Vidas humanas versus mortes virais: quem pode viver com vírus?

Human lives versus viral deaths: who can live with the virus?

  • Caio Incrocci
  • Adriano Beiras
  • Maria Juracy Filgueiras Toneli
  • João Manuel de Oliveira
Este artigo se propõe um ensaio teórico e trata da distribuição diferencial da morte diante das epidemias virais. Tomaremos a pandemia presente de Sars-CoV-2 em articulação com a epidemia de HIV, a fim de compreender como são erguidas e sustentadas barreiras que dividem os humanos em grupos, pelas quais se decide quem pode ou não morrer de uma doença viral. Pensando a partir do feminismo e da crítica ao excepcionalismo humano de Donna Haraway, sua teoria é articulada às noções de biopolítica, necropolítica e enquadramento normativo, de modo a situar as relações entre alguns humanos e estes vírus, considerando os atravessamentos como raça, gênero e sexualidade. Por fim, é possível entender que, mesmo sem qualquer evidência científica que justifique encontros fatais entre alguns humanos e vírus, as histórias produzidas sobre estes patógenos orientam quem vive ou morre no contato com eles.
    Palavras chave:
  • AIDS
  • Pandemia
  • Vírus
  • Espécie humana
This article deals with the differential distribution of death in the face of viral epidemics and pandemics. We will take the current Sars-CoV-2 pandemic in conjunction with the HIV epidemic in order to understand how barriers that divide humans into groups, by which it is decided who can or cannot die of a viral disease. Thinking from Donna Haraway’s feminism and critique of human exceptionalism, her theory is articulated with the notions of biopolitics, necropolitics and framing, in order to situate the relationships between some humans and these viruses, considering crossings such as race, gender and sexuality. It is possible to understand that, even without any scientific evidence that justify fatal encounters between some humans and viruses, the stories produced about these pathogens guide those who live or die in contact with them.
    Keywords:
  • AIDS
  • Pandemics
  • Viruses
  • Human species

1 Emaranhamentos iniciais

Este artigo trata da distribuição diferencial da morte diante das epidemias virais. Tomaremos a pandemia de Sars-CoV-2, no ano de 2020, em articulação com a epidemia de HIV, como ponto de partida para essa análise a fim de compreender como são erguidas e sustentadas barreiras que dividem os humanos em grupos, pelas quais se decide quem pode ou não morrer de uma doença contraída por vírus. Para tanto, são recuperados produções acadêmicas que se debruçaram sobre estes agentes etiológicos no âmbito das ciências humanas e sociais para pensar a relações estabelecidas entre estes vírus e alguns humanos os quais, articulados à teoria de Donna Haraway (2016), servirão como guia de leitura dos números de casos e óbitos por Covid-19 e de aids em algumas regiões e demografias no Brasil, considerando atravessamentos como raça, gênero e sexualidade.

As bases epistemológicas que sustentam a argumentação aqui proposta emergem dos estudos pós-estruturalistas, feministas e da crítica ao excepcionalismo humano de Haraway. Entendemos que, uma vez combinados, possibilitam a produção de um conhecimento situado (Haraway, 1995), que não enfatize violências, exclusões e extermínios, e que seja dividido, contraditório, múltiplo e não almeje uma homogeneidade (Haraway, 1995).

A crítica ao excepcionalismo humano de Haraway é invocada neste texto como guia para discussões. Esta decisão se pauta na premissa de que, as possibilidades genéticas e biológicas de que os vírus dispõem para infectar ou matar organismos, ou ainda, o modo como são significados no âmbito discursivo, não podem ser compreendidos como fenômenos separados. Sozinhos, são insuficientes para pensar pandemias ou epidemias, enquanto um fenômeno complexo. A ação destes organismos tem efeitos diretos na sua apreensão e gestão pelos humanos, e vice-versa (Wallace, 2020).

O método escolhido para o desenvolvimento das argumentações que se seguem tem por base a noção de SF, ou String Figures, ou ainda Figuras de Barbante, em tradução livre, de Haraway. As SF implicam em padrões de interações entre os mais diversos atores humanos, animais, tecnológicos, etc. Emaranhamentos situados no tempo e no espaço, pelos quais são evidenciados a relação e os efeitos decorrentes destes encontros (Haraway, 2016). Compõe um modelo de análise capaz de explicitar nós (plural de nó, ou ainda, primeira pessoal do plural) nos quais atores humanos e não-humanos se combinam sob determinadas condições, de forma a viabilizar ou inviabilizar a vida.

Em termos de procedimento, as SF dizem respeito a um processo simultâneo de rastreamento e de storytelling. Implica em rastrear histórias, fatos e ficções narradas, contadas sobre as criaturas que se emaranham nas SF, delimitando interações e explicitando os efeitos decorrentes destes encontros, a fim de recontá-los, narrando estas histórias, de modo a evidenciar as linhas de interação entre seus atores, visando uma modesta transformação desta realidade (Haraway, 2016). Logo, as SF configuram um modo de pensar e de ação, que coloca a relação como unidade mínima de análise, a fim de pensar outras possibilidades de interação nas tecnonaturezaculturas que viabilizem florescimentos e a própria vida.

No que diz respeito aos objetivos propostos para este texto, a teoria de Haraway é invocada a fim de explorar a apropriação de distintos vírus por determinadas histórias e ficções contadas em contextos sociais e políticos, e como esta se reflete na distribuição diferencial da morte por doença viral. Logo, pensar os efeitos resultantes destas combinações, de modo que não caiba pensar em agências individuais de um ou outro. Deste modo, estas mortes serão observadas como um dos nós possíveis dos emaranhados de humanos e vírus nas SF.

