Índia mulher: narrativa sobre identidade, corpo-território e autorreconhecimento

Indigenous woman: narrative about identity, body-territory and self-recognition

  • Franciele Alves dos Santos
  • Meyriane Costa de Oliveira
  • Candida Maria Bezerra Dantas
Este artigo tem por objetivo resgatar a história de vida de uma mulher indígena pensando seu corpo-território no processo de autorreconhecimento, a partir de referenciais teóricos decoloniais, feministas e de fronteira. Como metodologia apostamos na hibridização de ferramentas narrativas com a perspectiva ética-política da decolonialidade. Para a construção das narrativas, foram utilizados diários de campo, entrevistas abertas, fotografias e escrevivências da pesquisadora. A questão da identidade indígena é complexa, já que diz de processos subjetivos e também coletivos. No entanto, podemos perceber que ao contrário do que temos dado por identidade como algo que é estático, típico da modernidade, a história de vida estudada revela a identidade muito mais como um fluxo, movimento e transformação, em que a ideia de corpo-território é fundamental já que todas nós fazemos parte desse organismo vivo que é a terra.
    Palavras chave:
  • Mulheres
  • Povos Indígenas
  • Corpo-Território
  • Identidade
This article aims to rescue the life story of an indigenous woman thinking about her body-territory in the process of self-recognition, from decolonial, feminist and frontier theoretical references. As a methodology, we bet on the hybridization of narrative tools with the ethical-political perspective of decoloniality. For the construction of the narratives, field diaries, open interviews, photographs and the researcher’s writings were used. The question of indigenous identity is complex, since it deals with subjective as well as collective processes. However, we can see that, contrary to what we have given by identity as something that is static, typical of modernity, the life history studied reveals identity much more as a flow, movement and transformation, in which the idea of body-territory it is fundamental since we are all part of this living organism that is the earth.
    Keywords:
  • Women
  • Indigenous People
  • Body-Territory
  • Identity

1 Primeiras pistas

A forte presença indígena no Nordeste e no Rio Grande do Norte (RN) pode ser observada nos censos de 1940 e 1980, em que os “pardos” representavam 43 % e 46 % da população total, respectivamente (Oliveira, 2004). Historicamente, a categoria parda é problemática, visto que comumente opera o apagamento étnico do indígena, ao englobar uma diversidade de grupos étnicos não-brancos sob a categoria “negros”. Assim, cabe lançar olhar aos processos de “reaparecimento” e “desaparecimento” das categorias “índio” ou “indígena” nos registros censitários, observando como esta foi eventualmente substituída por pardos, mestiços ou caboclos (Guerra, 2007), refletindo a negação histórica da ancestralidade indígena.

Tal processo retrata o genocídio e etnocídio vividos pelos povos originários do RN, que por muito tempo viveram privados da sua identidade. Mesmo com a autorreferência como indígenas de alguns indivíduos ao longo dos anos, apenas após a Constituição de 1988, 300 pessoas se autodeclararam indígenas no RN. Nos anos 1990, há uma emergência/ reivindicação étnica no estado, fortalecida pela aliança com outros movimentos sociais do campo, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e o Sindicalismo Rural (Guerra, 2007), tendo como protagonistas duas mulheres dos povos “Potyguaras Mendonça do Amarelão” e “Potyguaras Eleotérios do Catu”.

A Matriz Colonial de Poder (MPC), do ser-saber-poder, se configura como uma estrutura complexa, composta por diversos níveis de colonialidade entrelaçados, como o controle da economia, da autoridade, da natureza e dos recursos naturais, do gênero e da sexualidade, da subjetividade e do conhecimento (Ballestrin, 2013). A MPC coloca o homem branco, europeu, cis, hetero e cristão como a norma, produzindo o processo de morte simbólica dos povos originários a partir da construção de uma história única que os infantiliza e brutaliza. Cria-se um estereótipo de “índio" o qual é impossível de encontrar na população indígena contemporânea, ao ditar que indígena é apenas o aldeado, que fala o seu idioma originário e tem “cara de índio”, não levando em consideração a diversidade dos mais de 300 povos existentes no país e os processos de etnocídio vividos ao longo dos mais de 500 anos de colonização; ou, os afasta de suas origens por colocá-los no lugar de não humano, do selvagem do passado.

Grada Kilomba (2020) apresenta a ideia de “outridade” advinda do colonialismo, em que as tecnologias sociais não reconhecem o outro como sujeito, que acabam por ter seu direito de reconhecimento de si cerceado. É aqui que se incorporam as identidades indígenas representado, até os dias atuais, como aquele desqualificado, no sentido pejorativo, associado a características como preguiçoso, indolente, primitivo, selvagem, até mesmo canibal, ignorando a diversidade presente entre esses povos. É certo que há quem romantize a figura do índio, pensando-o como pacifico e bonito, no entanto até mesmo estas visões devem ser combatidas (Gonzaga, 2021). Em contraposição, o indígena é aquele que teceu e desenvolveu sua cultura de modo intimamente ligado à terra, a natureza, elaborou tecnologias, teologias, cosmologias, sociedades que nasceram e se desenvolveram a partir de suas experiências, vivências com a floresta, com o cerrado, os rios, as montanhas, e as respectivas vidas dos reinos animal, vegetal e mineral, provocando o florescimento de muitas etnias, muitas variedades de línguas (Jecupé, 2020).

