Gênero, drogas e cuidado: normalização e singularidade nas práticas de saúde

Gender, drugs and care: normalization and singularities in health practices

  • Isabela Saraiva de Queroz
  • Marco Aurélio Máximo Prado
Neste ensaio discutimos como a norma de gênero heterossexual estabelece contornos específicos à experiência de mulheres usuárias abusivas e/ou compulsivas de drogas e ao cuidado em saúde a elas direcionado. Analisamos o modo como as mulheres são alçadas à condição de objeto nas práticas de saúde, majoritariamente fundamentadas na normalização biopolítica e organizadas a partir do dispositivo da medicalização, que se ocupa menos da escuta das singularidades do que da gestão dos corpos. Concluímos afirmando a importância do vínculo como tecnologia relacional para a ampliação das possibilidades de compreensão das singularidades, fundamento essencial para a exploração aprofundada das formas de engajamento das mulheres com o mundo e para a elaboração de estratégias de cuidado e preservação no uso de drogas.
    Palavras chave:
  • Papéis de gênero
  • Política de drogas
  • Política de saúde
In this assay, we discuss how the heterosexual gender norms establish specific practices to the experience of drug-abusive women and to the health care directed to them. We analyze how women are subjected to the condition of object in the health practices, mainly based on biopolitical normalization and organized by medicalization device, which focuses less on hearing of the singularities than on the management of the bodies. We conclude affirming the importance of binding as the relational technology for the increasing of the possibilities for singularities understanding, an important basis for a deeper exploration of the women ways of engaging the world, and for the development of strategies for care and preservation in drug use.
    Keywords:
  • Gender roles
  • Drug policy
  • Health policy

1 Introdução

Diferenças no modo como as intervenções direcionadas a homens e mulheres são feitas no campo da saúde têm sido apontadas por diversos autores. Para Marlene Strey e Gilda Pulcherio (2010), considerar gênero como categoria analítica proporciona uma melhor compreensão de áreas da saúde e do bem-estar, bem como potencializa o enfoque político das discussões relativas ao planejamento e financiamento dos serviços de saúde. Para as autoras, as diferenças de gênero podem influenciar tanto mulheres quanto homens no que se refere à “exposição a fatores de risco; experiência subjetiva da enfermidade e seu significado social; atitudes sobre a manutenção da própria saúde e dos demais membros da família; padrões de uso dos serviços e percepções da qualidade dos cuidados” (p. 15).

Também com vistas a discutir diferenças de gênero no campo da saúde, Mabel Burin (1990) identificam uma maior demanda das mulheres pelos serviços de saúde, para elas explicada por dois fatores. De um lado, mais frequentemente as mulheres se consideram mentalmente enfermas devido, entre outras coisas, ao papel inferiorizado a elas atribuído socialmente; de outro, as mulheres encontram-se mais vulneráveis ao adoecimento psíquico devido a estilos de vida mais restritivos, com maiores condições de stress e outros problemas associados a seus papéis sociais, dentro e fora da família. Como decorrência, na maioria das vezes, fica o entendimento de que suas queixas são de caráter ‘psicossomático’, o que, frequentemente, leva à prescrição maciça de tranquilizantes (Burin et al., 1990).

Observa-se, ainda, a centralidade da atenção à saúde das mulheres em torno das funções e órgãos sexuais e reprodutivos. Sobre isso, Fabíola Rohden (2002) aponta que as teses produzidas na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro entre 1833 e 1940, publicadas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1985, caracterizavam a vida das mulheres em função da preparação, exercício e perda da capacidade reprodutiva, como é o caso das teses sobre menstruação ou puberdade feminina, não havendo nada correspondente para o homem, ou seja, “a vida masculina não é problematizada pela medicina a partir da capacidade ou não de reprodução, como acontece com as mulheres” (p. 105). Depreende-se disso que “de um lado, a mulher é tratada no discurso médico como eminentemente presa à função sexual/reprodutiva, diferentemente do homem. De outro lado, quando se fala em reprodução, quase que maciçamente se evoca a mulher e raras vezes o homem” (p. 107), como é o caso, por exemplo, dos debates em torno da infecundidade ou do aborto.

Já no que se refere aos homens, a saúde reprodutiva não se apresenta como foco central, ao contrário, “para eles, a referência de saúde não está centrada no urologista, mas nos especialistas do aparelho digestivo, cardiovascular, etc.” (Strey e Pulcherio, 2010, p. 23). Ainda sobre a saúde do homem, Wagner Figueiredo (2005) ressalta que o modelo de masculinidade hegemônico, que presentifica a noção de invulnerabilidade como um valor, faz com que a maioria dos homens tenha dificuldade de verbalizar suas necessidades no campo da saúde, uma vez que falar de seus problemas poderia ser interpretado como “uma demonstração de fraqueza, de feminilização perante os outros” (p. 107). Nesse sentido, para Mara Lago e Rita de Cássia Müller (2010), relacionar-se de forma íntima com os riscos, com a vulnerabilidade, com as diversas expressões de violência, seria para muitos homens um modo de se manterem identificados aos avatares da masculinidade.