Em outras palavras, evocamos o Sars-CoV-2 e o HIV, pensando com estas criaturas, em aproximações e afastamentos, a fim de evidenciar e explorar alguns processos por meio dos quais são erguidas barreiras delineadas por marcadores sociais das diferenças, que orientam quem vive e quem morre no contato com os vírus. Trata-se de pensar as fronteiras que operam como práticas contingenciais e intencionadas, de sorte a agravar, suprimir, ou deixar de atenuar os sintomas das doenças virais, e cuja leitura pode orientar, também, estratégias de transformação deste cenário.

Salientamos que, ainda que acreditemos na necessidade de produzir narrativas que busquem nos distanciar das noções de fim de mundo anunciadas nas epidemias e pandemias virais, é inevitável e imprescindível compreender como operam alguns horrores resultantes de encontros entre estas duas criaturas terrenas, oriundas da Terra.

Desse modo, este artigo não se configura como mais uma narrativa apocalíptica, mas busca compreender como algumas narrativas de fim de mundo repercutem efeitos sobre determinados corpos resultantes deste emaranhados de humanos e vírus. Nos termos de Haraway (2016), este esforço diz respeito a delinear a “urgência” de pensar alternativas de convivência.

2 Fronteiras artificialmente naturais

Retomando brevemente a argumentação acima, partimos da noção de que, devido a suas características biológicas, os vírus não podem ser tidos como os únicos responsáveis por estas mortes desiguais encontradas nos indicadores epidemiológicos (Segata, 2020; Wallace, 2020). Cabe a nós, os humanos, compreendermos como confeccionamos ficções que sustentam fronteiras diferenciais e dicotômicas, que orientam quem vive e quem morre no contato com os vírus. Deixando-os momentaneamente de lado, começamos pela noção de natureza descrita por Haraway (1999).

Em Las promesas de los monstruos: Una política regeneradora para otros inapropiados/bles, Haraway (1999) debate como a noção de natureza é criada de modo a sustentar determinadas diferenças e oposições. Nas palavras da autora: “A natureza é um lugar comum e uma construção discursiva poderosa, o resultado das interações entre atores semiótico-materiais, humanos e não humanos.” (Haraway, 1999, p. 124, tradução nossa). Assim, não pode ser compreendida como algo dado, que existe a priori, e da qual emergem todas as outras coisas. Nem mesmo um outro que se opõe à práxis humana. É uma criação pela qual se operam efeitos materiais, os quais se refletem na produção de corpos (Haraway, 1999), caracterizando-se, desta forma, como aquilo que autora nomeia de aparato de produção corporal (Haraway, 1995, 1999).

Para Haraway (1999), a natureza é tropos, movimento, que se refaz e se constitui continuamente a partir das relações que se estabelecem entre as criaturas vivas e objetos, ambos também modulados e produzidos pelos discursos (Haraway, 1999). As dicotomias apresentadas entre orgânico e tecnológico, humano e não-humano, natural e cultural, compõem mais uma das formas pelas quais se produz a natureza, mesmo que se façam atemporais e essenciais (Haraway, 1999).

Tal como mencionado, diante destas noções, Haraway (1999) salienta a tentativa constante e enfadonha da modernidade em alocar a própria ideia de natureza como o “outro” da relação diferencial. Neste movimento, determinadas características ou fenômenos assumidos como naturais são cooptados e apresentados como sustentáculos de teorias e práticas que operam oposições e diferenças (Haraway, 1999). Para a autora:

Terrivelmente conscientes da constituição discursiva da natureza como “outro” nas histórias do colonialismo, racismo, sexismo e dominação de classe de qualquer tipo, ainda encontramos neste conceito há muito estabelecido, problemático, etnoespecífico e móvel, algo que não podemos prescindir, mas nunca podemos “ter”. (Haraway, 1999, p. 122, tradução nossa)

Ailton Krenak (2019), filósofo, indígena e líder ambientalista, argumenta que é justamente a criação de uma noção de natureza pelos “humanos muito humanos”, por esta humanidade que medeia suas relações com a Terra pela mercadoria, que sustenta essa divisão entre os próprios humanos. Para ambos, Haraway (1999) e Krenak (2019), a ideia de natureza é criada pelos discursos, de forma a produzir e sustentar exclusões. Em outras palavras, a noção de natureza torna-se essencial para conceber a produção de barreiras naturais pelas quais se dividem os humanos.

Para explorar mais a fundo como se estabelecem estas diferenças criadas a partir de determinadas noções de natureza, diante de um contexto político, recuperamos os conceitos de biopolítica (Foucault, 1976/2014) e necropolítica (Mbembe, 2016), uma vez que podem nos auxiliar a analisar as articulações entre vírus e política.

Michel Foucault (1976/2014) lança mão do conceito de biopolítica para compreender a passagem do modelo de poder caracterizado pela figura do soberano para os Estados, na era clássica, de modo que o poder seja “situado e exercido ao nível da vida” biológica (Rabinow e Rose, 2006, p. 28). Neste novo esquema, o poder é orientado em dois pólos, de um lado a anatomopolítica do corpo, e do outro, a biopolítica da população.

A biopolítica, compreendida neste contexto específico, para Foucault (1976/2014), diz respeito às técnicas de controle dos processos biológicos dos seres humanos (como espécie) pelo Estado, por meio das quais são condicionados e controlados “a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar.” (Foucault, 1976/2014, p. 150).

