Ofensivas capacitistas e o medo de um planeta aleijado: desafios para o ativismo defiça

Ableist offensives and the fear of a crippled planet: challenges for disability activism

  • Marivete Gesser
  • Marcia Oliveira Moraes
O objetivo deste artigo é definir as ofensivas capacitistas que reiteram o capacitismo historicamente vivenciado pelas pessoas com deficiência e ameaçam os direitos por elas conquistados. Afirmamos que há relações entre o capacitismo, a eugenia, e as políticas neoliberais e que essas relações constituem as ofensivas capacitistas. Apresentamos algumas materialidades das ofensivas capacitistas referentes aos ataques ocorridos no período entre 2019 e 2022 aos direitos conquistados pelas pessoas com deficiência. Em seguida, contextualizaremos brevemente as ofensivas antigênero, estabelecendo relações entre elas e as ofensivas capacitistas. Na sequência, abordamos a questão da eugenia, que tem sido um importante pilar tanto das ofensivas capacitistas como das ofensivas antigênero. Integrando os tópicos anteriores, conceituamos as ofensivas capacitistas e suas relações com o neoliberalismo e com o medo de um planeta aleijado. Encerramos com alguns pressupostos ético-políticos para o fortalecimento da luta anticapacitista pelo ativismo defiça na direção da construção de um planeta aleijado.
    Palavras chave:
  • Ofensivas capacitistas
  • Capacitismo
  • Eugenia
  • Pessoas com deficiência
The purpose of this article is to define the ableist offensives, which reiterate the ableism historically experienced by people with disabilities and threaten the rights conquered by them. We affirm that there are relationships between ableism, eugenics, and neoliberal policies and that these relationships constitute the ableist offensives. We present some materialities of the ableist offensives referring to the attacks that took place in the period between 2019 and 2022 to the rights conquered by people with disabilities. Then, we will briefly contextualize the anti-gender offensives, establishing relationships between them and the ableist offensives. Subsequently, we address the issue of eugenics, which has been an important pillar of both ableist and anti-gender offensives. Based on these arguments, we conceptualize the ableist offensives and their relationship with neoliberalism and the fear of a crippled planet. Finally, we present some ethical-political assumptions for the strengthening of anti-ableist struggle for disability activism towards the construction of a crippled planet.
    Keywords:
  • Ableist offensives
  • Ableism
  • Eugenics
  • Disabled Persons

1 Introdução

Dedicamos este texto à Adriana Dias (in memoriam) pelo ativismo defiça, pela relevante produção no campo dos estudos da deficiência, em particular, as articulações entre eugenia, neonazismo e capacitismo. Adriana Dias, presente! Hoje e sempre!

O Brasil, do ponto de vista legal, após ter incorporado a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência — CDPD (Decreto Legislativo n. 186/2008, 2008) à Constituição Brasileira de 88, e de ter aprovado a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência — LBI (Lei n. 13.146, 2015), tem uma das mais completas e avançadas legislações do mundo no que se refere aos direitos das pessoas com deficiência. Essa legislação proíbe qualquer forma de discriminação às pessoas com deficiência e apresenta uma ênfase na remoção das barreiras para que elas possam ter acesso em igualdade de condições à educação inclusiva, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à assistência e à convivência comunitária. Também desafia as políticas públicas e a sociedade em geral a romper com a discriminação por motivo de deficiência e construir uma sociedade inclusiva para todas as pessoas com deficiências físicas, sensoriais, intelectuais e psicossociais.

Todavia, a partir de uma leitura de acontecimentos ocorridos no período entre 2019 e 2022 em relação ao tema da deficiência no Brasil, temos identificado inúmeras tentativas de retiradas de direitos recentemente conquistados pelas pessoas com deficiência. Trata-se de ofensivas fortemente baseadas no neoliberalismo e que podem produzir como efeitos retrocessos aos direitos já conquistados, segregação e fortalecimento da deficiência como uma condição de abjeção (Butler 1993/2019)1. A partir do conhecimento produzido no Brasil acerca das ofensivas antigênero por autores como Rogério Junqueira (2018), Marco Prado e Sonia Correa (2018), Luanna Silva (2019) e Lilian Sales (2021), é possível identificar fortes relações entre o modo como essas ofensivas vêm sendo reproduzidas e o cenário atual relativo a tentativas de desmantelar os direitos historicamente conquistados com muita luta por parte das pessoas com deficiência no Brasil2. Assim, a análise das ofensivas antigênero é importante para complexificar o entendimento sobre o cenário relativo à deficiência que, no Brasil, também sofreu ofensivas fortemente marcadas pelo capacitismo, as quais nomeamos de ofensivas capacitistas.

Neste texto, definimos capacitismo com base em autoras e autores do campo dos estudos da deficiência, entre os quais Fiona Campbell (2009), Adriana Dias (2013), Anahí Guedes de Mello (2016) e Gregor Wolbring (2008). Dias (2013) estudou a genealogia do capacitismo, estabelecendo relações dessa categoria com o eugenismo do século XIX, passando pelo nazismo até os dias atuais. A autora destaca que o capacitismo é um modo de organização social e política dos corpos segundo suas funcionalidades e capacidades. Campbell (2009) afirma que pessoas com deficiência são lidas socialmente como incapazes e não aptas com base em uma concepção de corpo capaz tomada como norma.

