As políticas públicas, especialmente a de assistência social, apresentam-se como um campo de possibilidades para o enfrentamento da desigualdade social. Retomando a história da Assistência Social no Brasil, é possível compreender que durante a ditadura militar brasileira (1964-1985) as iniciativas de assistência à população eram guiadas por práticas elitistas e populistas, controlando e reprimindo as organizações populares. Neste período, a lógica era fundada na capacidade contributiva de cada trabalhador, fato que ampliou o cenário de desigualdade e miséria no país (Yamamoto e Oliveira, 2010).
A redemocratização é marcada pela mobilização popular que culminou nas “Diretas Já”, movimento que marcou a abertura política e a participação da sociedade. A partir de 1985, a tarefa do Congresso Nacional era elaborar uma nova constituição. Nesse período, os movimentos sociais, populares e comunitários estavam na base do embate político, proporcionando avanços na defesa e na garantia de direitos. Com a Constituição Federal de 1988, conhecida como constituição cidadã, algumas medidas públicas fortaleceram os preceitos constitucionais relativos à Assistência Social, tais como o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), a Lei Orgânica de Assistência Social (1993) e o Estatuto do Idoso (1993) (Yamamoto e Oliveira, 2010).
Foi no ano de 2004, com a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), e em 2005, com a Norma Operacional Básica (NOB), que o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) foi criado, operacionalizando a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS). Essa lei regulariza e organiza as ações socioassistenciais em todo o Brasil, dividindo a proteção social em dois níveis de complexidade: Proteção Social Básica — PSB e Proteção Social Especial — PSE (Oliveira et al., 2011).
Vale ressaltar que o SUAS foi implantado e teve avanços e investimentos na sua organização nos governos do Partido dos Trabalhadores. A partir do governo Temer (2016-2018), deflagra-se o desmonte e sucateamento das políticas públicas, sobretudo pela aprovação da Emenda Constitucional 95/2016 que estabeleceu um teto para os gastos sociais, afetando o orçamento da Política de Assistência Social. O atual governo brasileiro segue os mesmos passos, reduzindo os gastos públicos na assistência e fomentando reformas liberais que colocam em risco os direitos sociais já conquistados, tais como a reforma de previdência social (Costa, 2019).
O enfoque deste trabalho está na PSB, mais especificamente no CRAS, que se caracteriza como porta de entrada da assistência social, destinado a pessoas e famílias que vivem em situação de vulnerabilidade social e pessoal, com a proposta do fortalecimento dos vínculos familiares e da convivência comunitária. Dois princípios que orientam a atuação dos profissionais são a territorialização e a intersetorialidade, abrangendo não só outras políticas públicas, mas instituições não governamentais, iniciativas comunitárias, de coletivos, de movimentos sociais etc. (Ministério do Desenvolvimento Social [MDS], 2012).
O CRAS tem duas funções, sendo a primeira a oferta do Programa de Atenção Integral à Família (PAIF). Esse programa é o principal serviço da Proteção Social Básica, e tem entre os seus objetivos “a garantia do direito à convivência familiar e assegura a matricialidade sociofamiliar no atendimento socioassistencial” (MDS, 2009, p. 31). Só pode ser ofertado pelo poder público, isto quer dizer, pela equipe dos CRAS.
Além da oferta do PAIF, também é função do CRAS a gestão da proteção social básica no território, que abrange: “a articulação da rede socioassistencial de proteção social básica referenciada ao CRAS; a promoção da articulação intersetorial e a busca ativa, todas realizadas no território de abrangência dos CRAS” (MDS, 2009, p. 19). É sobre esta função que o presente texto irá se debruçar, em específico acerca da promoção da articulação intersetorial.
O caderno de Orientações Técnicas do CRAS traz uma definição de intersetorialidade: “refere à articulação entre setores e saberes, para responder, de forma integrada, a um objetivo comum” (MDS, 2009, p. 26), e completa afirmando que a “intersetorialidade se materializa mediante a criação de espaços de comunicação, do aumento da capacidade de negociação e da disponibilidade em se trabalhar com conflitos” (MDS, 2009, p. 26). Compreende-se articulação como um modo de comunicação, uma prática construída a partir da aproximação dos diversos atores. Isto quer dizer, a articulação é um modo de ação, não só entre setores diferentes, mas entre o estado e a sociedade civil.
A articulação intersetorial não é responsabilidade somente da política de assistência social, mas o gestor “pode influir para que seja definida a prioridade de articulação das ações no território de abrangência do CRAS” (MDS, 2009, p. 26). Neste sentido, compreende-se que a coordenação do CRAS possui um papel fundamental na articulação comunitária, uma vez que tem como um dos eixos a territorialização que “refere à centralidade do território como fator determinante para a compreensão das situações de vulnerabilidade e risco sociais, bem como para seu enfrentamento” (MDS, 2009, p. 13).
A estratégia de trabalho a partir do território é pautada não só no conhecimento acerca das problemáticas, mas das potencialidades, dos serviços e entidades que também promovem proteção social. Nesse sentido, “a articulação intersetorial deve envolver escolas, postos de saúde, unidades de formação profissional, representantes da área de infraestrutura, habitação, esporte, lazer e cultura, dentre outros” (MDS, 2009, p. 26). Portanto, além de mapear as instituições que determinado território pode oferecer, o CRAS como mobilizador da articulação intersetorial precisa fomentar a criação de vínculo e diálogo entre elas.
