A peste que nos assola é, sobretudo, a do vírus do ódio e da indiferença aos pobres. O flagelo que nos açoita é a morte como projeto político, o caos e o obscurantismo visando restaurar um regime político de terror (Camus, 1947, citado por Medeiros, 2020, p. 1).
A epidemia de Covid 19 fez com que nos dobrássemos sobre nós mesmos e isso propiciou que pudéssemos nos enxergar mais acuradamente, que esmiuçássemos nossos sentimentos e o que somos e que descartássemos alguns rótulos com que a sociedade de classes, capitalista, racista e sexista nos molda, enfim, que nos escuros caminhos do medo da morte, do sofrimento e da angústia ocasionados pelo niilismo que nos acomete ao não divisar um futuro, escrevêssemos.
Nesse itinerário, compartilhamos em um grupo de reflexão uma experiência ímpar com estudantes por meio de plataforma virtual, que funcionou como uma oficina de escrita e de sentimentos ou uma ferraria da alma (Meneghel et al, 2020). O ato de escrever, na academia, muitas vezes é vivido como uma tarefa árida, tediosa, repetitiva e pouco prazenteira e, por incrível que pareça, esse mesmo ato de escrever se tornou quase que uma necessidade para este pequeno grupo de estudantes e professores que se reunia semanalmente para conversar, contar pequenos relatos e histórias de suas próprias vidas, demonstrar empatia, afeto e cuidado uns com os outros.
No grupo intervenção, ressuscitamos diários, cartas, confissões, histórias de vida, mesclando conteúdos técnicos a relatos pessoais, íntimos, singulares, subjetivos. E mesmo no contexto desolado em que vivemos, que atinge duramente a população trabalhadora, mas também os estudantes que participavam do grupo, a possibilidade de expressão por meio da escrita de si foi capaz de trazer alívio, fruição, prazer e esperança, ousaria dizer, usando o sentido dado à palavra por Paulo Freire (1992).
Na universidade, grande parte dos encontros pedagógicos realizados durante a epidemia tem funcionado como momentos de escuta e de apoio. Deixamos de lado as rotinas, as tarefas, a leitura de textos, o acúmulo de conhecimentos. Entendemos que nós professores precisamos estar à disposição ouvindo os relatos que os alunos trazem (os estudantes são e serão sempre nossos olhos e ouvidos no mundo lá fora) assegurando-lhes que estaremos a postos, mesmo em encontros virtuais e mesmo quando não tivermos respostas e, como eles, nos sentirmos desvalidos e amedrontados.
A escrita autoral pode servir como suporte e antídoto para enfrentar a angústia, a solidão e o medo da morte. Nesse sentido, o objetivo deste texto é apresentar e refletir sobre essa escrita subjetiva, confessional, autobiográfica realizada durante a epidemia.
A primeira carta, produzida no início da epidemia de Covid-19 procura mostrar, juntamente com as outras escritas deste artigo, o quanto as narrativas desencadeadas pela epidemia e pelos eventos que aconteciam nestes cenários possibilitaram, ao mesmo tempo, a expressão de sentimentos de mal-estar e o alívio por poder expressá-los.
Esta carta, a primeira carta ou Carta a um amigo, data de junho de 2020, momento do registro de 59.656 mortes e foi produzida no contexto de uma atividade de extensão grupal, denominada “Falando de medos, angústias e violências”. Em relação ao teor desta missiva, apesar dos sentimentos negativos que atravessam a narrativa, ela pode ser considerada uma escrita alegre, que acena para os sentimentos de esperança e fraternidade (Meneghel, 2022).
No isolamento ainda recente, mesmo com as evidências científicas apontando para a tragédia futura e na vigência de um governo que desconsiderava a gravidade da doença, acreditávamos que não ficaríamos confinados por muito tempo. Ainda dançávamos nas sacadas e ouvíamos concertos de rock com que os músicos do mundo nos brindaram. Mesmo falando da morte e do medo, a mensagem era a esperança. Esperançar, usando o conceito de Paulo Freire (1992) e Ernst Bloch (2005), mostrando o quanto, mesmo frente ao desastre, à desolação e à morte, o espírito humano aposta na vida.
