Fútbol y teoría social en América Latina: un ensayo sobre las críticas al “deporte del pueblo”

Futebol e teoria social na América Latina: ensaio sobre as críticas ao “esporte do povo”

Football and social theory in Latin America: an essay on the criticisms of football

  • Felipe Tavares Paes
Neste ensaio, objetivo apresentar, analisar e problematizar a forma como intelectuais latino-americanos, vinculados às teorias sociais críticas, explicam o papel e os significados do espetáculo futebolístico nas sociedades capitalistas. Para tanto, organizei-o em três partes. Na primeira parte, analisei a condenação moral do futebol, mostrando que alguns autores enxergam esse esporte como uma atividade essencialmente alienada e outros condenam apenas a sua espetacularização, propondo que seja reformado. Na segunda parte, analisei as (supostas) funções ideológicas do futebol, problematizando os argumentos de que esse esporte, necessariamente, legitima o capitalismo, dissimula suas contradições, unifica oprimidos e pressores, fragmenta a classe trabalhadora e reifica as relações sociais. Na terceira parte, discuti a (suposta) personalidade autoritária do torcedor, focalizando as implicações político-ideológicas dessa ideia.
    Palavras chave:
  • Esporte
  • Teoria social crítica
  • América Latina
  • Marxismo
This essay aims to present, analyse and problematise the way in which Latin American intellectuals, linked to critical social theories, explain the role and meanings of the football spectacle in capitalist societies. To this end, it has been organised into three parts. In the first part, I analysed the moral condemnation of football, showing that some authors see this sport as an essentially alienated activity and others only condemn its spectacularisation, proposing that it be reformed. In the second part, I analysed the (supposed) ideological functions of football, problematising the arguments that this sport necessarily legitimizes capitalism, conceals its contradictions, unifies the oppressed and the pressured, fragments the working class and reifies social relations. In the third part, I discuss the (supposed) authoritarian personality of the football fan, focusing on the political-ideological implications of this idea.
    Keywords:
  • Sport
  • Critical social theory
  • Latin America
  • Marxism

1 Introdução

Este ensaio é o produto de reflexões teórico-conceituais que tenho feito a partir de três pesquisas, desenvolvidas nos últimos dez anos, sobre ativismo, resistência e dominação no futebol, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Seu objeto de reflexão é o debate intelectual sobre futebol e poder desenvolvido na América Latina, focalizando os argumentos de autores vinculados às chamadas teorias sociais críticas. De acordo com Douglas Kellner (2001), embora essas teorias possam adotar múltiplas abordagens, elas sempre visam problematizar sistemas de dominação e compreender como as expressões culturais se relacionam com esses sistemas e com as forças de resistência. Dessa forma, assumo, aqui, que pode ser caracterizado como um estudo crítico do esporte qualquer produção que não esteja apenas interessada em fazer uma leitura original e consistente do fenômeno esportivo, mas, também, que se proponha a tecer uma crítica às estruturas e práticas de dominação presentes no seu campo de produção e consumo e que possa, assim, impulsionar as forças de resistência e a luta pela democratização desse campo e da sociedade em geral.

Para apresentar o referido debate, é preciso, antes de tudo, esboçar, ainda que de forma muito breve e seletiva, seus contornos históricos, o que nos leva à formação do campo dos estudos sociais do esporte. Por décadas, o esporte ocupou um lugar secundário nos debates estabelecidos nas ciências humanas, sendo visto como um objeto menor ou, até mesmo, sem importância científica e política. Isso começou a mudar na década de 1960, na Europa, quando eclodiu uma série de revoltas protagonizada por estudantes e trabalhadores, que questionava as mais diversas esferas da sociedade, como a própria prática esportiva (Bracht, 2011). Naquele momento, começaram a se desenvolver os trabalhos pioneiros e longevos da Escola de Leicester — em especial, os de Eric Dunning, que havia se graduado em 1959 em economia e iniciado seus estudos em sociologia, elaborando uma dissertação de mestrado sobre futebol, que daria início a uma profícua parceria com seu mestre, o sociólogo alemão Norbert Elias (Dunning, 2014).

Outro autor de relevo para a formação dos estudos sociais do esporte foi Pierre Bourdieu. Como se sabe, o sociólogo francês escreveu sobre os mais diferentes assuntos (o Estado, a arte, a educação, os meios de comunicação, a ciência, etc.), renovando os debates sociológicos com a sua teoria dos campos sociais. No que diz respeito especificamente ao esporte, este nunca foi um tema central na sua obra. Apesar disso, ela trouxe contribuições notáveis para o avanço das pesquisas sobre a produção da oferta e da demanda das práticas esportivas. Sua influência sobre essas pesquisas pode ser observada ao menos desde o final dos anos 1970, a partir do momento em que os pesquisadores do Instituto Nacional do Esporte e da Educação Física (INSEP), da França, tiveram acesso aos artigos preparatórios ao seu livro “A distinção: crítica social do julgamento”, de 1979. Livro que contribuiu para que as análises do esporte passassem a relacionar as práticas esportivas e as filiações sociais, projetando essas práticas em sistema, ou seja, compreendendo que um esporte só pode ser pensado em relação aos demais. Do ponto de vista bourdieusiano, para que possamos compreender o prestígio de um esporte (ou a falta dele), temos, portanto, de considerar o daqueles com os quais ele converge e o daqueles aos quais se opõe. Este enfoque nos contrastes chamou atenção dos estudiosos da área de esporte para a necessidade de aprofundar o espectro dos esportes baseando-se nos gostos, sensibilidades e modos de ser das classes sociais, apontando para um novo programa de pesquisa (Vigarello, 2005).