Segundo Isabel Fernandes de Oliveira (2011, p. 143), a intersetorialidade é “uma diretriz bastante enfatizada nos documentos oficiais”, porém “é uma tarefa complexa e de difícil mensuração”. Destarte, conforme aponta Roberta Carvalho Romagnoli (2016), a dificuldade na intersetorialidade faz emergir queixas e desencontros entre os serviços presentes no território. Diante a problemática exposta, ou seja, a importante função do CRAS de articular intersetorialmente e das pesquisas que concordam com a dificuldade de realizar a articulação intersetorial, esse artigo tem como objetivo investigar como o trabalho intersetorial desenvolvido em um CRAS do município de Joinville - SC expressa modos de articulação comunitária e formas de participação social.
Desde o primeiro contato com a política de assistência, especialmente com a proteção básica, cresceu o interesse em conhecer mais sobre a dimensão comunitária do trabalho nesses serviços. Além disso, nas pesquisas anteriores a temática da intersetorialidade aparecia como um enigma a ser desvendado. Por que articular intersetorialmente? Como negociar os diferentes interesses e perspectivas? Existem formas de tecer uma rede articulada e resolutiva?
No caminho de busca por esclarecimentos, encontramos coordenadores de CRAS falando sobre o modo como a gestão pública municipal vinha mobilizando a função de gestão da proteção social do território (MDS, 2009). Entre as ações da gerência que coordenam a proteção social básica no município, estava um projeto piloto de diagnóstico socioterritorial e, ainda, o compartilhamento da experiência das redes e grupos de articulação que já aconteciam. Essas informações foram obtidas pela participação em eventos e reuniões públicas promovidas pela Secretaria de Assistência Social. Com esses contatos iniciais, foi possível identificar um território com trajetória de articulação comunitária e definir um grupo para a pesquisa de campo: o grupo de articulação intersetorial do CRAS estudado.
O referido CRAS atende quatro bairros da cidade de Joinville e, no ano de 2018, foi o centro que mais realizou atendimentos, totalizando 14.859 atendimentos (Joinville, 2019). A estratégia de articulação em rede com reuniões mensais iniciou em 2013, com encontros apenas no CRAS. Após dois anos, foi decidido realizar as reuniões de maneira itinerante, cada mês em uma instituição ou serviço. A cada reunião é identificado as entidades, secretarias ou serviços que precisam estar presentes para a discussão de determinados assuntos que entrarão na pauta. Os encontros iniciam sempre com uma apresentação dos participantes e da instituição que cede a reunião, e contam com uma média de 30 participantes entre trabalhadores/as das políticas públicas (SUS, SUAS, CEIs, escolas, segurança pública), líderes comunitários (representantes das associações de moradores, conselhos locais de saúde e segurança), representantes de entidades e instituições do território.
As reuniões do grupo de articulação são marcadas pelas discussões de problemáticas do território, buscando soluções e convocando secretarias municipais e outros serviços que sejam responsáveis por determinadas questões para conversar e construir estratégias coletivamente. Além disso, são desenvolvidos eventos, como a feira do parque, e um projeto de horta comunitária, sendo duas iniciativas que respondem às demandas do território identificadas pelo grupo.
Para responder aos objetivos desta pesquisa, dividimos as estratégias de produção de informações em duas etapas, sendo a primeira de observação participante, privilegiando o coletivo; e a segunda para realização de entrevistas semiestruturadas, aplicadas individualmente com sujeitos que foram observados como atores expressivos e representativos no grupo de articulação. Após a aprovação da pesquisa pela Secretaria Municipal de Assistência Social e pelo comitê de ética em pesquisa com seres humanos (de número CAAE 13378819.0.0000.012), acompanhamos, durante os meses de abril a setembro de 2019, as reuniões intersetoriais que aconteceram nas segundas quartas-feiras de cada mês, no período da manhã.
Quando falamos de observação participante, estamos partilhando da perspectiva de Maria Cecília de Souza Minayo (2015) que a compreende como um recurso de inserção do pesquisador no âmbito da vida, permitindo a convivência com o grupo sem roteiros pré-estabelecidos. Essa postura em campo auxilia na apreensão de aspectos que vão aparecendo no decorrer das observações, a partir da interação que é estabelecida entre o pesquisador e os sujeitos.
Como as reuniões são itinerantes, a observação participante possibilitou percorrer o território, seus diversos serviços e instituições. O trajeto da pesquisa foi sendo delineado enquanto circulávamos pelos espaços que recepcionaram os encontros desse período: centro de educação infantil, serviço especializado de saúde, escolas municipais e instituições religiosas. Conforme De acordo com Rafael Diehl (2006), percorrer e experimentar lugares torna-se uma ferramenta de pesquisa em psicologia social, pois permite o questionamento da posição que ocupamos como observadores, o estranhamento com relação aos desconhecidos e também do que já é conhecido, podendo ser significados de maneira diferente a partir da abertura à experiência que a pesquisa proporciona.
