A potência de uma crítica: ideologia na perspectiva construcionista

The power of a criticism: ideology in the constructionist perspective

  • Felipe Tavares Paes Lopes
Neste ensaio, examino de que maneira é possível incorporar, de forma coerente, uma concepção crítica de ideologia em estudos que adotem a perspectiva construcionista. Começo mostrando que tal conceito é um produto intelectual da modernidade e que, por isso, produz uma série de dificuldades para sua assimilação pela referida perspectiva, como o elo estabelecido com a ideia de falsidade epistêmica. Em seguida, argumento que a concepção de ideologia de John B. Thompson permite analisar, consistentemente, os modos através dos quais o sentido se entrecruza com as variadas formas de dominação que caracterizam nossa sociedade e que ela pode ser coerentemente incorporada pelo construcionismo. Também sustento que a crítica dos fenômenos ideológicos pode contribuir para melhorar o foco das lutas políticas.
    Palavras chave:
  • Ideologias
  • Epistemologia
  • Conflitos sociais
  • Construcionismo
  • Relativismo
In this essay, I discuss how it is possible to consistently incorporate a critical conception of ideology into the constructionist framework. I begin this discussion by showing that this concept is an intellectual product of modernity and that, therefore, it produces a series of difficulties for its assimilation by the referred approach, as the link established with the idea of epistemic falsehood. Then I argue that John B. Thompson’s conception of ideology makes it possible to analyse, in a consistent way, the ways in which meaning intersects with the various forms of domination that characterize our society and that can be coherently incorporated by constructionism. I also sustain that criticism of ideological phenomena can contribute to improve the focus of political struggles.
    Keywords:
  • Ideologies
  • Epistemology
  • Social conflicts
  • Constructionism
  • Relativism

1 Introdução

Nos últimos dois séculos, o debate sobre ideologia tem ocupado um papel central nas Ciências Humanas e Sociais. De uma forma ou de outra, praticamente todos(as) os(as) grandes pensadores(as) desse período participaram desse debate — nem que para contestar a pertinência do conceito. Para a maior parte de seus(uas) críticos(as), de tanto ser utilizado, seu significado acabou se esgarçando, tornando-se demasiadamente vago e, portanto, inútil analiticamente. Tratar-se-ia de uma noção confusa, difícil, problemática, estéril. Um “campo minado”, um “terreno movediço”, algo a ser evitado, portanto. Pierre Bourdieu (Bourdieu e Eagleton, 2013), por exemplo, optou por substituir o termo ideologia por conceitos como “violência simbólica”, “poder simbólico” ou “dominação simbólica”, a fim de controlar alguns de seus usos e abusos. Já Serge Moscovici classificou tal termo de estéril e problemático, a partir do qual, segundo ele, não se criou nada minimamente original (Ibáñez, 2001a). Diversos(as) outros(as) autores(as) seguem, todavia, argumentando que, apesar de abrigar uma verdadeira multiplicidade de significados, ele ainda é um instrumento adequado para a análise científica de uma enorme variedade de fenômenos.

Ao debruçar-se sobre a história do conceito de ideologia, John B. Thompson (1984, 1990/2000) distingue duas tradições. A primeira é composta por aquelas concepções que entendem que a ideologia não é, necessariamente, um fenômeno negativo, ou seja, que consideram que ela não é sempre ilusória, errônea ou está a serviço dos interesses dos grupos dominantes. Aqui, a noção de ideologia aproxima-se da de ideário. Trata-se de uma visão de mundo, um sistema de ideias, um conjunto organizado de representações e explicações sobre a realidade. Trata-se de algo que pode estar presente, por exemplo, em qualquer programa político, independentemente de ele ser orientado para a revolução ou para a manutenção da ordem social. Independentemente de ser progressista ou reacionário. Nesse sentido, o fascismo, o stalinismo e o anarquismo seriam igualmente exemplos de ideologias.

A segunda tradição é composta por aquelas concepções que entendem que a ideologia é um fenômeno intrinsecamente negativo e que, por isso mesmo, deve ser condenado. Essas concepções podem ser divididas em dois subgrupos, que obedecem a dois critérios de negatividade: o epistemológico e o político. O primeiro caracteriza a ideologia como um corpo de ideias errôneas, ilusórias, abstratas, impraticáveis. Como uma comunicação sistematicamente distorcida, uma oclusão semiótica, uma confusão entre a realidade linguística e a realidade fenomenal. Em outras palavras, define ideologia a partir de sua relação (problemática) com o conhecimento da realidade social. Já o segundo subgrupo de concepções caracteriza a ideologia como um corpo de ideias que expressa os interesses dominantes ou sustenta relações de dominação. Em outras palavras, define ideologia a partir da sua relação funcional com o poder. Vale salientar, no entanto, que parte significativa das definições de ideologia se situa na intersecção desses dois subgrupos, assumindo, portanto, tanto pressupostos epistemológicos quanto políticos (Thompson, 1990/2000).