Dentre estes aspectos da vida biológica capturados pelo Estado, Rabinow e Rose (2006) salientam a participação da reprodução/sexualidade e da raça nas operações do biopoder. Para os autores, a sexualidade e a reprodução são colocadas em evidência uma vez que, para Foucault (1976/2014), denotam o contato entre a anatomopolítica do corpo, pelo qual se controla a sexualidade em âmbito corporal, e a biopolítica, uma vez que esta diz respeito à reprodução e, consequentemente, aos níveis populacionais.

As preocupações políticas com o controle da sexualidade dos sujeitos, portanto, refletem-se no caráter compulsório da imposição da heteronormatividade, da monogamia e da instituição da família como modelo institucional (Foucault, 1976/2014), para citar alguns dos efeitos mais imediatos. Daí emergem, por exemplo, as estratégias de exclusão de homossexuais, questão na qual o HIV toca diretamente (Treichler, 1987).

No que diz respeito à raça, diante das analíticas do biopoder, para Foucault esta assume um caráter fundamental para a criação da ideia de nação, de vitalidade nacional e para estabelecer parâmetros para a competitividade internacional (Rabinow e Rose, 2006). Sustentada em produções científicas pré e pós-dawinianos, nos séculos XVIII e XIX, pelos quais se buscava essencializar uma hierarquização entre as populações, a noção de raça, como um discurso que apelava para dados naturais, permaneceu no horizonte científico até a Segunda Guerra Mundial (Rabinow e Rose, 2006).

Somente após este período, com a mudança das estratégias globais de organização política, houve a necessidade de transformar e atualizar as estratégias biopolíticas aplicadas pelos países ocidentais a partir de uma nova configuração (Rabinow e Rose, 2006). Cabe sublinhar que esta transformação não trouxe consigo nem o fim do racismo, nem da homofobia, por exemplo, mas uma reconfiguração que emergiu juntamente com novos preceitos morais, tal como de tecnologias (Rabinow e Rose, 2006). Assim, a raça e a sexualidade continuam a operar como fronteiras que dividem os humanos a partir de noções criadas de natureza.

O exercício da biopolítica não pode ser compreendido fora de um processo de hierarquização dos sujeitos sobre os quais ela incide. Pelo contrário, “fazer viver ou deixar morrer” se produz justamente como uma política da vulnerabilidade diferencial — a qual é amplificada diante de uma pandemia (Lorenzini, 2020). Daniele Lorenzini (2020) argumenta que o racismo ergue fronteiras pelas quais se divide quem vive e quem pode morrer. Logo, a raça opera como uma ruptura do continuum biológico, desconsiderando a vulnerabilidade destes sujeitos ao risco de morte (Lorenzini, 2020).

Achille Mbembe (2016), por sua vez, parte da noção de biopoder foucaultiana para compreender alguns limites deste modelo de leitura da relação entre soberania e as vidas biológicas. Pensa também a raça a partir de análises dos campos de concentração nazistas, dos processos colonizatórios decorrentes no século passado e a ocupação colonial contemporânea da Palestina. Cenários que não se configuram como estado de exceção, mas que também não podem ser compreendidos diante da analítica da biopolítica, na qual se aplica diante da máxima “fazer viver ou deixar morrer”.

Para o autor, trata-se de contextos nos quais a estratégia imposta é de fazer morrer ou deixar viver, práticas que configuram a necropolítica (Mbembe, 2016). Enfatizam-se, neste ponto, estratégias de morte tátil, material, decorrente de uma morte simbólica, e por meio das quais são operacionalizados, inclusive, genocídios.

As estratégias necropolíticas, segundo Achille Mbembe (2016), são responsáveis por desumanizar as pessoas tornadas alvos das colonizações e extermínios, de modo que deixem de ser sujeitos, ou humanos, para que tornem ao estado de espécie, de forma com que possam ser mortos. Segundo o mesmo:

Por uma extrapolação biológica sobre o tema do inimigo político, na organização da guerra contra os seus adversários e, ao mesmo tempo, expondo seus próprios cidadãos à guerra, o Estado nazi é visto como aquele que abriu caminho para uma tremenda consolidação do direito de matar, que culminou no projeto da “solução final”. (Mbembe, 2016, p. 128)

Nestes contextos em que a política se estabelece como uma relação bélica, aquilo, ou quem, que é percebido como ameaça à vida pode ser morto de forma legítima, em nome da sobrevivência. Ainda, por meio da aplicação repetida e frequente deste processo de desumanização, Mbembe (2016) ressalta que foi possível aperfeiçoar as tecnologias de assassinato aplicadas pelos Estados contra seus inimigos, de forma a torná-las mais aperfeiçoadas, silenciosas, rápidas, impessoais, civilizadas e abrangentes, viabilizando matar mais, em menos tempo e sem instigar sensibilidades morais, ou comoções diante destas mortes.

Para Mbembe (2016), neste processo, são erguidas fronteiras pelas quais são divididos o humano e o não-humano, o sujeito e a natureza, a civilização e o colonizado. Assim, aqueles tornados selvagens deixam de pertencer à noção pré-estabelecida de humanidade civilizada e suas mortes não mais são compreendidas como assassinatos. Nestes âmbitos é que opera a necropolítica.

Diante desse breve panorama teórico, é possível compreender diferentes noções de natureza evocadas na biopolítica e na necropolítica. No caso das operações biopolíticas, a natureza é dada nos “processos biológicos” (Foucault, 1976/2014, p. 150) e surge como um dado a ser analisado, compreendido e controlado, de modo que sejam atingidos determinados objetivos estabelecidos pelos Estados e instituições.