A questão a ser colocada aqui é a da identidade indígena e como esta foi delegada ao status de sub-humanidade por tantos séculos, e como apenas agora percebemos nossas comunidades e parentes1 fazendo o que chamamos de “caminho de volta” que seria uma retomada ancestral, um retorno étnico à pluralidade de modos de vida originários.

Grada Kilomba (2020) recupera a noção de trauma colonial vivenciada pelo sujeito negro, e aqui ampliamos ao indígena, que carrega consigo as feridas das violências vívidas, reencenadas na contemporaneidade. O abuso racial e étnico tem, então, um padrão histórico, em que o passado colonial pode ser revisitado e atualizado no presente.

Em resposta, é necessário que o sujeito indígena imponha barreiras, recusas, limites, que negue o lugar de “outridade” que lhe foi imposto, se afirmando subjetivamente independente de sua relação com o sujeito branco (Kilomba, 2020). Para indígenas, especialmente para as mulheres, isso se faz através da defesa do seu corpo-território, já que como coloca Sônia Guajajara (citada por Silva, 2019):

O território é o que garante a nossa vida. O nosso corpo é o que está em jogo, é o que está sendo alvo de violência. E o espírito é a nossa identidade, nossa conexão com a ancestralidade que garante a força da cultura para seguir na resistência. E essas questões se relacionam porque quando homens invadem nossos territórios, atingem diretamente nosso corpo e nossa identidade. (Silva, 2019, seção “Demarcação e Território”)

Nesse sentido, corpo-território traz uma nova noção de “posse”. Não é ter um corpo ou um território. Esse “ter” implica fazer parte, reconhecer a interdependência que possibilita a vida e que nos compõe. É impossível recortar o corpo individual do coletivo, o corpo se revela como composição de afetos, recursos, possibilidades não mais individuais, mas que se singularizam na medida que o corpo nunca é só um, mas um com outros e com outras formas humanas (Gago, 2020).

Para os pesquisadores indígenas Vicente Xakriabá et. al., (2020), território é “nossa morada coletiva, mas também interior” (p. 2), desta forma o conceito de corpo-território engloba a relação com a natureza, a ancestralidade e a espiritualidade, as quais estão intimamente ligadas aos territórios sagrados, ao organismo que fazemos parte, a Terra. Assim, a retomada étnica só se dá através do retorno e defesa dos territórios originários, seus diversos costumes e cosmovisões vivenciadas conforme cada etnia. Corpo-território é, assim, um conceito político que mostra como a exploração dos territórios implica violentar o corpo de cada uma (Gago, 2020).

É importante trazer para esta discussão que identidade e pertencimento étnico não são conceitos, mas processos psicossociais dinâmicos. Desta forma, o Estado não tem o direito de opinar sobre quem é indígena ou não é. Ele deve garantir que tais processos sejam respeitados e que os grupos e indivíduos se auto identifiquem com base em uma etnicidade (Gonzaga, 2021). A negação das identidades dos povos indígenas e a afirmação de uma outra cultura, estranha aos que já estavam em Pindorama e Abya Yala, começa a ser revertida com a aprovação da Constituição Federal de 1988. Mas foi com a entrada em vigor em 1991 da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e graças à luta dos povos originários do mundo pelo reconhecimento das identidades e o direito à autoidentificação, que o processo de afirmação das identidades indígenas passou a ocorrer e impediu que o Estado, principal interessado no apagamento dos povos originários de Pindorama, retirasse a autonomia em se autoafirmar indígena.

Depois de séculos de massacres de todas as ordens, a autoafirmação não é um processo fácil. A desumanização dos povos originários impôs, em larga escala, o etnocídio e, em muitos casos, nos fez negar a própria identidade. Em outros casos, determinaram outra identidade para nós, diferente daquela que poderíamos afirmar, se tivéssemos tido a possibilidade.

A ancestralidade roubada é um mecanismo de guerra da colonialidade. Quem não tem memória não tem pelo que lutar. Por isso, a retomada étnica e o fortalecimento do nosso corpo-território são nossas maiores armas de resistência contra o colonialismo e as formas de aniquilação das nossas alteridades.

2 Circularidade metodológica

O presente artigo é fruto de uma dissertação de mestrado, cujo objetivo foi compreender o processo de autorreconhecimento de uma mulher indígena e sua relação com as suas experiências de vida. Neste artigo, focaremos no resgate da história de vida da participante-pesquisadora Guayumi Potyguara, pensando seu corpo-território no seu processo de autorreconhecimento.

Esta indígena foi a participante-pesquisadora de nossa pesquisa: tem 43 anos e, apesar de ser nativa de uma cidade litorânea do RN, vive há alguns anos em uma aldeia indígena, após ter despertado para o caminho de volta. Desde que iniciou sua caminhada em busca de sua retomada ancestral, ela é ativista do movimento indígena do RN, fez parte da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do RN (APIRN), é estudante do mestrado em Antropologia Social, artesã, escritora e professora de tupi antigo na escola da comunidade.

A proximidade com as experiências dela, assim como os próprios processos de vida da primeira autora desse artigo — que possui ascendência indígena — despertaram alguns questionamentos: como se dá o autorreconhecimento como indígena num estado onde a presença indígena é sistematicamente apagada? Como o autorreconhecimento se constitui como instrumento de luta dos povos indígenas? Como o processo de autorreconhecimento pode ser ferramenta de resistência e “reexistência” das mulheres e da população indígena?