Nessa primeira carta, a referência literária foi o clássico A peste (1947), escrito por Albert Camus. O livro é uma alusão política a uma epidemia e se trata também de uma metáfora a um regime ditatorial. A história se passa nos anos que antecedem a segunda guerra mundial e é evidente o uso da epidemia fazendo referência ao nazismo. Também está presente na narrativa a ênfase nas estratégias de enfrentamento e de solidariedade que caracterizam a conduta de vários personagens, não se podendo deixar de apontar a participação do próprio Camus na resistência francesa durante a luta contra o nazismo.
Nesta (re)leitura, o que me pareceu mais surpreendente foi o registro do autor acerca do comportamento contraditório da população daquela Orã imaginária, incluindo funcionários da municipalidade e médicos, frente à crise desencadeada pela epidemia que já mostrava os seus primeiros sinais. No livro de Camus, mesmo os médicos ao divisar o quadro clássico de peste bubônica conhecido por eles, inclusive por Castel que havia trabalhado no Oriente, onde a doença era endêmica, mostravam incredulidade frente à eclosão da epidemia.
Não dá para deixar de fazer um paralelo com o momento atual, no qual médicos podem ser tão negacionistas, quanto qualquer cidadão, comportar-se de maneira anticientífica e receitar quaisquer coisas, inclusive soluções mágicas, em uma tentativa de aplacar seus próprios medos e ansiedades. Esse negacionismo foi adotado pelo presidente Bolsonaro desde a campanha eleitoral e ficou patente no desprezo pela ciência e pelos direitos das populações vulneráveis, que foi aumentando durante a epidemia (Caponi, 2020). Bolsonaro, em nenhum momento mostrou o menor respeito pelos profissionais da ponta, expostos à doença e que apresentaram alta mortalidade, nem empatia para com as vítimas e seus familiares, fez troça e minimizou a gravidade da doença, sempre defendendo os interesses dos ricos e apostando na morte.
A situação que o país viveu com a prescrição de drogas que não possuem eficácia comprovada contra a doença remete a um artigo cujo autor, Cesar Victora (1982), avalia erros estatísticos presentes em textos publicitários publicados por empresas produtoras de medicamentos. As práticas publicitárias empregadas por algumas empresas farmacêuticas em países periféricos, diz o pesquisador, minimizam eventos adversos e exageram as propriedades dos produtos. Victora mostra as falácias estatísticas e metodológicas empregadas em propagandas dirigidas a médicos, podendo-se citar como exemplo a pesquisa que mostrou eficácia da hidroxicloroquina para Covid conduzida por pesquisadores franceses, que mais tarde reconheceram que os achados estavam incorretos (Colson et al., 2020).
A indústria farmacêutica representa um dos mais rendosos investimentos em escala mundial, aplicando uma quantidade colossal de recursos em pesquisas e material de divulgação. Mesmo baseados em pesquisas, esses informes técnicos podem minimizar os eventos adversos de muitos fármacos, além de estimular a medicalização, uma prática social amplamente aceita que ampliou o foco dos tratamentos, passando das enfermidades e agravos específicos para tratar não mais doentes, mas riscos e/ou alterações laboratoriais (Gervas, 2016).
No momento atual, muitos médicos seguem prescrevendo medicamentos a partir de materiais publicitários, de notícias da imprensa leiga e, mesmo de redes sociais. Portanto, embora cause espanto, profissionais e instituições, por medo, ignorância ou oportunismo optaram por receitar o chamado Kit Covid, sem nenhuma evidência científica, embora amparados pelas falas do presidente da república e por entidades médicas como o Conselho Federal de Medicina (CFM), que justificaram o uso da droga invocando a liberdade médica de prescrever (Senado Federal, 2021).
O Kit Covid, contendo azitromicina, ivermectina e cloroquina ou hidroxicloroquina, foi recomendado e distribuído em várias regiões brasileiras para a prevenção ou tratamento de pessoas com testes positivos ou sintomas da doença. Azitromicina associada à hidroxicloroquina, assim como o antiparasitário ivermectina, careciam de comprovação de eficácia, sendo desconsiderados os resultados negativos de estudos epidemiológicos e minimizados os efeitos adversos dessas drogas (Ferreira e Andricopulo, 2020; Rosenberg et al., 2020).
Outro ponto importante nos discursos veiculados desde os primeiros meses da epidemia foi a falsa antítese entre o isolamento social ou a manutenção da economia. Isso significou a demissão de milhares de trabalhadores, o aumento do trabalho no domicílio e a caracterização do emprego doméstico como atividade essencial sobrecarregando as mulheres e aumentando a precarização do trabalho. “Neste sentido, um dos principais eixos dos ataques conservadores, no contexto da pandemia, foram as medidas de isolamento, pois elas significam, para a burguesia brasileira, um limite para a exploração da força de trabalho” (Souza et al., 2020, p. 50). (Ver Figura 1).