Mello (2016) destaca que o capacitismo se materializada através de atitudes preconceituosas que hierarquizam sujeitos em função da adequação de seus corpos a um ideal de beleza e capacidade funcional, coadunando com o pensamento de Rosemarie Garland-Thomson (2002) sobre a existência de uma política da aparência que marginaliza aqueles corpos que não conseguem performá-la. Wolbring (2008) ainda aponta que o capacitismo é socialmente aceito e dificilmente questionado, pois é considerado como sinônimo de progresso da sociedade, em consonância com o pensamento neoliberal.

O capacitismo produz o medo de um planeta aleijado, no qual as corporalidades seriam acolhidas na sua multiplicidade. Marco Gavério (2015) aponta, tomando como base Michael Warner3, Robert McRuer e Judith Butler, que há um medo tanto de uma sexualidade não heterossexual, como também de um planeta aleijado, em que haja corpos que não reiterem a capacidade compulsória. O autor constrói seus argumentos tendo como base a teoria crip, que vem sendo traduzida por autores como Anahí Guedes de Mello e Marco Gavério (2019) como teoria aleijada4, com a finalidade de reiterar o aspecto de repulsa e abjeção que permeou a entrada desta teoria na academia. As considerações de Gavério indicam que esse medo se mantém pelo fato de o ideal de capacidade presente nos contextos socioculturais ser algo que não é possível se atingir na sua totalidade, havendo a necessidade de que ele seja reiterado como algo natural. Essa reiteração ocorre por meio da consideração de “certas normas corponormativas, como ver com os olhos, escutar com os ouvidos ou andar com as pernas [...] como constantes naturais e universais de como um corpo deveria ser” (Gavério 2015, p. 114). O autor finaliza indicando que corpos não normativos e suas interações no espaço social, muitas vezes, materializam uma ansiedade vivida e experimentada como sofrimento. Tal ansiedade está relacionada tanto às “fragilidades” e “incoerências” com padrões de capacidade e funcionalidade, como também à ameaça de desestabilização do binarismo capaz/deficiente, produzida por aqueles corpos que não seguem as normas corporais naturalizadas como a forma correta de estar no mundo.

O neoliberalismo é um sistema econômico e cultural que se beneficia do capacitismo, à medida que a lógica capacitista situa a deficiência como um problema individual (no máximo familiar) e do âmbito privado. O neoliberalismo, segundo McRuer (2006/2021a), parte do pressuposto de que o mercado dispõe das melhores soluções para os serviços de que a população necessita, levando a um encolhimento das funções do Estado na oferta de serviços por meio de políticas públicas sob o argumento de que esses devem ser obtidos no âmbito privado, adquiridos e/ou propiciados pelas famílias. Assim, “como o neoliberalismo depende de soluções privadas para todos os problemas, ‘a família’ assume um papel cada vez mais importante enquanto provedora de bens e serviços, como o trabalho de cuidar dos mais jovens ou velhos” (McRuer 2006/2021a, p. 110). Dessa forma, a partir da lógica neoliberal, a família deve prover os cuidados necessários às pessoas com deficiência.

Em consonância com o que foi proposto por Marivete Gesser et al. (2020), defendemos a necessidade de uma perspectiva emancipatória e anticapacitista da deficiência. Esta incorpora os princípios da investigação emancipatória propostos por Mike Oliver (1992), do pesquisar COM e não sobre as pessoas com deficiência (Moraes 2010; 2022), como também considera a interseccionalidade da deficiência com outros marcadores sociais da opressão tais como gênero, raça, sexualidade, classe social, idade e região.

O objetivo deste texto é o de definir as ofensivas capacitistas que vêm sendo (re)produzidas no cenário brasileiro, especialmente nos últimos anos (entre 2019 e 2022). Delimitamos este período pelo fato de termos identificado muitos ataques em diferentes âmbitos das políticas públicas voltadas à garantia dos direitos às pessoas com deficiência, sendo que alguns deles foram justificados com argumentos explicitamente capacitistas por parte de algumas lideranças do governo, como veremos no próximo tópico. Para tanto, partimos do pressuposto de que há relações entre o capacitismo, a eugenia, e as políticas neoliberais, e de que essas relações constituem o que chamaremos aqui de ofensivas capacitistas. Entendemos que a eugenia é basilar do modo como o capacitismo se expressa na atualidade e se manifesta pelo medo de um planeta aleijado. Os governos neoliberais se beneficiam do capacitismo, uma vez que esse, ao circunscrever a deficiência como um problema individual (físico, sensorial, psicossocial ou intelectual), demanda que a pessoa com deficiência e suas famílias busquem no mercado terapias e insumos (órteses e próteses) para a correção do corpo e garantia da acessibilidade. Assim, diminui-se a responsabilidade do Estado no que se refere à construção de políticas sociais voltadas à inclusão.