Como lembra Lorenzini (2020), a biopolítica opera necessariamente no corte entre o fazer viver e o deixar morrer. É preciso considerar, portanto, que “A exposição diferencial dos seres humanos a riscos de saúde e riscos sociais é, segundo Foucault, um traço marcante da governamentalidade biopolítica” (Lorenzini, 2020, sessão “A (Bio)Política da Vulnerabilidade Diferencial”).

Logo, é possível compreender uma noção de natureza que é criada como uma questão comum a todos os humanos, mas que pode ser apreendida de maneiras distintas diante de marcos diferenciais, a fim de maximizar a vida de uns e minimizar a de outros. Para pensar nos termos de Haraway (1999), assemelha-se a uma noção de natureza evocada nos discursos modernos, que se faz anterior a todas as coisas.

No que diz respeito ao conceito de necropolítica, apresentando por Mbembe (2016), a ideia de natureza já compõe a própria fronteira da relação diferencial. Para o autor, a aniquilação se dá no processo de “extrapolação biológica” (Mbembe, 2016, p. 128) daqueles alocados como “outro”. Assim, separa-se o humano do selvagem, para que se possa matar sem suscitar maiores questionamentos.

A noção de natureza, na teoria de Mbembe (2016), assemelha-se àquela apresentada por Haraway (1999) no que diz respeito à produção de uma natureza que se faz o próprio “outro”. Uma ideia que sustenta as próprias fantasias racistas, heterossexistas, etnocentradas e antropocêntricas da modernidade (Haraway, 1999), que igualmente o pensamento indígena aponta como uma era de catástrofe, de ecocídio e genocídio das populações (Kopenawa e Albert, 2019). Então a modernidade não pode ser encarada como um período luminoso, de progresso ou de avanço, mas antes como de extermínio tanto para o ambiente quanto para determinadas populações.

Na concepção de natureza, tal como identificada na teoria de Mbembe (2016), consolidam-se fronteiras que operam no sentido de diferenciar aquilo que é produzido como inimigo, um inimigo natural, contra o qual, a fim de garantir a existência do indivíduo/Estado/povo/nação/sociedade, aplicam-se técnicas cada vez mais modernas de assassinato/extermínio. Aqui o enunciado “Em defesa da sociedade” (título de livro de Foucault) parece operar de maneira eficaz determinando a legitimidade da distinção entre os que vivem e os que são prescindíveis/extermináveis (Foucault, 1975/1999).

O que cabe sublinhar é que, em ambos os casos, tanto nas operações biopolíticas quanto necropolíticas, a criação de determinada ideia de natureza, consolidada em termos modernos, configura-se como um marco da distribuição diferencial do controle e da morte. Esta pode ser tanto interrompida, no caso da biopolítica, quanto exacerbada, no caso da necropolítica.

3 Parâmetros para as sensibilidades morais

Sob outra perspectiva, se a natureza compõe um campo de disputa discursivo, pelo qual ela é criada, como argumenta Haraway (1999), pensar a distribuição diferencial da morte leva ao questionamento de como é construída determinada noção de vida que sustente tais fronteiras erguidas a partir da raça e da sexualidade, por exemplo. Cabe ressaltar que este debate não trata apenas de compreender como se dá a noção de vida para o campo da biologia, mas, de como estas noções são apreendidas pelos discursos políticos e operações de poder, de forma a orientar o que é, ou deixa de ser considerado vida e os efeitos resultantes deste processo.

Para delinear como esta questão será pensada nesta discussão, considerando os limites da articulação destas noções também de uma perspectiva biológica, tomamos como ponto de partida as contribuições de Judith Butler (2009/2017), a qual, diante do problema da apreensão da vida — humana, neste caso — situada em situações de guerra, apresenta o conceito de enquadramento normativo.

Para a autora, as condições normativas pelas quais a vida se torna apreensível se configuram como um quadro de leitura por meio do qual são estabelecidas as condições para o reconhecimento de uma vida enquanto tal. Em outras palavras, o conjunto de normas sociais pelas quais é estabelecido o que se entende/produz ou não como vidas, em um processo de parametrização dos sujeitos (Butler, 2014),

Por meio destes enquadramentos nos quais se dá, ou não, o reconhecimento das vidas, é que se apresentam as condições de apreender a precariedade destes sujeitos. Tal precariedade se refere à interdependência dos sujeitos entre si e entre os demais animais terrestres, cuja apreensão se faz necessária em termos de sublinhar as relações pelas quais se dão as condições de sobrevivência. Em suas palavras:

Deveria haver um reconhecimento da precariedade como uma condição compartilhada da vida humana (na verdade, como uma condição que une animais humanos e não humanos), mas não devemos pensar que o reconhecimento da precariedade controla, captura ou mesmo conhece completamente o que reconhece. (Butler, 2009/2017, p. 29)

Todavia, considerando a morte como condição de existência de qualquer coisa viva, tal como destaca também Haraway (1999, 2016), o mero reconhecimento de toda vida como precária, pouco contribui para compreender os processos pelos quais determinadas mortes se tornam eticamente relevantes sob a ótica de um campo de guerra, por exemplo (Butler, 2009/2017). Torna-se necessária a criação de demarcação não diferencial que não se sustente em diferenças fundamentais, mas possibilite orientar nossa leitura para quais vidas devem ser cuidadas e protegidas. Nesse processo, o luto surge como critério de reconhecimento de vidas humanas. Para Butler (2009/2017), lamentar a perda de uma vida, sensibilizar-se diante de uma morte, portanto, implica no reconhecimento de que esta, de fato, existiu, no contato com os demais e que, em algum momento, foi protegida. Os enquadramentos, neste sentido, atuam de forma a orientar sensibilidades morais.

