O punk teve início nos anos 70 como movimento de contracultura, em oposição ao sistema e a padrões culturais dominantes, em busca da libertação. Ao longo da história agregou ideologias antiautoritárias, antifascistas, antisexistas, princípios anarquistas e de igualdade, manifestados através de letras agressivas com críticas sociais escancaradas e riffs1 rápidos. O punk vai além da música e influencia as vestimentas e o comportamento, tornando-se um estilo de vida para quem o segue.
Diferente do movimento de contracultura hippie, que prezava por “paz e amor”, liberdade e um estilo de vida coletivo mais naturalista e nômade, os punks adotaram a filosofia do it yourself2, liberdade individual e a melancolia, o sujo, o escuro, a fim de “representar o produto mais puro da civilização moderna enquanto dejeto.” (Gallo, 2010, p. 289). Alguns punks conviveram com hippies em suas comunidades, mas havia divergências ideológicas. Para os punks, o pensamento e a reafirmação do ideal de liberdade hippie era hipócrita, pois enquanto os homens desfrutavam da liberdade, as mulheres sofriam maus tratos e eram obrigadas a fazer tarefas domésticas ficando presas na comunidade (Gallo, 2010). Além destas divergências, o punk surge como resistência ao rock progressivo que reinava nos anos 70 e envolvia empresas da indústria fonográfica e um certo estrelismo por parte dos artistas (Abramo, 1994).
Segundo Antonio Bivar (1982/1988), o punk tem três momentos. No primeiro, dos anos 1976 a 1977, é identificado como ferramenta de resistência contra o sistema. O segundo (1981 e 1982) surge com a famosa frase “Punk’s not dead”, representando a persistência do movimento e a preservação da crítica anticapitalista e anticonsumista, acrescentando a preocupação com guerras e outros conflitos armados. Sobre a segunda geração, para Janice Caiafa (1985, citada por Rossetti e Junior, 2014), é a partir da década de 80 que as bandas apresentaram maior engajamento político e social. As ideologias políticas, de proteção aos animais e luta pelos direitos das mulheres cisgêneras, negros e LGBTQIA+ são reforçados nessa época. Finalmente, o terceiro momento, que perdura até hoje e permite o avanço de outras ramificações do punk como, Straight Edges, Anarco punks, Cyberpunks, Queerpunk, devido principalmente aos progressos da internet e da língua inglesa como padrão universal. Graças à ideologia punk de liberdade individual e os “antipreconceitos”, abriu-se caminho para a participação feminina na cena, para formação e liderança de bandas, como Patti Smith e Debbie Harry. A atuação de mulheres e homens podia ser considerada mais pareada. A partir dos anos 80, o hardcore se tornou a vertente do punk mais dominante e o pogo3, que não tinha a intenção de agressão acaba se tornando por vezes violento e afasta muitas mulheres da participação efetiva nos shows, deixando-as de lado (The Punk Singer, Bruna Mezini, 2013).
A banda punk hardcore Bikini Kill iniciou suas atividades no início dos anos 90, em Olympia, Estados Unidos. De grande importância para o retorno das mulheres à frente dos palcos e composta inicialmente por Kathleen Hanna, Tobi Vail e Kathi Wilcox, abordaram temas de cunho feminista em composições e fanzines4. Apesar da força, a banda tinha suas limitações. Com a entrada de Billy Karren no início de 1991, alguns quesitos musicais ausentes foram preenchidos e a formação foi mantida assim até seu término em 1997. Por anos tiveram em seu repertório as músicas “Liar”, que fala sobre a hipocrisia do homem branco da família tradicional; “Feels Blind”, que trata de abuso sexual; “This Is Not A Test” e “Double Dare Ya”, com intuito de empoderar mulheres. Essas e outras letras foram analisadas, de acordo com os objetivos deste trabalho: identificar a perspectiva das mulheres que constam nas composições; compreender a representação das mulheres; e analisar as implicações sociais que a banda proporciona.
O nome da banda deriva do filme The Million Eyes of Sumuru, de Frankie Avalon, narrativa sobre uma vilã que recruta mulheres bonitas para serem amantes de líderes mundiais a fim de assassiná-los, até que uma delas se apaixona por sua futura vítima e conta a ele o plano da vilã, que manda um exército de mulheres de biquíni para matá-la. Hanna fala que o nome recorda “garotas armadas usando biquíni’’. É derrubar todo o estereótipo do que é a sexualidade [feminina]. Isso é nosso, e isso é bem poderoso” (Andersen e Jenkins, 2015, p. 380).
Paralelamente às atividades da banda foram iniciados os encontros das riot grrrls. A princípio, riot grrrl (do inglês riot, que significa rebeldia e o neologismo grrrl como uma variação da palavra girl, garota, associada a onomatopeia para raiva grrr) foi o título de uma zine lançada em julho de 1991, que continha informações sobre bandas feministas e outras zines lançadas pelas mesmas, conteúdo político voltado principalmente ao ativismo feminista da época e textos de empoderamento e emancipação feminina.
O Riot Grrrl se tornou um movimento que clamava por uma revolução feminista, lutando contra o patriarcado, capitalismo e outras formas de dominação através de zines, bandas de punk hardcore, festivais e encontros periódicos nos quais as garotas podiam falar abertamente sobre sexualidade, assédio, música, artes no geral, militância, entre outros. As bandas do movimento usualmente faziam shows beneficentes, apoiavam causas sociais, e sempre falavam sobre política em cima do palco.