Na próxima seção do texto, apresentaremos algumas materialidades5 (Law e Mol, 1995) das ofensivas capacitistas referentes aos ataques perpetrados aos direitos conquistados pelas pessoas com deficiência a partir da inserção de um governo ultraconservador e neoliberal. Em seguida, visando melhor compreender esse cenário, faremos uma breve contextualização das ofensivas antigênero, estabelecendo relações entre elas e as ofensivas capacitistas. Após, abordaremos a questão da eugenia, que tem sido um importante pilar tanto das ofensivas capacitistas como das ofensivas antigênero. Na sequência, conceituaremos as ofensivas capacitistas e suas relações com o neoliberalismo e com o medo de um planeta aleijado. Por fim, apresentaremos alguns pressupostos ético-políticos para o fortalecimento da luta anticapacitista e para a construção de um planeta aleijado.

2 Direitos das Pessoas com Deficiência Sob Ataque: Uma Análise Preliminar

No Brasil, as ofensivas capacitistas podem ser evidenciadas por meio de tentativas de desmantelar diversos direitos conquistados pelas pessoas com deficiência a partir da luta política desse grupo social. Essas ofensivas precisam ser situadas em um cenário mais amplo, em que outros grupos sociais vulneráveis também têm sofrido ataques no que se refere aos direitos anteriormente conquistados, tal como pessoas indígenas, população LGBTQIA+, pessoas negras, idosos etc. No que se refere especificamente à deficiência, é possível identificar materialidades desses ataques em diversos âmbitos, sendo que, neste tópico, abordaremos a educação, a saúde mental e a participação em órgãos de controle social.

Uma das ofensivas sofridas pelas pessoas com deficiência a partir do ano de 2019 foi referente à extinção do Conade — Conselho Nacional de Direitos das Pessoas com Deficiência. Essa foi implementada por meio do Decreto n. 9.759, de 11 de abril de 2019, o qual tinha como propósito extinguir e estabelecer diretrizes, regras e limitações para colegiados da administração pública federal. Esse decreto não foi direcionado a um conselho específico, mas aplicado a todos aqueles instituídos por: “I - decreto, incluídos aqueles mencionados em leis nas quais não conste a indicação de suas competências ou dos membros que o compõem; II - ato normativo inferior a decreto; e III - ato de outro colegiado”. (Decreto n. 9.759, 2019). Assim, juntamente com o Conade, foram extintos importantes conselhos, como o ​​Conselho Nacional de Combate à Discriminação LGBT+ (CNCD LGBT+). No âmbito da deficiência, após intensa mobilização de ativistas defiças6 (Mello 2019) e pessoas participantes da luta anticapacitista, o Conade foi mantido.

Na educação, sob a narrativa de que o ensino domiciliar (homeschooling) é a melhor alternativa para crianças com deficiência, os ministérios da Educação e da Mulher, Família e Direitos Humanos defenderam esse modelo de ensino. Apesar de afirmarem que, caso regulamentada, a prática de ensino domiciliar seria permitida para todos os pais que “optassem”7 por ela, os órgãos do governo utilizaram argumentos relacionados às pessoas com deficiência para sensibilizar os congressistas a apoiarem a proposta que estava em tramitação na Câmara dos Deputados. A Ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos afirmou, em entrevista concedida ao programa Gaúcha Atualidade, em 12 de abril de 2019, que “tem criança com autismo que sofre mais indo para escola do que ficando em casa” (GZH, 2019). Ademais, sob o argumento capacitista de que crianças com deficiência e autismo “não estão se adaptando à escola” (GZH, 2019), a Ex-ministra declarou que pais querem que seus filhos estudem em casa. Suas falas evidenciam o capacitismo veiculado e reforçado pelo governo federal (gestão 2019-2022), uma vez que associam a deficiência ao sofrimento e não apresentam compromisso com o direito previsto na LBI e na CDPD de crianças com deficiência terem acesso à educação inclusiva.

Outra expressão das ofensivas capacitistas no âmbito da educação se refere ao decreto a respeito da Política Nacional de Educação Especial, publicado pelo governo Bolsonaro, em 30 de setembro de 2020 (Decreto n. 10.502), que, em dissonância com a CDPD e a LBI, permite que crianças com deficiência recebam educação segregada em escolas especiais (o mesmo foi objeto de muitas críticas, sendo suspenso por determinação do Superior Tribunal Federal e de revogação pelo governo que assumiu em 01 de janeiro de 2023). Afirmações proferidas pelo ministro da educação, no cargo no período entre julho de 2020 e março de 2022, de que alunos com deficiência “atrapalhavam o aprendizado” de outras crianças e de que há crianças com “um grau de deficiência que é impossível a convivência” (Alves 2021) podem ser ilustradas como exemplos de como as ofensivas capacitistas atuaram na gestão do governo federal. Ademais, no âmbito da educação, destaca-se a resposta do presidente da república Jair Bolsonaro, em 07 de janeiro de 2021 a uma apoiadora, de que uma educação inclusiva “nivela por baixo”, dando a entender que a presença de crianças com deficiência prejudica toda a turma8 (“PSOL pede providências…”, 2021).