Dada a importância dessa segunda tradição para o enfretamento de um vasto conjunto de problemas ainda hoje fundamentais para o campo das Ciências Humanas e Sociais, optei por tomá-la, neste ensaio, como meu objeto de discussão. Mais exatamente, meu objetivo foi examinar de que maneira é possível incorporar, de forma coerente, uma concepção crítica de ideologia em estudos que adotam a perspectiva construcionista1. Afinal, essa incorporação pode estimular o debate sobre as implicações políticas dessa perspectiva no campo supramencionado — especialmente, na Psicologia Social. Ademais, pode abrir uma forma de diálogo possível com outras tradições de pesquisa que, com frequência, estabelecem uma relação tensa com ela, como o marxismo, superando alguns equívocos comuns. Ao desenvolver a discussão proposta, argumentei que, para que seja possível a referida incorporação, é preciso cortar o elo entre ideologia e falsidade epistêmica. Sustentei ainda que, para aqueles(as) que optam por trabalhar com o construcionismo, o conceito de ideologia de Thompson (1990/2000) pode servir de instrumento de análise científica das relações entre sentido e poder.

Popularizado após a publicação do livro “A Construção Social da Realidade”, de Peter Berger e Thomas Luckmann (1966), o termo construcionismo não se refere a uma teoria propriamente dita, ou seja, a um conjunto de pressupostos rígidos e conceitos bem definidos, mas a um movimento que orienta modos de fazer ciência. Sendo assim, como todo movimento, ele é fluído e possui fronteiras porosas, estando em transformação constante. Provavelmente devido a essa fluidez e porosidade, atualmente, é um dos movimentos mais vigorosos do campo psicológico. De acordo com Vivien Burr (1995), o construcionismo chegou ao referido campo na década de 1970, a partir da publicação do artigo “Social psychology as history”, de Kenneth Gergen (1973). Desde então, ao mesmo tempo em que tem polemizado com aquelas correntes que Ibáñez (2001a) denominou de “psicologia tradicional”, o construcionismo tem estabelecido um fértil diálogo com outras abordagens, como a teoria ator-rede (ou atriz-rede), os movimentos feministas e a própria teoria social crítica do Thompson (1990/2000) — entre os(as) autores(as) construcionistas que têm dialogado com esta última teoria, destaco, apenas para citar alguns exemplos, Mary Jane Spink (2006) e Margaret Wetherell e Jonathan Potter (1996).

A despeito de a concepção de ideologia de Thompson (1990/2000) já ser utilizada por autores(as) construcionistas há algum tempo, considero que este ensaio é original uma vez que desenvolve uma reflexão crítica acerca da coerência, consistência e validade desse diálogo, justificando-o. Como é característico de qualquer produção ensaística — cuja gênese remonta ao Renascimento e, em particular, ao filósofo Michel de Montaigne (Hollanda, 2017) — os argumentos aqui apresentados foram desenvolvidos a partir de interesses particulares e reflexões suscitadas a partir da leitura de teóricos(as) diversos(as), com destaque para Tomás Ibáñez (2001a, 2001b, 2005a, 2005b) e Lupicinio Íñiguez-Rueda (2002a, 2002b). Sendo assim, privilegio o diálogo com o “construcionismo espanhol”, que possui particularidades, não podendo ser confundido com o desenvolvido em outros contextos. O campo construcionista, vale destacar, não é um espaço homogêneo, mas, sim, caracterizado por disputas e controvérsias. Minha opção pelos autores supramencionados deve-se, principalmente, à sua influência sobre o referido campo e à importância que atribuem à análise das formas de dominação nas sociedades atuais.

Em relação a essa análise, não há dúvida que o construcionismo pode realizá-la de variadas maneiras, até mesmo porque as relações de dominação podem ser estabelecidas e sustentadas de modos muito diversos: por meio da força bruta, da apatia, da indiferença, do cansaço, do hábito, da rotina e, até mesmo, da servidão voluntária. Ocorre que, tradicionalmente, o construcionismo tem dado um papel de destaque à linguagem no processo de construção da realidade social. Assim, mesmo que o estudo da ideologia deva ter sua esfera de aplicação limitada, não podendo abarcar uma série de fenômenos potencialmente relevantes para a análise da dominação, ele é de grande relevância para a referida perspectiva na medida em que focaliza as maneiras como o sentido está a serviço da dominação. Essas maneiras, no entanto, variam de acordo com o contexto estudado, por isso, é de fundamental importância prestarmos atenção à interação entre sentido e dominação nas circunstâncias concretas da vida social.

Feito esse esclarecimento e seguindo as análises de Ibáñez (2001a, 2001b) e Íniguez-Rueda (2002a), destaco que, ainda que não possua um conjunto fixo de características, a perspectiva construcionista tende a adotar uma postura relativista, antirrealista e antiessencialista, rejeitando os principais ideais da modernidade — como o de que o conhecimento válido constitui uma representação correta e confiável da realidade, o de que é possível separar sujeito e objeto, o de que a realidade é uma entidade independente de nós e o de que a verdade possui um caráter absoluto e transcendental. Ideais que, conforme veremos na próxima seção, influenciaram a própria constituição do conceito de ideologia.