A participação nos encontros do grupo de articulação possibilitou o conhecimento e aproximação com os representantes que compõem esse coletivo, e viabilizou a segunda esfera da pesquisa, que aconteceu concomitante à primeira. Enquanto acompanhávamos as reuniões do grupo, também agendávamos as entrevistas para outros horários de acordo com a disponibilidade dos sujeitos e com o aceite em participar. Foram realizadas sete entrevistas com participantes do grupo. A entrevista foi utilizada como um recurso metodológico que colaborou com o esclarecimento e aprofundamento de algumas questões. Administrando as entrevistas com um roteiro, buscamos conduzir essa estratégia como uma conversa, uma discussão, produzindo informações relacionadas às vivências cotidianas dos participantes (Zago, 2003).
Durante todos os encontros com o campo de pesquisa e com os sujeitos, aconteceram afetações, reflexões e conexões com as leituras realizadas previamente. Neste processo, as notas em diário de campo foram fundamentais para registrar as memórias afetivas e simultaneamente produzir distanciamentos da experiência, necessários para o momento da análise das informações (Diehl et al., 2006).
Para analisar as informações produzidas, as entrevistas foram transcritas e foram retomadas as anotações do diário de campo. Ao reler todo o material, construímos categorias de análise a partir da recorrência das temáticas nos discursos e a conexão com os objetivos da pesquisa. As categorias organizadas articulam os discursos que emergiram por meio das experiências no campo de pesquisa com referenciais históricos e científicos.
O discurso é definido como ato social, como acontecimento produzido em um contexto específico, surgindo pelas relações dialógicas, no cruzamento das diferentes vozes sociais e nos enunciados que emergem na vida cotidiana e na realidade pesquisada. As autoras Solange Jobim Souza e Elaine Deccache Porto Albuquerque (2012, p. 114) colaboram para a compreensão da análise do discurso quando afirmam que “o discurso na vida é atravessado por julgamentos de valor e a compreensão de qualquer ato de fala não pode descartar as avaliações que inevitavelmente estão presentes nas interações sociais”.
A partir do Método da Igualdade, proposto por Jacques Rancière (2014a), não buscamos explicar, interpretar ou buscar uma essência dos fenômenos estudados, mas explorar as redes de significação que constroem uma determinada experiência. Nesse sentido, Ângela Cristina Salgueiro e Marco Aurélio Máximo Prado (2018) explanam que o trabalho conforme o método da igualdade descola o pesquisador do lugar analista, de quem se debruça sobre as informações somente pelo discurso acadêmico, e o desafia a entrelaçar e combinar as possibilidades em uma relação horizontal, sem a intenção de produzir representações ou causalidades históricas.
O texto está organizado em três categorias. Na primeira, intitulada “Trajetórias de vida e participação social”, serão discutidos os conceitos de participação e democracia a partir das histórias pessoais de alguns sujeitos dessa pesquisa. Na categoria seguinte, denominada “Encontro com o passado recente: grupo de articulação e associações de moradores”, será apresentada a participação dos sujeitos na associação de moradores do bairro, característica desse território, e como a realidade local está relacionada ao tempo histórico vivenciado no Brasil. Na terceira categoria, “Política de Assistência Social e seus efeitos na articulação comunitária”, explanar-se-á acerca da potência do grupo de articulação estudado, como um espaço de participação social e ruptura com determinadas práticas que marcaram a história da assistência social no país.
“Só unidos podemos chegar a alguma coisa”, afirmou um dos participantes quando questionado sobre as características do trabalho intersetorial. Na sua juventude, conforme relatado, descobriu “que nada estava muito legal, e que precisava interferir como cidadão” (representante do conselho das associações de moradores, entrevista, setembro de 2019). Em São Paulo, sua terra natal, acompanhou a criação da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e participou das “Diretas Já”. Após a mudança para Joinville, trabalhou nas indústrias metalúrgicas e foi representante dos trabalhadores em um sindicato da cidade.
“Eu já tinha um histórico de luta lá do passado”, narrou a atual presidente da Associação de Moradores do bairro estudado, quando contava sobre o que já haviam realizado no bairro antes do grupo de articulação do CRAS. Desde que chegou à localidade, há 32 anos se envolve com as problemáticas comuns: “Eu era funcionária pública, era zeladora. E a gente estava numa luta muito grande na educação pra ganhar aumento e a gente ficou 42 dias na greve, e essa greve me instigou muito. Desde aquela greve, eu sempre tentei lutar” (presidente da associação de moradores, entrevista, agosto de 2019).
“Quando eu estava na ativa que eu trabalhava no Paulo Medeiros [escola do bairro], a gente já vinha nessa caminhada de ficar sabendo o que estava acontecendo”, contou outra participante sobre seu envolvimento na Associação de Moradores e conselhos locais quando trabalhava no bairro. Acredita e defende iniciativas que se organizem de outra forma diferente das relações capitalistas, em que as pessoas descobrem “o que podem fazer unidos” (representante da feira do parque, entrevista, junho de 2019).
As histórias pessoais de alguns dos participantes desta pesquisa apontam para um determinado período da história brasileira: a redemocratização. Os três citados eram jovens na década de 1980 e viveram a reabertura política do país. Durante o processo de redemocratização, a população se mobilizou, participando de comícios e de movimentos sociais que culminaram em milhões de pessoas nas ruas na campanha “Diretas Já”. A partir de 1985, a democratização se intensificou com a instituição de condições livres de participação (direito de voto e organização política) e com a elaboração da Constituição de 1988, que representou um avanço significativo na garantia de direitos, proteção social e participação política. O texto estabeleceu os mecanismos da democracia representativa, inclusive o direito da participação popular (Kinzo, 2001).