O movimento feminista pode ser compreendido em três momentos: a chamada primeira onda data do fim do século XX e teve maior visibilidade na Inglaterra onde, em 1918, o direito ao voto foi conquistado graças à união das sufragistas; a segunda onda “chegou a elaborar a noção de ‘gênero’ enquanto construção social, fabricação histórica e cultural, que não estaria determinada por uma verdade ou um substrato, nem natural nem ontológico” (Preciado, 2002/2017, p. 91); a terceira onda feminista busca corrigir e preencher lacunas deixadas pelas anteriores, enfocando a abordagem de questões de desconstrução do papel da mulher, explorando as diferenças com ênfase à subjetividade e mutabilidade, renegando tudo que possa ser opressor e normatizador. Segundo Branca Alves e Jacqueline Pitanguy (1985/1991):
O feminismo busca repensar e recriar a identidade de sexo sob uma ótica em que o indivíduo, seja ele homem ou mulher, não tenha que adaptar-se a modelos hierarquizados, e onde as qualidades ‘femininas’ ou ‘masculinas’ sejam atributos do ser humano em sua globalidade. (p. 9)
É importante pensar que, para além dos direitos garantidos ao longo das ondas citadas acima, os feminismos devem considerar outras formas de opressão além do gênero, compreendendo que mulheres brancas têm vivências diferentes das de mulheres negras (Davis, 1981/2016, hooks, 2000/2018), assim como lésbicas e bissexuais são oprimidas por estruturas distintas das que oprimem mulheres heterossexuais e o mesmo ocorre dentro da esfera de cisgêneras e transgêneras (Oliveira, 2010). Não é possível pensar na emancipação das mulheres ao considerar como sujeito principal do feminismo apenas mulheres brancas heterossexuais de classe média, e como reforça João Manuel de Oliveira (2010, p. 36): “os feminismos não devem apenas localizar-se no gênero”.
Mudanças no pensamento sobre o papel da mulher na sociedade e outros assuntos que o cercam, como gênero e sexualidade, foram propostas por meio do movimento feminista. Após a desconstrução de ideias, a tarefa de reconstrução teórica tirou a psicologia de sua zona de conforto, questionando aplicações e efeitos de certas práticas profissionais (Prehn e Hüning 2005).
O conceito de representações sociais, enquanto um constructo utilizado na Psicologia Social (Moscovici, 2000/2007; Jodelet, 2016), permite-nos compreender a construção social dos feminismos (Arruda, 2002) e favorece um pensamento feminino na ciência (Oliveira e Amâncio, 2006). A partir desses autores compreendemos as representações sociais enquanto fenômenos complexos elaborados por sujeitos sociais, por meio de crenças e/ou saberes coletivos, que nos permitem dar sentido e compreender nossa realidade e nosso modo de existência. Isso inclui a forma como são coletivamente apresentadas na música (Matsunaga, 2008) e na ciência (Oliveira e Amâncio, 2006).
Por décadas a ciência afirmou a posição de conhecimento e razão como masculinas, e a ingenuidade e intuição como femininas, com pouca credibilidade. A Psicologia, na ânsia de ser reconhecida como ciência, acabou por reforçar esse paradigma, contribuindo inclusive para a divisão sexual do trabalho (Prehn e Hüning, 2005).
Uma nova postura na ciência tem sido identificada a partir de autoras como Donna Haraway (1988/1995). Uma epistemologia científica identificada através de uma nova ética, nova forma de escrita, de se posicionar no mundo e uma lógica emancipatória, que afeta a Psicologia, inclusive a Psicologia Social (Oliveira e Amâncio, 2006).
Uma das ações do movimento feminista é superar a ideia transmitida pelas instituições sociais de que a mulher é inferior ao homem. Propagandas com corpos objetificados; livros didáticos que ensinavam que o suposto papel da mulher era dentro de casa; histórias infantis vitimizadoras; todos esses conteúdos passam a ser problematizados pelas feministas para modificar a ideia sobre a mulher (Alves e Pitanguy, 1985/1991). Consideramos que a música, enquanto recurso midiático e de transmissão/construção cultural, pode ser tanto recurso para manutenção dessas crenças, quanto de transgressão, ao transmitir ideais feministas, de empoderamento e discussões sobre sexualidade e violências.
A partir da perspectiva histórico-cultural e das discussões de Lev Vygotsky (1934/2008, 1971/1999, 1978/1999) sobre arte, significado, sentido e linguagem/palavra para o desenvolvimento humano, Patrícia Wazlawick et al., (2007) apontam que a música pode ser compreendida enquanto fenômeno social e cultural e tem importância tanto individual quanto grupal. A música, além de significados e sentidos singulares, assume uma dimensão social por meio dos significados compartilhados entre membros de determinada comunidade, portanto, encarrega-se da função de produtora de identidade, na qual as emoções e os sentimentos desempenham papel importante no desenvolvimento desse processo. Segundo Andrew Gregory (1997), a música é um meio de criação de senso de pertencimento e, citando Martin Stokes (1994), possibilita maneiras de reconhecimento identitários e geográficos, tornando-se socialmente significativa. Para Wazlawick et al. (2007), a música é transdisciplinar por natureza, o que permite uma aproximação e diálogos com o contexto sócio-histórico e outros saberes.
Em uma relação entre a abordagem cultural histórico-cultural de Vygotsky e a teoria das representações sociais de Serge Moscovici consideramos:
O aspecto sociocultural tem um papel amplo e imprescindível na formação do sujeito. A cultura, através dos seus próprios aparatos materiais, discursivos, imagéticos, entre outros, é abordada do ponto de vista de uma estrutura dialética, passível de reconstruções, constituindo-se muito mais como um lugar simbólico onde a matéria-prima para a confecção da malha dos signos é tecida. (Magalhães, 2014, p. 250)
Vygotsky (1930/2014) afirma que atividade imaginativa depende de nossas experiências, necessidades e interesses e é alimentada ou expressa por elementos materiais presentes nessa realidade e que a fantasia, por mais irreal que pareça, depende de elementos da realidade para sua expressão. Para Ernest Fischer (1959/2002), o conteúdo da música é expresso pelo compositor enquanto sua experiência pessoal e social, portanto o estudo do conteúdo está sempre atrelado ao contexto histórico em que as composições foram produzidas. Ouvir “apenas a música” é ignorar e subestimar a qualidade e forma da experiência transmitida por quem a produziu, assim como desprezar as conexões que os ouvintes podem fazer de suas vivências pessoais com as de quem compôs.