2 As marcas da modernidade na crítica da ideologia: representação, verdade e falsa consciência

Assim como qualquer período histórico, a modernidade possui, evidentemente, um começo e um fim. O fato de ela poder ser temporalmente delimitada não significa, no entanto, que seja possível indicar pontos fixos, facilmente localizáveis na história. É sempre preciso desconfiar de datas para localizar grandes transformações sociais, culturais e políticas, uma vez que essas transformações são processuais e podem sofrer reveses. Assim, seguindo as reflexões de Ibáñez (2015) e Íñiguez-Rueda (2002a), entendo que o início e o declínio da modernidade ocorreram em um processo mais ou menos longo, que durou alguns séculos. Determinados eventos, todavia, foram fundamentais para a sua constituição. Embora não seja meu objetivo esmiuçá-los, considero importante citar o advento, no século XV, de uma tecnologia da inteligência que, como tal, permitiu novas operações do pensamento: a imprensa. Esta não foi apenas um importante vetor de difusão do conhecimento, mas incidiu sobre a sua própria natureza, modificando a forma de produzi-lo e apresentá-lo. E, ao fazer isso, permitiu o surgimento daquele que, talvez, seja o mais descomunal empreendimento da modernidade: a moderna razão científica. Afinal, se o(a) autor(a) (ou o(a) simples copista) está constantemente presente no manuscrito; nas páginas impressas, ele(a) esfumaça-se, desaparece de cena. Esse apagamento dos vestígios da autoria, aliado ao início da produção em série de gráficos, tabelas e imagens, colaborou para o desenvolvimento das ideias de objetividade, fiabilidade e neutralidade, que são a base mesma da concepção de conhecimento da modernidade: o conhecimento como espelho da natureza.

Do ponto de vista do pensamento moderno, o conhecimento válido deve representar corretamente a realidade, que existiria independentemente de nós. Nesse contexto, a verdade seria o critério decisório para distinguirmos tal conhecimento do inválido. A modernidade, nesse sentido, mantém uma perspectiva platônica de verdade, na medida em que conserva seu caráter absoluto e transcendental. A verdade, aqui, para ser efetivamente verdade, não pode ser relativa a circunstâncias ou considerações verdadeiras, isto é, deve transcender o caráter contingente da subjetividade humana. Não à toa, um dos principais filósofos da modernidade, René Descartes (1641/1999), propôs-se a eliminar todas as opiniões em que acreditava e a duvidar metodicamente de tudo até chegar a uma certeza indubitável (“penso, logo existo”) e, com isso, começar tudo novamente a partir dos fundamentos, estabelecendo algo sólido e duradouro nas ciências. Ao mesmo tempo em que os filósofos racionalistas, como Descartes, defendiam que o caminho para a certeza é a própria razão; os empiristas sustentavam que a experiência constitui sua via de acesso. De acordo com Ibáñez (2005a), os primeiros coincidem na convicção de que a razão permite acessar a conhecimentos verdadeiros; os segundos coincidem na convicção de que os sentidos permitem, no mínimo, alcançar um conhecimento mais seguro do que o mundo fornecido pelo mundo das aparências; e ambos mantêm a ideia de verdades indubitáveis, que não requerem justificativas posteriores

Essa concepção de verdade é importante de ser colocada em tela, pois marca o contexto filosófico a partir do qual o conceito de ideologia surgiu. Até onde se sabe, o primeiro uso do termo ocorreu no fim do século XVIII, quando o filósofo iluminista francês Destutt de Tracy o empregou para nomear seu projeto de uma nova ciência, que estava interessada na análise sistemática da organização, da combinação e das consequências das ideias e sensações. Como considerava que não podemos conhecer as coisas em si mesmas, mas apenas as ideias e sensações que formamos delas, essa ciência seria fundamental para a constituição de uma base segura para o conhecimento científico. A ideologia seria, portanto, uma espécie de primeira ciência (Thompson, 1984, 1990/2000).

Para a discussão aqui proposta, é mais relevante, contudo, a forma como Napoleão Bonaparte ressignificou, em seguida, o termo. Como é de conhecimento público, em 1799, ele deu um golpe de Estado e se tornou o primeiro cônsul da França. A despeito de ter apoiado algumas ideias de Tracy na elaboração de uma nova constituição, ele desconfiava de suas ligações com o republicanismo, que se apresentava como uma ameaça a suas ambições autocráticas. Com efeito, passou a ridicularizar as pretensões da ideologia, classificando-a como uma doutrina especulativa, abstrata e divorciada da realidade. Tratar-se-ia, em última instância, de uma metafísica obscura. A partir de então, o significado do termo ideologia começou a mudar, passando também a se referir a ideias errôneas e ilusórias. Esse novo significado foi posteriormente incorporado por Karl Marx, que ocupa uma posição central na história do referido conceito. Afinal, na sua obra, ele adquire um novo status como instrumental crítico e como componente fundamental de um novo sistema teórico (Thompson, 1990/2000).