Maria da Glória Gohn (2019, p. 64) afirma que “a participação pode ser observada nas práticas cotidianas da sociedade civil, quer seja nos sindicatos, nos movimentos ou em outras organizações sociais, quer seja nos discursos e práticas das políticas estatais”. Nesse sentido, a participação social está relacionada à cidadania, à solidariedade, à tomada de decisão conjunta e às lutas contra às discriminações, preconceitos e desigualdades sociais.
Sobre a participação, Carole Pateman (1992, pp. 9-10) acredita que a partir da década de 60 “a palavra participação tornou-se parte do vocabulário político popular”. Compreende-se que o ideal de democracia seja “o governo do povo por meio do máximo de participação de todo o povo” (Pateman, 1992, pp. 9-10). Dessa forma, a discussão acerca dos modos de participação e formação dos sujeitos políticos tornou-se objetivo de observação e análise.
Para Rancière (1996), não existe um sujeito político a priori, pois a política está condicionada à verificação da igualdade e acontece como o ato que rompe a linha ordinária do campo hegemônico. A ocorrência da política “rompe a configuração sensível na qual se definem as parcelas e as partes ou sua ausência a partir de um pressuposto que por definição não tem cabimento ali: a de uma parcela dos sem-parcela” (Rancière, 1996, p. 42). Por atualizar o princípio da igualdade, a atividade política questiona as partilhas desigualitárias, pois “desloca um corpo do lugar que lhe era designado ou muda a destinação de um lugar; ela faz ver o que não cabia ser visto, faz ouvir um discurso ali onde só tinha lugar o barulho, faz ouvir como discurso o que só era ouvido como barulho” (Rancière, 1996, p. 42).
Conforme Frederico Viana Machado (2013), “o trabalho da política consistirá em questionar a conta das partes desse sistema em um processo que Rancière denomina ‘subjetivação política’” (p. 269). Esta forma subjetiva da política acontecer está relacionada ao processo de desidentificação com uma identidade determinada e identificação impossível com a referência identitária do outro, ou seja, um movimento simbólico de escorregar em um lugar entre identidades, que interpela a configuração desigual do comum. A subjetivação política permite questionar o estabelecido, interromper a lógica da dominação e flagrar a naturalização da desigualdade.
A partir desta perspectiva, é possível conjecturar acerca do posicionamento dos sujeitos de pesquisa, da sua implicação com o território e as situações de vulnerabilidade e desigualdade vivenciadas. Um dos entrevistados afirmou que sua casa é uma das modelos do Conjunto Habitacional e, mesmo assim, estava junto nas lutas dos que não receberam suas casas com a estrutura prometida. Quando questionado sobre as demandas do território, responde emocionado: “Eu não aceito que tenha mais de seis mil pessoas que não tenham direito à cesta básica, eu não aceito e vou continuar não aceitando! [...] É uma crueldade o que fazem com algumas pessoas aqui em Joinville” (representante do conselho das associações de moradores, entrevista, setembro de 2019). O participante colaborou com o início do grupo de articulação, além de ser um dos membros da Associação de Moradores, do Conselho Local de Saúde, e do Conselho de Associações de Moradores do Município de Joinville (COMAM).
Outra participante, professora especialista em psicopedagogia, aposentada pela Secretaria Estadual de Educação, trabalha comunitariamente em favor das famílias que precisam de alternativas para a geração de renda. Como dito anteriormente, possui implicações com as questões políticas e sociais desde a juventude, porém, após ter se aposentado, passou a se dedicar à Comissão de Meio Ambiente e Qualidade de Vida (COM-VIDA) vinculada a um dos CEIs do bairro. Representando o COM-VIDA, começou a participar do grupo de articulação intersetorial e organizar as feiras no parque do bairro, com tendas para comercialização de artesanatos produzidos pelas mulheres da comunidade. A participante, pessoalmente, buscou as artesãs da comunidade e estudou os documentos necessários para que a feira acontecesse, mesmo não sendo artesã.
Outra participante da pesquisa e do grupo de articulação, também aposentada, relata que recebeu uma boa pensão do marido que era militar, portanto, durante a vida se dedicou aos trabalhos voluntários na comunidade, conselhos locais, cozinha comunitária e aulas de ginástica para os idosos. Em uma das reuniões, ela se emocionou expondo o motivo pelo qual tinha se desligado do Conselho Municipal de Saúde, relatando que as discussões acerca da mortalidade de neonatos eram realizadas por meio de números e estatísticas. Ela não compactuava, pois não conseguia enxergar apenas como número a história de centenas de mães que perdiam seus filhos por erros médicos na maternidade municipal de Joinville.
Parece que esse movimento de atuação na comunidade levou os participantes a se deslocarem dos seus lugares pré-estabelecidos pelos títulos e pelo saber, a se identificarem com os sujeitos que se encontram em situação de vulnerabilidade, extrema de pobreza e violação de direitos. Fazem ver e ouvir, nos seus discursos e lutas, que existe uma realidade velada onde seres humanos, tal como eles, (sobre)vivem, mas não têm suas existências contadas como iguais. Assim, esses ativistas se desidentificam com suas identidades de referência e se lançam, ainda que de forma simbólica, em direção à outra identidade, de maneira heterológica.