As ofensivas aos direitos das pessoas com deficiência também podem ser observadas por meio das ações que o governo tentou orquestrar para o desmantelamento da política de saúde mental, mesmo com todas as contribuições dessa política para a oferta de cuidado qualificado para as pessoas com deficiências psicossociais. Em matéria publicada no site da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social [ABEPSS], 2021), em 08 de outubro, Fernanda Almeida, assistente social e professora de um programa de pós-graduação em serviço social e saúde, destaca que as políticas de saúde mental vêm sofrendo muitos ataques, os quais se intensificaram no governo que tomou posse a partir de 2019. Segundo ela:

[Neste governo] aprovaram uma nova política de saúde mental que na verdade é a representação da contrarreforma psiquiátrica. A modificação na Lei, estruturalmente, traz como principal marca de retrocesso o retorno de hospitais psiquiátricos, maior incremento de recursos para comunidades terapêuticas, principalmente para álcool e drogas, adolescentes internados junto com adultos. E técnicas que violam direitos humanos, como eletrochoque, voltam a fazer parte como possibilidade de indicação. As mudanças reatualizam a mercantilização da loucura. Tiram do centro do debate o tratamento em liberdade e em comunidade. É um retrocesso na luta por uma sociedade sem manicômios e em que a liberdade é terapêutica (ABEPSS, 2021, parágrafo 3).

Essa contrarreforma é definida por Mônica Nunes et al. (2019) como um processo sociopolítico e cultural complexo que evidencia uma correlação de forças e interesses que tensionam e até revertem as transformações produzidas pela Reforma Psiquiátrica nas dimensões epistemológica, técnico-assistencial, político-jurídica e sociocultural. Note-se que, aqui, há uma articulação importante a ser feita: os ataques aos princípios da Reforma Psiquiátrica brasileira caminham na direção da lógica da segregação. A direção manicomial é segregacionista tanto quanto o são as ofensivas capacitistas dirigidas às pessoas com deficiência e aos marcos legais que, desde a Constituição Federal, são garantias de direitos. Se, por um lado, a luta antimanicomial que fundamenta a Reforma Psiquiátrica é uma luta anticapacitista, por outro, o movimento político das pessoas com deficiência é também um movimento antimanicomial. O que está em jogo nestes movimentos políticos é um outro projeto de sociedade, democrático, inclusivo, diverso e não segregacionista.

As pessoas com deficiência têm se organizado e realizado coalizões com ativistas da luta anticapacitista, o que tem sido fundamental para barrar em grande parte as ofensivas. O fato de a CDPD ter sido incorporada à Constituição Brasileira de 1988 como emenda constitucional dificulta o avanço das ofensivas capacitistas no que se refere aos ataques aos direitos da pessoa com deficiência, pois a maior parte deles só pode ser derrubada com uma nova constituição. Todavia, há necessidade de se investigar mais acerca dos efeitos das ofensivas capacitistas na vida das pessoas com deficiência e nas concepções de deficiência da população em geral.

A este respeito, Ligia Amaral (1995) sinalizava a importância de que a deficiência seja um tema central nas ciências humanas. Isso porque, como dissemos, as concepções de deficiência e de capacidade que constituem nossas relações sociais são também modos como subjetivamos a deficiência. Assim, as ofensivas capacitistas reiteram e realimentam a corponormatividade, performando repetidamente afetos de abjeção aos corpos que desviam da norma. Levando mais longe esta afirmação, lembramos que os autores estudiosos das políticas eugênicas implementadas por governos de extrema direita, como o de Adolf Hitler, na Alemanha, durante o nazismo, mostram que as narrativas sobre a deficiência são materializadas na produção de formas de se relacionar com esse grupo social (Lifton 1986; Dias 2013). Ou seja, estabelecendo um diálogo com Judith Butler (2009/2015; 1993/2019), pode-se afirmar que os enquadramentos político-sociais acerca da deficiência produzem a leitura dessa experiência como humanamente impensável. Esse ponto será retomado quando discutirmos acerca da eugenia.

3 Aproximações entre as ofensivas antigênero e as ofensivas capacitistas

As discussões sobre as ofensivas antigênero oferecem importantes contribuições para qualificar as análises desse fenômeno no campo da deficiência. Assim, buscaremos estabelecer algumas aproximações entre as ofensivas antigênero e as ofensivas capacitistas.

A literatura sobre as ofensivas antigênero indica que, embora elas tenham surgido inicialmente com um caráter ultraconservador (em defesa da família tradicional, contra as expressões de sexualidade não heterossexuais e ao avanço do feminismo e dos direitos das mulheres que são entendidos como uma ameaça à família), atualmente, elas vêm ganhando um caráter ultraliberal, sendo apropriadas pela (extrema) direita com a finalidade de desmantelar políticas públicas, atuando mais fortemente na educação (Associação Brasileira de Psicologia Política 2021; Sales 2021; Silva 2019). Sob o sintagma “ideologia de gênero”, as ofensivas antigênero têm como fundamento a narrativa de que o avanço dos direitos das mulheres e população LGBTQIA+ vai arruinar a família e a sociedade (Lionço et al. 2018).

As ofensivas antigênero buscam produzir um pânico moral, relacionado às sexualidades desviantes da cisheteronorma (Junqueira 2018) e à emancipação das mulheres a partir da garantia dos seus direitos, já que esses elementos são lidos como ameaças à família tradicional. As ofensivas capacitistas — fundamentadas em um ideal normativo de corporalidade — são mantidas devido ao que o pesquisador Marco Gavério (2015) chama de medo de um planeta aleijado. A partir das colocações de McRuer (2006/2021b) e Alison Kafer (2013), ​​entendemos que, neste planeta, a deficiência é não somente aceita, mas está presente em todos os espaços sociais e é considerada como uma das muitas possibilidades de estar no mundo.