A música, o feminismo e o movimento Riot Grrrl são inseparáveis. As implicações na vida das meninas e mulheres da época e atuais demonstram a importância das composições analisadas neste trabalho. Nesse sentido, as questões que guiaram esta pesquisa foram: 1. quais representações das mulheres estão presentes nas músicas da Bikini Kill?; 2. como estas músicas podem colaborar para a compreensão da identidade dessas mulheres?
As composições foram agrupadas em categorias. Para a interpretação das músicas, as dividimos em classes e subclasses. As classes foram: Denúncias e Empoderamento. Dentro de Empoderamento ficam as subclasses: identidade e afirmação de si; rebeldia; reação; confiança e amizade; e liberdade. Na classe Denúncias ficaram as subclasses: abuso físico e abuso emocional; preconceito; discriminação; desigualdade social; pressão social; traição; críticas ao capitalismo e à indústria cultural. Identificamos nas letras dialéticas como submissão-luta, repressão-reação, paixão-ódio, confiança-resistência, identidade-pressão social, violência-escolha. Compreendemos o conceito de dialética como usa Judith Butler citando Hegel em The Nothing That Is, de 1991: “definida como ‘a unidade de opostos aparentes — mais precisamente […] a relação lógica e ontológica de implicação mútua que persiste entre termos aparentemente opostos’” (Salih, 2002/2018, p. 36).
A escolha do método considerou que o contexto sócio-histórico é de extrema importância. Nossa proposta foi compreender as músicas enquanto textos, investigando as ambiguidades presentes refletidas naqueles que a ouvem, apresentadas a partir da dialética.
Os trechos retirados de músicas foram mantidos em inglês, preservando a originalidade da banda; acrescentamos nossas traduções entre parênteses logo após a frase original. A proposta da pesquisa foi estudar as músicas com autoria da banda Bikini Kill, sendo aqui apresentadas aquelas que abrangem os temas por nós discutidos. Consideramos como importante fonte bibliográfica a história da banda e das integrantes, como o documentário The Punk Singer, de Sini Anderson (Bruna Mezini, 2013), livros, blogs e zines que indicam sua posição política e ideológica. A postura feminista das integrantes, assim como o contexto histórico, foram fundamentais para compreender a totalidade da obra.
Uma vez que nosso objeto de estudo são as representações da mulher inseridas nas composições da banda, precisamos refletir sobre o que é ser mulher. Butler (1990/2017) pontua que a identidade do sujeito está em constante movimento e construção, o que significa dizer que não é possível cercear a identidade de uma mulher utilizando elementos da cultura cis heteronormativa. Compreende-se, assim como Butler (1990/2017) ao citar Beauvoir, “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”.
Butler (1990/2017) expõe os argumentos de Michel Foucault em A história da Sexualidade 1 relacionados ao construto “sexo”, como construído para regular e controlar socialmente a sexualidade; ocultar e unificar funções sexuais diferentes; aparecer como causa, tornando os prazeres corporais como suas manifestações. Para Butler (1990/2017, p. 167), Foucault propõe a “sexualidade” enquanto um “sistema histórico aberto e complexo de discurso de poder.”, no lugar do “sexo” que serve de controle e estratégia mantenedora de relações de poder. Ao pensar a partir do combate à metafísica da substância (Rocha, 2014), Butler busca problematizar a naturalização do sexo e do gênero. Ao desnaturalizar o sexo, pode-se percebê-lo como uma “entidade discursivamente construída ao longo da história” (Rocha, 2014, p. 508).
Ao desconstruir e recusar a existência de categorias que classificam os sujeitos, a teoria queer permite com que todas as identidades sexuadas venham à tona, defendendo o modo indeterminado da existência (Rocha, 2014). A construção da identidade passa pela via do discurso, logo, está aberta a constantes intervenções e ressignificações. Assim, o gênero pode ser visto como performativo, sendo “um ato ou uma sequência de atos que está sempre e inevitavelmente ocorrendo” (Salih, 2002/2018, p. 68) e, portanto, “a identidade é constituída pelas próprias expressões que supostamente são seus resultados.” (Rocha, 2014, p. 512).
Explanada a noção de que nem sexo nem gênero são naturais, Butler (1990/2017, p. 69) aponta que “mulher é um termo em processo, um devir, um construir de que não se pode dizer com acerto que tenha origem ou um fim.”. Para Monique Wittig, citada por Butler, a missão das mulheres é “assumir a posição do sujeito falante autorizado (…) e derrubar tanto a categoria do sexo como o sistema de heterossexualidade compulsória que está em sua origem.” (Butler 1990/2017, p. 200).
Wittig (1992) aponta a importância de tomar como estratégia de luta a desconstrução da categoria mulher, no sentido de que é principalmente através das ideias dicotômicas entre os sexos que existe a opressão e violência de gênero. Para a autora, ser mulher é uma categoria social construída e sustentada em uma relação de dominação dos homens em um sistema heterossexual.
