Resenha de Culp (2020). Dark Deleuze

Review of Culp (2020). Dark Deleuze

  • Luiz Gustavo Duarte
  • Maira Sayuri Sakay Bartoletto
Portada libro

Andrew Culp (2020)
Dark Deleuze. Pela morte deste mundo GLAC Edições.
ISBN: 9786580421060

O resgate do sombrio na obra de Deleuze

Em Dark Deleuze, trazido pela editora GLAC em 2020 com prefácio do próprio autor exclusivo para esta edição brasileira, e tradução de Camila de Moura, Andrew Culp escreve o livro buscando jogar um novo olhar sobre a própria obra de Deleuze, e talvez antes mesmo disso, nos mostrar como a obra de Deleuze é enrabada, pelo que ele chama de “cânone da alegria”. Isto, pois, Dark Deleuze, não é apenas o nome do livro apresentado como uma estética “cool’’, mas sim trabalhado como um próprio conceito. Ele é um dos vários filhos das enrabadas que Deleuze sofreu ao longo dos anos, que acaba caminhando como um modo de orientar o livro, e digo enrabada pois como Gilles Deleuze e Félix Guattari trazem no Anti-Édipo (Deleuze e Guattari, 1972/2011), a sexualidade está por todo o lado, enrabadas são inevitáveis, e delas que acabam sendo engravidados novos conceitos.

A inspiração de Deleuze para a existência deste livro não é ignorada em nenhum momento visto que o autor recorda o que seria para Deleuze um livro digno de existir, o qual deve ser formado por três funções, expostas claramente na introdução buscando justificar a si mesmo. A primeira reside em demonstrar que outros estudos cometem um erro, trazido aqui pela crítica a pensadores que criam a partir de Deleuze algo “ingenuamente afirmativo” em um verdadeiro cânone da alegria, nas palavras do autor. A segunda função é explorar pontos essenciais que foram deixados de fora das discussões até então, no caso de Dark Deleuze é a reabilitação de um ódio por este mundo. Por fim, como terceira função, Culp busca demonstrar que um novo conceito pode ser criado, aqui apresentado pela contraposição de termos que são contrários, vastamente presentes na obra de Deleuze, mas que divergem da tarefa alegre da criação.

O nome do livro não pode, e nem quer, esconder que o objetivo está em convencer os leitores a “abandonar completamente as trajetórias alegres, optando por seus contrários sombrios” (Culp, 2016/2020, p. 55). Em um primeiro momento essa aposta pode parecer estranha, e ainda bem que o é. Esta abordagem dark, sombria, é trazida numa crítica ao que se formou em torno do, já citado, cânone da alegria. Este modo de pensamento diz respeito às interpretações de Deleuze por seu compromisso biográfico com a afirmação alegre, onde o efeito de tal consideração desta produção de diferenças em tais agenciamentos levam a um deslumbramento e um prazer de criar conceitos que irão expressar realmente o mundo. O Dark Deleuze, só aparece quando nos voltamos para a sombra, é onde se recria o Deleuze revolucionário, uma negatividade num mundo onde a felicidade é compulsória, que para Culp, é um Deleuze contracânone, reconhecendo que na própria teoria de Deleuze há a negatividade. Como ele traz, Dark Deleuze só cria conceitos para escrever ficção científica apocalíptica, conversando diretamente com o que Deleuze propõe no prólogo de Diferença e Repetição (Deleuze, 1968/2018), onde um livro de filosofia deve ser tanto um romance policial (com conceitos resolvendo uma situação particular), quanto, por outro lado, um tipo de ficção científica, sem saber se algo é bom ou mal, escrita nos limites do saber e ignorância.

Culp não deixa de trazer críticas de pensadores como Slavoj Žižek (2004), quando este reforça a imagem de Deleuze como aquele autor a ser lido por um Yuppie num metrô de alguma metrópole na própria representação do que seria o capitalismo tardio, ou até mesmo de Foucault quando o autor nos traz sua interpretação de século deleuziano como uma excessiva contemporaneidade, recaindo nas atuais acusações de sê-lo excessivamente “pós-moderno” (Deleuze, 1991/2013). Mesmo com tal conceito parecendo viver numa eterna disputa sobre o que realmente seria tal pós-modernismo.

O pós-modernismo não poderia deixar de aparecer na apresentação do arcabouço de críticas a Deleuze, muitas vezes apresentado como um autor que incorpora o que seria tal movimento. Contudo, não apenas em um ponto específico do livro, tal lembrança da relação com o pós-modernismo e as possíveis lutas revolucionárias dentro deste período são passíveis de serem reconhecidas ao longo do livro, em debates que acabam voltando e se relacionando com o tema. Tais questões não deixam de rondar as discussões acerca das motivações de Dark Deleuze, seria Deleuze tão atual que seu pensamento não poderia ser aplicado, usado (enrabado, talvez?) para pensar um além-capitalismo? Ou seu pensamento é tão atual que com o uso dele é possível pensar em outros mundos, ou como o livro traz, na morte deste mundo?