Além disso, ambas as ofensivas (antigênero e capacitista) são pautadas em um sujeito universal — representado pelo homem branco, jovem, cisheterossexual, sem deficiência, totalmente independente e capaz. Há uma compreensão de que somente uma família tradicional (constituída por pai, mãe e filhos), e capaz (com pais plenamente aptos para exercer os cuidados de forma autônoma e zelar pelo pleno desenvolvimento dos filhos) oferece condições de que esse sujeito se desenvolva de forma mais exitosa do ponto de vista da sexualidade e da capacidade. Nessa perspectiva, a educação por casais homossexuais e a oferta de uma educação queer e aleijada parece engendrar sérios riscos para o desenvolvimento moral e funcional das crianças. As reflexões de McRuer (2006/2021b) ainda apontam que, no sistema capitalista, a família branca, heteronormativa e de classe média tem sido considerada uma unidade social que visa manter e estimular o capacitismo, o que evidencia a relação das ofensivas antigênero e capacitistas com a perpetuação do sistema social vigente.

Também é possível identificar aproximações entre as ofensivas antigênero e capacitistas com as políticas neoliberais. Ambas as ofensivas buscam reduzir os investimentos em políticas sociais, reforçando a perspectiva do estado mínimo. Em relação às ofensivas antigênero, a Associação Brasileira de Psicologia Política (2021) destaca que, sob o pretexto de se garantir uma educação desprovida de “ideologia de gênero”, passa-se a propor projetos como o que possibilita a educação domiciliar (alfabetização de crianças pela família). Também se legitima o desinvestimento em programas de formação de professores, a desqualificação de profissionais da educação com o intuito de justificar a precarização das condições de trabalho e a terceirização de serviços de educação e saúde, que passam a ser oferecidos por instituições privadas ou religiosas (as quais ficam habilitadas a receber dinheiro público para isso), conforme já apontado por Flávia Biroli (2016)9. As ofensivas capacitistas, sob a justificativa de narrativas que situam as crianças com deficiência como incapazes de aprender, e como aquelas que vão nivelar a educação por baixo, justificam a defesa da possibilidade de matrícula de crianças com deficiência em instituições especiais, de forma segregada. As mudanças na política de saúde mental, já discutidas no tópico anterior, também reiteram a relação entre as ofensivas capacitistas com as políticas neoliberais. Em síntese, ambas as ofensivas visam à retirada de direitos e a segregação social, principalmente àqueles sujeitos que não reproduzem a cisheterossexualidade e a capacidade.

Da mesma forma, as ofensivas antigênero e capacitistas se aproximam pela capacidade de ambas poderem produzir efeitos para além dos grupos mais diretamente afetados. Nessa direção, Prado e Correa (2018) destacam que ofensivas antigênero produzem efeitos “sobre dimensões estruturais da vida política e social” (p. 445). Isso pode ser também observado nas ofensivas capacitistas, uma vez que o capacitismo, embora experienciado mais fortemente pelas pessoas com deficiência, tem um caráter estrutural e interseccional (Gesser et al., 2020) e afeta, em alguma medida, todas aquelas pessoas que desviam do ideal normativo de sujeito. Nessa direção, as considerações de Fiona Campbell (2009) e Sunaura Taylor (2017) apontam que quanto mais as pessoas com deficiência forem situadas no campo da abjeção, mais haverá a necessidade de todas as pessoas buscarem se adequar às normas para se afastar da condição abjeta.

4 A eugenia como um pilar das ofensivas capacitistas

Identificamos muitas relações entre os estudos eugênicos e as ofensivas capacitistas, uma vez que esses foram a chave para a institucionalização e esterilização nos Estados Unidos e, na Alemanha, serviram para justificar o extermínio de muitas pessoas com deficiência e grupos pertencentes a raças consideradas inferiores (Rafter 1988; Dias 2013).

Dias (2013) destaca a identificação de Hitler com o modo como o pensamento eugênico foi implementado nos EUA. A incorporação da eugenia à política de estado alemã, por meio da promulgação da lei de prevenção contra a “prole geneticamente doente”, em 14 de julho de 1933, produziu inicialmente um processo de esterilização em massa de pessoas nomeadas como doentes físicos ou mentais e, após, o extermínio desse grupo social.

Robert Jay Lifton (1986) realizou um estudo que teve como objetivo analisar o papel dos médicos alemães na realização do genocídio que ocorreu primeiramente à população com deficiência e que, subsequentemente, foi utilizado para o extermínio dos judeus. Especificamente sobre o genocídio de pessoas com deficiência, o autor mostrou o quanto esse foi fundamentado em constructos baseados nas teorias eugenistas que emergiram no final do século XIX e foram amplamente difundidas no início do século XX. Essas teorias pautavam-se em narrativas como a de que pessoas com deficiência não tinham uma vida digna de ser vivida e, por isso, deveriam ser exterminadas como um ato de misericórdia (para o bem delas, das famílias e do Estado). Intencionando fundamentar o que se definia como vida indigna de ser vivida, houve todo um processo de construção social de uma narrativa que circunscrevia a deficiência a uma tragédia pessoal, e as pessoas com deficiência como um fardo social para o Estado que, em decorrência do enorme desgaste econômico causado por eles à nação, teria que deixar de investir recursos em pessoas com corporalidades compatíveis com os ideais da raça ariana. De acordo com Lifton (1986), os autores que coadunavam com a eugenia compreendiam o Estado como um organismo que deveria se manter vivo e saudável, o que justificava a eliminação das pessoas com vidas indignas de serem vividas pelo bem da nação, configurando-se em uma estratégia de “cura” do Estado.