Segundo Ochy Curiel (2020), as experiências vividas por mulheres subalternas são a melhor forma de interpretar a realidade destas. Decidimos, assim, desenvolver o processo de pesquisa com Guayumi Potyguara tendo em vista que em sua trajetória de vida, por ser uma indígena em processo de retomada, vivenciou a consubstancialidade das opressões da colonialidade de ser-saber-poder-gênero.

Ainda é um desafio metodológico desenvolver pesquisas com viés decolonial. Neste trabalho, apostamos na proposta de Patrícia Calderón (2017) que aposta na hibridização de metodologias outras com a perspectiva ética-política da decolonialidade, tendo em vista que a opção decolonial não é apenas um conceito ou uma definição, mas uma opção de vida, é pensar e fazer, definida por ação e engajamento. Neste trabalho, tal opção se encontra com o desejo de tecer narrativas a partir do saber/ conhecimento das mulheres indígenas, subalternas, que resistem a despeito da lógica colonial.

Neste caminho, a decolonialidade é uma práxis que afirma outros saberes originários subjugados, para além da academia (Maldonado-Torres, 2016), viabilizando histórias e narrativas com diversas dobras, que se deram e se dão a partir de sociabilidades, práticas e conhecimentos mantidos a despeito da imposição colonial (Santos, 2018). Nelson Maldonado-Torres (2016) defende a decolonialidade como um projeto, pautado pela atitude decolonial, no qual o sujeito constrói uma reorientação em relação ao saber, poder e ser, e aqui incluímos também a colonialidade de gênero.

Nesse sentido, o que se apresenta como método e metodologia não pode deixar de ser um trabalho interpretativo da dimensão colonial, em retrospecto, feito em face das inconsistências e contradições que nos encontramos diariamente no processo investigativo (Borsani, 2014).

Em consonância com as abordagens decoloniais, a parceria de pesquisa com Guayumi Potyguara provocou a possibilidade de construir uma narrativa biográfica a partir desse encontro entre mulheres. Com ela (re)trilharemos sua história que apesar de ser única, é a história de muitas de nós, daquelas que tiveram sua ancestralidade negada/roubada.

Compreendemos, assim, o manejo da pesquisa como artesanal, como a tessitura de uma colcha de retalhos das nossas trajetórias, configurando um “pesquisarCOM” que ganha sentido na parceria entre mulheres, indo na contramão do fazer pesquisa sobre a(o) outra(o), tornando assim, o processo de conhecer uma relação de transformação recíproca. “Se interpelamos a(o) outra(o) com nossas questões de pesquisa, este nos interpela de volta” (Moraes e Quadros, 2020, p. 4). Receber de volta o olhar do outro é aceitar colocar-se em risco no encontro com a diferença (Haraway, 2008 citada por Moraes e Quadros, 2020). Seguir as pistas que as parceiras de pesquisa nos abrem, sem reduzi-las à meras representações e práticas a serem observadas e analisadas, mas afirmando-as como sujeitas ativas que aceitam engajar-se de uma forma ou de outra no processo de pesquisa, é a postura ética que aqui buscamos.

Isso significa apostar em uma produção que se dedique muito mais a (re)invenção do campo de pesquisa e menos no determinismo de análises construídas sob égides colonizadoras, de modo que coletivamente possamos construir políticas narrativas de resistência decolonial. Partindo desta ideia, é importante localizar nosso local de enunciação como mulheres de cor, já que este afeta as interpretações sobre a pesquisa. Desta forma, usaremos como aporte teórico os feminismos decoloniais e de fronteira que não consideram apenas a autodefinição como partida ética fundamental, mas também a inclusão de questões sobre como construir um conhecimento que leve em conta a geopolítica, a “raça”, a classe, a sexualidade, o capital social, entre outros posicionamentos (Curiel, 2020).

Com isso, assim como Suely Messender (2020), perseguimos um conhecimento científico blâsfemico e decolonial a partir de um processo investigativo que considere: 1. A corporeidade de todas nós participantes da investigação, e cujas marcas de gênero, raça, classe, colonialidade e desejo sexual são consideradas; 2. O saber das sujeitas que não pode ser reduzido a meras representações e práticas; 3. As trocas com os saberes localizados das coparticipantes da pesquisa; e 4. As geopolíticas de descolonização do conhecimento a partir das mulheres de cor, no caso indígenas.

Sendo assim, buscamos experimentar aqui a escrita encarnada, como pesquisadora-ativista fazendo o “caminho de volta”, compartilhando o lugar privilegiado da academia com a participante-pesquisadora, no sentido de que possamos juntas, como afirma Rita de Jesus (2020), “reterritorializar e atualizar narrativas implicadas sobre memória, cultura, nossos saberes, nossas histórias, nossa fé, e nossas identidades. As diversas formas de memória e de narração de si, em suas múltiplas linguagens, e por meio de variadas tecnologias” (Jesus, 2020, p. 624).

Neste caminho, utilizamos diversas ferramentas ao longo do processo de pesquisa que valorizaram os espaços das vivências, da alteridade, do encontro e do diálogo. A primeira foi o diário de campo, em que foram registradas as visitas à casa de Guayumi na aldeia onde reside, assim como os encontros pela cidade e na casa da primeira autora desse artigo, além das afetações e sentimentos que emergiram do contato constante por meio do WhatsApp. A segunda foi uma entrevista aberta, com a liberdade de se livrar de formulações prefixadas para realizar intervenções e fazer perguntas que abram o campo de explanação da parceira de pesquisa, aprofundando o nível de informações sobre sua história de vida. Ainda, um passeio pelo acervo de memórias fotográficas e produções desta mulher, com o objetivo de rememorar o que porventura tenha sido esquecido.