Ao analisar a obra de Marx, Thompson (1990/2000) observa que o filósofo alemão emprega o termo, no mínimo, de três maneiras diferentes. Apesar dessas diferenças, a ideologia carrega, em toda sua obra, um enorme peso epistemológico, referindo-se a um conjunto de ideias abstratas, impraticáveis, errôneas ou ilusórias. Não à toa, do seu ponto de vista, a crítica da ideologia é uma tarefa fundamental. Até mesmo porque, além de ser epistemologicamente problemática, a ideologia é, para ele, politicamente negativa, expressando os interesses dominantes ou sustentado relações de dominação. Fundamentalmente, do ponto de vista de Marx, a crítica da ideologia consiste em diferenciar o imediato, o abstrato e a aparência do mediato, do concreto e do ser, respectivamente. Mais exatamente, consiste em compreender o processo efetivo de constituição da realidade, que se daria através de mediações contraditórias, que nunca estariam dadas à observação. A análise que ele faz da mercadoria é ilustrativa. Esta, à primeira vista, é apenas uma coisa. Mas, se nos aprofundarmos em sua gênese, veremos que é, na verdade, tempo de trabalho. Mas não qualquer tempo de trabalho, ela é tempo de trabalho não pago. Nesse sentido, ocultaria o fato de que, por detrás de sua aparência, há exploração econômica. Assim, ao invés de aparecer como o produto de relações sociais particulares, a mercadoria apareceria como um bem que se compra e se consome (Chauí, 2001/2008; Marx, 1848/1987). Como valendo por si mesmo e em si mesmo. Dessa forma, enquanto a ideologia coisificaria a mercadoria; sua análise científica desvelaria seu real processo de constituição.

Essa forma de pensar pode ser considerada tipicamente moderna, na medida em que pressupõe, como afirma Richard Rorty (2013, p. 229), “um meio de representação que, intrometendo-se entre nós e o objeto investigado, produz uma aparência não correspondente ao objeto”. Em outras palavras, ela compartilha, de certa forma, as ideias de que há uma realidade objetiva independentemente de nós e de que o conhecimento válido é capaz de alcançá-la. Ideias que constituem a base mesma da noção (epistemológica) de falsa consciência. Na sua versão mais realista, pressupõe-se que, por um lado, existem aqueles indivíduos (iluminados) capazes de ver o mundo de forma inequivocamente correta e, por outro, existem aqueles indivíduos (alienados) que acreditam em ideias e crenças simplesmente absurdas. Essa noção, segundo Terry Eagleton (1997, pp. 24-25), suscita problemas de ordem não só epistemológica, mas também política, uma vez que “se os seres humanos fossem mesmo crédulos e ignorantes a ponto de depositar sua fé em ideias totalmente sem sentido, então seria razoável perguntar se valeria a pena apoiar politicamente essas pessoas”. Por essa razão, segue o autor, é difícil saber quem, nos dias de hoje, endossa essa tese. Na verdade, como observa, muitos(as) dos(as) teóricos(as) da falsa consciência não negam que certas ilusões expressem necessidades e desejos genuínos e sustentam que tal noção não precisa, portanto, remeter a um conjunto de ideias completamente dissociadas da realidade social. Até mesmo porque, para que seja eficaz, uma ideologia precisa dar algum sentido às experiências das pessoas. Dessa forma, para os(as) referidos(as) teóricos(as), o discurso ideológico teria dois níveis: na sua superfície, seria verdadeiro e, num nível mais profundo, falso. A título de exemplo: a afirmação “o ex-ministro da Educação de Jair Bolsonaro, Abraham Weintraub, era professor de uma renomada universidade pública brasileira” é verdadeira. No entanto, sua suposição subjacente — “tratava-se de uma pessoa indicada para o cargo” — pode soar falsa para muitas pessoas.

De acordo com Eagleton (1997), poderíamos, neste caso, contra-argumentar que estamos confundindo “alhos com bugalhos”, pois essa suposição não pode ser tomada como falsa da mesma forma que declarações como “o autor deste artigo mede mais de dois metros de altura” ou “o autor deste artigo é torcedor do Palmeiras”. Afinal, as duas últimas são sentenças que visam descrever algo enquanto que a referida suposição expressa uma avaliação. Todavia, segue ele, não há porque aceitar essa oposição binária entre fato e valor. Diversos(as) autores(as), como o psicólogo construcionista Jonathan Potter (1996/1998), mostram que uma descrição nunca é somente uma descrição, ou seja, nunca é somente uma apresentação de um determinado estado de coisas (o que, por si só, já é uma construção). Ela também valora e prescreve. Por exemplo, o enunciado “estou com frio” dito em uma sala com a janela aberta pode ser, ao mesmo tempo, uma descrição sobre o estado corporal do(a) enunciatário(a), uma valoração (negativa) desse estado corporal e uma prescrição (ou uma solicitação) às demais pessoas presentes na sala (“fechem a janela”).

Todavia, ainda que não parta da divisão entre fatos físicos e fatos morais, entre linguagem descritiva e linguagem valorativa ou prescritiva, a ideia de falsa consciência ainda parece requerer, de alguma forma, a noção de representação. Afinal, ao sustentarmos que um discurso é ideológico porque codifica uma afirmação normativa considerada falsa — tal como “as mulheres são seres inferiores” — supomos que essa afirmação não se harmoniza com a realidade. Assim, mesmo que, do ponto de vista moral, negar a falsidade dessa sentença constitua uma ofensa a todas as mulheres, os problemas epistemológicos relativos à questão da correspondência se mantêm. Não à toa, Louis Althusser (2013) optou por reformular a noção de representação, caracterizando-a como a maneira como vivenciamos as condições de existência a que estamos sujeitos — o que não pode ser tomado como uma questão de verdade ou falsidade. Em outras palavras, o filósofo marxista francês buscou desenvolver uma teoria afetiva da ideologia e, com isso, escapar dos problemas de uma teoria cognitiva. No entanto, segundo Eagleton (1997, p. 31), isso não é suficiente para botar um termo ao tema verdade/falsidade, uma vez que “não há razão para acreditar, em uma era pós-freudiana, que nossa experiência vivenciada seja necessariamente menos ambígua que nossas ideias.” Ademais, segue o autor, não existem relações vivenciadas que “não envolvam tacitamente um conjunto de crenças e suposições, e essas próprias crenças e suposições podem estar abertas a juízos de verdadeiro e falso” (p. 32).