Outros autores que corroboraram o extermínio de pessoas com deficiência, segundo Lifton (1986), foram os professores alemães Karl Binding (jurista e professor aposentado após quarenta anos na Universidade de Leipzig) e Alfred Hoche (professor de psiquiatria da Universidade de Freiburg). A obra dos autores foi publicada em 1920. O livro incluía como “vida indigna” não apenas os doentes incuráveis, mas grandes segmentos de crianças com doenças mentais, “débeis mentais” e crianças “retardadas” e deformadas. Esses autores profissionalizaram e medicalizaram o conceito de vida indigna, e argumentaram que a eliminação da vida indigna é “puramente um tratamento de cura” e um “trabalho de cura” (Lifton 1986, p. 46, tradução nossa). Lifton (1986) ainda argumenta que os constructos desenvolvidos pelos autores eugenistas alemães foram apropriados pelo nazismo e utilizados para justificar — sob o argumento de que a vida de determinados grupos sociais não era digna de ser vivida — a eliminação de crianças e adultos com deficiência, dentre outros grupos considerados inferiores pelo critério de raça.

No Brasil, ainda que não tenha existido como programa oficial de governo, a eugenia esteve presente desde o início do século XX. Vanderlei Sebastião de Souza (2008) destaca que os primeiros trabalhos sobre eugenia foram publicados no Brasil ainda no início da década de 1910. Foi nesse período que também foi fundada a Sociedade Eugênica de São Paulo, a qual nasceu juntamente com um amplo movimento nacionalista que vinha se formando no Brasil ao longo dos anos 1910. Ademais, a autora Maria Clementina Cunha (1989) afirma que os desaparecimentos das ligas de eugenia e higiene mental não se devem ao fracasso dessas organizações, mas de suas incorporações na esfera estatal. Então, diferentemente de países como os EUA, onde a esterilização compulsória era legalizada, em países como o Brasil, apesar de não ter sido legalizada, era uma das violências praticadas nos hospitais psiquiátricos.

Ainda sobre a eugenia no contexto brasileiro, é importante destacar que tivemos aqui políticas de extermínio, de encarceramento da população com deficiências psicossociais (Arbex 2013), e de segregação das pessoas com deficiência em geral (física, intelectual e sensorial) em instituições apartadas do convívio social (Lanna Junior et al., 2010).

Especialmente no campo da saúde mental, milhares de pessoas com deficiência, sobretudo as com deficiências psicossociais, foram internadas em hospitais psiquiátricos, submetidas a tratamentos invasivos tais como injeções de haldol e eletrochoque, e mantidas lá durante toda a vida, como mostrou Daniela Arbex (2013). Os hospitais psiquiátricos, que diminuíram bastante o número de leitos depois da reforma psiquiátrica, são organizações na sua maioria privadas e obtêm ainda hoje grandes financiamentos públicos para o seu funcionamento (Conselho Federal de Psicologia 2020).

Apesar de estarmos em outro momento histórico, a análise da implementação da eugenia nas políticas de estado de países como Estados Unidos e Alemanha oferece elementos importantes para entender as ofensivas capacitistas no Brasil. A partir da análise das materialidades dessas ofensivas, é possível observar que, na atualidade, há um compromisso com uma pauta neoliberal focada na capacidade dos corpos como um princípio para a garantia dos direitos. O enquadramento das pessoas com deficiência como menos capazes em comparação com as demais, como reiterado pelo governo eleito em 2018, pode produzir como efeito a segregação e o apagamento, uma vez que enquadramentos capacitistas têm o potencial de tornar determinados corpos humanamente impensáveis (Butler 1993/2019), justificando a sua eliminação. Assim, nossas análises indicam que a educação em instituições segregadas, a contrarreforma psiquiátrica e o desmantelamento de sistemas de controle social como o Conade podem ser entendidos como o retorno da eugenia sob diferente roupagem.