Nas palavras de Pateman (1992, p. 46), “é a nível local que se cumpre o verdadeiro efeito educativo da participação”. Existe uma função educativa na participação, como é o caso do grupo de articulação pesquisado. Isto quer dizer que somente pela participação em pequena escala é que se aprende a democracia, e quanto mais os sujeitos participam das instâncias locais, mais qualificam e ampliam a capacidade de exercitá-la em maior escala.
Rancière (2014b, p. 63) argumenta que a democracia não é uma forma de governo ou de sociedade, mas é o “poder próprio daqueles que não têm mais título para governar do que ser governados”. Em outras palavras, a democracia pode ser entendida como uma operacionalização da verificação da igualdade, em que governam não os que têm títulos, posses, méritos, mas sim os “sem-parte”, os que não são contados na parcela. Portanto, a democracia se apresenta como uma forma de expressão da política protagonizada pelo povo, pelos sujeitos que, em um movimento simbólico, se descolam das identidades atribuídas a eles (e das necessidades particularistas) e exercem a gestão sobre suas próprias vidas.
Para Rancière, os agentes domésticos, pobres, trabalhadores e mulheres, podem participar, decidir e agir politicamente, “desde que não restrinjam suas demandas a necessidades particulares, mas que as traduzam e as aproximem de demandas coletivas” (Lelo e Marques, 2014, p. 351). A potência na participação social dos moradores destes bairros pode estar relacionada à configuração das suas lutas cotidianas como lutas referentes ao comum, que se movimentam e se conectam aos lugares e necessidades dos outros, suspendendo a configuração desigual que os invisibiliza. Vale lembrar que o engajamento não é realizado somente pelo grupo de articulação, mas por espaços antecedentes, como os conselhos locais, pastorais da igreja católica e associação de moradores.
No passado recente da história do Brasil, os movimentos comunitários foram organizações que reuniam os interesses comunitários e políticos. Em 1975, foi criado o Programa Nacional de Centros Sociais, uma estratégia do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND) do regime militar. Essa iniciativa tinha entre os seus objetivos o controle das formas de organização da população. No estado de Santa Catarina, em 1977, foi estabelecida uma política de ação comunitária para a criação de conselhos comunitários em consonância com as finalidades do II PND. Segundo Kathia Terezinha Müller (1996, p. 43), “durante o período de vigência dessa política de formação e acompanhamento dos conselhos comunitários [...] outras organizações de moradores foram surgindo de forma mais independente, ou por influência da Igreja Católica em áreas de periferia”.
Os interesses políticos podem ser exemplificados por iniciativas governamentais, como o Programa Nacional do Leite Para Crianças Carentes, conhecido como Programa do Ticket do Leite, do Governo José Sarney (1985-1989). A entrega de cupons às famílias beneficiadas acontecia através das associações comunitárias e filantrópicas (Ministério da Ação Social [MAS], 1986). Nesse período foram fundadas muitas associações, fato determinado por Renato Boschi (1986) como “surto associativo”.
Na primeira ida a campo para realizar a observação participante da reunião do grupo de articulação do CRAS, estava incluída na pauta um tempo para a apresentação do projeto de pesquisa e verificação do consentimento do grupo em participar ou não da pesquisa. Com o aceite, permanecemos até o fim da reunião e, durante o café, um dos participantes questionou se estávamos pesquisando apenas a articulação feita pelo CRAS ou se tínhamos interesse em conhecer como acontecia esta articulação antes do CRAS, realizada pelas associações de moradores dos bairros.
A temática foi tomando corpo quando cinco dos sete entrevistados citaram a participação nas associações de moradores dos bairros referenciados no CRAS estudado, sobretudo na Associação de Moradores. Além disso, os líderes comunitários participantes da associação foram os pioneiros na rede de articulação do CRAS. Um dos entrevistados afirma que logo que o CRAS chegou ao território, em 2010, ele procurou a coordenadora com o objetivo de se colocar à disposição, manifestando que os líderes comunitários e o CRAS poderiam se unir. Sobre a associação, ele expôs:
Começamos a discutir no bairro, né, as propostas coletivas. Tínhamos a igreja, não tínhamos mais nada. [...] A igreja nos cedeu um lugar para fazer a discussão da associação de moradores. [...] Ali na associação de moradores a gente foi mostrando para os gestores que nós éramos um bairro que estava determinado a buscar os direitos. Hoje a associação é respeitada em toda a Joinville. (Representante do conselho das associações de moradores, entrevista, setembro de 2019)
As associações de moradores se formaram nos bairros e são constituídas pelos moradores locais, de forma comunitária e voluntária, com o objetivo de reunir forças em função de interesses comuns, geralmente reivindicando melhorias materiais na infraestrutura e incentivo no desenvolvimento de projetos culturais, esportivos e educacionais. O vínculo entre seus membros é a relação de pertencimento com o bairro e/ou localidade representada. O período de crescimento da fundação de associações de moradores coincide com a abertura política e redemocratização do Brasil entre as décadas de 1980 e 1990 (Scherer-Warren e Chaves, 2004).
A presidente da Associação de Moradores menciona algumas questões que foram pautas da entidade: o parque do bairro, uma nova Unidade Básica de Saúde (UBS), asfalto, implantação do restaurante popular, serviço de habilitação e reabilitação e melhorias na rede de esgoto. Ela e outros dois entrevistados vieram morar no bairro quando o local era um Conjunto Habitacional que pertencia ao bairro vizinho e afirmam que as demandas iniciaram pela falta de estrutura do próprio conjunto. Não tinham escola, muito menos UBS, e a rede de esgoto não suportava a quantidade de casas, ocasionando em inundações frequentes. Algumas casas não foram entregues como prometidas e muitas ruas até hoje não foram asfaltadas.