É importante destacar que, embora tenha buscado compreender o papel social do esporte a partir das relações de força entre classes sociais historicamente construídas em luta umas com as outras, Pierre Bourdieu (1979/2007) sempre se recusou a proclamar sua adesão à tradição marxista. Esta tradição, no entanto, tem ocupado um lugar central nos estudos sociais do esporte desde o final dos anos 1960. Segundo Marcelo Proni (2002), autores como Bero Rigauer, Gerhard Vinnai e Jean-Marie Brohm têm, há décadas, analisado, de forma minuciosa e sistemática, o fenômeno esportivo, dirigindo fortes críticas ao esporte de competição (ou de rendimento).

Jean-Marie Brohm (1993), por exemplo, argumenta que o esporte moderno não apenas é o produto do desenvolvimento do capitalismo, mas serve para legitimá-lo, refletindo a visão de mundo da burguesia. Isto é, da sua perspectiva, o esporte tem uma função ideológica fundamental nas sociedades capitalistas. Mais exatamente, baseando-se nas análises de Louis Althusser, Brohm argumenta que o esporte opera como um aparelho ideológico de Estado, ocultando os conflitos sociais e a luta de classes — que seriam representados, de modo metafórico, como inofensivas lutas musculares individuais ou coletivas. Ademais, o esporte canalizaria a energia da massa trabalhadora, afastando-a da luta política. Ele também prepararia a força de trabalho para o trabalho industrial capitalista — por exemplo, inculcando nas pessoas, desde muito cedo, o princípio de rendimento e de produtividade. Por conseguinte, contribuiria, necessariamente, para a integração e estabilização da ordem social capitalista.

Na América Latina, a perspectiva crítica do esporte — de base marxista-althusseriana e de base frankfurtiana — foi predominante nos estudos sobre o futebol até a década de 1980 (Lovisolo, 2011). Por interpretá-lo como uma variante do “ópio do povo” e como um poderoso instrumento de alienação e controle da massa trabalhadora, Ronaldo Helal (2011), inspirado nos escritos de Umberto Eco (1979), a denominou de “apocalíptica”. No entanto, ainda na década de 1980, surgiu uma perspectiva quase oposta do futebol — que, influenciada por antropólogos como o brasileiro Roberto DaMatta (1982) e o argentino Eduardo P. Archetti (1999/2016), passou interpretá-lo como um local de formação de identidades, participação, pertencimento, emoção, criação e imaginação (e não mais como uma atividade alienada). Tanto Archetti (1999/2016) quanto DaMatta (1982) cultivaram expressiva inserção institucional em diversos países — como a Inglaterra e os Estados Unidos — e são, ainda hoje, muito lidos no campo de estudos latino-americanos sobre esportes. Todavia, enquanto o brasileiro centrou-se, basicamente, no futebol; o argentino abordou, também, outras modalidades esportivas, como o automobilismo e o polo. Ademais, a questão da escrita etnográfica, que traz à tona o lugar do antropólogo, parece ser mais central na obra deste último. Apesar destas e de algumas outras diferenças, ambos os autores costuraram seu campo empírico com a problemática da identidade. Essa costura não se deu, contudo, exatamente da mesma forma: enquanto na obra de “DaMatta a questão do mito de formação seria uma espécie de grau zero na demonstração de seu modelo, em Archetti os mitos apareceriam mais como um devir a serviço dos elementos que se precipitam como fatos históricos” (Toledo, 2009, p. 261).

Particularidades dos autores à parte, o fato é que a perspectiva crítica seguiu relevante para o debate intelectual sobre o assunto. Tanto que, em 1998, o ensaista argentino José Juan Sebreli publicou uma feroz crítica ao espetáculo futebolístico — La era del fútbol —, questionando o que denominou de “abordagem populista”, que enxergaria no futebol a expressão da “alma do povo argentino”. Sendo assim, para avançarmos no debate sobre futebol e poder na América Latina, faz-se necessário voltarmos nossos olhos para os principais argumentos e conjuntos de pressupostos que norteiam as análises oferecidas pelas teorias sociais críticas — ainda mais se tivermos em mente que uma das principais características dos debates científicos contemporâneos é que só raramente o material empírico é condição suficiente para a opção entre uma perspectiva teórica ou outra. Este ensaio tem, portanto, como objetivo apresentar, analisar e problematizar a forma como intelectuais latino-americanos, vinculados a essas teorias, explicam o papel e os significados do espetáculo futebolístico nas sociedades capitalistas contemporâneas.

Cabe destacar que, como qualquer ensaio, este não tem como objetivo fazer um levantamento exaustivo de tudo aquilo que já foi escrito sobre o tema. Ao contrário, centrar-me-ei nos estudos produzidos principalmente no Brasil e na Argentina, dada a sua (grande) influência na América Latina (Lovisolo, 2011). Isso não significa, evidentemente, que não haja importantes produções sobre o tema em outros países. Ao contrário, há anos, estudiosos de outros lugares da América Latina vêm debatendo o tema — como comprovam, por exemplo, os encontros do Grupo de Trabalho sobre Esporte e Sociedade da CLACSO (Fiengo, 2003). Vale sublinhar, também, que este ensaio tampouco pretende examinar, em detalhes, as ideias dos referidos estudos individualmente. Na verdade, desejo apenas reconstruir algumas argumentações mais gerais oferecidas pelas referidas teorias e avaliar sua força e limitações.