Figura 1
Empregados de joelhos, por ordem dos patrões, pedindo aos transeuntes a reabertura do comércio (“Empresários obrigam funcionários…”, 2020).
Esta carta foi escrita em novembro de 2020, quando o país registrava 173.165 mortes e já não expressávamos a euforia inicial de que controlaríamos o problema. Então, inspirados em Ailton Krenak (2019), escrevemos cartas para o depois do fim do mundo (Meneghel, 2021). O mundo festejava a vacina, mas o Brasil, pela diretriz necropolítica adotada pelo governo central, havia recusado a compra delas ainda no primeiro semestre de 2020 e colocava empecilhos para a adoção de medidas recomendadas internacionalmente, como o isolamento social1. Em vários posicionamentos, o governo brasileiro admitia a posição de deixar as pessoas adquirirem a doença até a população atingir níveis de imunidade compatíveis com a diminuição da doença, que significaria, considerando uma letalidade mínima de 1%, mais de dois milhões de mortos, além do acréscimo de óbitos devido ao não atendimento de outras doenças graves e emergências pela saturação de leitos da UTIS.
No primeiro ano da epidemia o governo brasileiro, por meio de pronunciamentos e atos do presidente da república, em vez de adotar medidas como o controle na entrada de pessoas no país, a testagem em massa e o isolamento dos doentes e infectados, minimizou a importância da doença, questionou a eficácia das máscaras; atribuiu efeitos deletérios às vacinas que, mesmo falsos, promoveram o temor e a desconfiança da população; politizou a origem das vacinas de modo preconceituoso; preconizou o denominado tratamento precoce com drogas ineficazes, algumas responsáveis por eventos adversos graves; dificultou o pagamento do auxílio emergencial; estimulou a realização de aglomerações, repudiando as medidas de isolamento.
Sucediam-se ministros e, em nenhum momento, o Ministério da Saúde assumiu o papel de coordenador das ações de enfrentamento da epidemia e da política de vacinação, havendo ausência de normativas únicas e padronizadas, problemas de logística e de distribuição de vacinas, de suprimento de oxigênio e de fármacos para sedação de pacientes, além da pequena disponibilidade de EPIs para os profissionais da linha de frente. Houve uso contínuo de fake news, com inúmeros atores opinando, prescrevendo, dando instruções controversas e infundadas.
No desenrolar da pandemia, vivemos no Brasil um cenário de ficção científica, distópico e assustador. Neste ínterim, ocorreu na região norte do país a emergência de uma nova variante do coronavírus, mais infectante e letal. Em janeiro de 2021, a Fiocruz Amazônia confirmou a identificação da origem da nova variante da linhagem Sars-CoV-2 no Amazonas, designada provisoriamente de B.1.1.28 ou P.1. O estudo sugere que as cepas, detectadas em viajantes japoneses que tinham passado pela região amazônica, evoluíram de uma linhagem viral no Brasil (Fiocruz, 2021).
Em Manaus, as pessoas morreram por falta de oxigênio, por negligência no fornecimento do oxigênio e por erros na logística. O norte do país viveu o inferno, o primeiro local do Brasil em que o sistema de saúde colapsou. O mundo e o restante do país contemplaram, estarrecidos, esse espetáculo macabro. A ajuda veio do governo bolivariano da Venezuela que enviou oxigênio aos doentes demonstrando solidariedade ao povo brasileiro e fidelidade aos princípios do internacionalismo como promotor da paz e do entendimento entre os povos. As fotos dos enterros em valas coletivas em Manaus correram o mundo e não serão facilmente esquecidas (Ver Figura 2).
Figura 2
Enterros em Manaus. Foto: Michael Dantas (2020).
O governo genocida de Jair Bolsonaro aproveitou a epidemia para promover o recrudescimento de uma política de morte dos grupos mais vulneráveis, daqueles que possuem “corpos que não importam”, criando um contexto favorável para operar a necropolítica de Estado (Navarro et al., 2020). O presidente Bolsonaro manteve e usa até o momento atual, um discurso negacionista, uma retórica militarista atacando sempre um inimigo externo (inventado ou imaginado), uma lógica moralista, conservadora e antinacional. Sua prática necropolítica está a serviço do modelo neoliberal mais acirrado, fascista, misógino, racista e classista (Hur et al., 2021).