A respeito da atuação da associação, uma das participantes relembrou: “nosso bairro, tudo que ele é hoje e tudo o que ele vai ser futuramente foi muita reivindicação, foi muita luta. Nós tivemos uma associação de moradores antes do grupo de articulação muito forte”. (Representante da feira do parque, entrevista, junho de 2019). Da mesma forma, outra entrevistada expôs: “a gente teve muita luta nessa comunidade, a gente conseguiu muita coisa aqui no bairro”. A partir das narrativas, é possível compreender o lugar que o associativismo ocupa neste território e na sua história, as decisões coletivas, as causas comuns defendidas e a construção de vínculos entre os moradores, pois, de acordo com ela, “se não tiver união não tem luta” (presidente da associação de moradores, entrevista, agosto de 2019).
Acerca da organização das associações de moradores, um dos participantes relata que existiam duas entidades representativas em Joinville, uma contrapondo a outra por questões político-partidárias, sendo de um lado a Federação das Associações de Moradores de Joinville (FAMJO) e do outro o Conselho de Associações de Moradores em Joinville (COMAM). Nas palavras do participante: “O COMAM nasceu para ser massa de manobra de políticos, para contrapor outra associação que também era massa de manobra de político, a FAMJO [...] eles usavam sempre em momentos politiqueiros” (representante do conselho das associações de moradores, entrevista, setembro de 2019).
Historicamente, no Brasil, alguns movimentos populares, incluindo as associações de moradores, retomaram antigas práticas relacionadas à política partidária, dentre elas o clientelismo. Destarte, Elsio Lenardão (1997, p. 43) aponta que existem heranças culturais políticas do coronelismo: “Por isso, não são estranhos nas práticas corriqueiras do sistema político brasileiro o curral eleitoral, o voto de cabresto, a corrupção eleitoral, o nepotismo, a apropriação do Estado por famílias importantes”. Na perspectiva do autor, este fato colabora para a eleição de “vereadores de bairro” que compactuam com a perspectiva clientelista.
Para Edinara Terezinha de Andrade e Nelson A. Garcia Santos (2010, p. 97), o clientelismo é marcado por relações de troca “entre os que podem ocupar e ocupam algum cargo público e os que desejam acessar os serviços ou recursos políticos, acesso esse que é mais difícil, ou até impossível de alcançar, caso não haja esse vínculo ou relação”. Muitas associações de moradores estavam ligadas a partidos políticos pelo vínculo clientelista ou por seus líderes trabalharem também para os vereadores e partidos políticos. Os próprios partidos utilizavam estratégias para cooptar lideranças comunitárias que compunham suas redes de influência.
Em Joinville, a FAMJO foi fundada na metade da década de 1980 por associações de moradores ligadas a um dos partidos políticos atuantes na época, agregando associações de bairros periféricos. Já o COMAM nasceu em 2000 com o objetivo de agregar as associações que não compactuavam com a FAMJO. A forte conotação partidária tanto das entidades representativas, quanto das associações de moradores tem desmobilizado a participação popular nessas instâncias, uma vez que a população interessada tem buscado independência partidária por acreditarem que esta é a melhor forma para a conquista dos anseios da comunidade (Mezadri, 2012).
Compreende-se a importância do associativismo comunitário como espaço de participação e exercício de cidadania. O modo de trabalho das associações com reuniões periódicas entre os moradores para discutir demandas do bairro tem semelhanças com o modelo observado no grupo de articulação do CRAS, uma vez que todos os participantes citaram que as conquistas comunitárias e a implicação com as questões coletivas não nasceram especificamente com o grupo de articulação, mas que o modo de organização e de reivindicação já estava presente neste território.
Nesta seção, vamos verificar o modo como a presença do CRAS no território pode potencializar uma aspiração histórica dos movimentos populares com respeito às pautas de reivindicação comunitária e a construção de uma esfera pública democrática. Na história recente do país, as ações coletivas no âmbito comunitário se confundem com o processo de redemocratização do estado brasileiro (Kinzo, 2001). A leitura que se faz aqui, observando as informações produzidas no campo da pesquisa, apontam que a mediação do CRAS na articulação comunitária pode mobilizar atores sociais e ampliar a interface entre Estado e sociedade civil organizada no território, isto quer dizer, instrumentalizar ações coletivas.
O referido CRAS foi implantado em 2010 e, em 2013, os trabalhos do grupo de articulação começaram por iniciativa da coordenadora do serviço e de alguns líderes comunitários. De acordo com as Orientações Técnicas referentes ao trabalho dos CRAS (MDS, 2009, p. 26), a promoção da articulação intersetorial não está sob “a governabilidade da política de Assistência Social”, mas “o gestor de assistência social pode, no entanto, influir para que seja definida a prioridade de articulação das ações no território de abrangência do CRAS”.