Para tanto, organizei o texto em três partes. Na primeira, analisei a condenação moral do futebol, mostrando que alguns autores enxergam esse esporte como uma atividade essencialmente alienada e alienante, enquanto outros condenam apenas a sua espetacularização. Em seguida, busquei mostrar como essas duas visões desembocam em diferentes propostas para o futebol: a reformista e a revolucionária. Na segunda parte, analisei as (supostas) funções ideológicas do futebol, debruçando-me sobre os argumentos de que esse esporte legitima o capitalismo, dissimula suas contradições, unifica oprimidos e opressores, fragmenta a classe trabalhadora e reifica as relações sociais. Também discuti a tendência das teorias sociais críticas de enfatizarem as relações de dominação de classe como o principal eixo de desigualdade e opressão no universo do futebol. Na terceira parte, discuti a (suposta) personalidade autoritária do torcedor, focalizando as implicações político-ideológicas dessa ideia.

2 A condenação moral do futebol: pressupostos e implicações

O primeiro ponto a destacar, aqui, é que, de modo geral, as teorias críticas do esporte condenam moralmente o futebol (Lovisolo, 2011). Há, no entanto, dois tipos de condenação: por um lado, há aqueles autores que, muito influenciados pela tradição marxista, entendem que o futebol, dentro do capitalismo, constitui, necessariamente, uma atividade alienada. No Brasil, um dos principais representantes dessa linha de pensamento é o jornalista Roberto Ramos, que trabalhou nas redações de importantes jornais, como o Zero Hora e a Folha da Tarde, e, atualmente, é professor titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), estudando a mídia a partir da obra de autores como Edgar Morin e Roland Barthes. Em 1984, Roberto Ramos (1984) publicou seu primeiro e um dos mais conhecidos livros: “Futebol: ideologia do poder”. Produto de uma monografia orientada pelo psicólogo social Pedrinho Guareschi, tal livro, conforme retomarei, analisa o futebol pela chave de leitura althusseriana — que fez muito sucesso na universidade brasileira nos anos 1980 (Helal, 2011).

Importante recordar que, naquele momento, o Brasil assistia à queda da ditadura civil-militar (1964-1985) e, consequentemente, à ampliação e à consolidação dos direitos democráticos, que, certamente, necessitam da participação de cidadãos ativos e críticos às mais diversas instituições sociais, como o próprio esporte. Não à toa, foi nesse momento que a educação física brasileira passou por um processo de desbiologização, dirigindo fortes críticas às (então) vigentes matrizes biológicas da área, vistas como mecanicistas, cartesianas, positivistas, produtivistas e reprodutivistas, e, também, ao esporte de rendimento, que passou a ser olhado pelos marcos do pensamento marxista e dos frankfurtianos (Lovisolo et al., 2015). Assim, se, por um lado, as análises de Ramos (1984) distanciavam-se daquilo que era produzido na antropologia, conforme já antecipei; por outro, participava das críticas mais amplas ao esporte de rendimento desenvolvidas na educação física.

Na Argentina, Sebreli (1981, 1998) é um dos principais defensores do caráter alienado e alienante do futebol. A despeito de ter estudado filosofia e letras na Universidade de Buenos Aires (UBA) e ser doutor honoris causa pela Universidade CAECE, o autor se considera um autodidata, tendo colaborado, simultaneamente, para duas revistas rivais e lendárias: Sur e Contorno. Nos anos 1950, participou dos primeiros movimentos cineclubistas e, ao lado de autores como Oscar Masotta e Carlos Correa, formou um pioneiro grupo existencialista sartreano. Além disso, apesar de nunca ter militado em partidos políticos tradicionais, foi um dos fundadores, na década de 1970, do primeiro movimento argentino contra a discriminação das minorias sexuais. Sua notoriedade como escritor chegou, no entanto, ainda na década de 1960, com a publicação de Buenos Aires, vida cotidiana y alienación (Sebreli, 1964/2003). Conhecido pela sua extensa obra sobre a vida social na Argentina — em que analisa temas como os mitos e tabus da população argentina e a alienação no mundo contemporâneo de forma mais geral —, o autor publicou, no início da década de 1980, Fútbol y masas. De inspiração frankfurtiana, essa obra foi, na verdade, finalizada em 1976, mas acabou não sendo publicada no período, graças a um ato de autocensura do editor, que se adiantou à censura imposta pelo golpe de Estado de 1976, que resultou numa das mais brutais e sanguinárias ditaduras latino-americanas (1976-1983). Grosso modo, em tal livro, Sebreli analisa as conexões do espetáculo futebolístico com o mundo dos negócios, com a política e com a violência, chamando atenção para seus (supostos) efeitos alienantes e (possíveis) significados (inconscientes) sexuais. Temas que retomaria mais tarde no seu clássico La era del fútbol, lançado no mesmo ano da Copa do Mundo da França (1998).