Por meio dessas ferramentas foram tecidas narrativas políticas, uma delas será apresentada na próxima seção deste artigo, buscando abarcar as percepções sobre o corpo-território, o processo de autorreconhecimento e seus efeitos na vivência como mulher indígena da participante-pesquisadora Guayumi. Importante ressaltar que as narrativas foram tecidas por mim (primeira autora), no entanto, lidas e modificadas após a leitura de Guayumi.

3 Guayumi: beija-flor ou caranguejo?

O Rio Grande do Norte é terra Indígena! E Guayumi é filha desse solo. Potiguar, potiguara. Nascida em Natal, descendente das águas, filha de mãe marisqueira e pai pescador. Por incrível que pareça, na hora de ser batizada com seu nome indígena, o parente que lhe presenteou com o nome errou uma letra, e o que era para significar beija-flor, virou caranguejo. Ambos a definem bem.

Doce infância vivida nas idas e vindas a Pitangui, no encontro do rio com o mar, ainda ali catou as primeiras pistas de sua ancestralidade, ouvindo o som das conchas que seu tio Zezeu trazia. As memórias do pirulito puxa-puxa, do circo, do avô lavando o barco, dos tios pescando, do cheiro de peixe, de estar no mato colhendo frutas são as memórias que guarda da infância. Apesar das marcas vivenciadas em um lar onde a violência do pai contra mãe marcou sua meninez e juventude em Natal. Pitangui era seu refúgio que acalmara a dor e o medo.

Violências que deixaram marcas que perduraram em seu modo de viver por anos e ainda são memórias vívidas. Na adolescência e juventude trabalhou como babá e faxineira. Até conseguir um emprego em uma loja de materiais de construção, onde Rosinha, patroa e amiga, lhe ensinou muito: a falar bem com as pessoas, a usar o computador. Na igreja se sentia acolhida. Aos poucos os sentimentos gerados pela violência, o sentimento de que a vida não vale a pena ser vivida foi se transformando.

Mesmo o território não sendo reconhecido como indígena, as histórias dos caboclos brabos de Pitangui, são os primeiros ensinamentos de seus mais velhos. Faz parte do tronco dos “Capim2” no munícipio de Extremoz, onde viveu e vive em conexão com o espírito do território.

“Eu sou essas pessoas” (Guayumi, entrevista aberta, março de 2022). Esse foi o sentimento que Guayumi teve ao ver as parentes falando na I assembleia de Juventude Indígena do Rio Grande do Norte, que aconteceu no munícipio de João Câmara em outubro de 2012. Esse foi o seu despertar para o caminho de volta, para perseguir sua história. Em seguida, passou a visitar o Catu. Até que no dia 8 de março de 2013, Dia Internacional da Mulher, largou o emprego em Natal e se mudou. Não tinha onde viver no Catu. Mesmo com toda dificuldade alugou uma casinha em Canguaretama, um dos dois munícipios onde fica o território potiguara, e foi viver próximo ao território onde sente pertencer.

Estar ali não era fácil, vivendo em um quarto alugado sem banheiro, passava três ou quatro dias na casa de parentes no território indígena. Para se sustentar fazia bazares e vendeu algumas de suas coisas. Além disso, aprendeu logo a prática do artesanato com um dos parentes, o que também a ajudava na renda. Conta que no início imaginava passar só um tempo por lá, se não se adaptasse voltaria pra Pitangui, pois não se sentia conformada, confortável de voltar para Natal, apesar de também não ter condições de pagar as contas sozinha de uma casa em Pitangui.

A sensação de pertencimento foi o que mais mexeu com sua cabeça. Como se identificou com as pessoas e elas se identificaram de volta. A linha amarrada no pau, as bacias de cunha. Era como se já conhecesse tudo aquilo. Esse pertencimento e conhecimento ancestral, que está no sangue, nas memórias do povo indígena não é algo que se possa explicar: “Tem coisas que por mais que você queira escrever, você não vai achar explicação. Você pode até achar alguma referência, mas são coisas que a gente tem que viver. Acredito que isso vai além da academia. Vai além desse formato quadrado, branco” (Guayumi, entrevista aberta, março de 2022).

Em uma de suas visitas ao Catu, morando ainda em Canguaretama, conheceu na lida, fazendo beiju, a mãe que viria a lhe adotar. “Aí eu ajudava a ralar o coco e ela brincando comigo foi pegando um carinho, uma preocupação. Me via as vezes triste ou alegre e ela me oferecia alguma coisa, chamava para almoçar” (Guayumi, entrevista aberta, março de 2022). “Mainha” é como chama a parente que lhe adotou perante sua mãe de toda a vida. Para a surpresa de Guayumi, a afinidade foi tão intensa, que Mainha lhe deu um terreno, para que se mudasse de uma vez para o Catu. Então, em uma construção coletiva, sua casa foi levantada. Os irmãos adotivos ajudaram limpando o terreno e construindo os alicerces da casa; sua antiga patroa e amiga lhe deu os tijolos e as telhas; ganhou duas portas. Levantou sua casinha. Hoje é um lugar simples e acolhedor. Cheio de flores, plantas, ervas. Colorida. Habitada também por Carinho, seu xodó felino. No Catu, conta que não se sente mais no lugar de vítima, adquire força, se encontra.