Tais concepções no campo da saúde sobre as diferenças entre homens e mulheres não são isoladas, antes, refletem o modo como organizamos saberes e práticas sociais relativas ao sistema de classificação binária de gênero, evidenciando a nossa inscrição numa sociedade sexista, organizada a partir de discursos sobre o corpo que causam como efeito modos regulados a partir de uma matriz heterossexual. Tal regulação, conforme proposto por Florêncio Costa-Júnior e Ana Cláudia Maia (2010), estabelece como norma de gênero no campo da saúde “um corpo masculino saudável, ativo e resistente, em contraste com um feminino frágil, instável e sensível a doenças” (p. 23).

Com isso, de acordo com Elizabeth Grosz (2000), o pensamento misógino “encontrou uma autojustificativa conveniente para a posição social secundária das mulheres ao contê-las no interior de corpos que são representados, até construídos, como frágeis, imperfeitos, desregrados, não confiáveis, sujeitos a várias intrusões que estão fora do controle consciente” (p. 67). Assim, historicamente, as mulheres foram muito mais vinculadas aos corpos do que os homens, o que fez com que seus papéis sociais e econômicos ficassem restritos a lógicas que se apoiam no essencialismo e no biologicismo. Daí a suposição de que “dadas certas transformações biológicas, fisiológicas e endocrinológicas específicas, as mulheres são, de algum modo, mais biológicas, mais corporais e mais naturais do que os homens” (Grosz, 2000, p. 68).

Importa lembrar ainda, conforme apontado por Ceres Victora e Daniela Knauth (2004), que o próprio conhecimento médico se construiu, em grande medida, a partir de um pressuposto de fragilidade do corpo da mulher, o que estabeleceu práticas corporais específicas a elas, quase sempre convencionadas a espaços sociais regidos pela proteção e pelo controle. Essas prescrições fizeram com que se produzisse um ocultamento de determinadas práticas sociais, não atribuídas diretamente às mulheres. Desse modo, carreiras profissionais e habilidades físicas e cognitivas foram designadas como masculinas ou femininas, produzindo concepções específicas de corpo e gênero, e resultando em cuidados específicos com a saúde. Tais concepções também fortaleceram o estabelecimento de padrões normativos sobre o que é considerado socialmente adequado ou desviante no que se refere a um ou outro sexo biológico, fazendo com que algumas práticas de corpo das mulheres fossem sistematicamente invisibilizadas.

Decorre disso que a exposição ou proteção dos indivíduos a determinadas doenças e/ou problemas de saúde se dá também de forma específica, definida segundo padrões normativos de gênero. Sobre isso, e introduzindo a discussão mais específica proposta neste ensaio, historicamente as mulheres foram sub-representadas nos estudos sobre o uso de abusivo e/ou compulsivo de drogas, prática esta diretamente atribuída ao universo masculino, conforme Jeane Oliveira (2006). Em 1998, Mônica Zilberman já salientava que o diagnóstico de uso abusivo e/ou compulsivo de drogas em mulheres enfrentava limitações impostas pelo estigma social, treinamento inadequado das equipes de saúde e menor procura das mulheres por tratamento especializado. Em decorrência disso, tendo em vista a tendência à homogeneização das práticas no campo da saúde, as necessidades e situações específicas relacionadas ao uso abusivo e/ou compulsivo de drogas por mulheres foram até muito recentemente desconsideradas nos serviços de atenção à saúde.

Frente a esta lacuna, este ensaio discute como a norma de gênero heterossexual estabelece contornos específicos à experiência de mulheres que usam drogas de forma abusiva e/ou compulsiva, e ao cuidado em saúde a elas direcionado. A seguir são apresentados os contornos teóricos necessários à argumentação aqui realizada.

2 Gênero, norma e poder: a constituição de um campo teórico

Compreender como o cuidado em saúde direcionado a mulheres que usam drogas de forma abusiva e/ou compulsiva reproduz hierarquias de gênero requer a discussão do conceito de norma e, mais especificamente, do conceito de norma de gênero heterossexual.

Segundo Piia Korpi (2009), o conceito de ‘norma’ é usado em referência às maneiras de se comportar, sentir e pensar compartilhadas por um grupo, sendo os membros desviantes acossados por vários tipos de persuasão, pressão e sanção, exercidas de forma a adaptá-los aos padrões convencionados.

Uma norma se estabelece por um exercício de poder e sua análise caracterizou toda a obra de Michel Foucault, filósofo francês cujo pensamento influenciou de modo decisivo as ciências humanas contemporâneas. Foucault se debruçou sobre a análise das formas pelas quais se organizam as modalidades históricas de exercício do poder, privilegiando a descrição dos seus mecanismos e modo de funcionamento. Para ele, foi a destituição do saber do soberano que possibilitou a emergência da norma, já que desta forma o poder deixava de ser centralizado em uma única figura, passando a disseminar-se na sociedade e nas instituições, e criando as condições para a emergência de um poder disciplinar: “no lugar desse poder decapitado e descoroado se instala um poder anônimo múltiplo, pálido, sem cor, que é no fundo o poder que chamarei de disciplina” (Foucault, 2006, p. 28). O deslocamento do poder soberano para o corpo social faz com que ele seja exercitado na forma de micropoderes ou de uma micropolítica, cujo objetivo é o adestramento e a docilização dos corpos. Surge, então, a partir da segunda metade do século XVIII, o poder disciplinar (Foucault, 1987).