A manutenção do tema verdade/falsidade na crítica da ideologia é um problema para o construcionismo. Mas não porque essa abordagem abandone a noção de verdade; e, sim, porque esse tema parece, de alguma forma, seguir colocando o peso do absolutismo platônico sobre a referida crítica. De acordo com Ibáñez (2001b; 2005a), o construcionismo adota uma concepção relativista (e, portanto, não platônica) de verdade2. Isso significa que, para tal perspectiva, a verdade depende de nossos acordos e convenções sociais, ou seja, ela é relativa a critérios que são por nós estabelecidos. Com efeito, podemos afirmar que o construcionismo refuta a existência de uma verdade a-histórica e a-contextual. Em relação à questão da sua historicidade, não há, de acordo com o autor, razões para aceitarmos que uma verdade seja atemporal, uma vez que nada garante que o que vale hoje valerá também no futuro. Trata-se, no máximo, de uma aposta. E de uma aposta arriscada, tendo em vista que, ao longo da história, nossas certezas têm se transformado de forma significativa. Em relação à questão da sua contextualização, não há, segue ele, como garantir que uma verdade valha para todos os contextos simplesmente porque não há como acessar a todos os contextos, a não ser que fôssemos onipresentes. Todavia, a despeito de refutar a existência de uma verdade que seja válida em todos os tempos e em todos os contextos, o construcionismo está disposto a aceitar que existam algumas verdades que valem para todos os seres humanos — como a que diz que a área do quadrado cujo lado é a hipotenusa sempre será igual à soma das áreas dos quadrados cujos lados são os catetos. Mas isso não significa uma vitória do platonismo, e sim que compartilhamos algumas características comuns.

Como não poderia deixar de ser, as questões formuladas pelo construcionismo/relativismo acabaram impactando o debate sobre o conceito de ideologia e impondo novos desafios à crítica dos fenômenos (considerados) ideológicos. Por exemplo, ao escrever “História e consciência de classe”, Georg Lukács (2019) pretendeu se afastar da fantasia positivista de uma ciência marxista ao mesmo tempo em que tentou enfrentar o “fantasma” do relativismo histórico, que poderia impossibilitar uma fundamentação mais sólida do conhecimento. Para tanto, introduziu a categoria de autorreflexão, que superaria os problemas relacionados a esses dois polos. Afinal, ainda que rigorosamente histórico, o autoconhecimento do proletariado permitiria desvendar o segredo do capitalismo como um todo, em função da forma como ele se posiciona na história. Segundo Eagleton (2013), essa solução, todavia, não conseguiu escapar de um velho problema: o que garante que a classe trabalhadora possui o conhecimento do todo social e que sua consciência seja, portanto, universal? Isto é, de que ponto de vista se formula esse juízo? Conforme observa, “ele não pode ser formulado do ponto de vista que seja do próprio proletariado (ideal), já que isso apenas evita a questão: mas, se apenas esse ponto de vista é verdadeiro, o juízo tampouco pode ser formulado do ponto de vista que lhe seja externo” (p. 183).

3 A crítica da ideologia na perspectiva construcionista: uma visão relativista das relações entre sentido e dominação

Diante das questões discutidas na seção anterior, poderíamos ser levados a concluir que, de um ponto de construcionista, a crítica da ideologia não pode ser formulada sem que ela caia em contradição com seus pressupostos epistemológicos. Afinal, implicaria algum tipo de juízo sobre o que a realidade é, mesmo que parta de uma concepção mais sofisticada de falsa consciência. No entanto, de acordo com Eagleton (1997), essa concepção não precisa estar vinculada à falsidade epistêmica e pode significar que determinadas ideias são funcionais para a manutenção de um poder opressivo. Sendo assim, a ideologia poderia basear-se tanto em crenças falsas quanto em opiniões verdadeiras, uma vez que o que caracterizaria uma forma simbólica como ideológica seria o fato de ela servir à dominação3, como argumenta Thompson (1990/2000)4. Essa (re)contextualização da noção de falsa consciência tem a vantagem de retirar o peso epistemológico posto sobre o conceito de ideologia desde Napoleão e abre a possibilidade de fazermos uma crítica da ideologia que não esteja mais calcada na ideia da representação, tão criticada pelo construcionismo.