Foi cursista no programa para mulheres em vulnerabilidade social do Instituto Federal do Rio Grande do Norte — “Mulheres Mil” — que lhe incentivou a voltar a estudar e, em 2017, começou sua graduação em Educação no Campo no mesmo local. Nesse meio tempo que vive na comunidade já é mestranda e professora de tupi, além de ter publicado seu próprio livro de poesias e seguir com o artesanato.

Apesar de ser evangélica é sincrética. Se sente aberta. E diz que depois do movimento indígena tem mais amigos. Se tornou uma pessoa mais acessível, que vive diversas emoções. “Eu não conhecia meu corpo e muitas outras coisas” (Guayumi, entrevista aberta, março de 2022). Guayumi conta como se sente mais livre e segura no meio dos parentes indígenas, até mesmo para professar sua fé em Jesus. A religião por muitos anos funcionou para ela como uma forma de dominação do colonizador. “O tratamento é diferente, se você tem cor, usa chinela, não está dentro de um carro, se você pensa diferente e questiona líderes. Mas se eu estou numa roda de toré, eu canto para o mesmo Deus e ele me visita” (Guayumi, entrevista aberta, março de 2022).

Ela se orgulha de que no movimento indígena não existe essa coisa de homem ou mulher, se a gente tá numa guerra é tudo igual, é tudo indígena. Uma mulher no movimento indígena é forte porque está acompanhada de um coletivo que lhe dá força. Segundo ela: “Sexo frágil nada, ela é frágil se estiver sozinha, se estiver com seu povo não é frágil nada” (Guayumi, entrevista aberta, março de 2022).

A participação em organizações coletivas de mulheres, tanto no grupo de mulheres que acontece na comunidade, quanto na ida para a primeira Marcha das Mulheres Indígenas, ocorrida na capital do país, em 2019, lhe abriu os olhos para os processos de violência vividos desde a infância.

Apesar de nascida em Natal, seu território é o Catu e Pitangui, estes são os territórios que compõe seu corpo-território, e é através destes territórios que ela afirma: “ancestralidade não dá para explicar em papel, é retorno à terra, a natureza, reverencia aos nossos antepassados, a referência somos nós, a voz é a nossa” (Guayumi, entrevista aberta, março de 2022).

4 Índia Mulher: corpo-território e autorreconhecimento

Segundo Grada Kilomba (2020), o racismo cotidiano é uma constelação de experiências de vida e não um evento único. O racismo é expresso no vocabulário, discursos, imagens, gestos, ações e olhares que colocam, neste caso, nós indígenas não só como “Outra/o” – a diferença contra qual o branco é medido — mas também como “outridade”, como a personificação dos aspectos reprimidos da sociedade branca. O Eu se torna o “Outro/a” da branquitude, e, portanto, lhe é negado o direito de existir como igual.

O racismo cotidiano estabelece uma dinâmica semelhante ao próprio colonialismo: uma pessoa é olhada, lhe é dirigida a palavra, ela é agredida, ferida e, finalmente, cerceada em fantasias brancas do que ela deveria ser (Kilomba, 2020). Tais experiências constroem a subjetividade das pessoas de cor que se sentem inferiores, instaurando a ferida colonial. Como podemos ver em um relato de Guayumi sobre sua vida antes da ida para o Catu:

Eu me sentia com medo, não tinha possibilidades, tinha um sentimento de sou inferior, não me sentia segura [...]. É meio difícil de falar isso porque a gente acaba denunciando, né. A gente sempre tem um tratamento diferente. Se você tem cor, se você andar de chinela havaiana, se você não está de carro. (Guayumi, entrevista aberta, março de 2022)

Compreendendo a categoria raça como uma invenção da modernidade (Quijano, 2005), as pessoas brancas são associadas a valores como beleza, inteligência, honestidade e as não brancas à feiura, instintividade, baixa inteligência. No mundo binário produzido pelo branco, tudo que ele avalia como ruim remete ao não branco, criando uma identidade contrastiva. O mundo colonial cria as sociedades selvagens para se afirmar civilizada. Portanto, há sempre uma íntima relação entre a inferiorização do colonizado e a superioridade do colonizador.

Assim, predominam as visões de que os povos indígenas foram vitimados pelos inúmeros massacres, extermínios e genocídios, provocados pelas invasões europeias em Pindorama. No entanto, ao longo de mais de 500 anos de colonização, os indígenas resistem. Longe de negar as inquestionáveis violências vividas, buscamos aqui repensar o lugar de povos derrotados, passivos e subjugados, pensando como foram e são elaboradas diversas estratégias de manutenção da vida desses povos, ampliando assim o conceito de resistência. Desta forma, propomos que apesar do apagamento histórico da identidade indígena pelos termos mestiços, pardos e caboclos (advindos da mestiçagem) esses também se configuraram enquanto estratégias de resistência à medida que preservaram práticas culturais, religiosas e modos de vida ligados à ancestralidade indígena.