Inicialmente, portanto, a noção de norma esteve ligada à de disciplina, cujo código é o da normalização, não se referindo ao horizonte teórico da lei e do direito, mas àquele das ciências humanas e do saber clínico (Foucault, 1979). Esta primeira concepção de norma em Foucault, a normalização disciplinar, “demarca espaços a serem ocupados, controla o tempo em que os indivíduos realizam suas atividades, estabelece sequências e ordenações dessas atividades em função de objetivos precisos, conduzindo ao adestramento e ao controle permanentes” (Fonseca, 2009, p. 3). Sua descrição teve como referência principal os corpos dos indivíduos localizados no interior de espaços institucionais precisos, como o asilo psiquiátrico, o hospital, a fábrica, a prisão (Foucault, 1987). A norma sugere, então, conforme Kleber Prado-Filho e Sabrina Trisotto (2007), uma ideia reguladora, de caráter sutil, mais moral que científica, responsável pela comparação dos indivíduos a partir de uma demarcação de ‘desvios’, legitimada por conhecimentos supostamente científicos, que não apenas inclui ou exclui os sujeitos numa faixa de normalidade construída, como também reconduz ao centro os desviantes.

Em um segundo momento, a analítica do poder em Foucault incorpora o estudo de mecanismos de normalização que terão como ponto de fixação privilegiado a vida biológica, naquilo que ela comporta de regularidades e variáveis perceptíveis no corpo coletivo das populações. É assim que o conceito de norma encontra-se com o de biopolítica, que, conforme Judith Revel (2011), “se ocupa da gestão da saúde, da higiene, da alimentação, da sexualidade, da natalidade etc., na medida em que tais gestões se tornaram apostas políticas” (p. 24).

A norma representa agora o critério para as diferentes racionalidades políticas e os diversos procedimentos técnicos pelos quais se dará o seu governo, tendo em vista as diversas normalidades diferenciais inerentes aos fenômenos da vida biológica (Foucault, 2008). Nesse sentido, conforme Márcio Fonseca (2009), Foucault denomina ‘artes de governar’ ou ‘governamentalidades’ o conjunto das racionalidades políticas e dos procedimentos técnicos pelos quais se dá o governo da vida. Trata-se, portanto, da normalização biopolítica, que representa, “essa grande ‘medicina social’ que se aplica à população com o propósito de governar sua vida: a vida faz, daí em diante, parte do campo do poder” (Revel, 2011, p. 25).

Enquanto o poder disciplinar possui como característica a transformação dos corpos em máquinas dóceis, o biopoder atua também sobre os corpos, mas como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e as mortes, a longevidade, a fecundidade, o estado de saúde e a incidência de doenças, com todas as condições que podem fazê-los variar (Foucault, 1988). Nesse sentido, cabe pensar as práticas de governo da vida presentes na regulação dos corpos de mulheres que usam drogas de forma abusiva e/ou compulsiva, lembrando que em nossa hipótese tal regulação se dá como efeito das normas estabelecidas pela matriz heterossexual.

Sobre isso, vimos que as sociedades modernas desenvolveram uma poderosa tecnologia política de produção de indivíduos, através da aplicação de procedimentos disciplinares que estabelecem uma “ortopedia da subjetividade” (Foucault, 1987). Faz isso:

Separando, individualizando, marcando e identificando os sujeitos, comparando-os e classificando-os entre si, remetendo-os a uma média construída para o seu grupo, demarcando limites e fronteiras, incluindo, excluindo, marcando e corrigindo os desvios, reconduzindo, ainda, à norma (...). Tal tecnologia encontra-se no cruzamento ou na articulação de dispositivos de identificação, sexualização e normalização social, que produzem indivíduos identificados como normais ou anormais. (Prado Filho e Trisotto, 2007, p. 11)

Desse modo, conforme Edgardo Castro (2009), o poder, na sua forma moderna, se exerce em um domínio que não é o da lei, e sim o da norma, e não simplesmente reprime uma individualidade ou uma natureza já dada, mas, positivamente, a constitui, a forma. Nos termos de Judith Butler (2006), “cuando Foucault afirma que la disciplina ‘produce’ individuos, no sólo quiere decir que el discurso disciplinario los dirige y los utiliza, sino también que activamente los constituye” (p. 80).

Assim, como em Foucault, nos estudos de gênero de Butler norma refere-se à norma social e diz respeito à produção dos sujeitos e à atuação deles na realidade social (Korpi, 2009). Ao contrário das normas legais, as normas sociais podem operar sem estar inscritas num texto legal ou serem enunciadas verbalmente. Para Butler (2006), a norma, nesses termos, apresenta-se de forma bastante volátil, sendo difícil enunciá-la num formato propositivo. São por isso, difíceis de ler, sendo os efeitos que produzem a forma mais clara mediante a qual podem ser discernidas (Butler, 2006).

A partir do aporte teórico até aqui exposto, discutimos como a norma é mantida e justificada por regulações disciplinares necessárias à produção de ‘indivíduos normais’ e por uma série de biopoderes aplicados aos indivíduos em sua existência singular e às populações, segundo o princípio da economia e da gestão política (Revel, 2011). Consideramos aqui, então, que pensar a gênese e os efeitos das hierarquias de gênero no cuidado em saúde direcionado a mulheres que usam drogas de forma abusiva e/ou compulsiva requer a incorporação das dinâmicas de poder no interior das relações de gênero como analisador fundamental.