Esta questão se torna aparente pela crítica recorrente de que os próprios capitalistas utilizam o pensamento de Deleuze em seus estudos e práticas. Apesar disto o autor traz um ponto importante, retomando a antiga piada sobre um comunista ser alguém que lê Das Kapital e um capitalista ser aquele que lê Das Kapital e entende. Ora, o mesmo princípio pode ser aplicado aqui, da piada já repetida e cansada, visto que o que há de se compreender é que Deleuze será lido, queira parte de seus críticos ou não, e os capitalistas podem, e vão, usá-lo. Não há controle sobre isto. O que permanece disto, é a questão de como Deleuze será enrabado para dar um passo além.

Se Deleuze é excessivamente contemporâneo, a proposta aqui é como decifraremos tal contemporaneidade. Daí que está um dos alvos de Dark Deleuze, a conectividade, a crescente integração entre pessoas e coisas por meio da tecnologia digital (isto já colocado antes da pandemia de Covid-19), dado que esta exacerbação, como Deleuze e Guattari já deixam claro em Mil Platôs, não é ideológica, mas sim numa própria organização de enunciação sendo expandida e integrada necessariamente porque se deseja isto. A conectividade é a construção de um mundo, um único mundo homogêneo, o que nos traz à tona conceitos conhecidos, como o cosmopolitismo de Kant, universalismo marxista ou ação comunicativa de Habermas. Mas esta aurora de um novo mundo pela conectividade não se sustenta, pois esta é gerida por poucos que mantêm funcionando o capitalismo mundial integrado, seja pelo Google ou o recém-renomeado Meta (numa busca para sepultar o nome Facebook dos apps mais utilizados pelo mundo como o Instagram e WhatsApp). Há de se retomar Deleuze: “Em suma, as máquinas são sociais antes de serem técnicas. Ou melhor, há uma tecnologia humana antes de haver uma tecnologia material” (Deleuze, 1986/1988, p. 49).

Ser contra a conectividade é evitar que ela se torne um mantra, da necessidade criada de estar inteiramente conectado em redes sociais, mantendo seu perfil adequado, trabalhando para esta máquina. O que acontece é que muitos interpretadores e comentadores de Deleuze acabam sendo agentes de enunciação de antiprodução destes próprios slogans verborrágicos, como Culp apresenta, fixados em enunciados vazios como “linhas transversais, conexões rizomáticas, redes composicionistas, agenciamentos complexos, experiências afetivas e objetos encantados” (Culp, 2016/2020, p. 32). A exigência de Dark Deleuze o assassinato dos nossos ídolos, como na esquizoanálise, se faça uma curetagem completa, de modo a admitir que tal otimismo em relação à conexão fracassou, pois o conectivismo difuso apenas produziu maior exposição, difusão de poder e informações supersaturadas. A proposta é justamente romper os circuitos de comunicação, não os perpetuar, realizar uma verdadeira canibalização desse lugar.

Seguindo, o livro busca compensar o que considera um erro de Deleuze, a não consideração do lado obscuro da crença de reconexão com o mundo. A questão está em não apenas apreciar, ou em outros termos, contemplar, as forças que produzem o real, mas sim intervir de modo a destruí-las. Seja pelo que já nos foi apresentado por outros pensadores, como na morte de Deus e do homem, ou no caso contemporâneo, pela morte do Mundo. Para isso é necessário o cultivo de um ódio. Mesmo que Deleuze traga Nietzsche como um pensador da afirmação, não é possível negar que na obra dele há negatividade e Deleuze tenta colocar nele um “destruir para criar”, quando traz diversos pontos em sua obra para isso, seja o próprio capitalismo ou a arte.

Quando Deleuze e Guattari (1991/2010) trazem que a filosofia é arte de criar conceitos, a própria contemporaneidade exige um repensar sobre a criatividade, pois como o autor do livro coloca, o momento atual é aquele onde os “publicitários alegam ser as mais criativas dentre as criaturas que caminham sobre terra” (Culp, 2016/2020, p. 37), e devido a isto há de se substituir tal criatividade como mecanismo central da emancipação. O ponto é que qualquer construção alegre não é uma fabricação de conceitos deleuziana, visto que se deve reconhecer que a criação de conceitos é um trabalho árduo e rigoroso.

O segundo alvo da crítica de Dark Deleuze é o produtivismo. Ele se distingue por dois princípios formais, acumulação e reprodução. Em primeiro, gerencia os conflitos políticos pela lógica da acumulação e em segundo, pela limitação da produção a uma reprodução. Ambos acabam funcionando num comprometimento com a acumulação ou reprodução do capital. Assim, Dark Deleuze não contesta tal criação dentro do capitalismo, mas sim seu sufocamento para aqueles que celebram Deleuze por sua “alegria”. Partir dessa interpretação de Deleuze, ou mesmo do uso que este faz de Espinosa, pode levar a um hedonismo vulgar, apenas numa análise de sujeitos e seus estados afetivos autodeclarados.