É importante ressaltar que o que defendemos aqui é uma experiência mestiça e não as categorias raciais que surgem a partir daí (pardos, bugres, caboclos, mestiços). Tais categorias foram e são utilizadas como mecanismos coloniais de etnocídio do nosso povo. O discurso da mestiçagem tem um impacto específico contra nós indígenas, tendo em vista que é a partir dele que o Estado tenta invalidar o direito as nossas terras (Longhini, 2021)

Gloria Anzaldúa (2005) nos traz o dilema destas raças híbridas com o questionamento: “a que coletividade pertence a filha de uma mãe de pele escura?” (Anzaldúa, 2005, p. 705). Nascendo em uma cultura, posicionada entre duas ou mais culturas, vivendo na fronteira, esse é o dilema de la mestiza, em que podemos posicionar Guayumi. O encontro dessas estruturas incompatíveis gera uma colisão cultural. Para fugir desse conflito, Glória Anzaldúa (2005) propõe que ao perceber informações e pensamentos conflitantes não se pode manter hábitos e padrões de comportamento arraigados, deve-se se manter flexível. Deve-se desviar do pensamento convencional (modo ocidental) para um pensamento divergente. Um movimento que se afasta de padrões e objetivos pré-estabelecidos, rumo à uma perspectiva mais ampla, que inclui em vez de excluir.

O encontro cultural na mestiza não se trata da simples junção de pedaços partidos ou separados, muito menos de um equilíbrio entre forças opostas. Ao tentar elaborar uma síntese, o self adiciona um terceiro elemento, maior que a soma das duas partes separadas. Então surge uma nova consciência, uma consciência mestiça, que é fonte de dor intensa, mas também de um movimento de criação que segue quebrando o valor unitário de cada paradigma (Anzaldúa, 2005). Assim, a fronteira se constitui como mais do que um lugar conflituoso de identidade cultural, pois é espaço que divide, une e cria.

Porque eu, uma mestiza,

continuamente saio de uma cultura

para outra,

porque estou em todas as culturas ao mesmo tempo,

porque eu estou em todas as culturas ao mesmo tempo,

alma entre dos mundos, tres, cuatro,

me zumba la cabeza con lo contradictorio.

Estoy norteada por todas las voces que me hablan

Simultaneamente. (Anzaldúa, 2005, p. 704)

Silvia Cusicanqui (2013) no contexto boliviano propõe o termo ch’ixi, o qual seria aquele/aquela/aquelo que transita entre lugares, obedecendo a ideia aymará de algo que é e não é ao mesmo tempo, que reconhece sua dupla origem, o que ela denomina a lógica do terceiro incluído. “Es ese gris jaspeado resultante de la mezcla imperceptible del blanco y el negro, que se confunden para la percepción sin nunca mezclarse del todo” (Cusicanqui, 2013, p. 69). No entanto, essa noção não sintetiza a mistura de dois diferentes em um hibrido harmônico, o que propõe é equivalente à uma sociedade variada, e eleva a convivência em paralelo de múltiplas diferenças culturais que não se fundem, mas se antagonizam ou complementam. O que se encontra com a ideia de Glória Anzaldúa de la mestiza:

A uma determinada altura, no nosso caminho rumo a uma nova consciência, teremos que deixar a margem oposta, com o corte entre os dois combatentes mortais cicatrizado de alguma forma, a fim de que estejamos nas duas margens ao mesmo tempo e, ao mesmo tempo, enxergar tudo com olhos de serpente e de águia. (Anzaldúa, 2005, p. 705)

“A potência do indiferenciado é que ele conjuga opostos” (Cusicanqui, 2013, p. 70). Guayumi conjuga opostos. Filha de mãe marisqueira descendente de caboclos, com um avô que não queria saber “dessa história de embranquecer a família” (Guayumi, entrevista aberta, março de 2022), seu pai homem branco, pescador, que mesmo negando as raízes indígenas e afirmando seus antepassados brancos, vive em um território permeado de ancestralidade indígena. No mais, ela cresce imersa na colonialidade do ser/ saber/ poder, como todas nós. Apesar de desde a infância viver rodeada dos símbolos e signos de sua ancestralidade, é criada apartada de seu povo.

Já mulher, desperta para ancestralidade, retorna para o seu povo. Sustentando em si o lugar do terceiro incluído. Afirma que os lugares onde se sente pertencente são o Catu e Pitangui, apesar de nascida e criada em Ponta Negra. Nesse trânsito entre lugares traz a possibilidade de descolonização dos nossos gestos, dos nossos atos e da linguagem com que nomeamos o mundo, ao transitar entre modos de vida que se combinam entre si, mas nunca se confundem. Não deixando de ser uma, nem outra, tornando-se diferente. Não deixando de ter uma ou outra identidade, mas constituindo uma nova, que se configura como forma de resistência. Se construindo como mulher indígena na fronteira, como nos diz Rita Segato (2021):

Há um entre-mundo da mestiçagem como branqueamento, construído ideologicamente como o sequestro do sangue não branco na “brancura” e sua cooptação no processo de diluição progressiva do rastro negro e indígena no mundo criollo, miscigenado embranquecido do continente. Inversamente, há um entre-mundo da mestiçagem como enegrecimento, construído com o aporte do sangue branco ao sangue não branco, no processo de reconstrução do mundo indígena e afrodescendente, colaborando, assim, com o processo de sua reconstituição demográfica. (Segato, 2021, p. 97)

Reconstituição não só demográfica, diríamos, mas de modos de vida, cosmologias, etnicidades e projetos históricos e societários. Geni Longhini (2021) ressalta a especificidade da luta indígena no entrelace da raça com a etnia. Já que a identidade étnica é central para a luta antirracista “somos indígenas justamente por pertencer à determinado povo” (Longhini, 2021, p. 68).