Em síntese, os enquadramentos normativos atuam de forma alocar diferencialmente a precariedade e o luto. Desloca-se, assim, o sujeito da contingência em que se constitui, tal como da interdependência na qual sua vida — orgânica — é viabilizada orientando, portanto, estratégias pelas quais estas se tornam, ou não, vidas que são lamentadas quando perdidas (Butler, 2009/2017).

A noção de precariedade de Butler (2009/2017) se assemelha, em certa medida, à noção de natureza defendida por Haraway (1999). Para as duas autoras, trata-se de reivindicar a vida não como uma construção social, uma vez que ela existe, mas de como a ideia de vida emerge como um campo de disputas discursivas e de poder, no qual esta é apreendida ou não, produzindo diferentes efeitos que refletem na maximização ou diminuição da precariedade.

Outro ponto tangencial entre os pensamentos destas autoras diz respeito ao luto. Tal como para Butler (2009/2017), Haraway (2016) enfatiza a necessidade de lamentar vidas perdidas enquanto parte de um processo de apreensão destas vidas, de modo a nos sensibilizar moralmente novamente quando se vão, considerando também as vidas não humanas enquanto eticamente relevantes.

Dando sequência, a partir do problema da apreensão da vida, proposta por Butler (2009/2017), tal como das contribuições de Foucault (1976/2014) e Mbembe (2016), e tomando a crítica ao excepcionalismo humano de Haraway (1999), é possível realizar uma leitura do conceito de enquadramento normativo, também como os moldes pelos quais uma ideia de natureza é construída a partir de determinadas normas produzindo vidas, ou não.

Em outras palavras, diz respeito aos parâmetros pelos quais se estabelece o que é, ou não, natureza, de forma a sustentar diferenças dicotômicas e essencializadas, em um movimento que a desconsidera enquanto um lugar, um aparato de produção corporal, nos termos de Haraway (1999). Logo, é possível compreender a criação de parâmetros que sustentam fronteiras construídas a partir de diferentes noções de natureza criadas para essencializar diferenças, pelas quais se apreende, ou não, a precariedade de sujeitos, de forma a aplicar políticas de vida e de morte.

Retornando à Haraway, para chegar novamente aos vírus, cabe pensar, portanto, como determinadas vidas são feitas matáveis (Haraway e Azerêdo, 2020) nesse processo de constituição de barreiras, tomando as combinações interespecíficas como foco de análise. Para tal, nos lançaremos em direção a diferentes noções de natureza criadas como mais um ator nos emaranhados nas SF, cujos efeitos são herdados nos toques e materializados nas vidas híbridas resultantes deste processo (Haraway, 1999, 2008, 2016).

Cabe um destaque, entretanto, as reflexões trazidas a seguir não tratam de debater a vida dos vírus, ou mesmo a vida daqueles infectados pelos vírus, haja vista que este se faz um problema de outra ordem. Trata-se de realizar uma leitura de como as vidas resultantes dos encontros entre humanos e vírus são convocadas para determinadas noções de natureza, situados nas fronteiras diferenciais, de modo a agravar ou atenuar os sintomas de uma doença viral, tornarem-se mais ou menos matáveis, terem sua morte enlutada ou não. Em outras palavras, trata-se de entender como os vírus são tornados coisas próprias de alguns humanos.

4 Shibari viral: Amarrando humanos e vírus nas figuras de barbantes

Diante do panorama teórico apresentado neste artigo, tal como das contribuições de Haraway apresentadas até então, buscaremos explorar como se tem debatido a produção de um processo de parametrização dos corpos marcados pelos vírus do HIV e do Sars-CoV-2, com base em determinada ideia de natureza, assim como os efeitos decorrentes desta relação, a partir dos números de casos e óbitos por Covid-19 e de aids no Brasil.

De forma a dar início a este debate, gostaríamos de recuperar o debate estabelecido por Larissa Pelúcio e Richard Miskolci (2009) que partem de uma análise da noção de risco e prevenção, presentes nos discursos acerca da aids no período da sua emergência, nas décadas de 1980 até 2000. Neste texto é colocada em evidência a produção de determinados discursos sobre a sexualidade, que a estabeleceram como um campo de disputa discursiva, de forma a ser produzida e controlada por meio das técnicas biopolíticas e anatomopolíticas descritas por Foucault (1976/2014).

Para os autores, os discursos diferenciais criados no âmbito da sexualidade, operando no campo da saúde, passam a compor os dispositivos preventivos direcionados a aids. Segundo os autores:

É neste registro que o dispositivo da aids opera e faz sentido, tendo a prevenção como estratégia de normalização materializada em uma espécie de imposição, em uma teleologia heterossexista que aponta para uma compreensão futura da vida como monogâmica, reprodutiva, familiar, em suma, privada e sob controle. (Pelúcio e Miskolci, 2009, p. 142)

Na emergência do vírus, e a partir das primeiras informações acerca de seu funcionamento, que permitiram compreender sua transmissibilidade também pela via sexual, os discursos no campo da saúde associaram-se à heteronormatividade (Butler, 2014), de modo que a aids foi feita/lida/produzida como uma doença sexualmente transmissível (Pelúcio e Miskolci, 2009).