Neste livro, Sebreli (1998) argumenta que o espetáculo futebolístico pode até, aparentemente, permitir um escape da exploração e da repressão do trabalho alienado, devido ao seu caráter improdutivo ou inútil, mas que ele não seria capaz de transformar ou enfrentar a ordem social capitalista, já que se daria mediante uma atividade alienada de ócio. Afinal, para o ensaísta argentino, o futebol constitui um mecanismo pedagógico, que contribui para converter o torcedor em uma pessoa conformada e obediente. Por conseguinte, dificultaria o desenvolvimento democrático das sociedades e, até mesmo, prepararia o terreno para um possível regime totalitário. Não à toa, alguns de seus críticos, como Pablo Alabarces (2008; 2011), argumentam que ele exagera sobremaneira o potencial manipulatório do futebol, reiterando as críticas a esse esporte já feitas por autores como Vinnai e Brohm.

De qualquer modo, de acordo com Hugo Lovisolo (2011), esse tipo de perspectiva, defendida pelos referidos autores e por Sebreli, pressupõe uma relação distanciada do analista em relação ao futebol. Afinal, “criticar o efeito de alienação do futebol e ao mesmo tempo amar o futebol significaria criar um analista de pés de barro” (p. 12). Em outras palavras, aqui, é preciso blindar-se e colocar-se a salvo de tal efeito. Assim como na famosa alegoria de Platão, é preciso posicionar-se de fora da “caverna”, a fim de não tomar mais as “sombras” da realidade pela realidade em si. A razão, neste caso, seria aquilo que nos permitiria ter acesso ao conhecimento verdadeiro, que não requereria justificativas posteriores.

A crença na ideia de uma verdade absoluta, tal como concebia o platonismo, é, no entanto, problemática para a tradição marxista, que chama atenção para o caráter histórico do conhecimento e para o fato de que as leis da realidade social não são perenes e universais, mas se transformam permanentemente, expressando as contradições de uma sociedade de classes. Não à toa, pensadores marxistas, como Georg Lukács (2019), se viram diante da difícil tarefa de refutar a fantasia positivista de uma ciência marxista e, ao mesmo tempo, enfrentar o “fantasma” do relativismo histórico, que (supostamente) impossibilitaria uma fundamentação mais sólida do conhecimento. Para tanto, o filósofo húngaro introduziu a categoria de autorreflexão, argumentando que, ainda que rigorosamente histórico, o (auto)conhecimento do proletariado permitiria desvendar o segredo do capitalismo como um todo, em função da forma como ele se posiciona na história.

De acordo com Terry Eagleton (1997), esse argumento não conseguiu, todavia, solucionar o problema. Afinal, o que poderia garantir que o proletariado possui, de fato, o conhecimento do todo social e que sua consciência seja, portanto, universal? Isto é, de que ponto de vista se pode formular esse juízo? Do ponto de vista do próprio proletariado, não é possível, dado que somente evitaria a questão. De outro ponto de vista, tampouco, uma vez que apenas o ponto de vista do proletariado seria verdadeiro. Em certo sentido, os problemas levantados por Eagleton relacionam-se às objeções feitas ao realismo epistemológico, que tende a considerar o conhecimento válido como espelho da realidade. Conforme observa Tomás Ibáñez (2011), para saber se duas coisas se correspondem (no caso a realidade e seu conhecimento), é preciso compará-las e, para tanto, é preciso, necessariamente, ter acesso a elas com total independência da outra. No entanto, “como acessar a realidade com independência do conhecimento que temos dela para, assim, poder compará-la com esse conhecimento? (p. 252, tradução minha)”.

Além de incorrer nesse tipo de problema epistemológico, a tradição marxista, ao considerar o futebol uma atividade alienada e alienante, assume e legitima uma perspectiva revolucionária do esporte. Este teria de ser radicalmente transformado, sendo reconstruído sobre uma nova base de valores: o da solidariedade, e não o da competição, que seria o alfa e o ômega das sociedades capitalistas. Para tanto, as próprias estruturas sociais teriam de ser transformadas. Brohm (1993), por exemplo, argumenta que essa mudança esportiva só poderia, efetivamente, ocorrer com a emergência do comunismo. O que o leva a criticar parte da esquerda por sua (suposta) “cegueira ideológica”, que não conseguiria enxergar o caráter intrinsecamente conservador e mistificador do esporte moderno. Resta saber, no entanto, se, conforme Lovisolo (2011), sobraria algo dele depois de uma mudança estrutural tão profunda. Afinal, de acordo com o autor, algum aspecto central estaria sendo mudado na sua própria definição.

Em artigo que discute o esporte de rendimento e o esporte escolar, Lovisolo (2009) aponta, inclusive, para os paradoxos da crítica à competição feita pelas correntes marxistas da educação física no Brasil. Afinal, ao avaliar a cooperação como moralmente superior à competição, elogiando a primeira e mostrando seu desprezo pela segunda, essas correntes, de acordo com o autor, esquecem-se de que esse tipo de avaliação cria, inevitavelmente, uma hierarquia, colocando dois valores justamente em competição. Ele também nos recorda que a cooperação e a competição tendem a andar juntas, e não separadas, com a primeira servindo à segunda. Por exemplo, para a tradição liberal, a cooperação entre os trabalhadores é importante para tornar a empresa competitiva no mercado capitalista. Já para a tradição marxista, essa cooperação é importante para fortalecer a classe trabalhadora na luta (ou competição) de classes.