A sensação de pertencimento que Guayumi afirma sentir vem da identificação de um passado comum, da sua raiz cabocla, potiguara de Pitangui com o povo do Catu. Segundo Rita Segato (2021) um povo é um coletivo que se percebe advindo de um passado comum e dirigindo-se a um futuro comum, é uma trama que não dispensa conflitos de interesses e antagonismos de sensibilidades éticas e posições políticas, mas que compartilha uma história. A autora critica ainda a ideia de cultura propondo a utilização do termo “um povo”, sendo esse sujeito vivo de uma história particular em meio a articulações e trocas que projetam uma “inter-historicidade”. O que identificaria esse sujeito coletivo não seria uma herança cultural estável e sim essa autopercepção em relação a historicidade apesar de conflitos internos.

Para participante-pesquisadora Guayumi “ancestralidade é o direito de se pertencer a um grupo. Essa identidade que é muito intima. Não importa o que um de fora diga. Eu pertenço ao Catu” (Guayumi, entrevista aberta, março de 2022). Desta forma, ela faz parte desse povo, desse sujeito, à medida que se autopercebe dentro da ancestralidade que faz parte da historicidade dos Eleotérios do Catu.

Essa identificação ancestral não representou uma construção de vítima de preconceito e racismo. O que retratamos aqui é uma nova consciência de enunciação subalterna que começa com a consciência de povo, étnico/racial, salta para uma profunda consciência do território, e para uma profunda ancestralidade indígena. Identidade e pertencimento étnico não são conceitos estáticos e imutáveis, mas processos dinâmicos e sociais.

O grupo étnico, povo ou etnia é uma categoria de indivíduos que se identificam entre si, usualmente tendo como base uma genealogia ou ancestralidade compartilhada (Gonzaga, 2021). Podemos notar essa pertença em diversos pontos da narrativa. Quando Guayumi se identifica com o chão, com o povo, com o território e vê que os parentes se identificam de volta. Ao ser adotada por sua Mainha índia e ser presenteada com seu pedaço de chão. Podemos ver essa identificação também no seguinte trecho:

Eu lembro até que Wellignton estava fazendo minha carta de reconhecimento pro mestrado. Aí eu disse Wellington como você me via antes? Ele foi bem sincero, ele disse que quando chega alguém no Catu nem ele nem a família dele acredita muito na pessoa, fica observando, o que a pessoa vai fazer ali. Isso é normal da gente. Hoje eu também sou do mesmo jeito. Sou muito desconfiada, acho o Cacique mais aberto do que eu, ele é bem diplomático. Eu recebo muito bem, eu sou hospitaleira. Mas eu vi que sou assim desconfiada. Porque avô, avó e mãe são assim. Como a gente é parecido com essa identificação do povo potyguara. (Guayumi, entrevista aberta, março de 2022)

A questão da identidade indígena é complexa, já que diz de processos subjetivos e também coletivos. No entanto, ao contrário do que temos dado por identidade, como algo estático, típico da modernidade, a identidade é muito mais um fluxo, movimento e transformação. Assim, como Guayumi é constituída de diversas referências, os povos indígenas também o são e seguem em constante transformação. Afinal, todas nós fazemos parte desse organismo vivo que é a terra, somos este corpo-território.

Os caboclos, pardos e mestiços são então formas de resistência à medida que a manutenção da existência de muitos de nós só foi possível ao viver sob essas categorias. No entanto, muitos de nós estamos fazendo o caminho de volta e criando identidades indígenas diversas a partir do acolhimento de nossos povos.

É importante ressaltar a importância da construção identitária para povos indígenas, pois necessitamos da manutenção de elementos específicos para perpetuar a nossa existência enquanto grupo. Contudo, não se trata da defesa de certa essência cultural, mas de percebê-la também pelos elementos que foram mesclados ao longo dos anos, se reinventando constantemente, inclusive no contato com o entorno.

Percebemos, assim, os processos identitários como atos políticos. Segundo Manuela Cunha (1986), a etnicidade pode ser compreendida enquanto linguagem, uma vez que a cultura desses grupos é constantemente reinventada, recomposta e investida de novos significados, assim como está sempre se comunicando dentro e fora de si mesma; e, como manifestação política no sentido em que existe num meio mais amplo.

O caminho de volta é uma jornada que aspira transitar por várias regiões e espaços, sejam eles geográficos ou de conhecimentos, em busca de uma conscientização social mais ampla, revitalizando os costumes a partir de uma atuação política.

Nos últimos anos há um florescimento de novas identidades e um fortalecimento das existentes. Muitos e muitas parentes trilhando seus caminhos de volta, outros e outras se afirmando enquanto indígenas em contexto urbano. Tal fortalecimento é expresso na organização de movimentos políticos, a exemplo das últimas manifestações contra o Marco Temporal em Brasília, em que milhares de indígenas de mais de 107 etnias foram lutar pelos seus territórios. As mulheres são protagonistas neste movimento ao defender seu corpo-território, pois este constitui a identidade indígena, seus modos de vida, as tradições e a história dos seus povos.