O CRAS operacionalizou uma das diretrizes do SUAS, a territorialização. A coordenadora conta que desde que assumiu a coordenação do CRAS, em 2013, buscou “conversar com a rede, pois a rede é fundamental para que a gente possa entender o usuário da melhor maneira possível”. Segundo o documento (MDS, 2009, p. 13), “a territorialização refere à centralidade do território como fator determinante para a compreensão das situações de vulnerabilidade e risco sociais, bem como para seu enfrentamento”. Isto quer dizer que, para a estruturação do trabalho socioassistencial, faz-se necessário conhecer a história do território, as vulnerabilidades e os riscos, mas, além disso, é necessário (re)conhecer as potencialidades do território, suas instituições, organizações e movimentos.
Com o mapeamento das lideranças comunitárias, os interessados em realizar reuniões periódicas enviam ofícios convites para os Centros de Educação Infantil (CEIs), escolas municipais e estaduais, associações de moradores, conselho local de saúde, unidades básicas de saúde, subprefeitura, polícia militar, guarda municipal, restaurante popular, serviço especializado em reabilitação, secretarias municipais (segurança, habitação, educação), igrejas e cozinha comunitária.
Os participantes contam que foi difícil começar a reunir os serviços e entidades, pois, segundo a facilitadora do grupo: “No início foi desafiador, pois nós temos 20 equipamentos, entre governamentais e não-governamentais, e aí vinham três ou quatro” (facilitadora do grupo de articulação, entrevista, junho de 2019). Ela acredita que a adesão aconteceu na medida em que foram desmistificando uma questão que aparece como central também no discurso de outros participantes: os interesses político partidários. Outro participante descreveu: “A primeira dificuldade foi que as pessoas entendessem da proposta, porque como eu sou um agente político, as pessoas pensavam que eu iria fazer aqui politicagem” (representante do conselho das associações de moradores, entrevista, setembro de 2019). Mais um entrevistado relata sobre essa questão, pontuando que a política perdeu credibilidade, portanto, para o trabalho acontecer e para os sujeitos participarem, as pessoas, inclusive ele, não falam sobre o “gosto político” e as candidaturas ao cargo de vereador.
Uma das entrevistadas informa que em algumas reuniões do grupo havia a presença de vereadores, e ela se posiciona: “O vereador pode até vir, mas com o objetivo de vir nos bairros e atender a comunidade, não para ganhar votos” (representante da feira do parque, entrevista, junho de 2019). Outra participante também trouxe este assunto à tona ao descrever:
Existem tentativas de interferências partidárias, mas a facilitadora é bem forte, ela não deixa nenhuma bandeira política se levantar, [...] mas a gente percebe que, às vezes, tem pessoas que acabam querendo usar o grupo para isso né, pra benefício próprio, e isso é um pouquinho chato. (Representante serviço especializado de reabilitação, entrevista, julho de 2019)
Um dos grandes desafios para o acontecimento do grupo e, por consequência, da articulação intersetorial no território estudado, foi o surgimento de interferências político-partidárias. É possível conjecturar e estabelecer relações entre o modelo de articulação realizado pelas associações de moradores, marcado pelo clientelismo, e as dificuldades para o estabelecimento do trabalho no CRAS. A influência dos partidos políticos e seus representantes nos bairros deixaram marcas que precisaram ser trabalhadas e mediadas pela coordenadora do CRAS, que também ocupa o cargo de facilitadora no grupo de articulação.
O estabelecimento do Sistema Único de Assistência Social no Brasil possuía como um dos objetivos romper com as práticas assistencialistas tradicionais brasileiras, marcadas pelo clientelismo, pelas instituições religiosas, beneficentes e primeiras damas (Yamamoto e Oliveira, 2010). O modo de trabalho do referido CRAS de valorizar a participação social dos líderes envolvidos nas associações de moradores e de romper com as insurgências partidárias colabora para a efetivação dos propósitos do SUAS.
Além do fato do grupo de articulação contribuir com a quebra de antigos paradigmas dos movimentos comunitários, tal estratégia de trabalho também favorece o fortalecimento de vínculos, uma vez que as reuniões mensais com apresentações, cafés e o grupo do WhatsApp beneficiam o conhecimento, criação e manutenção de laços sociais entre os participantes que possuem em comum o objetivo de enfrentar as vulnerabilidades do território. Um dos entrevistados afirma: “Tá provado isso aqui no grupo de articulação, a gente se une e as pessoas começam a nos respeitar. E sozinho você não é nada. Então é isso, a gente foi entendendo isso” (representante do conselho das associações de moradores, entrevista, setembro de 2019).
O grupo apresenta características do território e a participação de moradores que representam as entidades locais, porém, o caráter técnico das mediações realizadas pelas trabalhadoras dos serviços de assistência, saúde e educação qualifica as reivindicações e o modo de fazê-las. A presidente da Associação de Moradores expôs: “Através desse grupo de articulação a gente vai conhecendo outras áreas, outros métodos pra trabalhar e vai ajudando, uma ideia aqui, uma ideia ali... vamos conseguindo as coisas” (presidente da associação de moradores, entrevista, agosto de 2019). Portanto, a partir do SUAS, especificamente da presença deste CRAS no território, tem-se a possibilidade de outros modos de participação social que efetivam a democracia participativa pela via da articulação comunitária, rompendo a cultura do clientelismo e o acesso pelo legislativo como representante de demandas do território.