Sobre isso, Butler (2006) indica que a norma rege a inteligibilidade cultural, permitindo que certos tipos de práticas e ações sejam reconhecidas, impondo uma rede de legitimidade sobre o social e definindo os parâmetros do que aparecerá e do que não aparecerá em sua esfera. Afirma, assim, que as condições de inteligibilidade são constituídas a partir de normas de reconhecimento socialmente articuladas.

Desse modo, para Butler (2006), afirmar que gênero é uma norma não é unicamente o mesmo que dizer que existem visões normativas da feminilidade e da masculinidade, ainda que essas normativas claramente existam. Gênero, assim, não é exatamente aquilo que alguém ‘é’ ou que alguém ‘tem’. Trata-se, antes, do aparato através do qual tem lugar a própria produção e normalização do masculino e do feminino numa coerência binária contingencial. É desse modo que um discurso restritivo de gênero, que insiste no binarismo homem/mulher como forma exclusiva de entendimento do campo de gênero, ‘performa’ uma operação reguladora de poder, que naturaliza o caso hegemônico e reduz a possibilidade de pensar em sua alteração.

Butler (2006) afirma, portanto, que as pessoas são reguladas pelo gênero e que este tipo de regulamentação funciona como uma condição de inteligibilidade cultural para todos. Desse modo, se gênero é uma norma, ao mesmo tempo em que aparece independentemente das práticas que rege, sua idealização é um efeito daquelas mesmas práticas. “Esto no sólo sugiere que la relación entre las prácticas y las idealizaciones bajo las cuales trabaja es contingente, sino también que la misma idealización puede ser puesta en cuestión y en crisis, sometiéndola potencialmente a una desidealización y a la desposesión” (Butler, 2006, p. 78).

Pensar o “fora da norma”, contudo, constitui tarefa paradoxal, já que, se a norma dá inteligibilidade e normaliza o campo social, então, estar ‘fora da norma’ significaria, ainda, estar definido em relação a ela. Desse modo, para Butler (2006), desviar-se da norma de gênero nada mais seria do que produzir exemplos aberrantes que os poderes reguladores (médico, psiquiátrico e legal, entre outros) podem rapidamente explorar com o fim de reforçar as razões fundamentais para a continuidade de seu próprio zelo regulatório.

Tendo feito esta incursão sobre o conceito de norma e assumido o pressuposto de vivermos sob uma norma de gênero heterossexual, ou seja, sob a égide da heteronormatividade, através da repetição de atos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, produtora de uma aparência de naturalidade (Butler, 2003), passaremos agora a um campo específico de normalização sobre os corpos — aqui, especificamente sobre os corpos de mulheres —, qual seja, o campo do cuidado direcionado às pessoas que usam drogas de forma abusiva e/ou compulsiva.

3 Heteronormatividade e desigualdade no campo de atenção às pessoas que usam drogas de forma abusiva e/ou compulsiva

Inicialmente, importa lembrar que alterar o estado de consciência por meio do uso de drogas é uma prática humana documentada em inúmeros estudos antropológicos, como os de Antônio Escohotado (2008), dentre outros, não se constituindo necessariamente como um problema, a não ser quando se caracteriza por modos excepcionais, que podem se apresentar como abuso ou compulsão, sendo esses os padrões de uso que compõem o foco de interesse deste ensaio.

Retomando, portanto, a questão aqui em análise, o estudo de Oliveira (2006) identificou associação direta entre uso abusivo e/ou compulsivo de drogas por mulheres e trabalho com sexo, traumas decorrentes de abuso físico e sexual experienciados na infância e/ou adolescência, e níveis mais altos de problemas de saúde mental e crônica, em comparação com os homens. Na mesma direção, Sílvia Brasiliano (2005) e Patrícia Hochgraf (2001), pesquisadoras do Programa de Atenção à Mulher Dependente Química (PROMUD), do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina, da Universidade de São Paulo (IPQ-HC-FMUSP), também indicaram que mulheres relatam mais frequentemente problemas médicos, dificuldades familiares e sintomas psicológicos associados ao uso abusivo de drogas — como depressão, baixa autoestima, comportamento autodestrutivo e elevados níveis de ansiedade —, enquanto os homens relatam mais frequentemente problemas externos, como dificuldades sociais, profissionais, financeiras e legais. Patrícia Hochgraf (1999) também identificaram diferenças nas razões relatadas por mulheres e homens para justificar o uso abusivo e/ou compulsivo de drogas. No caso específico do uso de cocaína, as mulheres relatam mais frequentemente associação à depressão, sentimentos de isolamento social, pressões profissionais e familiares, e problemas de saúde. Os homens, por outro lado, não associam o uso de cocaína a um fator desencadeante em especial, justificando-o apenas pela busca dos efeitos da intoxicação propriamente dita.