Por outro lado, há aqueles autores que entendem que o futebol constitui, originalmente, uma atividade potencialmente criativa, capaz de oferecer emoção, prazer, identidade e pertencimento aos seus praticantes, mas que teria sido cooptada pelas forças do mercado. Em outras palavras, o problema não seria o futebol em si, mas a sua espetacularização e mercantilização. Talvez, um dos maiores expoentes desse tipo de pensamento seja Eduardo Galeano. Como se sabe, o jornalista e ensaísta uruguaio é um dos ícones do pensamento progressista latino-americano, especialmente por conta da sua obra “As veias abertas da América Latina” (1971/2010), que se transformou em um libelo de libertação política e em uma referência de denúncia da exploração imperialista. Mantendo esse caráter de denúncia, em “Futebol ao sol e à sombra”, argumenta que o futebol surgiu como uma atividade lúdica, desligada dos interesses comerciais e associada unicamente ao prazer de jogar, mas que teria sido corrompido pela ânsia de seus agentes por dinheiro e poder.

De acordo com Lovisolo (2011), esse tipo de narrativa romantiza e idealiza os primórdios do futebol, esquecendo seu (alto) grau de violência. O antropólogo argentino também observa que esse tipo de narrativa conduz a uma espécie de escapismo do mundo em que vivemos e implica certa infantilização da atividade futebolística, uma vez que o adulto apenas se engajaria verdadeiramente nela naqueles momentos em que joga como uma criança: desinteressadamente. Ademais, de acordo com ele, tal narrativa soa falsa e moralista. Falsa porque é improvável que o uso de argumentos aristocráticos — expresso na defesa do “esporte pelo esporte” — consiga justificar uma posição progressista, como pretende Galeano (2013). Convém recordar que o ensaísta uruguaio se posiciona contrariamente à profissionalização do futebol, que permitiu que os atletas da classe trabalhadora pudessem se dedicar a ele por tempo completo. E moralista porque assumiria, de forma acrítica e generalizada, o caráter demoníaco do dinheiro — como se, por exemplo, uma bela jogada fosse menos bela apenas porque executada por um atleta profissional. Lovisolo (2001) também denuncia o caráter paradoxal da crítica feita por Galeano (2013) à espetacularização do futebol. Afinal, se não fosse pela sua espetacularização, o futebol não teria se tornado popular e, por conseguinte, o próprio Galeano (2013) talvez nem gostasse dele.

Independentemente das críticas que se possa fazer em relação a uma ou outra perspectiva do futebol, não deixa de ser interessante observar que o dicotômico e infindável debate “reforma versus revolução”, que perpassa a história da esquerda ao menos desde a querela de Lênin contra Kautsky (Safatle, 2012), tende a ser reproduzido no interior dos debates sobre o futebol. É possível, todavia, argumentar que a dicotomia que separa as perspectivas reformistas e revolucionárias do futebol é empobrecedora, podendo ser superada. Por exemplo, é possível lutar pela reforma de práticas instituídas no futebol — como aquelas que contribuem para a exclusão da classe trabalhadora dos estádios — sem, ao mesmo tempo, relegar os projetos revolucionários a momentos de desvario da história — como geralmente faz o pensamento conservador.

Por um lado, reformas possuem a vantagem de, em princípio, estarem mais ao alcance de nossas mãos do que uma revolução, o que tende a torná-las mais viáveis. Ademais, dependendo da sua profundidade, podem trazer um salto qualitativo na vida de um grande grupo de pessoas — especialmente as mais vulneráveis (Safatle, 2012). Sendo assim, parece difícil se contrapor a elas sem assumir uma posição elitista. Por exemplo, a opção por rejeitar a luta contra a elitização do futebol simplesmente porque não valeria a pena popularizar esse tipo de atividade — na medida em que seria intrinsecamente alienante — pode ser interpretada como uma forma (autoritária) de negar à classe trabalhadora o direto ao acesso a um espetáculo por ela muito apreciado.

Por outro lado, projetos revolucionários tendem a ampliar nossos horizontes, indicando outros mundos possíveis. A transformação radical das estruturas da sociedade pode fazer, por exemplo, com que o futebol receba novos significados e funções. Ademais, a revolução, como nos recorda Ibáñez (2015), não precisa ser um cheque pré-datado para o futuro, isto é, não precisa ser algo que só se deseja e só se sonha como acontecimento vindouro. Ela pode estar ancorada no presente, desenvolvendo-se continuamente nas fissuras do capitalismo. Não se trata, portanto, de, necessariamente, defender uma política com ares messiânicos, que subjuga a vida presente em nome de uma promessa abstrata, mas de criar espaços radicalmente alheios aos modos de vida induzidos pelo capitalismo. Espaços que coloquem em circulação valores, ideias e práticas insurgentes — como, por exemplo, a criação de práticas esportivas que sirvam para (des)construir (e não reforçar) a dominação masculina.

3 As funções ideológicas do futebol: pressupostos e implicações

Na seção anterior, discuti os pressupostos e as implicações da condenação moral ao futebol feita pela teoria social crítica. Agora, volto minha atenção a um tema relacionado: as (supostas) funções ideológicas do futebol. Embora rejeite a ideia (funcionalista) de que a ordem social possui determinadas necessidades, que devem ser garantidas a fim de manter seu equilíbrio estável, e que o esporte, de alguma forma, preencheria algumas dessas necessidades — satisfazendo os (supostos) “instintos primitivos” do ser humano, por exemplo —, Brohm (1982) e a tradição marxista em geral argumentam que o esporte é funcional à reprodução da ordem social capitalista. Isso não significa, no entanto, que, para eles, o esporte tenha as mesmas funções desde sempre. Tampouco que suas funções sejam homogêneas e harmônicas. Ao contrário, elas seriam complexas e, com frequência, antagônicas e contraditórias. Entre as funções do esporte, o crítico marxista destaca as econômicas, as sociopolíticas, as psicossociais, as mitológicas e as ideológicas. Centro-me nestas últimas.