Contextualizando a missão das mulheres de se tornarem sujeitos falantes universais, Wittig argumenta que a linguagem possui o poder de produzir “‘o socialmente real’ por meio dos atos de locução dos sujeitos” (Butler, 1990/2017, p. 200). A assimetria da fala é atribuída por ela como consequência de estruturas historicamente produzidas, sendo elas heterossexuais (como norma no campo da orientação sexual) e cisgêneras (como norma no campo do gênero) compulsórias (Bagagli, 2018), possibilitando com que homens tenham direito à fala, mas não as mulheres. Apropriar-se da linguagem é lutar contra a construção do homem como sujeito universal e da mulher reduzida apenas ao particular, construção que é colocada por Wittig como “ato criminoso (…). Trata-se de um ato levado a cabo no âmbito dos conceitos, da filosofia e da política”. (citada por Butler, 1990/2017, p. 202).
Aqui, falaremos sobre mulheres que escreveram músicas em que o privado se torna público, músicas que colocam a mulher em primeira pessoa, como sujeito falante e portadora do discurso regido pelo “eu”, o que presume que elas possam falar enquanto humanos universais. Como pontua Wittig, “esse privilégio de dizer ‘eu’ estabelece um eu soberano, um centro de plenitude e poder absolutos; a fala funda ‘o ato supremo da subjetividade’” (citada por Butler, 1990/2017, p. 203), essa subjetividade é advinda da queda efetiva do sexo, por isso consideramos importantes os questionamentos sobre sexualidade feminina, hierarquia de sexos e machismo que a banda traz.
Utilizamos o termo “empoderamento”, do inglês empowerment, que significa “obtenção, alargamento ou reforço de poder” (Baquero, 2012, p. 174). O conceito vem sendo muito utilizado em categorias políticas, educativas e de gênero. Utilizamos a noção de empoderamento dentro do feminismo, que trata o termo como processo de conquista de autonomia das mulheres (Sanberg, 2006). Para a autora, um dos maiores objetivos do empoderamento é romper com estruturas de opressão que controlam os corpos das mulheres, mas cabe salientar que, na visão de um feminismo interseccional, não é apenas o fim da opressão de gênero que busca ser alcançado, mas também é necessário condenar estruturas racistas e classistas que contribuem para a manutenção do status quo e o aprisionamento das mulheres. Nesta classe, encaixamos as composições que consideramos provocar nas ouvintes uma ânsia emancipatória do sistema patriarcal e as sensações e sentimentos contidos no que chamamos de subclasses, são: identidade e afirmação de si; rebeldia; reação; confiança e amizade; e liberdade.
O desejo por uma revolução feminista é explicitado nesta classe, transmitindo a inspiração que uma mulher pode causar na outra, como no trecho destacado da canção Rebel Girl: “Rebel girl, rebel girl/Rebel girl, you are the queen of my world/Rebel girl, rebel girl/(…)/When she walks, the revolution is coming/In her hips, there’s revolution/When she talks, I hear the revolution/In her kiss, I taste the revolution. (“Garota rebelde, garota rebelde/Garota rebelde, você é a rainha do meu mundo/Garota rebelde, garota rebelde/(…)/Quando ela fala, eu ouço a revolução/Em seus quadris, há revolução/Quando ela anda, a revolução está vindo/Em seu beijo, eu sinto o gosto da revolução”).
Ao clamar pela luta, incitar e incentivar as ouvintes a romperem posições de submissão impostas, as músicas expõem a dialética submissão x luta e a manifestação de atores sociais, sujeitos que ao reconhecer a hierarquia proposta pelo sistema opressor a torna objeto de questionamento e reflexão, percebem que podem contrariá-la e agem nesse sentido, buscando sua libertação e a das minorias (Prado e Machado, 2008). Como exemplo, citamos o trecho de Double Dare Ya: “Dare ya to do what you want/Dare ya to be who you will/Dare ya to cry right outloud” (“Te desafio a fazer o que você quer/Te desafio a ser quem você será/Te desafio a chorar muito alto”) e o trecho de Resist Psychic Death: “I will resist with every inch and every breath/I will resist this psychic death” (“Eu resistirei com cada centímetro e cada respiração/Eu resistirei a esta morte psíquica”). Neste, o movimento dialético submissão x luta reflete a existência de um mundo possível, para além do machista patriarcal capitalista opressor, um mundo que não é o nosso, no qual a resistência e luta são reações essenciais para prosseguirmos.
Quando a dialética submissão x luta torna-se submissão x poder, autonomia e rebeldia, fica claro que a representação da mulher aqui simboliza aquela que se recusa a manter seu papel de unicamente provedora dos desejos masculinos, como podemos notar em Jet Ski: “Ain’t got no more/No more candy for you.” (“Não tenho mais/Não tenho mais doce pra você”). As letras feministas carregam a possibilidade de transformar suas ouvintes em questionadoras e críticas diante dos papéis que lhes são impostos culturalmente, permitindo mudanças psicossociais que podem chegar no campo macropolítico.
A autonomia feminina é o objetivo principal do empoderamento, Don’t need you retrata essa autonomia e independência e ironiza a ideia de que isso possa assustar os homens: “Does it scare you that we don’t need you?” (“Te assusta não precisarmos de você?”). Nessa música vemos um recurso muito característico da banda e da teoria queer que é a apropriação de palavras primeiramente tidas como pejorativas na cultura cisheterossexual como tentativa de ridicularizar pessoas LGBTQIA+ e mulheres cisgêneras: “Us, whores, don’t need you” (Nós, putas, não precisamos de você”). Quando reapropriadas, se tornam símbolo de resistência:
Os termos queens, butches, femmes, girls, e até a reaproprição parodística de dyke, queer e fag,5 redesdobram e desestabilizam as categorias sexuais e as categorias originalmente derrogatórias da identidade homossexual. Todos eles podem ser entendidos como sintomáticos da “mentalidade hetero”, como formas de identificação com a versão do opressor para a identidade do oprimido. (Butler, 1990/2017, p. 212)
O uso de palavrões, críticas diretas e conteúdos explícitos são características marcantes da banda, vistas por nós como necessárias e comuns no movimento Riot Grrrl, uma vez que essas mulheres se levantam como sujeitos políticos e querem denunciar situações de opressão de forma legítima e escancarada, além de lutarem pelo controle de seus corpos e de sua sexualidade, buscando a experimentação de “possibilidades radicais de prazer” (trecho da música I Like Fucking, a seguir).