5 Características das ofensivas capacitistas

As ofensivas capacitistas reiteram o capacitismo historicamente vivenciado pelas pessoas com deficiência, à medida que, com base em um ideal de sujeito universal, situam as pessoas com deficiência como incapazes de desempenhar atividades ordinárias tais como trabalhar, estudar e participar da vida comunitária. Elas têm como premissa central a ideia de que a deficiência é um problema individual e de âmbito privado (familiar), decorrente de uma patologia de origem orgânica que deve ser evitada e que, quando isso não for possível, requer ações voltadas à cura, à caridade ou à “eliminação” das pessoas com deficiência. Essa eliminação se dá pelo apagamento da deficiência por meio das práticas segregacionistas e desqualificadoras dessa condição, que insistem em retornar, apesar de todos os avanços legais. Nessa direção, é possível observar a relação das ofensivas capacitistas com a eugenia e com o medo de um planeta aleijado. Como já sinalizado, as ofensivas capacitistas são focadas na redução da deficiência a uma condição corporal e no apagamento dela enquanto categoria política, assim como na segregação das pessoas com deficiência em espaços apartados do convívio social. Esse medo é potencializado sob a narrativa de que a deficiência é uma tragédia individual e um “fardo social” para o Estado e para a sociedade. Ou seja, o fomento de que as pessoas com deficiências devam receber educação em instituições segregadas, o desinvestimento na construção de escolas acessíveis e as tentativas de revogação das políticas de atenção psicossocial produzem efeitos que contribuem para a exclusão desse grupo social. Essas ofensivas, embora sejam mais sentidas por pessoas com deficiência, produzem efeitos para além delas, uma vez que corroboram para tornar a deficiência cada vez mais abjeta, produzindo um distanciamento dessa que é, segundo Garland-Thomson (2002), a mais humana das experiências, algo que todos aqueles que viverão tempo suficiente para envelhecer irão, em alguma medida, experienciar.

Outra característica das ofensivas capacitistas é que elas são intrinsecamente relacionadas ao neoliberalismo, à medida que esse valoriza preceitos como a autossuficiência do indivíduo, que deve ser capaz de trabalhar e obter os serviços e apoios de que necessita no mercado, em detrimento da oferta desses por meio de políticas públicas. Em decorrência disso, a lógica neoliberal vem precarizando muito a vida das pessoas com deficiência em escala global, principalmente daquelas que necessitam de mais suporte do Estado para terem uma vida digna. Essa precarização é ainda maior para as pessoas com deficiência em situação de pobreza, pois elas não têm como adquirir os serviços de que necessitam no mercado, dependendo ainda mais das políticas sociais. Nessa direção, Tom Shakespeare (2018), por exemplo, destaca que, na Inglaterra, um dos efeitos das políticas neoliberais foi a diminuição da oferta de assistentes pessoais (cuidadores) para pessoas com deficiência que vivenciam a dependência complexa. No Brasil, a tese de doutorado da pesquisadora Helena Fietz (2020) também abordou esse fenômeno e as implicações na vida de mães de pessoas adultas com deficiência intelectual.

Por fim, as ofensivas capacitistas impactam a legitimidade das pessoas com deficiência como sujeitos de direitos. Isso porque, ao reiterar a deficiência como um problema da pessoa, deslegitimam as lutas delas por uma sociedade acessível para pessoas com corporalidades múltiplas. Assim, no próximo tópico deste artigo, apresentaremos algumas indicações ético-políticas que consideramos importantes para fazer frente às ofensivas capacitistas. Estamos cientes de que o recrudescimento das políticas neoliberais fortalece as ofensivas, mas acreditamos que há muito a ser feito no âmbito da pesquisa, formação, atuação profissional e ativismo.

6 Considerações finais: resistir às ofensivas capacitistas, construir um planeta aleijado

Para ser franca, eu, nós, precisamos imaginar futuros aleijados porque as pessoas com deficiência estão continuamente sendo eliminadas do futuro, representadas como o sinal do futuro que ninguém quer. Esse apagamento não é mera metáfora. Pessoas com deficiência — particularmente aquelas com deficiências de desenvolvimento e psiquiátricas, aquelas que são pobres, desviantes de gênero e/ou pessoas não brancas, aquelas que precisam de formas atípicas de assistência para sobreviver — enfrentaram esterilização, segregação e institucionalização; negação de educação, cuidados de saúde e serviços sociais equitativos; violência e abuso; e a privação dos direitos de cidadania. Muitas dessas práticas continuam, e cada uma delas limitou muito, e muitas vezes literalmente encurtou, o futuro das pessoas com deficiência. É minha perda, nossa perda, não cuidar, abraçar e desejar a todos nós. Devemos começar a antecipar presentes e imaginar futuros que incluam todos nós. (Kafer 2013, p. 46, tradução nossa)

Uma importante estratégia para a construção de um planeta aleijado foi proposta por Gloria Anzaldúa (1981/2021), em trabalho publicado originalmente no ano de 1981. McRuer (2006/2021b) sinaliza que, ainda que não faça uso das palavras crip ou aleijado, Anzaldúa (1981/2021) é uma autora de referência para o campo da teoria crip e para que possamos imaginar um futuro aleijado. Isso porque a autora faz uma potente e importante convocação de coalizão entre os grupos sociais cujos corpos divergem da norma. É um chamado, uma convocação que nos parece bastante atual, ainda mais nestes tempos de ofensivas capacitistas e antigênero, como expusemos neste artigo. Citamos as palavras da autora para fazer ecoar o que nelas há de insurgência e de potência para afirmamos um planeta aleijado:

O racional, o patriarca e o heterossexual mantiveram domínio e controle legal por tempo demais. Mulheres do terceiro-mundo, lésbicas, feministas e homens feminista-orientados de todas as cores estão se juntando e se coligando para reverter isso. Só juntos nós temos força. Eu nos vejo como uma teia de espíritos irmanados, um tipo de família. Nós somos os grupos queer, as pessoas que não pertencem a lugar algum (...) Combinando-nos, nós cobrimos tantas opressões. Mas a opressão mais sufocante é o fato coletivo de que nós não nos enquadramos, e porque não nos enquadramos nós somos uma ameaça. (Anzaldúa 1981/2021, pp. 86-87, grifo da autora)

Neste texto, nos reunimos ao chamado de Anzaldúa (1981/2021) junto com outros ativistas defiças, queer e desviantes que, no Brasil, têm proposto e afirmado cotidianamente coalizões insurgentes. Como dissemos, as ofensivas capacitistas e antigênero em nosso país tem sido lançadas e propostas por um governo neoliberal e ultraconservador (gestão 2019-2022) e, ao mesmo tempo, tem encontrado a resistência aguerrida das multidões queer-crip que teimam todos os dias em afirmar que outro mundo é possível e necessário.