Para compreendermos essas funções, é preciso retomarmos, ainda que muito brevemente, uma de suas principais referências teóricas: Althusser — que também serve de base conceitual para alguns estudiosos latino-americanos do futebol, como Ramos (1984), especialmente no seu já mencionado “Futebol: ideologia do poder”. Interessante notar que a publicação de tal livro ocorre em um momento em que o potencial de análise do referencial althusseriano para a intepretação do futebol brasileiro já era questionado. Por exemplo, ainda em 1977, Muniz Sodré (1977) defendeu ser um erro crasso acreditar que a complexidade do futebol brasileiro pudesse ser abarcada pela conceituação de um “aparelho esportivo”. Ademais, naquele período, tal referencial estava em declínio na Europa, devido a uma guinada da intelectualidade francesa contra o marxismo, a uma mudança nos “ares políticos” e à identificação de importantes problemas teóricos relativos a suas posições (Scott, 2009).

De qualquer modo, é preciso observar que Althusser apareceu com ímpeto no cenário intelectual em meados da década de 1960, criticando a ossificação da teoria marxista sob a ortodoxia stalinista, que havia reduzido a determinação social às forças produtivas (Scott, 2009). Para realizar tal crítica, argumenta que, projetada no campo político, a dominação econômica não assume uma forma bruta, simples e imediata, uma vez que, segundo ele, o que assegura a reprodução das relações de produção é o exercício do poder estatal tanto nos aparelhos repressivos de Estado (ARE) quanto nos aparelhos ideológicos de Estado (AIE).

De acordo com Althusser (2013), enquanto os ARE são constituídos por instituições como o exército, a polícia, as prisões, os tribunais, a administração pública etc.; os AIE são formados pela Igreja, pela família, pela escola, pelos partidos políticos, pelos sindicatos, pela imprensa e pela cultura — incluindo, aqui, os esportes. Esses dois tipos de instituição diferem, segundo o autor, por duas razões. Primeira: enquanto os ARE pertencem inteiramente ao domínio público, a grande maioria dos AIE pertence à esfera privada. Segunda: enquanto os AIE funcionam, maciça e predominantemente, à base da ideologia; os ARE funcionam, maciça e predominantemente, à base da repressão. Isso significa que, sendo um AIE, o futebol serviria à manutenção da ordem social capitalista contribuindo para criar uma representação da relação imaginária das pessoas com suas condições reais de existência.

Partindo dessa linha de raciocínio, autores alinhados à teoria crítica sustentam que: 1 — o futebol mistifica a realidade, dissimulando e encobrindo as relações de produção. Ele ocultaria os conflitos sociais e a realidade da luta de classes — que seriam representados metaforicamente como inofensivas lutas coletivas (Brohm, 1982, 1993). Na perspectiva de Ramos (1984), o futebol reduziria a compreensão das condições materiais e sociais existentes, preenchendo espaços consideráveis na vida dos brasileiros. Na primeira seção, já indiquei alguns problemas relacionados a esse tipo de posição epistemológica (realista), que pressupõe que as massas (torcedoras) possuem uma consciência falsa ou ilusória, que precisaria ser desmascarada. Assim, limito-me a reforçar a necessidade de rejeitá-la ou, ao menos, de relativizá-la. Neste último caso, compreendendo que o futebol pode contribuir para mascarar as relações sociais apenas em determinados contextos, mas que ele não, necessariamente, faz isso em todos os contextos. Em outras palavras, a possibilidade de o futebol servir à dominação de classe dissimulando a realidade social é, no máximo, contingente.

2 — O futebol legitima o capitalismo, fazendo uma apologia da ordem social existente. Na perspectiva de Ramos (1984), ele não questiona as contradições capitalistas; ao contrário, contribuiria para fazer crer que elas são justas e dignas de apoio, servindo de modelo para o sistema social mais amplo. O futebol contribuiria, por exemplo, para, desde muito cedo, inculcar os princípios de rendimento, lealdade e de produtividade nas massas trabalhadoras, como se fossem valores a serem perseguidos não só no futebol, mas, também, no mundo do trabalho. Assim como no futebol, na “fábrica”, o trabalhador deveria seguir as “regras do jogo” — mais exatamente, da exploração capitalista, consentida pelo contrato de trabalho. O problema desse tipo de argumentação é que ele perde de vista o caráter ambíguo da mensagem e a complexidade do seu processo de recepção. As pessoas não são esponjas que absorvem indiscriminadamente as mensagens a que são expostas. Ao contrário, esforçam-se continuamente para entendê-las, para lhes dar sentido e para partilhá-las com os outros (Thompson, 2000).