As composições relacionadas a autonomia falam principalmente sobre a retomada da emancipação do corpo das mulheres, tão controlado por políticas, religiões e outras relações de poder (Alves e Pitanguy, 1985/1991), pauta importante também para o movimento Riot Grrrl, cujas integrantes, enquanto feministas, participaram de marchas a favor do aborto nos Estados Unidos e se reuniam para discutir sexualidade e questões de gênero.
I Like Fucking escancara o corpo e a realidade feminina repleta de abusos e controle, mas afirma a possibilidade de acreditar que há algo além disso: “Just ‘cuz’ my world, sweet sister/Is so fucking goddamn full of rape/Does it mean my body must always be/A source of pain?/No, no, no/(…)/I believe in the radical possibilities of/Pleasure babe/I do, I do, I do” (“Só porque meu mundo, querida irmã/É tão fodidamente cheio de estupros/Isso significa que meu corpo deva ser sempre/uma fonte de dor?/Não, não, não/(…)/Eu acredito nas possibilidades radicais de/Prazer, meu bem/Eu acredito, acredito, acredito”).
A classe Denúncias abrange aquelas relacionadas à abuso físico e emocional; preconceito; discriminação; desigualdade social; pressão social; traição; críticas ao capitalismo e à indústria cultural. As composições aqui estão relacionadas diretamente à violência contra a mulher e à desigualdade de gênero. A maioria dessas músicas também trazem mensagens de resistência que reforçam a noção de empoderamento, mas optamos por agrupá-las em Denúncias uma vez que o teor das denúncias têm peso maior na composição.
Reforçada por mitos cristãos e pelo discurso científico do homem como sujeito universal (Prehn e Hüning, 2005), a desigualdade de gênero mantém mulheres em posição de objeto, cujo corpo tem apenas fins reprodutivos. A mulher é colocada como sexo frágil, inadequada para administrar atos civis e políticos (Dantas e Vasconcelos, 2017). A violência contra a mulher é mantida e legitimada através da desigualdade de gênero e da hierarquia de sexos, garantindo ao homem seu lugar no mundo público, enquanto da mulher que permanece no anonimato da vida privada (Alves e Pitanguy, 1985/1991). Socialmente privada desse lugar público e “com dificuldade para colocar-se como sujeito desejante, a mulher sofre repressão em todas as etapas de sua vida, por parte da família e de várias agências socializadoras.” (Saffioti e Almeida, 1995, p. 217).
Questões referentes a relacionamentos abusivos e violências cometidas pelo parceiro e pela família estão presentes nas letras analisadas, abrangendo tanto agressões físicas, quanto psicológicas e sexuais. Como apontam Heleieth Saffioti e Suely Almeida (1995, p. 8) a violência contra a mulher “desconhece quaIquer fronteira: de classes sociais, de tipos de cultura, de grau de desenvolvimento econômico, podendo ocorrer em qualquer lugar — no espaço público como no privado — e ser praticado em qualquer etapa da vida das mulheres e por parte de estranhos ou parentes/conhecidos, especialmente destes últimos.”. As hostilidades sofridas na relação amorosa podem ter vínculos com violências presenciadas e experimentadas na infância, através de um modelo parental violento, embora esse não seja um fator dominante e exclusivo (Rosa e Falcke, 2014).
Outro discurso marcante é responsável por trazer à tona violências sexuais, dentro e fora de um relacionamento, e as implicações dessas violências. Como pontua Jefferson Drezett (2003) “a violência sexual constitui uma das mais antigas e amargas expressões da violência de gênero, além de representar uma inaceitável e brutal violação de direitos humanos” (pp. 36-37). Os abusos obviamente trazem consequências físicas e psicológicas, possivelmente relacionadas com a dificuldade de lidar com a sexualidade e o próprio corpo, como é colocado Star Bellied Boy: “And then he said ‘why won’t you fuck me’/And then he said ‘do me do me do me’/And then he said ‘I’ll be your best friend’/And then I said/’why do I cry every time that I cum?’/I can’t, I can’t, I can’t, I can’t cum” (/E então ele disse ‘por quê você não me fode’/E então ele disse ‘me foda, me foda, me foda’/E então ele disse ‘eu serei seu melhor amigo’/E então eu disse ‘por que eu choro toda vez que eu gozo?/Eu não consigo, não consigo, não consigo, não consigo gozar’”).
Uma característica da banda Bikini Kill e do movimento Riot Grrrl é o discurso aberto sobre sexualidade. Maria Margarida S. Góis (1991) afirma que “somos educadas por mulheres, numa sociedade onde a virilidade e o prestígio do macho estão longe de serem apagados” (p. 119). Beatriz Preciado (2002/2017, p. 79) pontua que “é preciso pensar o sexo (…), pelo menos a partir do século XVIII, como uma tecnologia biopolítica. Isto é, como um sistema complexo de estruturas reguladoras que controlam a relação entre os corpos, os instrumentos, as máquinas, os usos e os usuários”. O sexo deixou de ser apenas aparato biológico para tornar-se aparato de controle sobre os corpos, principalmente o corpo feminino (Butler, 1990/2017).