É necessário compreender que há muitas formas de conhecimento, e especialmente em Espinosa, o adequado é aquela capacidade de criar algo, a atividade. Deleuze corrompe o holismo de Espinosa pelo atomismo, onde a relação entre dois termos produz um terceiro termo independente, ou seja, conexões entre corpos produzem uma terceira conexão. É aí que está a metafísica da positividade de Deleuze, na produção do terceiro, onde todos os elementos se bastam sozinhos, não recorrendo à oposição, contradição ou identidade. A linha de fuga surge, pois tudo isto não é independente de seu contexto de produção, tudo pode viajar para fora de seu lugar de origem. O ponto levantado aqui é que no atomismo, o mundo fornece o material necessário para sua própria destruição (finitude), de modo que os poderes de fora oferecem outra saída, com o caminho que acaba por se evidenciar é a convocação da morte, e não a busca por evitá-la. O único futuro que temos começa quando deixamos de reproduzir as condições do presente (um ethos punk, no future), uma busca da morte feliz as formas políticas calcificadas, soluções inúteis e más formas de pensar.

O erro do Deleuze a ser corrigido pelo que Culp propõe é que consigamos cultivar um ódio a este mundo. Para o autor, Deleuze estava imbuído de uma ingênua afirmação da alegria e, desse modo, não foi capaz de dar ao ódio sua forma necessária. No conectivismo está a realização do sonho tecnoafirmacionista da transparência total, por isso é necessária uma descida às trevas, numa dobra entre o interior e fachada, como uma cripta subterrânea. Aqui está a chamada conspiração de Dark Deleuze, que é alimentada pela negatividade sem depender de antinomias, de maneira a assumir um contrário que operará como distância entre dois caminhos exclusivos, numa dimensão afetiva, onde o pessimismo se torna uma necessidade, visto a época de precariedade geral contemporânea. A conspiração está aqui como uma saída à própria interpretação de metafísica da diferença e da exploração de classes. É preciso entender afetivamente as ambivalências do ódio, e no nível estratégico percorrer labirintos de modo a fazer uma criptografia, percorrendo caminhos por contra própria. O objetivo desta crítica conspiratória é manter vivo o sonho da revolução em tempos contrarrevolucionários.

Para isso a conspiração consiste numa série de contrários (que são diferentes de polos, pois estes remetem à opostos dialéticos), os quais não devem relacionar dois termos com base numa identidade concebida, analogia julgada, ou oposição imaginada, mas sim uma similitude percebida. Assim é possível evitar os polos (opostos dialéticos), pois estes também implicam numa proporção áurea, onde o ponto privilegiado se encontra entre dois extremos (aqui ressoa o caminho do meio trabalhado desde Aristóteles).

Isto é dito pois tal compromisso com a média pode nos fazer cair ao que parecem ser dualismo — liso/estriado, molar molecular etc., o que levou muitos comentadores a uma espécie de pregação a moderação. Assim, há de se contaminar os pares conceituais com um terceiro vindo de fora, um próprio atomismo. A oposição do dark trazido aqui, sombrio, está em oposto ao alegre, e não ao luminoso, isto pois, cada contrário é um caminho que se bifurca, é uma rota alternativa nos momentos que somos tentados pela afirmação.

Para seguir com esta proposta dos novos caminhos de fora, o autor faz uma lista de termos, onde propõe seus contrastes, suas abordagens contrárias, sendo uma alegre e outra dark (sombria). Temos por exemplo o conceito velocidade, que tem em seu contraste alegre a aceleração, e seu terceiro ponto produzido de fora a fuga.

É claro que o contrário de cada termo não está dado de antemão, a indicação aqui é com base na capacidade de cada um, operar uma usurpação das operações de seus contrários (roubá-las, despotencializá-las). O dark é este fora, pois, a sua posição é exterior, uma sombra, a partir da escuridão atacando a alegria do pensamento de Estado, um próprio caráter estrangeiro. Como coloca Culp, o principal objetivo é que os leitores abandonem a busca constante pelas trajetórias alegres e optem por seus contrários sombrios, de modo que os contrários se tornam irrelevantes depois que Dark Deleuze atinja seu objetivo ostensivo: o fim deste mundo, a derrota final do Estado e o comunismo total.

Referências

Culp, Andrew (2016/2020). Dark Deleuze (1ª ed., Camila de Moura, trad.). GLAC.

Deleuze, Gilles (1968/2018). Diferença e Repetição (1a ed., Luiz Orlandi, Roberto Machado, trad.). Paz e Terra.

Deleuze, Gilles (1986/1988). Foucault (Claudia Sant’Anna Martins, trad.). Editora Brasiliense.

Deleuze, Gilles (1991/2013). Conversações (1972-1990) (3a ed.) (Peter Pál Pelbart, Trad.). Editora 34.

Deleuze, Gilles & Guattari, Félix (1972/2011). O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia 1 (2ª ed., Luiz B. L. Orlandi, trad.). Editora 34.

Deleuze, Gilles & Guattari, Félix (1991/2010). O que é a filosofia? (3a ed., Bento Prado Jr., Alberto Alonso Muñoz, trad.). Editora 34.

Žižek, Slavoj (2004). The Ongoing “Soft Revolution”. Critical Inquiry, 30(2), 292-323. https://doi.org/10.1086/421126