O antropólogo Roberto DaMatta (1982), por exemplo, buscou mostrar como, no contexto brasileiro, o futebol pode permitir com que o trabalhador vivencie uma autêntica experiência democrática, negada nas outras esferas sociais. Afinal, dentro do campo de jogo, não importariam os graus de amizade e parentesco, mas de qualidade técnica. Já a historiadora Lívia Gonçalves Magalhães (2013) indicou que, apesar terem sido elemento de propaganda oficial dos regimes ditatoriais brasileiro e argentino, as conquistas da Copa do Mundo de 1970, por parte da seleção brasileira, e da Copa do Mundo de 1978, por parte da seleção argentina, foram interpretadas e utilizadas de diferentes maneiras por diferentes atores (jogadores, comissão técnica, jornalistas, torcedores etc.).

3 — O futebol unifica oprimidos e opressores, oferecendo um conjunto coerente de representações, valores, ideias e crenças — o que contribuiria para promover uma falsa conciliação de classe (Ramos, 1984). Certamente, o futebol pode, em alguns momentos, contribuir para interligar pessoas em torno de uma identidade comum (clubística ou nacional), independentemente das diferenças e divisões que possam separá-las. Todavia, o poder amalgamante do futebol, que o faria operar como uma espécie de “cimento social”, é questionável. Afinal, há pouca evidência de que o universo do futebol esteja baseado sobre grandes consensos. Ao contrário, há, no seu interior, uma ampla diversidade de valores (concorrentes), que enseja disputas intestinas em torno de como o espetáculo futebolístico deve ser organizado e consumido. Por exemplo, enquanto alguns torcedores aplaudem a transformação dos antigos estádios em confortáveis arenas multiusos; outros adotam um discurso nostálgico, que lamenta o fim dos antigos setores populares, como as gerais (Lopes, 2023, Lopes e Hollanda, 2018).

4 — O futebol fragmenta a classe trabalhadora, construindo identidades (clubísticas ou nacionais) rivais (Ramos, 1984) — o que contribuiria para minar sua capacidade de organização coletiva e de se transformar, assim, num desafio real aos opressores. Em outras palavras, o futebol serviria de arma para as classes dominantes por conta da sua própria natureza competitiva. Graças a ela, seria possível construir um “nós-amigos”, que integraria dominantes e dominados, e um “eles-inimigos”, que dividiria a classe trabalhadora. Sebreli (1998) chega a afirmar que a adesão a um clube está destinada a se converter, inevitavelmente, em agressão ao torcedor adversário, uma vez que este representaria uma ameaça de desintegração da sua identidade coletiva/clubística, na medida em que a negaria. Certamente, o clubismo e o chauvinismo podem, em alguns contextos, dificultar a construção de projetos comuns. No entanto, eles não operam sempre como um elemento desestabilizador, que produz obstáculos intransponíveis para a articulação de ações conjuntas entre torcedores rivais. Na verdade, há diversos exemplos de casos em que esses torcedores criaram redes de apoio mútuo. Por exemplo, no contexto da cidade de São Paulo, durante o governo Jair Bolsonaro (2019-2022), coletivos ativistas de torcedores dos arquirrivais Corinthians, Palmeiras e São Paulo organizaram uma série de ações conjuntas contra a extrema direita, como diversos protestos no centro da cidade. Ademais, no caso desses coletivos, o clubismo ajudou a unificar e a organizar militantes, que, isolados, seriam menos capazes de se transformar num desafio real às forças dominantes (Lopes, 2023).

5 — O futebol reifica as relações sociais, coisificando as pessoas (Brohm, 1993). É certo que, no modo de produção capitalista, o trabalhador é convertido em mercadoria. No caso do jogador de futebol, seu corpo ainda serve de suporte para todo tipo de publicidade, estampada, por exemplo, nas camisas dos clubes (Sebreli, 1998). Todavia, isso não significa que esse estado de coisas seja visto, necessariamente, como natural ou inevitável. Por exemplo, o movimento chamado Democracia Corinthiana, liderado por jogadores como Sócrates, Casagrande, Zenon e Wladimir, colocou em xeque, no início dos anos 1980, relações de dominação que pareciam até então inquestionáveis, estabelecendo uma espécie de autogestão dentro do clube, na qual as decisões importantes eram decidas por voto igualitário (Florenzano, 2009).

Além de problematizar esses cinco argumentos das teorias críticas do esporte, é preciso destacar que, em geral, essas teorias, aparando-se no referencial marxista, tendem a considerar as relações de classe a única ou, ao menos, a principal forma de dominação e subordinação no universo do futebol. No entanto, como mostram alguns estudos (Lopes, 2023; Lopes e Teixeira, 2021), a centralidade dada a tais relações é, sob certos aspectos, enganadora. Embora seja correto enfatizar sua relevância como uma base da desigualdade e exploração no referido universo, não podemos negligenciar ou menosprezar a importância de outras relações de dominação (de sexo, gênero, raça, idade etc.) na sua estruturação. Na verdade, o peso relativo de cada forma de dominação e o modo como operam conjuntamente irão variar de contexto para contexto. Por exemplo, no campo de interação das torcidas organizadas, o peso relativo às relações de dominação de sexo/gênero é mais determinante do que o relativo às de classe e raça no que diz respeito ao acesso às posições de poder. Enquanto qualquer homem assumidamente heterossexual (seja rico ou pobre, branco ou negro) pode chegar à presidência dessas torcidas; uma mulher muito dificilmente ocupará uma posição de poder na sua estrutura hierárquica.