Devemos refletir sobre por que o prazer das mulheres precisa ser tão dolorido. Por que a mulher não pode sentir prazer? Sugar também traz a temática da dificuldade da mulher em ter prazer numa relação sexual e ter que satisfazer o parceiro quando sua satisfação fica em segundo plano e mostra a insatisfação e reação feminina diante isso: “You’re so fucking good/You’re so big and hard/You’ve got such a big cock/Push it deeper now/Oh, deeper, harder/I’m almost cummin’/(…)I mimic out your ever fuckin’ fantasy yeah/(…)/Why don’t I ever get my/Sugar?” (“Você é tão bom/Você é tão grande e duro/Você tem um pau grande/Empurre isso mais fundo agora/Mais profundo, mais forte/Estou quase gozando/(…)/Eu imito a sua fantasia fodida/(…)/Por que eu não tenho o meu/Docinho?”), “I won’t play girl to your boy no more” (“Não vou mais fazer o papel de garota para seu garoto”).
A classe Denúncias traz letras que explicitam conteúdos de abusos sexuais, situações que diziam, e dizem respeito à realidade de muitas mulheres e meninas e as ajudavam a falar sobre tais questões (Marcus, 2010). Hanna trabalhou em um centro de apoio para vítimas de violência doméstica e a influência dos relatos que ouvia é nítida nas músicas. A cantora conta que pessoas a procuravam “para contar suas histórias de abuso sexual, ou então pessoas que foram espancadas por seus pais ou algo assim.” e afirma que “mesmo que não seja violência física, é a violência emocional e a hierarquia familiar — que é a mesma hierarquia que colocar os homens acima das mulheres.” (Andersen e Jenkins, 2015, p. 379).
Liar é um exemplo de relato de recorrentes abusos que acontecem dentro de casa, vindos, por exemplo, do pai: “Betty’s got the back/of her dress all ripped out/Mama’s got her face/muffled twist and shout/(…)/You profit from the lie/You profit from the rape” (“Betty teve as costas de seu vestido/Toda rasgada para fora/Mamãe teve sua face/torcida por um grito/(…)/Você lucra com a mentira/Você lucra com o estupro”). É uma crítica à “família tradicional”, caracterizada muitas vezes por um pai ausente e abusivo, que objetifica a esposa e as filhas, é racista, agressivo e conservador: “Lie baby/Eat meat, hate blacks, beat your fuckin wife/It’s all connected/Deny, you live your life in denial” (“Minta, querido/Coma carne, odeie pretos, bata na sua maldita esposa/Está tudo conectado/Negue, você vive sua vida em negação”).
Daddy’s Lil Girl narra um abuso sexual cometido pelo pai: “I have no desire/I can’t feel a thing/I just want to make him happy/Daddy’s little girl/Daddy’s little girl/Daddy’s girl don’t wanna be/His whore no more” (“Eu não tenho desejos/Eu não sinto nada/Só quero fazê-lo feliz/A menininha do papai/A menininha do papai/A menininha do papai não quer ser/Sua puta nunca mais”). A música expõe o entendimento da filha perante o abuso sofrido e sua reação, mas também aborda as dificuldades de lidar com a situação, afinal, existe um tabu moral por trás da história, expor o caso ou esconder por ter sido cometido pelo próprio pai? Como se manter financeiramente sem o apoio do dito provedor financeiro da casa?: “Food/Shelter/Love/I need to hold my tongue/I need to hold my tongue/Didn’t know I’d have to lose so much/For Daddy’s love/Didn’t know I’d have to lost myself/For Daddy’s touch” (“Comida/Abrigo/Amor/Preciso segurar minha língua/Preciso segurar minha língua/Não sabia que teria que perder tanto/Pelo amor de papai/Não sabia que teria que me perder tanto/Pelo toque de papai”).
Lil Red traz a agressividade do riot grrrl na performance de Hanna e na letra: “These are my tits, yeah/And this is my ass/And these are my legs/Watch them walk fuckin away/These are long nails to scratch out your eyes/You are not the victim” (“Esses são meus mamilos, yeah/E essa é minha bunda/E essas são minhas pernas/Assista-as indo embora, porra!/Essas são minhas unhas longas para arranhar seus olhos/Você não é a vítima”). Hanna cantava mostrando as respectivas partes do corpo (peitos, bunda, pernas), reafirmando que aquilo pertence a ela, não a um homem. Suas performances tinham uma carga sexual, não necessariamente ligada à exploração do corpo, mas era tão política quanto o que ela cantava (Andersen e Jenkins, 2015). Aqui, acrescentamos uma citação de Butler (1990/2017, p. 199) sobre a sexualização do corpo: “O fato de o pênis, a vagina, de os seios e assim por diante serem denominados partes sexuais corresponde tanto a uma restrição do corpo erógeno a essas partes quanto a uma fragmentação do corpo como um todo.”.
As canções que trazem denúncias, trazem reações, This Is Not a Test é um exemplo de uma mulher que somatiza corporal e sexualmente a repressão vivida: “I’m fat, I can’t sleep/There’s someone following me/I’m fat, I can’t cum cum/You’re so blind you don’t wanna see” (“Eu sou gorda, não consigo dormir/Tem alguém me seguindo/Eu sou gorda, não consigo gozar/Você é tão cego que não quer ver”) e reage agressivamente a isso: “You’re fucked and I’m not/You don’t make all the rules, yeah!/(…)/Me and my girlfriends gonna push on thru/We are gonna stomp on you, yeah!” (“Você é um ferrado e eu não/Você não faz todas as regras, sim/Eu sei o que eu vou fazer porra/Eu e minhas amigas vamos te deixar na linha/Nós vamos bater em você, sim!”). Star Fish também mostra essa reação: “They want to buy the look of my abuse/They want to use my blood to color their perfume/(…)/Just like a starfish/My legs will soon grow back/I’ll just be ten times stronger/I’ll just be ten times stronger/Each time that you attack” (“Eles querem comprar o visual do meu abuso/Eles querem usar meu sangue para colorir seus perfumes/(…)/Como uma estrela-do-mar/Minhas pernas irão crescer de novo/(…)/Eu serei dez vezes mais forte/Cada vez que você me atacar”).