Ao centrar-se nos efeitos do simbólico sobre as assimetrias sociais, a conceituação de ideologia do Thompson (1995/1998; 1990/2000) assume, como já se tornou lugar comum dizer, que a comunicação é uma forma de ação. Esta visão de comunicação encontra eco no construcionismo, que rejeita explicitamente a perspectiva cartesiana de linguagem, que a concebe como uma roupagem que utilizamos para vestir as nossas ideias, ou seja, como um instrumento que permite exteriorizar os nossos pensamentos e, assim, apresentá-lo às outras pessoas. Na verdade, para o construcionismo, a linguagem é produtora de pensamento e, também, das demais realidades5 (Ibáñez, 2005b). Não à toa, Íñiguez-Rueda (2002b) entende que não cabe à análise do discurso (ao menos a de base construcionista) captar uma realidade que se esconderia por detrás da superfície textual, mas estudar como as práticas linguísticas mantêm e promovem relações sociais. Estudo coerente com a proposta de exame da ideologia de Thompson (1990/2000), que, como já antecipei, objetiva verificar como os sentidos mobilizados por essas práticas estabelecem e/ou sustentam relações de dominação. Notemos que, além de não se fundamentar numa perspectiva epistemológica de falsa consciência, a conceituação de Thompson (1990/2000) de ideologia enfatiza o quanto o sentido está, contínua e criativamente, implicado na constituição das relações de poder.

Além de enfatizar o caráter ativo do sentido, a conceituação proposta por Thompson (1990/2000) evita a tendência de pensar os fenômenos ideológicos como um “cimento social”, que estaria presente naquelas que denominou de teorias consensuais da ideologia. Teorias que apresentam duas versões: a consensual central e a consensual diferenciada. A primeira defende a existência, nas sociedades capitalistas contemporâneas, de valores e crenças centrais — tais como, democracia, liberdade e igualdade de oportunidades — que seriam amplamente partilhados e fortemente aceitos. Já a segunda enfatiza menos esses valores e crenças e atribui maior importância aos valores e crenças que são específicos aos papéis e posições das pessoas que ocupam diferentes lugares na divisão do trabalho. A despeito de essas diferenças de ênfase, o autor observa que ambas as versões partem do pressuposto de que a reprodução da ordem social depende do estabelecimento de algum tipo de consenso relativo a valores e crenças (sejam centrais ou específicos). No entanto, segundo ele, há pouca evidência de que esse consenso seja amplamente partilhado pelos membros dos grupos subalternos. Por essa razão, do seu ponto de vista, a reprodução da ordem social parece depender mais da falta de consenso por parte desses membros sobre como converter seu descontentamento em ação política coerente do que propriamente da constituição de tal consenso. Diante disso, podemos dizer que, assim como a dissimulação, a unificação pode ser considerada um entre outros modos possíveis de operação da ideologia, assim como a legitimação, a fragmentação e a reificação.

Em relação a este último modo geral de operação da ideologia, ele costuma, segundo Thompson (1990/2000), estar associado a três estratégias típicas de construção simbólica: a naturalização, a eternalização e a nominalização/passivização. Esta última é particularmente relevante de ser discutida aqui, pois constitui o cerne das objeções construcionistas, feitas por Potter (1996/1998), à crítica da ideologia elaborada por dois influentes autores(as) da chamada Análise Crítica do Discurso: Robert Hodge e Gunther Kress (1993). Tomemos como exemplo as análises que fazem do tratamento dado pela imprensa aos conflitos laborais. Nelas, sustentam que descrições substantivadas — como “ocupação” no lugar de “os grevistas ocupam as fábricas” — servem para eliminar os agentes e o processo causal concreto dos conflitos em questão. Ocorre que, segundo Potter (1996/1998), quem inicia um conflito laboral (ou seja, seu agente) é justamente o que está (ou que deveria estar) em jogo em uma análise científica. A greve teria sido mesmo iniciada pelos(as) grevistas? Será que, na verdade, ela não teria sido iniciada pelos(as) empresários(as), uma vez que estes(as) oferecem salários muito baixos para um trabalho penoso? Ou ainda, pelo próprio governo, que não garante, via legislação, condições de trabalhos mais adequadas e uma remuneração melhor para os(as) trabalhadores(as)? Ademais, segue o autor, quando se nominaliza uma sentença — convertendo “ocupar” em “ocupação”, por exemplo —, se estabelece uma nova ordem de processo causal — como X ocasionou a “ocupação” e esta ocasionou Y —, em que é possível identificar relações entre entidades mais abstratas, que vão além de eventos concretos. Por essa razão, sustenta, assim como Thompson (1990/2000), que a estratégia da nominalização não pode ser considerada intrinsecamente nem subversiva nem reacionária, uma vez que suas consequências políticas irão depender de uma série de considerações.

Desse ponto de vista, ao estudar a ideologia, não podemos, portanto, nos limitarmos a identificar as estratégias de construção simbólicas empregadas, simplesmente porque não existiria nenhuma estratégia intrinsecamente ideológica. Afinal, “se uma dada estratégia de construção simbólica é ideológica ou não, depende de como a forma simbólica construída por meio desta estratégia é usada e entendida em circunstâncias particulares” (Thompson, 1990/2000, p. 82). Em outras palavras: assim como defendem alguns(mas) autores(as) construcionistas (Ibáñez, 2001a, 2001b), na formulação de Thompson (1990/2000), a ideologia é uma prática, não uma essência. Não à toa, nela, a ideologia não é vista como uma característica ou atributo intrínseco de certos sistemas simbólicos, tais como o conservadorismo, o comunismo e o liberalismo. Até mesmo porque, por mais formalizados que sejam, esses sistemas não estão isentos de contradições, podendo, portanto, contribuir para, ao mesmo tempo, subverter certas formas de dominação e reproduzir outras. Grosso modo, essas contradições potenciais podem ser explicadas pelo fato de tais sistemas, assim como qualquer construção discursiva, possuírem um caráter polifônico e intertextual, ou seja, pelo fato de incorporarem e articularem múltiplas vozes, que, muitas vezes, não coexistem pacificamente (Ibáñez, 2001b).