5 Considerações finais

A participante-pesquisadora Guayumi conviveu com as “‘manias de caboco’ mesmo sufocada pela confusão urbana”, como diz Eliane Potiguara (2004, p. 87). Suas idas e vindas em Pitangui foram os primeiros contatos com os costumes ancestrais que, ao contrário do que a colonização nos diz, não desapareceram. Segundo Eliane Potiguara (2004):

O nosso cérebro, fisicamente, guarda espaços e tradições jamais alcançados. É preciso lembrar, despertar da escuridão mental e espiritual e deixar fluir o inconsciente coletivo para que ele flutue nos mares da consciência, que é quem dá a tônica da vida. É preciso uma força extraordinária para resgatar os conceitos e princípios da ancestralidade que cada um tem dentro de si. É ética. É princípio. É busca, inclusive, da paz que vai se somar à construção da corrente do amor e da ética. Mas só da conscientização de quem somos nós, como povos indígenas ou oriundos de outras raízes, é que brotará uma percepção, reveladora da riqueza, da preciosidade que existe adormecida na vastidão das mentes, dos corações e dos espíritos. (p. 90)

É esse fluir que corre nas veias de Guayumi. “Um ser de profundas raízes no universo feminino, aquática natureza em constante mutação” (Potiguara, 2004, p. 11) — essa descrição feita por Ailton Krenak sobre Eliane Potiguara descreve também Guayumi: uma vida atravessada por territórios marcados pela água, que podemos dizer sua primeira ancestral, seu corpo-território. O Poema de autoria da participante-pesquisadora Guayumi, “Rio Katu”, um rio vivo (Costa, 2021), exemplifica bem:

Rio que corre com rumo

Corrente viajante pelo mundo.

Rio sabão, rio que conheci.

Quem me dera ainda

fosse sua única poluição

Como dói dentro de mim ver meu rio doce

Desprezado, sufocado. Tão pouco posso fazer eu

Doce rio que cuida de mim.

Ah, agora te dou adeus, siga seu caminho.

Diga ao mar que lhe mando um abraço. (Costa, 2021, p. 28)

O corpo como primeiro território de luta, resistência e afirmação da identidade. Para Lorena Cabnal (2010), a íntima aliança corpo-território-terra se manifesta no que ela denomina “recuperación y defensa histórica de mi territorio cuerpo tierra”, assumindo “la recuperación de mi cuerpo expropiado, para generarle vida, alegría vitalidad, placeres y construcción de saberes liberadores para la toma de decisiones” (Cabnal, 2010, p. 23). Essa potência se junta com a defesa do “território terra”, pois não é possível conceber o corpo de mulher sem um espaço na terra que dignifique e promova a vida em sua plenitude.

O corpo-território como identidade é revelador da importância do território da aldeia para a vida, como resistência contra tantas ameaças e violências que os povos originários vêm historicamente sofrendo. Segundo Rogério Haesbaert (2020),

Uma concepção decolonial, complexa e não dualista, de “corpo” brota de uma noção de corporeidade em toda a sua multiplicidade (o que inclui não apenas a condição de gênero, raça e faixa etária, mas os distintos papéis de seus diferentes órgãos — como o útero, no caso das mulheres) e na conjugação entre corpo individual e corpo social. (Haesbaert, 2020, p. 87)

Trata-se de uma relação indissociável de seus corpos com o espaço de vida cotidiana, rompendo mais uma vez com a dicotomia entre materialidade e espiritualidade, natureza e sociedade, corpo e espírito. Pois a concepção de corpo/corporeidade incutida nesses territórios-corpo é também moldada por conteúdos simbólicos/ espirituais (Haesbaert, 2020).

A identidade indígena não é homogênea, é singular e diversa, tanto quanto são as etnias, tanto quanto são nossos corpos-territórios. Assim, a retomada identitária é um repovoamento do próprio corpo-território à medida que ser indígena é lutar, é resistir, e a primeira luta das mulheres é pelo próprio corpo. Vemos isso no correr da história de Guayumi à medida que ela se corporifica em sua identidade como indígena e como mulher.

Ao assumir tal identidade, o corpo-território (índia mulher) integra um corpo coletivo, como continuidade política, produtiva e epistêmica, o que implica a impossibilidade de recortar ou isolar o corpo individual de um corpo coletivo, e o próprio corpo humano do território e da paisagem (Gago, 2020). É o exercício ativo de uma identidade em política, onde se alcança o direito a igualdade e a diferença. Fazer parte do todo o coletivo, com todas as suas singularidades. É assim que a vida de Guayumi se transforma, ganha causa e ideais que lhe dão sustentação. Como podemos ver na sua poesia “Índia Mulher” (Costa, 2021) com a qual encerramos este artigo:

Silenciosa,

Muitas vezes só se ouve o barulho de seus pés. Que jeitosa!

Do bater de um pilão, no gemido de quem irá trazer mais um filho de Tupã.

Onde está aquela índia pega na mata?

Cobriram-na história.

E sempre uma repetida canção.

Daquela que nem é negra, nem branca,

A chamam de parda!

Escondida na mata fechada,

No mangue, também encharcada.

Sua história acabou num rio de sangue.

E agora você me conhece?

Não sou índia pra você, porque agora estou vestida, sem vergonha e meu falar é poesia. Ou será...

Porque estou escondida no olhar de quem me ignora, no desdenho do seu preconceito.

Não, não me olhe achando defeito.

Só lhe digo uma coisa.

Sou livre, sou mulher, sou índia!

Não mendigo seu respeito. (Costa, 2021, p. 28)

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