Para Edson Teles (2021), na pandemia de Covid-19 o estado brasileiro exercita uma biopolítica de morte, conferindo à necropolítica uma potência ainda maior, na medida em que usa cada cidadão ou cidadã como uma máquina de morte, minimizando a importância das medidas de prevenção, obrigando os trabalhadores a se exporem e fazendo de cada pessoa um possível transmissor do vírus.
Enfim, pode-se afirmar:
Que a evolução da política de saúde no combate à Covid no Brasil deixa claro que houve um genocídio cujas responsabilidades cabem aos governantes do Estado brasileiro e à grande burguesia, que não parecem se incomodar com a letalidade e com os efeitos da doença, enquanto for possível ao Estado burguês prover com o fundo público as saídas para sua crise econômica. (Granemann e Miranda, 2020, p. 32)
Nessa segunda carta, a inspiração foi Ursula Le Guin e o livro Os despossuídos (1974/2019), a saga de um grupo de revolucionários que funda uma sociedade igualitária na lua (Anarres) de um planeta imaginário, mas semelhante à terra, “o planeta dos proprietários” (Urras). Qual a relação entre um livro de ciência ficção com a atual epidemia de Covid, se poderia perguntar.
O livro de Le Guin, de uma forma muito simples e clara, mostra um modelo de organização social igualitário, no qual todos os bens são coletivos e não há transmissão da propriedade a possíveis herdeiros, não há herança. Uma sociedade em que o bem estar dos seus membros é o mais importante e os trabalhos mais penosos são divididos entre todos. Saúde, trabalho, educação, alimentação e habitação como direitos da população.
No afã de acumular bens e propriedades, os humanos segregam, discriminam, escravizam, matam. Em decorrência, acumulam compulsivamente, entediam-se enormemente, (des)humanizam-se totalmente. Le Guin em sua fábula dos despossuídos deixa claro o velho aforisma dos socialistas utópicos, ou seja, aquilo que possuímos, na realidade, nos possui. Uma ficção otimista para contrapor à realidade da morte.
A terceira carta foi escrita em março de 2021. Registro de 312.299 mortes e o Brasil caminhando célere para o caos sanitário. Nesse momento, Miguel Nicolelis (Marreiro, 2021), previu o colapso do sistema de saúde em vários pontos do país. Uma nova variante mais infectante e letal mostrou a sua cara: o Brasil é um laboratório de morte. Já não há mais grupos de risco, estamos todos em risco. Ninguém está a salvo, ou como falou Walter Benjamin (1913/1987, p. 224): “o dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer”. Sim, é possível mudar a história, apagar as memórias e inventar uma novilíngua (Orwell, 1947/2005).
Penso na literatura, no Tolstói de Guerra e Paz (1865/2017). Ao vislumbrar o que acontece no Brasil na epidemia de Covid, assim como na invasão de Napoleão à Rússia, só parecem sentir os efeitos da tragédia aqueles que estão na linha de frente, aqueles que viram a face escavada da morte. As guerras napoleônicas duraram mais de dez anos, entre idas e vindas, assinatura de tratados e atrapalhações políticas. A ocupação Rússia inicia em 1812 e enquanto os franceses avançavam rapidamente ocupando o território e o exército russo recuava, na retaguarda mantinha-se a placidez do cotidiano. Quando o jovem tenente Nicolau chega a uma dessas cidadezinhas para comprar cavalos para o exército tudo parece transcorrer como nos tempos de paz. Todos querem agradá-lo e fazer-lhe a corte, dispensando-lhe jantares, festas e moças casadoiras.
No interior, nas pequenas cidades a vida seguia transcorrendo normalmente. Os camponeses plantavam e colhiam, afinal havia que alimentar a população. Os rituais cotidianos se processavam naturalmente, havia festas e comilanças, bailes e namoros, casamentos, nascimentos e batizados. Esse fato pode ser considerado um ponto surpreendente da narrativa tosltoiana, principalmente pela similaridade com o que acontece no Brasil, onde grande parte da população foi e se sente liberada para levar a vida como se não houvesse uma epidemia.