O fato de podermos considerar, simultaneamente, uma mesma forma simbólica como ideológica e subversiva também pode ser explicada pelo fato de Thompson (1990/2000) romper o elo, estabelecido pela tradição marxista, da ideologia com a dominação de classe, uma vez que esta última é, do seu ponto de vista, apenas um eixo da desigualdade e da exploração no mundo atual. Para o autor, a ideologia pode (mas não precisa) servir aos interesses econômicos da classe dominante capitalista. Afinal, conforme Douglas Kellner (1998/2001, p. 79),

Reduzir a ideologia a interesses de classe deixa claro que a única forma de dominação importante na sociedade é a de classe, ou a econômica, ao passo que, segundo muitos teóricos, a opressão de sexo, sexualidade e raça também são de fundamental importância e, na verdade, ainda de acordo com alguns, está inextricavelmente imbricada na opressão econômica e de classe.

Assim, na sua perspectiva, o caráter ideológico de uma forma simbólica poderá variar de acordo com o eixo de dominação examinado. Por exemplo, a fala de um sindicalista contra as péssimas condições de trabalho na indústria pode ser vista como subversiva do ponto de classe, mas ideológica do ponto de vista de gênero, se ele empregar uma série argumentos e expressões sexistas nas suas críticas.

Seguindo a ideia de que a ideologia é uma prática, Thompson (1990/2000) também entende, conforme já antecipei, que o caráter ideológico (ou subversivo) de uma forma simbólica dependerá da maneira como é usada e entendida em situações sociais concretas. Em outras palavras, do seu ponto de vista, uma mesma forma simbólica — como um tratado político a favor da igualdade — pode desafiar a ordem social num contexto particular e contribuir para mantê-la em outro. Isso deve-se ao fato de o autor considerar o caráter aberto, ambíguo e dilemático do processo interpretativo, posicionando o(a) intérprete como um agente ativo, capaz de ressignificar, criticar e rejeitar o conteúdo potencialmente ideológico de uma mensagem. Não à toa, observa que, às vezes, a ideologia provoca sua própria contradição — quando, por exemplo, um discurso racista gera uma série de manifestações antirracistas.

Esse tipo de posicionamento do(a) intérprete contrapõe-se a uma série de explicações tradicionais sobre o processo de incorporação da ideologia. Explicações que, de acordo com Ibáñez (2001b, p. 190, tradução minha), podem ser resumidas em duas grandes metáforas. A primeira é a metáfora da esponja, que faz crer que “o cérebro dos sujeitos se impregna, pouco a pouco, da ideologia dominante que circula na sociedade, da mesma forma que uma esponja não tem mais remédio do que absorver o líquido no qual está submerso”. A partir de tal metáfora, somos levados a crer que reproduzimos inconscientemente uma ideologia fabricada por outros, que nos moldaria e nos conformaria. A segunda é a metáfora do labirinto. Embora atribua, até certo ponto, um papel ativo ao sujeito, essa metáfora oferece uma explicação tão determinista e automática quanto a da esponja. Para ela, no dia-a-dia, inserimo-nos em diferentes situações, que estabelecem uma série de micro obrigações, micro sanções e micro imposições, que nos faria agir da forma requerida pelos grupos dominantes. Todavia, como essas obrigações, sanções e imposições são de “baixa intensidade”, teríamos a sensação de que agimos livremente e elaboraríamos argumentos que pudessem justificar e defender nossos comportamentos. Por essa razão, tal metáfora evoca, conforme observa o autor, os experimentos psicológicos comportamentais com ratos em labirintos. Afinal, assim como os ratos, seríamos capazes de decidir livremente qual caminho tomar em cada ponto de bifurcação, mas, para termos êxito e conseguirmos sair do labirinto, teríamos que seguir uma rota que já está dada de antemão.

As críticas a essas metáforas e a defesa de que o processo interpretativo é aberto, ambíguo e dilemático pressupõem que o ser humano não pode ser concebido como o produto de sistemas simbólicos que o precedem. Conforme Thompson (1995/1998), esses sistemas não conseguem determinar cada movimento nosso, mas, como num jogo de xadrez, definem somente aqueles que nos estão abertos e aqueles que nos estão fechados. Em outras palavras, para o autor, nossa identidade (quem somos nós) não é um mero produto de um sistema simbólico externo, mas um projeto simbólico que construímos ativamente. A ideia de que nós nos construímos ativamente é coerente com a perspectiva construcionista de ser humano, que rechaça qualquer tipo de essencialismo. Para tal perspectiva (Ibáñez, 2006), não há uma natureza humana6. Logo, não existem determinadas potencialidades que se manifestariam e se desenvolveriam sob determinadas condições — como se, por exemplo, a liberdade fosse alguma coisa inscrita em nossos genes à espera do desenvolvimento de uma ordem social libertária para que possa aflorar. Por conseguinte, a crítica da ideologia, para a perspectiva em questão, não pode almejar a desalienação do ser humano ou, ainda, sua emancipação. Afinal, não há um sujeito oculto (pronto e acabado) a ser emancipado. Como nos recorda Ibáñez (2015, p. 127), o pós-estruturalismo já nos ensinou que, “sob os paralelepípedos, não há nenhuma praia”. Na verdade, o que essa crítica pode fazer é, conforme espero ter esclarecido, indicar de que maneira determinadas práticas linguísticas servem à dominação e, com isso, melhorar o enfoque de nossas lutas contra ela.