Na pesquisa de Francisca Nascimento (2011) o mesmo padrão que associa o uso abusivo e/ou compulsivo de drogas por mulheres a problemas relacionados à vida pessoal, familiar e afetiva, é observado, sendo apontado que mulheres entre 20 e 40 anos relatam alteração em seus padrões de beber como resposta ao sofrimento decorrente da infertilidade, depressão pós-parto e ruptura no casamento ou em outra relação significativa. Entre os 40 e 60 anos, o comportamento de beber de forma abusiva e/ou compulsiva nas mulheres estaria influenciado por outros fatores de estresse, também relacionados, contudo, à vida afetiva e familiar: fim de casamento ou outro relacionamento, saída dos filhos de casa e perda de atratividade física/sexual. A pesquisa também indica serem mais comumente encontrados problemas com o uso de álcool entre mulheres viúvas ou que vivem sozinhas. Por fim, dados das pesquisas de Dorothy Henderson (1994), Brasiliano (2005) e Nascimento (2011) apontaram que as mulheres, em geral, iniciam o uso de drogas sob influência de seus maridos ou companheiros, enquanto os homens o fazem sob influência dos amigos, o que demarca uma desigualdade no modo como homens e mulheres ocupam os espaços públicos e privados.

Nota-se que todas as situações descritas acima como tipicamente associadas ao uso abusivo e/ou compulsivo de drogas por mulheres reproduzem — e mantêm — desigualdades de gênero, que atribuem às mulheres uma condição de insuficiência e fragilidade, e inscrevem o âmbito privado como espaço decisivo para a manutenção da sua saúde e bem estar. Consequentemente, é reforçada sua necessidade de proteção e justificadas as estratégias de controle e vigilância sobre suas vidas. Acrescenta-se a isso, ainda, uma lógica específica de cuidado à mulher, decorrente de sua potencial função reprodutora. Daí todo um aparato governamental de manejo e submetimento, pautado por ações de normatização da saúde e do corpo que, sob o discurso de uma atenção especializada, serve à manutenção das hierarquias de gênero e dos lugares inferiorizados tradicionalmente atribuídos às mulheres.

O II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas, estudo populacional sobre os padrões de uso de álcool, tabaco e drogas ilícitas na população brasileira, realizado em 2012 pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e outras Drogas (INPAD, 2013), apresenta análises que mantêm a perspectiva hierárquica de gênero descrita acima ao considerar as mulheres como mais susceptíveis à dependência de drogas do que os homens, devido a aspectos definidos fisiologicamente. Nesse sentido, Clarice Madruga, coordenadora do trabalho, argumenta que “o organismo feminino aumenta a dependência da droga. (...) a variação hormonal causada pelo ciclo menstrual atrapalha as mulheres que tentam sair da dependência” (“Pesquisa aponta que…”, 2012, seção “Cotidiano”, párr. 7-9).

Vê-se na análise acima que o corpo da mulher é concebido a partir de uma perspectiva essencialista e biologicista, não sendo feita nenhuma menção a explicações socioculturais, históricas ou políticas na definição dos padrões de uso de drogas em mulheres. Além disso, justifica-se o uso de intervenções terapêuticas mais severas para elas, já que seriam mais vulneráveis em função de um corpo frente ao qual têm pouca ou nenhuma autonomia. Assim, conforme Grosz (2000), “como instrumento ou ferramenta, ele (o corpo das mulheres) pede disciplina e treinamento cuidadosos e, como objeto passivo, requer conquista e ocupação” (p. 59).

Em decorrência das desigualdades expostas acima no modo de conceber o uso de abusivo e/ou compulsivo de drogas por homens e mulheres, observam-se experiências de cuidado em saúde definidas a partir de padrões heteronormativos. Assim, para os homens, o tratamento do uso abusivo e/ou compulsivo é apresentado como um meio de aquisição ou retomada de habilidades pessoais e técnicas para o retorno à vida pública, especialmente vinculada ao trabalho, com centralidade para a discussão de temas como seguro-desemprego e previdência social nos serviços oferecidos. Já no caso das mulheres, o foco da ‘reabilitação’ encontra-se na retomada dos vínculos familiares e recuperação dos atributos tradicionalmente associados à feminilidade, como beleza e higiene, ações inspiradas por um viés conservador e patriarcal, que prepara a mulher para o retorno ao casamento, à maternidade e à vida doméstica.

Além disso, às mulheres cabe o título não só de dependentes, mas também de desarrazoadas, indóceis, presas de ditames naturais e incomunicáveis. Soma-se a isso a noção de que são de ‘difícil tratamento’, dentre outras designações sustentadas pela naturalização de condutas tidas como inerentes à mulher. Em conformidade com isso, Zilberman (1998) afirma que poucos trabalhos na literatura sobre uso abusivo e/ou compulsivo de drogas referem-se às mulheres e, quando o fazem, enfatizam que estas são mais doentes e mais difíceis de serem tratadas por terem menos motivação do que os homens. Ainda segundo a autora, a maioria dos estudos existentes é sobre mulheres usuárias de álcool e, quando abordam mulheres usuárias de outras drogas, os estudos destacam especialmente os aspectos gestacionais/obstétricos, enfatizando os riscos fetais decorrentes do consumo de drogas durante a gestação e a possibilidade de infecção pelo HIV.

Importa lembrar ainda que a fundamentação moral de grande parte dos dispositivos de atenção à saúde de usuários abusivos e/ou compulsivos de drogas reforça o lugar das mulheres como representantes do privado, do cuidado e da maternidade, sendo o uso de drogas, que rompe com esses lugares idealizados, visto como duplamente condenável. Soma-se a isso o fato das mulheres historicamente terem sido colocadas como sujeitos dependentes — dos homens ou dos programas do Estado (Fraser, 2009) —, sendo os homens vistos como portadores de direitos e as mulheres como aquelas que ‘necessitam’ de benefícios, o que faz com que os programas direcionados às mulheres tenham, em sua maioria, um caráter essencialmente assistencialista.