Uma das atribuições do CRAS é ser “mediador das relações dos seus membros com outras instituições sociais e com o Estado” (MDS, 2004, p. 35), questão que o grupo de articulação mobilizado pelo CRAS colabora. Isto pode ser percebido a partir da fala de uma assistente social participante:
O grupo de articulação pra mim é um mediador. Ele é um mediador da comunidade e das políticas públicas, ele é um mediador da demanda que a comunidade tem e como ela vai chegar, como ela vai se posicionar, como ela vai falar, com quem ela vai falar, de que forma ela vai falar. (Representante serviço especializado de reabilitação, entrevista, julho de 2019)
Ao refletir sobre as potencialidades deste modo de trabalho, é possível perceber a lapidação do trabalho comunitário a partir da mediação técnica. Os participantes do grupo, moradores e trabalhadores do território mapeiam as problemáticas, dificuldades e demandas de infraestrutura, atendimento, vulnerabilidades e irregularidades, e compartilham no dia da reunião. Todos têm direito de fala para a construção de um encaminhamento. A facilitadora em conjunto à comissão (eleita pelos participantes) materializam os encaminhamentos na forma de ofícios para as secretarias ou órgãos responsáveis pelos assuntos debatidos, para que um representante compareça à próxima reunião, ouça e indique as possíveis formas de resolução.
Por meio do grupo de articulação, os gestores e trabalhadores das políticas públicas se conhecem, dialogam e entendem os fluxos de trabalho uns dos outros. Os representantes da sociedade civil e entidades que participam também entram em contato com a realidade, com o modo de trabalho das políticas e compreendem quais os melhores caminhos para garantir os seus direitos e os da população do território. Os diferentes olhares para as problemáticas dos sujeitos e dos territórios favorece a superação da fragmentação que marca a construção das políticas públicas no Brasil e no mundo.
O modo como o grupo foi se organizando ao longo desses seis anos de existência contempla os saberes de todos os envolvidos, sejam moradores do bairro ou gestores das secretarias municipais. Constitui-se como um espaço democrático, afinado com o princípio da horizontalidade que fomenta a participação e o protagonismo social, questões centrais para a política de assistência. A participação democrática ocupa um lugar de destaque na construção da política nacional de assistência social. Ao mesmo tempo em que está relacionada entre os princípios éticos para a oferta dos serviços socioassistenciais (MDS, 2012), é também um dos eixos estruturantes (MDS, 2009) e um método de trabalho, que operacionaliza o objetivo da Proteção Social Básica de potencializar o “protagonismo e a autonomia das famílias e comunidades” (MDS, 2014, p. 13).
O que pode um grupo de articulação? O que pode a participação popular em uma comunidade? A partir de um posicionamento presente na política de assistência social, operacionalizado pela gestão do CRAS deste território, a participação acontece. As experiências democráticas fortalecem a comunidade e seus membros em prol do enfrentamento das injustiças e problemáticas do coletivo. Nas palavras de Rancière (2014b, p. 122), a democracia “entre os que sabem partilhar com qualquer um o poder igual da inteligência, pode suscitar coragem e, portanto, felicidade”.
Os resultados discutidos apontam para as histórias dos participantes do grupo de articulação e como as experiências no período de redemocratização e abertura política do país produziram outros modos de participação política e engajamento com as questões sociais. É possível conjecturar sobre os indícios do movimento de subjetivação política, uma vez que os participantes relatam um deslocamento simbólico com as suas identidades e uma identificação com os que sofrem com a desigualdade social, a pobreza e as violações de direito. Esse movimento alimenta a atuação do grupo de articulação, pois os participantes se apresentam continuamente implicados com as demandas do território de abrangência, buscando, por meio da participação, colaborar para a superação dessas.
Foi viabilizado uma retomada da atuação das associações de moradores e como esse movimento comunitário inspira a participação no grupo de articulação. Vale lembrar o princípio da territorialização, pois um modo de trabalho por meio de reuniões e participação social já era realizado no território estudado a partir do associativismo comunitário, e o CRAS soube identificar e trabalhar diante essa potencialidade.
O CRAS, ao mobilizar a articulação intersetorial, assumiu um papel de mediador, qualificando as reivindicações e colaborando para que as demandas da população fossem identificadas e encaminhadas. Ademais, o modo de trabalho intersetorial do referido CRAS favorece o fomento à participação social, questão central na política de assistência social vigente. Considera-se a potência do CRAS e do grupo de articulação na construção de outros possíveis para o território a partir de princípios democráticos, horizontalidade e participação social.
Compreendemos que o trabalho territorializado é um fator que favorece o processo de constituição do trabalho intersetorial, uma vez que as potencialidades do território foram mapeadas e fortalecidas como a atuação da associação de moradores. Acerca das questões que dificultam o processo de articulação, todos os entrevistados citaram as influências político-partidárias como um fato que precisou ser evitado e trabalhado. A diminuição dos investimentos nas áreas sociais incentivada pelo atual governo federal gera questionamentos, sobretudo acerca da manutenção e ampliação do trabalho dos equipamentos de assistência social, mobilizadores do processo de articulação intersetorial em territórios vulneráveis.
Pode-se considerar que, a partir do objetivo proposto e do trabalho de pesquisa no campo realizado, a articulação intersetorial neste território está amalgamada com a articulação comunitária, isto quer dizer, com o modo como a sociedade civil (os moradores dos bairros estudados) participam socialmente e lutam por melhores condições de vida. A articulação intersetorial pensada como uma proposta técnica, com a presença dos serviços governamentais, só é possível e potente pela articulação, de fato, das duas modalidades de trabalho (governamental e não-governamental) presentes no contexto estudado.
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