Os discursos preventivos passaram a ser direcionados não apenas à doença, mas também a determinados grupos associados a ela, marcados pelas condutas sexuais (Pelúcio e Miskolci, 2009), notadamente gays, prostitutas e transexuais, inicialmente. As primeiras nomenclaturas dadas aos vírus exemplificam esse processo: Gay Related Immudefciency – GRID (ou Imunodeficiência Gay Adquirida, em português), ainda em 1982, nos Estados Unidos, ou o “Câncer gay”, no Brasil (Pelúcio e Miskolci, 2009; Treichler, 1987; Trevisan, 2018).

Da ideia da prevenção, surge também o conceito de risco. Utilizado no contexto da epidemia de HIV, o risco da infecção passa a compor este rol de discursos e práticas do saber médico, orientando medidas de controle da disseminação do vírus (Segata, 2020). No risco, os dados acerca da exposição diferencial aos vírus são levados em conta na produção de políticas de saúde que visem à proteção de seus cidadãos (Junqueira e Prado, 2020), ou ao menos daqueles considerados cidadãos.

Os grupos de risco emergem neste cenário como estratégias sociais de controle do patógeno (Trevisan, 2018; Preciado, 2020), indicando “corpos que, em determinadas situações, estariam mais expostos e vulneráveis do que outros, possuindo, assim, um risco maior de adoecimento do que outros.” (Junqueira e Prado, 2020, p. 4).

Os grupos de risco, articulados aos discursos sobre prevenção, portanto, passam marcar os sujeitos pertencentes a estes grupos, de forma a associá-los diretamente ao HIV e à aids. Surge do interstício entre os discursos sobre o HIV e sobre a sexualidade, a constituição de corpos marcados pelo vírus, ainda que não estivessem infectados (Butler, 2009/2017; Fraiberg, 2013; Pelúcio e Miskolci, 2009; Preciado, 2020; Segata, 2020; Sontag, 2007; Treichler, 1987; Trevisan, 2018). Processo evidenciado no aidético, termo/insulto carregado por sua conotação preconceituosa, como uma bioidentidade (Pelúcio e Miskolci, 2009).

Neste processo há a criação de uma espécie, produzida nesta combinação discursiva, a qual pode ser excluída, isolada, estigmatizada, ou mesmo morta (Pelúcio e Miskolci, 2009). Trata-se de uma vida híbrida, emergente da relação entre vírus e humano, cujas narrativas herdadas no toque a tornam matável, sem sensibilizar os demais. Entretanto, a ineficácia dos grupos de risco, como ferramenta de controle do vírus, logo foi evidenciada, principalmente por movimentos sociais de pessoas vivendo com HIV, de forma que o termo/conceito deixou de ser usado após certo tempo (Pelúcio e Miskolci, 2009; Pelúcio, 2007). Isso aconteceu no Brasil, por meio do movimento que levou à criação de políticas públicas voltadas para estas pessoas (Pelúcio, 2007), e em outros países comonos Estados Unidos da América e na França, com as ações do grupo Act-Up (Giorgi, 2017).

O surgimento de políticas públicas, de remédios mais eficientes no tratamento da aids e as mudanças nos contextos sociais, reflexos das reivindicações destes movimentos sociais, modificaram o quadro do HIV (Butturi Junior, 2018; Pelúcio e Miskolci, 2009; Trevisan, 2018). Os efeitos destas transformações se refletiram também na apreensão destes sujeitos pelos discursos da saúde ao longo dos anos em dois processos simultâneos (Pelúcio e Miskolci, 2009).

De um lado, tem-se a produção de uma narrativa que punha determinado exercício da sexualidade como o próprio inimigo. A criação de uma noção de sexualidade saudável colocou em oposição práticas sexuais que pudessem ser condenadas no âmbito biopolítico (Pelúcio e Miskolci, 2009). Assim, práticas sexuais que poderiam ser associadas ao risco, como o sexo sem proteção, passam a ser alvo de vigilância. O controle da sexualidade e, consequentemente, dos vírus, deixa de operar no âmbito externo, mas também no âmbito interno, subjetivo.

Por outro lado, viabiliza-se, neste processo de internalização do controle do risco da infecção por HIV, a atribuição da responsabilidade aos proprios sujeitos pelo manejo do vírus dentro ou fora do seu corpo, para que sejam reconhecidos dentro destes parâmetros (Pelúcio e Miskolci, 2009). O risco passa a ser uma questão da racionalidade, um problema do indivíduo, o qual, teoricamente, tem a capacidade de decidir sobre o próprio corpo. É precisamente neste panorama em que ocorre a SIDAdanização proposta por Pelúcio e Miskolci (2009), pela qual são produzidos os corpos soropositivos.

Como argumenta Segata (2020), pensando com os vírus a partir de uma perspectiva não humana, as políticas direcionadas aos vírus facilmente se direcionam aos humanos associados a eles. Por serem invisíveis, estes humanos são feitos sua mediação simbólica, operando como uma lente de aumento destas criaturas. Logo, a noção de um inimigo exterior que invade e mata é transportada deles para nós, infectados ou não (Segata, 2020).

Ainda diante destas contribuições, assim como no caso do HIV, Rogério D. Junqueira e Marco A. M. Prado (2020) argumentam que a noção de grupo de risco não apenas orienta políticas de saúde, mas, juntamente coma noção de indivíduo, opera de forma a essencializar o próprio risco nestas pessoas, “opera como fator de naturalização e banalização das mortes” (Junqueira e Prado, 2020, p. 9).