Vê-se, assim, que o cuidado em saúde direcionado a mulheres que usam drogas de forma abusiva e/ou compulsiva tem frequentemente colaborado para a manutenção de sua posição de inferiorização social. Cabe lembrar, contudo, conforme apontado por Marco Aurélio Prado e Frederico Machado (2008), que, para que uma relação de opressão possa ser reconhecida como tal, deixando de ser algo justificável por uma suposta organização social necessária, é mister que “os atores sociais subordinados reconheçam na inferiorização social uma injustiça historicamente construída, tomando a ordem social como objeto de questionamento, reflexão e interpelação” (p. 69). Os autores completam ainda ser necessário nesse processo, “o exercício da desconstrução de significados cristalizados e rígidos, o enfrentamento político na arena pública e a configuração de uma identidade coletiva como um ‘nós’” (p. 69), o que aponta para a constituição de um debate político.

Esta argumentação sugere a necessidade de que a discussão sobre o uso de drogas esteja calcada no campo da biopolítica, colaborando para a ampliação do debate sobre o cuidado às mulheres que usam drogas de forma abusiva e/ou compulsiva do campo meramente moral e pessoal para o campo político. Passaremos a isso a seguir.

4 Da normalização biopolítica às possibilidades de governo de si

Como primeiro ponto a ser discutido, ressalta-se os limites que as instituições, fundadas sob os imperativos heteronormativos expostos acima, impõem à enunciação de um saber sobre as mulheres, elaborado por elas mesmas, sobre si mesmas, mesmo quando estas são instituições de promoção de saúde, como no caso dos serviços de atenção à saúde mental. Nessas instituições, as mulheres são, na maioria das vezes, alçadas à condição de objeto de uma intervenção especializada, fundamentada na normalização biopolítica (Foucault, 2008) e organizada a partir do dispositivo da medicalização (Fiore, 2002), que se ocupa menos da escuta da sua singularidade e mais com a gestão da sua saúde e dos seus corpos. Decorre disso que somente de maneira muito incipiente observamos sua emergência nos serviços de saúde como sujeitos cuja fala, legitimada, é considerada na elaboração das práticas profissionais do campo.

Por generalização, as práticas de cuidado direcionadas às mulheres usuárias abusivas e/ou compulsivas de drogas no âmbito familiar também são focadas no atendimento às suas necessidades meramente fisiológicas — alimentícias, de higiene e repouso —, e encaminhamento a serviços especializados em desintoxicação, práticas vistas por elas como ações de controle e punição pela sua situação de dependência, conforme apontado por Alessandro Santos e Mara Silva (2012) e não como ações reconhecidamente de ‘cuidado’.

Para Lúcia Carvalho e Magda Dimenstein (2004), o modelo de atenção à saúde em vigor tende a atribuir pouca importância à subjetividade das mulheres, desconsiderando o seu sofrimento e suas angústias, o que favorece a produção de práticas de cuidado que negam seus problemas sociais, localizando-os na forma de sintomas/doenças a serem medicados. Nesse sentido, Ionara Rabelo e Rosana Tavares (2008) e Reginaldo Mendonça (2011), identificaram uma série de sofrimentos presentes no cotidiano de mulheres usuárias de benzodiazepínicos, ‘silenciados’ pelo uso da medicação: a indignação com relação aos maridos, as dificuldades financeiras, a culpa por não conseguirem cuidar dos filhos, a falta de prazer nas relações comunitárias, o desemprego, a dor por serem vítimas de preconceito por serem pobres ou negras ou por morarem na periferia, a desvalorização que sofrem ao assumirem os papéis de mulher trabalhadora, dona de casa, mãe, esposa, amante, avó e filha-cuidadora.

Assim, o uso de benzodiazepínicos funciona como uma medida disciplinar de controle dos corpos das mulheres que, ao produzir efeitos de fragilização, sabota suas tentativas de subversão das normas hegemônicas de gênero socialmente estabelecidas. Desse modo, aquilo que é considerado desviante em relação a um determinado padrão coletivo passa a ser passível de medicação e controle. Assim, da mesma forma que a medicalização se apresenta de forma negativa, como algo que as mantêm sob a violência da norma heterossexual, se constitui positivamente, como recurso que as possibilita inscreverem-se nessa mesma norma, constiuindo-se como um dispositivo.

Sobre isso, Magali Engel (2004) ressalta ainda que, desde o século XIX as mulheres que questionavam sua condição social atrelada à passividade e à vida doméstica foram consideradas doentes, exigindo tratamentos fornecidos pela medicina. Na mesma direção, Reginaldo Mendonça (2011) afirma que “o medicamento é assim uma espécie de corretivo, um auxiliar da disciplina do corpo. (...) a função dos benzodiazepínicos é a de reter e controlar a mulher nos lares, (...) sustentando um corpo disciplinado com conotações morais” (p. 47).

