articulado ao conceito de raça. Segundo essa autora, a brancura funciona como uma espécie de propriedade que possibilita garantir direitos e liberdades a pessoas brancas e negá-los às pessoas negras. A autora aponta, então, que um dos legados da escravização é a racialização de crimes e infrações, cuja tendência de produzir um “perfil racial” faz com que pessoas negras, especialmente jovens negros, tornem-se alvo da polícia com base na cor da pele.
Tensões e complexidades: algumas das histórias escutadas nos encontros com jovens em socioeducação, entre relatórios, atendimentos, oficinas, falavam da complexa teia de relações e violências praticadas contra meninas e mulheres. Me dar conta do quanto isso me afetava e me afeta como mulher não implica, no entanto, adotar um posicionamento feminista punitivista e exclusivista. As alianças, lutas e reivindicações defendidas, desde então, me permitem reconhecer que não falo a partir do feminismo negro, mas a partir de um feminismo negro e de um posicionamento que emerge de experiências entre lugares, de um entremeio que fui trilhando nas políticas públicas estatais e nos movimentos de um pesquisar biográfico, o qual possibilitou refletir sobre as marcas da minha história na constituição dos meus interesses de pesquisa e sobre a relevância em colocar em análise o caráter político das experiências e epistemologias.
O que nomeamos como posicionamento exclusivista refere-se ao feminismo civilizatório, para o qual seria suficiente defender lutas supostamente pertinentes a todas as mulheres. O feminismo civilizatório ficcionaliza uma categoria chamada “mulher”, que não abarca todas as mulheres, pois não leva em conta mulheres racializadas do Sul Global. Françoise Vergès (2020) sugere tomarmos o termo mulher como uma posição social e política, não estritamente biológica, a partir de um feminismo que não busca o reconhecimento estatal, mas tem como foco as lutas, com suas perdas e alegrias, e as alianças possíveis com existências que desafiam a ordem hegemônica do capitalismo e colonialismo.
Para Sara Ahmed (2022), há um certo feminismo atrelado a formas de conduta e ideais que produzem um policiamento moral, a partir do qual se pode, supostamente, julgar quem é realmente feminista ou não. Viver uma vida feminista não diz respeito, necessariamente, a seguir uma norma supostamente geral (apontar os homens como nossos inimigos), mas sim com a interrogação de qual mundo queremos e o que significa igualdade no mundo que estamos fazendo com nossas práticas e nossas mãos.
Analisar a violência é dar-se conta de que a dominação masculina é exercida sobre mulheres e homens, como afirma Françoise Vergès (2021). Quais homens podem tornar-se aliados e em quais circunstâncias? Isso quer dizer não tomar como dado que os homens sempre protejam ou sempre violentem. As alianças vão se compondo no cotidiano e faz diferença se estou lidando com um homem branco heterossexual, LGBTQIA+, cis ou transgênero, por exemplo. Tais alianças tornam-se ou não possíveis a partir de elementos que nos inscrevem corporalmente em uma teia de desigualdades capazes de mobilizar afetos, os quais compõem as decisões políticas e afetivas tomadas diante de certas violências. E isso não diz respeito meramente ao fato de ser homem ou mulher, branco(a) ou negro(a), cisgênero ou transgênero. Composições de alianças são possíveis, embora requeiram encarar também limites surgidos a partir dos mesmos elementos que nos posicionam como sujeitas(os) nas relações sociais. Não se trata somente de colocarmos em questão formas de dominação masculina, mas de pensarmos como elas se tornam possíveis no bojo do sistema capitalista patriarcal que faz da violência um modo de vida, inclusive quando encarcera jovens negros.
Ocupar-nos de pensar relações entre feminismos antirracistas e masculinidades consiste em atender a um convite feito por bell hooks para que mulheres feministas pesquisem, estudem e dialoguem com homens sobre patriarcado e masculinidades. Neste texto, colocamos em discussão histórias trazidas na palma da mão, a partir de percursos pelas políticas públicas de atendimento socioeducativo. Destacamos nessas histórias as insurgências micropolíticas do cotidiano de jovens cuja potência de vida se dá justamente entre violências e gestos criativos. Destaca-se ainda o fato de que a associação, construída socialmente, entre violência e masculinidades negras faz com que o sistema socioeducativo seja composto por uma maioria de jovens do sexo masculino, negros e oriundos de comunidades pobres. A partir das intervenções e discussões sobre raça e racismo, tornou-se possível colocar em questão não somente os corpos juvenis, mas também o corpo da pesquisadora, uma vez que narro histórias que me tocam visceralmente como mulher negra.
Partindo do pressuposto de que a memória é disruptiva, tomei a escrita como máquina de lentidão, capaz de provocar digressões, interrupções, encontros e desvios. Nesse sentido, torna-se fundamental conduzirmos formas de produzir conhecimento corporificado, sem assumirmos uma tarefa explicativa ou interpretativa para os acontecimentos. As histórias minúsculas de meus encontros com jovens no sistema socioeducativo assumem relevância na minha própria história como uma mulher negra interessada em discutir masculinidades negras e tornando-me feminista ao viver experiências que assinalam engendramentos entre raça, gênero, classe, sexualidade, etc. Apostamos em uma perspectiva feminista antirracista implicada com o desmantelamento das violências sistêmicas do patriarcado e colonialismo, cujas opressões incidem sobre mulheres e homens negros, ainda que de maneiras distintas. Defendemos a possibilidade de compor diálogos feministas em direção à construção de masculinidades não violentas, a partir de uma perspectiva feminista não hegemônica e crítica ao punitivismo e encarceramento de sujeitos negros.
Romper com a cultura patriarcal supremacista branca e com o pressuposto dominante de que a vida de homens negros pouco importa, a não ser que tentem exercer poder e dominação aceitando dividendos patriarcais dos brancos, requer atrever-se a sonhar e agir em prol da construção de masculinidades não violentas. Para tanto, apostamos na capacidade criativa das pessoas negras e no modo como criamos fissuras moleculares para não sucumbirmos ao ódio pelas violências que nos rondam. Nesse sentido, a capacidade de autoinvenção e autodeterminação pode produzir rachaduras nas estratégias de enquadramento dos corpos negros.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior — Brasil (CAPES) — Código de Financiamento 001.
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