A fixação das narrativas que unem certos vírus a determinados corpos naturaliza a morte destes sujeitos por doenças virais, e, também, invisibiliza outros grupos cujas mortes são éticamente relevantes. Combinações apocalípticas unem vírus à raça. Como lembra Krenak (2019), as epidemias têm participado dos processos de colonização há pelo menos 521 anos, quando a população nativa das Américas foi dizimada pelo vírus da varíola trazido pelos povos europeus.

Para ilustrar este ponto, tomamos a matéria publicada pelo portal da Joint United Nations Programme on HIV/Aids - UNAIDS em 2017. Segundo dados do Boletim Epidemiológico da aids de 2017 (Ministério da Saúde, 2017), a porcentagem de novas infecções por HIV em pessoas pretas e pardas se mostrou superior à da população branca, 54,8% e 44%, respectivamente. Diferença ainda maior quando comparadas às porcentagens entre as mulheres, sendo 39,2% dos novos casos em mulheres brancas e 59,6% negras. A taxa de mortalidade por morbidades relacionadas à aids na população preta e parda foi de 10,9 em 10.000, configurando 58,2% das mortes nos período que compreende de 2007 até 2015.Segundo a matéria da UNAIDS (Joint United Nations Programme on HIV/Aids, 2017), dentre as causas destacadas como principais responsáveis pelas diferenças entre os números, estão o racismo sofrido por estas pessoas nos atendimentos nos ambulatórios, assim como a dificuldade de acesso aos serviços especializados.

Ainda acerca epidemia da aids, os discursos emergentes na epidemia da aids acerca da origem do HIV na África evidenciavam a associação do vírus com a questão da raça, alocando-o também nas populações africanas (Patton, 1990). De modo semelhante, ao ser nomeado de “vírus chinês”, no início da pandemia, o Sars-CoV-2 foi rapidamente articulado às noções de racismo por parte das nações ocidentais (Segata, 2020).

Analisando o contexto da emergência do vírus do H1N1 na China em 2003, Katherine A. Mason (2015) busca compreender como as noções de raça e de vírus são apropriadas nos discursos acerca da epidemia. Para a autora, as narrativas pelas quais os vírus são ligados a determinadas raças, por meio de correlações criadas, dizem respeito a um processo de racialização não apenas das pessoas, mas também dos vírus. O que faz com que seja possível sustentar uma ideia de que os vírus pertençam à determinada população, à determinada raça, argumentando uma predisposição genética entre estas que justifique sua morte/extermínio (Mason, 2015).

Segundo a autora, tomando os conhecimentos do campo da virologia, no que diz respeito à exposição frequente entre determinados humanos a certos vírus, ao longo de muitos anos, é possível observar o movimento contrário. O que tende a ocorrer é a adaptação do sistema imunológico desta população à ação dos vírus, de forma a amenizar os sintomas de uma doença viral, ou mesmo eliminar sua presença (Mason, 2015).

A racialização dos vírus, neste panorama, como a noção de uma criatura programada para matar mais uns do que outros configura, também, políticas de desresponsabilização de mortes. No caso de genocídios, como aponta Eduardo Viveiros de Castro (2020), em uma verdadeira operação necropolítica.

Retornando aos dados de infecções virais considerando os atravessamentos de raça, no que diz respeito à situação dos povos quilombolas no Brasil diante da pandemia, segundo os números divulgados pelo portal Quilombo sem Covid-19 (s/d), a taxa de letalidade por coronavírus nessa população, no dia 17/06/2020, chegava a ser quase o dobro da média nacional, 11,09% e 4,9%, respectivamente. Cenário semelhante também se apresentava nas comunidades indígenas em Roraima nas quais, até a data da reportagem publicada pelo portal Boa Vista Já (“Com mais de 200 infectados…”, 2020), em 29/07/2020, foram diagnosticados mais de 200 casos de Covid-19, segundo os dados da Hutukara Associação Yanomami – HAY.

Na reportagem publicada no site da Uol, os motivos que surgem para essa discrepância evidenciada nos números advêm de aspectos tais como a falta de saneamento básico nas aldeias, a dificuldade de acesso das UBS (Unidade Básica de Saúde) ao local, dificultando o acesso à saúde, e o racismo dos profissionais de saúde que ali atuam, conforme apontado por uma das entrevistadas, o que atrapalha o atendimento dos doentes (Sanz, 2020).

Em estudo realizado em 133 cidades brasileiras, com 56.190 participantes, Pedro Hallal et al. (2020) apresentam um panorama do Sars-CoV-2 no Brasil. Segundo os autores, a prevalência de casos de Covid-19 nas populações pretas, pardas e indígenas, individualmente, mostraram-se superiores aos casos identificados na população branca. Diante dos resultados apresentados, chama-se a atenção para os casos de 11 cidades ribeiras ao Rio Amazonas, nas quais 25% da população apresentaram resultado positivo para o teste de Covid-19, número muito superior às taxas de casos de outras cidades do Brasil. Em último destaque, de acordo com os resultados da pesquisa, foi possível observar duas vezes mais casos da doença na população mais pobre, comparada com a mais rica.

Para os autores, as diferenças de números de casos entre estas camadas da população não podem ser sustentadas por diferenças genéticas entre elas, que facilitem a infecção dos vírus, podendo agravar sua ação nestes organismos, ou mesmo pela adaptabilidade do vírus diante determinados climas. Devem-se, principalmente, à má gestão da pandemia no cenário brasileiro, refletida na instabilidade na administração do Ministério da Saúde e nas informações falsas difundidas para a população (Hallal et al., 2020).