4 A fragilidade identitária do torcedor de futebol: pressupostos e implicações

Em parte, podemos atribuir os problemas apontados nas seções anteriores ao fato de a maior parte dos estudos abordados dar pouca atenção às práticas cotidianas de apropriação e consumo do espetáculo esportivo — o que os leva, conforme já sugeri, a adotar, com frequência, uma perspectiva de “torcedor-passivo”. Neste ponto, as reflexões de Sebreli (1998) sobre a (suposta) personalidade autoritária do torcedor são ilustrativas. Baseando-se em estudos de Theodor W. Adorno publicados nos anos 1950 nos Estados Unidos sobre o “homem autoritário”, o ensaísta argentino argumenta que o torcedor é um autoritário passivo, que se submete cegamente à autoridade e é facilmente sugestionável. Tratar-se-ia de alguém completamente adaptado e integrado ao “endogrupo” — a própria torcida — e que rechaçaria completamente o “exogrupo” — a torcida adversária. Isso ocorreria pois o pertencimento ao clube de futebol seria sua única fonte de identidade, já que ele não teria uma identidade pessoal sólida. Isto é, os torcedores teriam um “eu” frágil e incompleto. Sua paixão pelo futebol seria, assim, o resultado dessa fragilidade e incompletude.

Mas o que as provocaria? Grosso modo, a falta de maturidade psicológica do torcedor. Para Sebreli (1998), a paixão pelo futebol chega ao seu grau máximo na adolescência — fase em que a inserção infantil no grupo familiar e a identificação com os pais entrariam em crise. Consequentemente, o adolescente precisaria de algo novo para se identificar, como um “time de coração”. Não à toa, segundo o autor, a partir dos 25 anos, a paixão pelo futebol diminuiria, uma vez que, nesta idade, começaria a surgir (ou se intensificar) o interesse por outros temas, como a política, o trabalho, o sexo etc. A existência de alguns adultos muito apaixonados pelo futebol seria explicada porque, por diferentes razões, esses adultos não teriam conseguido formar um “eu” maduro. Ainda de acordo com Sebreli, a fragilidade identitária do adolescente se acentuaria quando este pertence ao lumpemproletariado, já que, segundo ele, esse grupo, geralmente, não está inserido em nenhum tipo de trabalho ou estudo, que poderia servir de base para a construção de uma identidade mais sólida.

Ainda que sua opção pela produção ensaística o “autorize” a desenvolver um texto mais “livre” e “pessoal”, Sebreli (1998) não está (ou, ao menos, não deveria estar) desobrigado a apresentar razões, fundamentos e evidências que possam sustentar sua linha argumentativa. Ele não cita qualquer pesquisa, por exemplo, que sustente a ideia de que a paixão pelo futebol chega ao seu auge na adolescência — base da sua argumentação. Na verdade, o máximo que ele apresenta são alguns trechos de antigos cronistas que corroboram com sua visão de “torcedor-passivo”. A própria ideia de que o torcedor se submete completamente ao “endogrupo” também é refutada por diferentes estudos (Lopes, 2023, Lopes e Hollanda, 2018), que indicam que o universo do futebol é marcado por inúmeros conflitos. Mesmo dentro de uma mesma torcida, há aqueles apoiam a “modernização” do futebol e aqueles que a refutam. Há aqueles que defendem a separação entre futebol e política e aqueles que defendem sua fusão. Há aqueles que acreditam que a briga faz parte da vida do torcedor e aqueles que a rechaçam radicalmente.

Além da falta de fundamentação empírica, as análises de Sebreli (1998) possuem implicações político-ideológicas problemáticas. Afinal, se o torcedor é, fundamentalmente, uma pessoa irracional, facilmente sugestionável, então, ele não tem nada de significativo a dizer. Por conseguinte, não há porque escutar suas demandas e reivindicações, ainda que possam ser legítimas, ou seja, justas e dignas de apoio. Ainda mais, se ele, ainda por cima, é marcado por uma personalidade intolerante, então, o melhor é controlá-lo e mantê-lo sob vigilância constante. Em suma, o torcedor não seria alguém que deveria ser escutado, mas, sim, submetido.

5 Considerações finais

Neste ensaio, busquei apresentar e problematizar algumas das principais críticas dirigidas ao futebol feitas por autores latino-americanos ligados às chamadas teorias sociais críticas, especialmente de base marxista. Importante reforçar que não foi meu objetivo examinar em detalhes as ideias de cada um desses autores, mas apenas indicar os pressupostos que subjazem algumas linhas argumentativas mais gerais quando tomados em conjunto e discutir algumas das limitações dessas linhas. De qualquer modo, sejam elas quais forem, considero que, ao invés de simplesmente rejeitar completamente as análises oferecidas pelos referidos autores, melhor seria reformulá-las, combinando-as (e tensionando-as) com outras perspectivas críticas, capazes de superar (ao menos parcialmente) seus problemas. Afinal, tais autores estavam, a meu ver, corretos ao enfatizar a importância dos vínculos (umbilicais) entre futebol e poder, assim como estavam corretos em insistir que a análise desses vínculos só pode ser feita se integrada no contexto mais amplo do estudo da sociedade capitalista. Em outras palavras, ainda que possam, sob certos aspectos, adotar um enfoque restritivo, tratá-los como resíduos do passado, como representantes de um pensamento já superado, seria, definitivamente, prematuro.

6 Agradecimentos

Agradeço à Fapesp pelo auxílio à pesquisa que permitiu o desenvolvimento deste ensaio.

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