Outro ponto a ser ressaltado é que, nas instituições destinadas ao cuidado de mulheres usuárias abusivas e/ou compulsivas de drogas, comumente sua condição de abertura criativa, performativamente constituída pelas experiências vividas no seu cotidiano (Butler, 2003), é reduzida ao seu caráter de instabilidade e não-adesão, que frequentemente produz incômodas fissuras na lei regulatória institucional, por provocarem a necessidade de rearticulação de procedimentos e fazerem vacilar os saberes constituídos a seu respeito. Assim, o que muitas vezes é nomeado nos serviços de saúde como ‘indisciplina’ ou ‘baixa adesão’, é entendido aqui como um movimento de interpelação às inteligibilidades instituídas: ao se apresentarem em sua existência sempre mutante e enunciarem um saber sobre si mesmas, as mulheres materializam aquilo que, de algum modo, escapa aos dispositivos de normalização (Foucault, 1979) e nunca se conforma completamente às normas (Butler, 2001).

Desse modo, impõem sua presença com um corpo que escapa aos ideais normativos de gênero, recusando saberes pré-concebidos e generalizantes sobre sua condição, inaugurando o que Foucault (1997) nomeou como ‘governo de si’, ou seja, “pontos de resistência aos diferentes modos de governar que, ao longo dos séculos, impuseram aos sujeitos determinadas formas de ser”, nas palavras de Pedro Grabois (2011, p. 106). Trata-se, assim, para Foucault (2004), de um ato político, que se constitui através do conhecimento de si e que implica também em relações complexas com os outros, que, ao fazerem vacilar os dispositivos de normalização vigentes, articulam cuidado e política, sendo essenciais no processo de elaboração de estratégias de cuidado e preservação no uso de drogas.

Aqui cabe ressaltar, com Butler (2006), contudo, que a norma produz a inteligibilidade cultural, definindo os contornos do que ganha legitimidade social ou não. Desse modo, Butler chama atenção para o fato de que pensar novas posições de sujeito “fora da norma” constitui tarefa complexa, já que, se a norma dá inteligibilidade e normaliza o campo social, então, estar ‘fora da norma’ significaria, ainda, estar definido em relação a ela, instaurando um paradoxo. Assim, a tentativa de se esquivar da norma produz exemplos ‘aberrantes’, que terminam por serem explorados pelos poderes reguladores (médico, psiquiátrico e legal, entre outros) com a finalidade de reforçar as razões para a continuidade de seu próprio zelo regulatório. Portanto, a questão fundamental colocada por Butler também aqui se apresenta como essencial, e segue sendo: quais desvios da norma podem interromper o processo regulatório em si mesmo? Há saídas possíveis capazes de fraturar uma inteligibilidade social?

A discussão aqui realizada evidencia, ainda, a permanente tensão entre diferentes e, em muito, divergentes modos de engajamento com o mundo, pautados na consideração da vida em sua extensão ou em sua intensidade conforme proposto por Eduardo Vargas (2008). Engajar-se visando a extensão, a vida longa e saudável, ou visando a intensidade, a opção pela excitação e pelo êxtase, coloca-se como questão sem solução, atravessada por posições subjetivas e condições concretas de vida. Sobre a opção pela intensidade, cabe lembrar que o uso de drogas como forma de enfrentamento ao tédio vivido no âmbito doméstico é um ponto relevante na trajetória de mulheres usuárias abusivas e/ou compulsivas de drogas. Para Lúcia Morales (2012), compreendido como um elemento mobilizador ao invés de paralisador, o tédio faz ver o reino do essencial e “revela a imprescindível e insubstituível necessidade humana de engajamento em ações com sentido” (p. 125). Assim, ao encontrarem no uso de crack uma saída para o tédio, mulheres que usam drogas de forma abusiva e/ou compulsiva podem estar explicitando o vazio de suas existências e mobilizando-se em busca de algo que pode lhes conferir movimento e sentido, ainda que de modo fronteiriço às normativas de adequação social.

Por fim, apresentaremos a seguir algumas reflexões sobre a importância do vínculo e das relações de intimidade para o acompanhamento de modos singulares de engajamento com o mundo e para a elaboração de estratégias de cuidado e preservação no uso de drogas por mulheres.

5 Considerações finais: acompanhando modos de vida singulares — um cuidado que se faz no vínculo

A partir da compreensão do cuidado como um conjunto de tecnologias corporais, vinculares, subjetivas e políticas, conforme proposto por María Epele (2012), problematiza-se, neste ensaio, a possibilidade de uma oferta de cuidado a mulheres usuárias abusivas e/ou compulsivas de drogas, sujeitos que realizam ações que envolvem graus variáveis de prazer e de dano e que, por isso, são socialmente punidas e criminalizadas. Tal empreitada se torna especialmente complexa se consideramos, com Epele, que se trata de promover cuidado numa das áreas mais complexas da vida cotidiana, qual seja, a do uso problemático de drogas.

Neste sentido, Arthur Kleinman (2009) indica a necessidade de dissociar a racionalidade técnica do saber biomédico do que aqui chamamos de “oferta de cuidado”, atividade complexa que consome tempo e recursos financeiros, exigindo compromisso diário e atenção, e sendo, por isso, produtora de angústia, conflitos e incertezas. É esta oferta de cuidado que, pautada no envolvimento entre as partes, pode ser geradora de laços sociais capazes de sustentar a compreensão de modos singulares de engajamento com o mundo e de relação com as drogas.