Considerando os limites de agência do vírus, assim como sua virulência e capacidade de infectar, e pensando a partir das reflexões propostas por Hallal et al. (2020), e Mason (2015), de modo explícito ou não, é possível compreender uma convocatória dos vírus para as relações racistas humanas. Desta forma, são transformados em mais uma das tecnologias de assassinato, descritas por Mbembe (2016), compondo uma estratégia das operações necropolíticas.

Retornando à Butler (2009/2017), ao serem expostas à vulnerabilidade, nestes casos aos vírus, estas vidas deixam de ser apreendidas como tal. Os grupos de risco se valem de uma ideia de natureza que permite associar os vírus a uma população fazendo com que estas mortes não mais sensibilizem moralmente os demais, deixando de ser choradas, ou enlutadas, por meio de um processo de naturalização.

Nos casos da exposição diferencial das populações negras, indígenas e pobres aos vírus, ainda que não se possa falar em grupos de risco, a raça opera da mesma forma. As fronteiras erguidas no/pelo racismo, tal como na/pela heteronormatividade, a partir de determinadas noções de natureza, operam especificamente de modo a estabelecê-los como o outro de certa humanidade, fazendo com que sua eliminação não apenas seja esperada, mas operada (Mbembe 2016; Krenak, 2019), apesar das tentativas do liberalismo capitalismo em transformar esses sujeitos em possíveis consumidores e integrá-los numa cidadania de consolação, via homonormatividade (Oliveira, 2013).

Os vírus, neste caso, ainda que não fossem esperados, surgem como uma ferramenta oportuna, uma tecnologia de assassinato (Mbembe, 2016), administrada de sorte a matar mais e em menos tempo. Retomando Mason (2015), ao serem associados com determinadas raças, os próprios vírus passam a ser racializados. Desta forma, sustentam-se discursos que os associam a determinadas populações.

Retornando ao campo da biopolítica, a racialização dos vírus também opera no campo da vigilância das fronteiras geográficas. Não fortuitamente, o fechamento das fronteiras nacionais no início da pandemia de Sars-CoV-2 configurou uma prática comum internacionalmente, na tentativa dos Estados de protegerem sua população das demais que podem estar infectadas (Preciado, 2020).

5 Hífens infectados

Na tentativa de resumir a argumentação proposta até aqui e pensando com os vírus nos termos dos encontros interespecíficos tomados da teoria de Haraway (2003, 2008, 2016), é possível compreender que: sem qualquer comprovação de afinidade genética entre determinados vírus e certos humanos, pelas quais se justifique a distribuição diferencial destas mortes, este fenômeno se produz, reproduz e materializa no campo social estabelecido pelos humanos.

Cabe, portanto, pensar em termos da relação estabelecida entre estes dois agentes, num emaranhado com tantos outros atores que produzem os mais inusitados efeitos, como nos lembra Haraway (2003, 2008, 2016). Diz respeito às quais vidas se tornam eticamente relevantes no contato com os vírus, quais devem ser protegidas.

Logo, o esforço realizado foi o de situar algumas destas interações, salientando, sobretudo, como se dá a distribuição diferencial da morte nestes casos. Trata-se de um movimento contingencial e intencionado de produção destas mortes que não pode ser resumido à ação dos vírus nestes corpos.

Neste panorama, há a produção de uma ideia de natureza que sustenta as dicotomias criadas por humanos, hierarquizando estas vidas, pelas quais são orientadas políticas de vida e de morte. Neste processo, as doenças virais, ou melhor, a morte por doença viral distribuída heterogeneamente nos boletins epidemiológicos surge como registro corporal desta divisão.

Como argumenta Segata (2020), diante das epidemias e pandemias, as operações biopolíticas não dizem respeito apenas aos humanos, mas incidem diretamente na relação destes com os atores não humanos, uma vez que é levada em conta, e produzida, sua agência nos âmbitos políticos e sociais. E, arriscamos a dizer, o mesmo ocorre com as operações necropolíticas.

No hífen que liga estes humanos e vírus, a noção de exterioridade atribuída às doenças e patógenos se junta ao outro criado nas fábulas racistas e heteronormativas. Retomando Mbembe (2016), o terror faz parte deste jogo. A ameaça de morte por doença viral não apenas opera no campo biopolítico, de produção de uma noção de biologia pela qual se controla uma população, ainda que pelo medo. A morte efetiva destas pessoas é operada diretamente, campo no/do qual os vírus têm feito parte há centenas de anos (Mbembe, 2016; Krenak, 2019). Todavia, diferentemente de como ocorreu no passado, no caso da varíola, por exemplo, sabe-se com o que estamos lidando. Implica uma intenção voltada à ação dos vírus.

Tomando como inspiração os debates de Segata (2020), diante da pandemia de Sars-CoV-2, talvez seja possível falar de uma operação necropolítica que atua diretamente na relação entre vírus e humanos. A distribuição diferencial da precariedade pela maior exposição aos vírus torna essas vidas não mais apreendidas como tal. Pela naturalização de sua morte, não mais se comove, não mais se sensibiliza. A morte destas populações por doença viral já estava no horizonte de previsões, era uma expectativa.

A desresponsabilização dos Estados, governos e instituições por estes números, pela responsabilização dos sujeitos já precarizados, ou dos vírus, ou dos dois na mesma figura, surge neste cenário como mais um discursos de conexão entre estes. Hifenizando as narrativas de natureza: aquela criada para sustentar a diferença, pelas quais opera a exclusão e eliminação das populações (Haraway, 1999; Krenak, 2019; Mbembe, 2016; Viveiros de Castro, 2020); e a ideia do vírus encarregado de riscar estes grupos específicos.

6 Financiamento

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES).

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