A negligência diante de abusos, sexuais e/ou psicológicos, é retratada em Feels Blind: “How does it feel?/It feels blind” (“Qual é a sensação?/É a sensação de estar cego”). Aqui vemos a negação da realidade e a submissão feminina culturalmente ensinada a aceitar o abuso como amor: “As a woman I was taught to always be hungry/Women are well acquainted with thirst/Well, I could eat just about anything/We’d even eat your hate up like love/I eat your hate like love” (“Como mulher, fui ensinada a estar sempre faminta/As mulheres sabem bem como é ter sede/Bom, eu poderia aceitar qualquer coisa/Nós até comeríamos seu ódio como se fosse amor”); “What have you taught me? Nothing!/Look at what you have taught me/Your world has taught me nothing” (“O que você me ensinou? Nada!/Olha o que você me ensinou/Seu mundo não me ensinou nada”).
Reflexões sobre o homem branco cisheterossexual de classe média como sujeito universal e opressor também aparecem nas músicas da Bikini Kill. Hanna e Vail estudaram escritoras e ativistas afro-americanas como bell hooks, Audre Lorde e Angela Davis e criticam o feminismo que serve apenas à classe média branca, aplicando a crítica em suas letras (Andersen e Jenkins, 2015). White Boy é um diálogo entre uma mulher e um garoto branco e expressa tal indignação: “White boy: some of these dumb hoes,/Those slut rocker bitches walking down the street,/They’re asking for it, they may deny it but it’s true” (“Garoto Branco: algumas dessas putas burras./Essas vagabundas requebrando, andando pela rua/Elas pedem por isso, elas podem negar mas é verdade”). É nítida a culpabilização das vítimas de violência sexual apontada pelo “garoto branco”, conteúdo que vem acompanhado da reação da personagem feminina: “White boy… don’t laugh… don’t cry… just die!/I’m so sorry if I’m alienating some of you/Your whole fucking culture alienates me!/I can not scream from pain down here on my knees/I’m so sorry that I think!” (“Garoto branco… Não ria… não chore… apenas morra!/Eu sinto muito se alieno alguns de vocês/Toda sua cultura fodida me aliena!/Eu não posso gritar de dor aqui de joelhos/Eu sinto muito por pensar!”).
Discussões no campo do feminismo e da suposta postura desejada de uma feminista também são debates presentes nas músicas. Em Alien She, notamos a dialética da identidade x pressão social. “Alien” pode ser interpretado como diminutivo de alienação ou alienada, uma vez que a composição narra o conflito interno de uma feminista e sua postura militante contra sua postura consumista, enquadrada na lógica do mercado e do patriarcado “I want to kill her/But I’m afraid it might kill me/Feminist/Dyke, whore/I’m so pretty/Alien” (“Eu quero matá-la/Mas tenho medo que isso me mate também/Feminista/Puta, sapata/Eu sou tão bonita/Alien”). Aqui novamente nota-se o uso de palavras que teriam sentido pejorativo dependendo do uso — dyke (sapatão) e whore (vadia).
Como evidencia Tiago José L. Monteiro (2004), o universo do rock foi construído por homens, que ocupavam as principais cadeiras de gravadoras, estúdios e espaços de construção musical importantes, às mulheres sobrariam os papéis de groupies6, namoradas ou vocalistas, portanto “é preciso problematizar a ideia de que o rock’n’roll seria um gênero masculino por excelência.” (Monteiro, 2004, p. 39). O movimento riot grrrl, por estar inserido no punk, sempre foi contracultura. As bandas que compunham e propagavam a ideologia riot não costumavam dar entrevistas à grande mídia nem pertenciam a major labels,7 ao invés disso regiam os próprios selos musicais para produzir e divulgar suas criações de maneira autônoma. A crítica à indústria fonográfica e a cultura alienante está presente nas composições da banda Bikini Kill. Graças a essas críticas e, segundo Guadalupe Becker (2011), graças ao movimento Riot Grrrl, tocar tornou-se um ato político, cujo ponto principal seria arriscar-se, afinal, era importante mostrar para outras garotas que os palcos também deviam ser ocupados por elas.
Bloody Ice Cream é um exemplo de denúncia do silenciamento de artistas mulheres e do seu reconhecimento apenas após a morte. A música traz a reação perante a realidade machista: “The Sylvia Plath story is told to girls who write/They want us to think that to be a girl poet means you have to die./Who is it that told me all girls who write must suicide?/I’ve another good one for you/we are turning cursive letters into knives” (“As histórias de Sylvia Plath são contadas a meninas que escrevem/Eles querem que pensemos que para ser uma menina poeta significa que você tem que morrer/Quem mesmo que me disse que todas as meninas que escrevem tem que se suicidar?/Eu tenho uma outra [piada] boa pra você/estamos transformando letra de mão em facas”). Aqui é provável que a compositora estivesse falando especificamente sobre obras literárias, objeto que, segundo Wittig, pode operar como máquina de guerra, ou ainda “máquina perfeita de guerra” (Butler, 1990/2017, p. 207). Butler (1990/2017), ao citar Wittig, pontua que:
Para as mulheres, as lésbicas e os gays (…) a principal estratégia dessa guerra é apropriar-se antecipadamente da posição de sujeito falante e de sua invocação do ponto de vista universal (…). O texto literário como máquina de guerra é, em cada caso, dirigido contra a divisão hierárquica do gênero, a cisão entre o universal e o particular, em nome da recuperação da unidade anterior e essencial desses termos. (p. 207)
Algumas músicas demonstram uma relação pessimista à própria vida e nos fazem questionar a origem desse pessimismo: seria fatalismo? Seria decorrente das violências sofridas e/ou observadas? Just Once é um exemplo “You can’t kill me ‘cause I’m already dead” (“Você não pode me matar porque eu já estou morta”).