Por outro lado, a noção de cuidado também deve ser compreendida a partir das lógicas de poder que normalizam e controlam a vida das populações e participam dos processos de produção de sujeitos (Epele, 2012). Assim, conforme propõe Robert Crawford (1994), a partir do reconhecimento das diversas formas de cuidado é possível identificar o modo como práticas e saberes modelam os corpos sociais e individuais, convertendo a saúde em paradigma da moral. Desse modo, até mesmo as práticas de cuidado de si ou o autocuidado referem-se a modos com que o poder, apoiando-se nos sujeitos individuais, promove o desenvolvimento de atividades de controle e normalização (Foucault, 2006), responsabilizando os próprios sujeitos por seus resultados, ou seja, por sua saúde e suas doenças. Ao contrário, para Epele (2012), o ‘bom-trato’ no campo do cuidado refere-se a “todo tratamento e relacionamento social que inclua a singularidade subjetiva e a escuta baseada na legitimidade e no reconhecimento da demanda da pessoa que dele padece” (p. 252).

Sobre isso, Emerson Merhy e Maurício Chakkour (2006) apontam que o desenvolvimento de uma interação fundamentada no estreitamento dos laços com os usuários é parte necessária ao bom desenvolvimento do trabalho em saúde. A compreensão do vínculo como tecnologia leve1 das relações no campo da saúde perpassa os processos de acolhimento e atenção integral com vistas à escuta e resolução das reais necessidades de saúde. O vínculo, contudo, é uma conquista, não um acontecimento imediato, já diriam Márcia Coelho e Maria Salete Jorge (2009). Decorre da construção de uma relação na qual predomina o interesse pelo outro, mais do que a afirmação de um saber; o reconhecimento de afinidades e identificação com realidades vividas, mais do que a assimetria das aproximações fundamentadas nos ideais de neutralidade e objetividade; o deslocamento de sentidos fixos atribuídos aos sujeitos, mais do que a busca pela confirmação de saberes hegemônicos.

Para Maria de Fátima Sousa (2002), o consumo elevado de tecnologia dura, de modo geral, pouco ou nada acrescenta ao processo de produção da saúde das pessoas e comunidade, uma vez que subestima-se o contato e o diálogo com o usuário, em detrimento da realização de baterias de exames de laboratório e complementares. Do mesmo modo e em decorrência disso, o usuário tende a valorizar a qualidade do seu atendimento pelos procedimentos complexos utilizados em seu tratamento. Reconhecer os limites tecnológicos do serviço de saúde torna-se, assim, fator fundamental para a estruturação do trabalho em saúde, pois estimula a ação dos profissionais de saúde como participantes da saúde dos usuários, o que possibilita o trabalho com os aspectos subjetivos dos processos de saúde e doença, fundamental para que os sujeitos se coloquem como responsáveis por sua vida e tenham papel central na construção de sua saúde (Coelho e Jorge, 2009).

Para Vanessa Barros e Lílian Silva (2002), “certos acontecimentos só nos são compreensíveis se vistos de seu interior, se conseguimos apreendê-los por intermédio dos sujeitos que deles participam, ou seja, encarnados em uma experiência individual” (p. 137). Assim, por exemplo, quando mulheres questionam coletivamente as relações de opressão e inferiorização às quais estão submetidas é possível criar uma ponte entre suas histórias individuais e a história coletiva de muitas mulheres, assinalam Marco Aurélio Prado e Isabela Queiroz (2012). Trabalhando com trajetórias de vida, relaciona-se o nível individual das narrativas ao nível geral de análise sobre o modo como as normas de gênero determinam modos específicos de relação com as drogas, já que as histórias narradas passam do campo individual e pessoal ao campo social, histórico e político. A partir das relações estabelecidas com e entre as mulheres, portanto, evidencia-se a possibilidade de reconhecimento, nos enredos produzidos, de relações de poder, e de desenvolvimento de uma perspectiva crítica e atenta às intencionalidades que subjazem às práticas e discursos sociais sobre seus processos de saúde-doença.

Por fim, um último apontamento ainda deve ser feito, qual seja, a indispensável explicitação do desafio que a escuta de mulheres representa. Nesse sentido, apresenta-se como tarefa metodológica constante o esforço para evitar a atribuição de sentidos fixos às suas trajetórias ou a produção de um saber sobre elas elaborado exclusivamente por especialistas. Portanto, configura-se como importante desafio metodológico o aprimoramento da capacidade de escutar os sentidos que as mulheres produzem sobre suas próprias experiências e sobre si mesmas, não para construir um saber ‘sobre elas’, ‘para elas’ e, nem mesmo, ‘com elas’, mas, sim, para elaborar, pela reflexividade, conforme proposto por Sofia Neves e Conceição Nogueira (2005), um saber sobre a ‘relação com elas’, única experiência sobre a qual o/a especialista ou pesquisador/a pode ser legítimo enunciador/a.

É a partir dessa posição como pesquisador/a que pode-se, então, ver emergir, na experiência com mulheres que fazem uso abusivo e/ou compulsivo de drogas, novas e desconhecidas nomeações sobre o fenômeno que busca-se conhecer. Assim, dá-se uma torção: não mais se está diante de ‘usuárias de drogas’ mas, sim, de ‘mulheres’, cujas trajetórias incluem experiências de uso de drogas, designadas por elas de formas diversas. Tais encontros possibilitam a ampliação das possibilidades de compreensão de suas singularidades, centrais para a exploração das suas formas de engajamento com o mundo e para a elaboração de possíveis estratégias de cuidado e preservação no uso de drogas.

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