Agora, se uma sociedade estruturalmente simétrica é melhor ou pior do que uma assimétrica, isso já nos leva a um novo conjunto de questões, que se interessa, por exemplo, pela temática da justiça. Por essa razão, para Thompson (1990/2000), embora esteja intrinsecamente conectada com a crítica da ideologia, a crítica da dominação é governada por suas próprias lógicas e estrutura argumentativa. Dentro do referencial construcionista, uma relação de dominação não pode ser considerada objetivamente menos digna de apoio do que uma relação libertária. A legitimidade desta última não pode, portanto, ser absoluta. Não pode ser defensável por si mesma. O que não significa que não possamos nos comprometer com a produção de uma sociedade mais justa e livre. E, sim, que não podemos reivindicar um status ontológico privilegiado para os valores que sustentam essa sociedade frente aos que sustentam uma sociedade opressora e autoritária. Mas é exatamente porque não podemos fazer isso, porque os referidos valores carecem de fundamentação última, que é imprescindível defendê-los (Ibáñez, 2005a). E, na sua defesa, a imaginação, como observa Rorty (2013), desempenha um papel central. Afinal, ela pode contribuir para instituir novas experiências, capazes de fornecer novos referenciais de mundo e, com isso, municiar os(as) dissidentes.

4 Considerações finais

Neste ensaio, discuti a pertinência do conceito de ideologia como ferramenta teórica de análise das relações entre sentido e poder dentro dos marcos do construcionismo. Ao realizar essa discussão, não era minha intenção ajustar esse conceito aos pressupostos ontológicos e epistemológicos de tal abordagem a fim de, com isso, propor uma formulação original. Na verdade, meu objetivo era bem mais modesto: identificar e discutir alguns problemas de se desenvolver uma crítica que tende a apresentar as marcas da sua origem, a modernidade, dentro de uma perspectiva de ciência que, sob diversos aspectos, pode ser considerada pós-moderna. Ao realizar essa discussão, busquei mostrar como o conceito de ideologia formulado por Thompson (1990/2000) pode ser coerentemente incorporado pelo construcionismo, além de argumentar que a crítica dos fenômenos ideológicos pode ajudar a melhorar o enfoque das nossas lutas políticas. Todavia, ainda que considere a relevância dessa ajuda, parece-me que, para contribuir de forma mais decisiva para a transformação social, tal crítica precisa, como sugeri acima, vir acompanhada de um projeto alternativo de ação política. Afinal, de acordo com Rorty (2013, p. 231), “quanto mais livre for a imaginação do presente maior a probabilidade de que as práticas sociais futuras sejam diferentes das passadas”.

Diante disso, penso que, afora examinar antigas práticas, é preciso visualizar novas. Em outras palavras: é preciso combinar a crítica da ideologia com o desenvolvimento de um projeto revolucionário, como já preconizavam Marx e Engels (Rorty, 2013). Mas não necessariamente um projeto revolucionário nos moldes daqueles do século XIX, tendo em vista as transformações que ocorreram nas sociedades capitalistas desde então — como a amplificação da exploração dos fluxos (financeiro e de outros tipos) produzida pelo desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação. Assim, se as atuais sociedades capitalistas têm características próprias, parece-me fundamental olhar com mais atenção para as experiências daqueles(as) que vêm estabelecendo novos modos de vida e promovendo a revolta no mundo todo (Primavera Árabe, Jornadas de Junho de 2013, Occupy Wall Street, Movimiento 15-M etc.), como os coletivos de jovens autonomistas e anarquistas. Coletivos que têm buscado proporcionar um conjunto de alternativas à lógica hierárquica e ao espírito mercantil, inclusive no plano da linguagem (Ibáñez, 2018). Com eles, podemos aprender a dizer coisas novas e, por conseguinte, a imaginar e criar realidades alternativas. Todavia, para que o desejo pelo novo seja produzido (ou ao menos reforçado), convém, como espero ter deixado claro, estimular a reflexão crítica sobre o presente, uma vez que esta é capaz de colocar em evidência as posições daqueles(as) que se beneficiam e daqueles(as) que sofrem com as relações de dominação. Eis aí onde reside a potência da crítica da ideologia e onde está sua capacidade, como diria Thompson (1990/2000), de atingir os nervos do poder.

5 Agradecimentos

Agradeço à Fapesp pelo auxílio à pesquisa que permitiu o desenvolvimento deste ensaio.

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