Junto dos ativismos e dos movimentos sociais, destacamos a necessidade de incorporarmos a investigação emancipatória nas pesquisas nos estudos da deficiência. Mike Oliver (1992) destaca que essa, contrapondo-se ao processo histórico que situa a deficiência como um problema individual, considera-a como uma questão política de direitos humanos e luta. Em consonância com essa definição, nossos estudos têm apontado a importância de se produzir conhecimentos e práticas com as pessoas com deficiência e não sobre elas (Moraes 2010, 2022). Ademais, baseadas nas análises da realidade brasileira, temos defendido a premissa de que a construção de pesquisas e práticas emancipatórias precisa considerar que determinantes como os de gênero, raça, sexualidade, região e classe social também são constitutivos da experiência da deficiência. Isso implica que uma perspectiva emancipatória tem que ser também feminista, antirracista, anticapitalista e contra todas as demais formas de opressão (Gesser et al., 2020).

Assim, a perspectiva interseccional pode ser fortalecida a partir de uma aliança entre perspectivas feministas, queer e crip, como já sinalizou Kafer (2013). A autora argumenta que essa perspectiva pode romper com as narrativas presentes ao longo da história, nas quais a deficiência é rejeitada nos futuros possíveis de duas maneiras: a) pelo não reconhecimento de um futuro que inclui pessoas com deficiência; e b) pela redução da deficiência ao corpo, desconectando-a da política. Assim, a partir das considerações de Kafer (2013), podemos afirmar que é fundamental produzir aleijamentos nos tempos, espaços e modos de se relacionar com a deficiência. Para tanto, precisamos romper com as narrativas que, ancoradas no modelo médico, posicionam a deficiência como algo que deve ser corrigido, normalizado e eliminado para circunscrevê-la no âmbito político, como uma experiência de um coletivo que sofre os efeitos de uma sociedade capacitista — que não tem sido imaginada (e construída) para incluir as pessoas com deficiência.

Outro ponto importante para a construção de um planeta aleijado é a necessidade de rompermos com os binarismos tais como deficiente/capaz, doente/saudável. Romper com esses binarismos é um passo fundamental para que as corporalidades múltiplas possam ser acolhidas e celebradas como parte da diversidade humana (McRuer 2006/2021b; Kafer 2013). Mudar o enquadramento do que significa ser humano pode corroborar o rompimento com esses binarismos. Contrapondo-se às narrativas pautadas na capacidade compulsória (McRuer 2006/2021b), muitas autoras feministas têm reivindicado a fragilidade, a vulnerabilidade, a dependência e a interdependência como parte da diversidade humana (Kittay 2015; Zirbel 2016). O mito da independência é uma ficção impossível de se alcançar na sua totalidade, como já apontaram inúmeros autores dos estudos da deficiência, já que somos seres frágeis e vulneráveis (Kittay 2015; Gesser e Fietz, 2021; Mingus 2017). Assim, adotar o pressuposto feminista de que o privado é político e visibilizar a multiplicidade e a interseccionalidade da experiência da deficiência na pesquisa, atuação profissional e no ativismo é fundamental para se contrapor às ofensivas capacitistas.

Por fim, e em última instância, salientamos que a construção de um planeta aleijado está atrelada a uma articulação entre experiências e epistemologias, entre ativismos e conhecimentos aleijados. Isso porque, como dissemos, as políticas de pesquisa são também ferramentas de luta. A epistemologia, como campo de investigação do conhecimento científico, não está isolada e separada das lutas sociais. Ao contrário, se tece junto e ao lado dessas lutas. Assim, finalizamos este texto articulando o chamado de Anzaldúa, com o qual iniciamos esta seção, com o de Mike Oliver (1992) e de outros ativistas e pesquisadoras/es brasileiras/os, como Mello (2016; 2019) e Gavério (2015). É esta articulação entre experiência e epistemologia, como salienta McRuer (2006/2021b), que precisa ser central nos esforços de contenção dos avanços do neoliberalismo, na afirmação de formas alternativas de ser e na construção de um planeta aleijado.

7 Agradecimentos

Agradecemos às participantes do Núcleo de Estudos da Deficiência da UFSC Carla Maehler, Juliana Cavalcante Marinho Paiva, Juliana Silva Lopes, Lina Ferrari de Carvalho e Simone de Mamann Ferreira pelas contribuições ao manuscrito. Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela bolsa na modalidade Produtividade em Pesquisa e à Faperj, pela bolsa Cientista do Nosso Estado.

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