Mesmo que a guerra não tenha se feito sentir longe da linha de frente, a maioria das famílias russas foi afetada e tiveram um ou vários membros mortos, um filho, um primo, um irmão, um parente, assim como grandes perdas econômicas. Algo que se começa a sentir no Brasil entre as famílias que perderam um parente, um amigo, um colega, um conhecido e o jogo faz-de-conta-que-está-tudo-bem-e-é-só-uma-gripezinha terminou.
Na Rússia descrita por Tolstói, quando as tropas napoleônicas ocupam Moscou, saqueiam e incendeiam a cidade, começam a aparecer os primeiros sinais de um ator esquecido pelos invasores: o inverno russo. Sob o signo do inverno, ocorreu a retirada caótica do exército francês, maltrapilho e descalço sob a neve. Similar foi a fuga dos alemães na segunda guerra mundial, com o exército vermelho em sua retaguarda. Essas derrotas não deixam de acenar para algo similar àquilo que o conhecimento popular chama de a lei do retorno ou o que os gregos denominaram de justiça distributiva ou Nêmesis.
As epidemias são eventos disruptivos na linearidade da vida em sociedade, elas marcaram a história da humanidade, produziram e tornam a produzir terror e pânico, enxugamento de população em várias épocas e regiões do mundo e, como as guerras, são rapidamente esquecidas. A epidemia é um fato social e indica que algo não está transcorrendo bem na sociedade: modelos econômicos excludentes, monocultura, concentração de renda e exploração colonial deixando populações sem acesso à alimentação.
Historicamente as epidemias estiveram associadas a doenças transmissíveis, mas recentemente, outros agravos não transmissíveis como a fome, os suicídios, os desastres ambientais passaram a ser considerados fenômenos epidêmicos (Meneghel, 2015). Epidemias estiveram associadas às migrações, a mudanças no sistema econômico, às guerras de conquista e rapinagem, aos processos de exploração do homem pelo homem.
Nos anos 1970, após a erradicação da varíola e do grande avanço em termos de imunização em massa diminuindo muitas doenças com alta incidência e mortalidade, ocorre um momento de euforia e houve quem afirmasse que as doenças transmissíveis deixariam de ser um problema de saúde pública. Porém, o ufanismo da época mostrou que era um engano, estavam por vir as febres maculosas, as viroses oriundas de nichos ecológicos ainda não explorados, o salto de agentes infecciosos de uma espécie para outra na promiscuidade das grandes fazendas de criação de animais de espécies diversas para consumo humano. Assim chegaram o Ebola, o HIV, a SARS e a Covid-19 dentre muitas outras viroses, marcando a época das epidemias virais. Na epidemia da Covid, dentre os poucos fatos a comemorar pode-se citar a rapidez com os grupos de pesquisa conseguiram produzir novos e variados tipos de vacinas.
Em Porto Alegre, sirenes de ambulância varam o dia e a noite em uma frequência cada vez maior e as camionetes de funerárias palmilham a cidade. Porém, o ruído do trânsito diz que o lockdown foi e está sendo burlado pelos governantes e pela pequena burguesia comercial que pressiona, priorizando os negócios. São os defensores do mercado, precisam alimentar o lucro e manter a economia funcionando mesmo a preço de mortes.
Essa terceira carta já não fala da esperança e da utopia, afetada pelo medo e pela raiva, quero falar sobre justiça. Onde está a justiça em uma epidemia em que os pobres, os favelados, os negros, os indígenas são os que morrem mais?
Não é possível falar em esperança ao divisar o que está por vir. A possibilidade de aumento em escala geométrica do número de casos e de mortos devido à introdução de novas variantes do vírus mais infectantes e letais; equipes de saúde exaustas e sem suprimentos; o sofrimento mental indizível dos que perderam familiares, dos que estão doentes, dos que perderam o emprego, dos que não tem o que comer, dos que não sabem o que será o amanhã.
Por isso, não me sinto capaz de falar de esperança. Penso na morte, na dança da morte, a representação medieval engendrada na Europa amedrontada após a epidemia de peste, na qual todos são convocados — ricos e pobres, príncipes e camponeses, ateus e religiosos — para prestarem conta dos abusos e dos crimes cometidos em vida (Gimenez, 2011) (Ver Figura 3). Pergunto apenas: haverá justiça em relação a tantas e evitáveis mortes, haverá responsabilização para o crime de genocídio que a população brasileira foi e está sendo submetida? Haverá como estancar as veias de uma América (Galeano,1971/2000), de um Brasil que sangra?
Figura 3
A dança da morte (Bergman, 1954).
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