A objetificação da mulher faz com que ela fantasie que se morresse provavelmente seria mais amada, como podemos perceber através da dialética morte x vida em Ocean Song: “Can’t hear the words you say down here/About all the ways us girls can die (…) If I were dead you would love me more/Then all my words would become like gold/(…)/You cover your ears, don’t wanna hear me scream” (“Não consigo ouvir o que você diz daqui de baixo/Sobre todas as maneiras que uma garota pode morrer/(…)/Se eu estivesse morta você me amaria mais/Então todas as minhas palavras seriam como ouro/(…)/Você cobre seus ouvidos, não quer me ouvir gritar”).
Outra canção que aborda a batalha diária de ser uma mulher na nossa sociedade e o descaso e relativismo do feminicídio é Girl Soldier: “Guess you didn’t notice/While we were crying/Guess you didn’t care/After all, only women were dying” (“Acho que você não reparou/Enquanto estávamos chorando/Acho que você não liga/Afinal, só mulheres estão morrendo”). Aqui podemos pensar sobre a morte física das mulheres e a morte psíquica e emocional, decorrida das inúmeras violências vividas e observadas, e sobre a resistência feminina nessa guerra figurativa e/ou literal: “The war/At home/It’s here/Today/This crowd/Your house/Always/Girl/Soldier” (“A guerra/Em casa/É aqui/Hoje/Essa multidão/Sua casa/Sempre/Garota/Soldado”).
Blood One reforça a reação perante a repressão, dominações e a construção cultural e histórica da sociedade baseada no machismo e na morte, no sangue das mulheres “I don’t fit into your dumb words/(…)/Your alphabet is spelled with my blood/Your alphabet is spilled with our blood” (“Eu não me encaixo nas suas palavras estúpidas/(…)/Seu alfabeto é soletrado com meu sangue/Seu alfabeto é entornado com nosso sangue”).
A partir das discussões acerca das letras, baseadas no contexto histórico da banda, podemos concluir que Bikini Kill foi essencial para contribuir não só musicalmente mas socialmente nas ideias do “feminismo jovem”, como o movimento Riot Grrrl foi enquadrado por Belzer (citada por Marques, 2011). Contempladas por letras radicais e agressivas, inúmeras mulheres perceberam que algo como uma “revolução ao estilo das garotas”8 estava de fato acontecendo na época — mesmo que dentro da cena punk — e continua a acontecer.
Como afirma Saffioti e Almeida (1995, p. 217): “As mulheres transgridem de diferentes formas, tentando subverter a organização social de gênero ou simplesmente escapar de suas implicações mais atrozes. Em suas produções discursivas, as mulheres assumem e realçam suas formas de insubmissão.”. As músicas analisadas refletem, enquanto produções discursivas, a transgressão e insubmissão feminina a partir das compositoras. Percebendo a música enquanto gênero literário e caminhando com a linha de raciocínio de Wittig, o que a banda Bikini Kill fez foi colocar a mulher na posição de sujeito falante autorizado, assumindo o papel de contadora da sua própria história e da história de outras mulheres. A mulher pôde se posicionar como “eu” e apresentar seu discurso universalmente. A banda expôs o que seria apenas da vida privada para a vida pública, para milhares de pessoas que já foram aos shows ou que escutam suas músicas, denunciando o que acontece na casa de muitas mulheres, nas ruas e em qualquer espaço onde haja um macho opressor. Também trouxe a possibilidade de uma reação contra o sistema, voz contra o silenciamento e esperança de que a revolução será, sim, feminista.
Como pontua Wittig, citada por Butler (1990/2017), o uso do texto literário como máquina de guerra acontece principalmente quando o conteúdo é direcionado contra a divisão hierárquica do gênero, contra a separação do universal e o particular. Ao universalizar o ponto de vista das mulheres, seria possível destruir a categoria “mulher” e repensar um novo humanismo: a destruição das categorias que impõe divisões artificiais se torna assim uma restauração.
Na dimensão social da música, as composições da Bikini Kill ajudam muitas mulheres a falarem sobre os abusos sofridos, compartilhando suas experiências entre si e com as integrantes da banda, ou usando as músicas para ilustrar o ocorrido. (Andersen e Jenkins, 2015). A música vista enquanto meio de identificação permite que discussões tidas como tabus sejam mais leves, fazendo com que haja um diálogo maior e mais amplo.
Perto da conclusão deste trabalho foi noticiado que a banda Bikini Kill estaria voltando com a formação original feminina e com a guitarrista Erica Lyle, para shows nos Estados Unidos e Inglaterra, além de disponibilizarem todas as músicas em plataformas digitais e relançarem os álbuns físicos. A retomada da banda, neste contexto político de ascensão da extrema direita, é muito significativa para esta pesquisa, para as mulheres que ainda são influenciadas pelos conteúdos produzidos e para jovens que poderão conhecer o movimento feminista a partir das músicas e performances. Além disso, bandas atuais têm revisitado o movimento Riot Grrrl como possibilidade de inserir interseccionalidades e trazer visibilidade às experiências e vivências antes silenciadas, como experiências trans, não binárias e de mulheres racializadas. A reação dos conservadores diante das conquistas de direitos de grupos minoritários vem afetando ouvintes da banda que se enquadram enquanto minorias. O momento para voltar a gritar palavras de ordem e provocação é agora. Este artigo tem uma posição política clara e busca, através da música, denunciar abusos e continuar resistindo, reforçando que o movimento Riot Grrrl e as composições da banda Bikini Kill são resistência e luta.
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