Humanizar usuários de crack na pesquisa. Considerações sobre a Cracolândia

Humanize crack users in research. Cracolândia considerations

  • Ygor Diego Delgado Alves
  • Pedro Paulo Gomes Pereira
Este artigo é fruto de pesquisa etnográfica que se desenvolveu na região paulistana conhecida como Cracolândia. Os relatos etnográficos se somam à parcela da literatura acadêmica sobre o tema, algumas notícias veiculadas na mídia e a excertos de conversas com frequentadores daquela parte específica do bairro da Luz. Através deles, buscamos dar sentido a um quadro mais humano do lugar e das pessoas que lá encontraram um modo de vida. Viemos a saber que as pessoas que consomem crack naquele contexto não podem ser dimensionadas apenas pelo seu uso de drogas; e que mesmo a Cracolândia pode ser percebida e vivenciada como local repleto de alegria e humanidade, a despeito do pânico moral em torno do crack.
    Palavras chave:
  • Cracolândia
  • Cocaína
  • Comunidades
  • Etnografia
  • De Braços Abertos
This article is based on ethnographic research that has developed in the São Paulo region known as Cracolândia. Ethnographic accounts are added to the portion of academic literature on the subject, some news in the media and excerpts from conversations with visitors from that specific part of the neighborhood of Luz. Through them, we seek to make sense of a more human picture of the place and the people who have found a way of life there. We have come to know that people who use crack in that context cannot be scaled solely by their drug use; and that even Cracolândia can be perceived and experienced as a place full of joy and humanity, despite the moral panic surrounding crack.
    Keywords:
  • Cracolândia
  • Cocaine
  • Communities
  • Ethnography
  • De Braços Abertos

1 Introdução

Iniciamos, em 2012, uma pesquisa etnográfica no bairro da Luz, região central da cidade de São Paulo, em busca de conhecer a chamada Cracolândia. Pudemos conviver com pessoas que fumam crack, frequentadores tanto esporádicos quanto constantes do local, além de trabalhadores sociais e da Saúde que nos proporcionaram relatos a respeito de suas vidas e de outros com quem conviveram. A experiência de estar no campo por anos seguidos, somada a estes relatos e a toda uma literatura produzida sobre o lugar, nos permitiu traçar algumas considerações sobre aquele espaço e as pessoas que ali convivem.

De início, o primeiro autor deste texto ali realizou uma etnografia por dois anos. Em seguida, procurando compreender as políticas públicas para crack, realizamos em conjunto uma pesquisa, de fevereiro de 2016 a julho de 2018, por meio de observação participante, entrevistas e acompanhamento da vida cotidiana dos profissionais de saúde e usuários de crack. Pudemos vivenciar um modo de vida que tem no consumo de crack um de seus aspectos mais importantes, porém, não único; e um lugar marcado pelas intervenções do poder público que por vezes podem beirar o sadismo, como foi o caso de uma ação batizada de Operação Sufoco ou Dor e Sofrimento, levada a cabo no ano de 2012, pelo então prefeito Gilberto Kassab.

Nos valeremos, além da experiência no campo, de trabalhos acadêmicos sobre a questão das drogas e da Cracolândia. Com Richard Bucher e Sandra Oliveira (1994) veremos como o discurso a respeito do consumo de drogas tende a uma estratégia de adaptação das pessoas à ordem social e à exclusão do diferente através de intervenções repressoras. Com Taniele Rui et al. (2014) e Marina Nasser (2017) será possível perceber o quanto a Cracolândia — território psicotrópico e local de comércio e uso de substâncias psicoativas (Fernandes & Pinto, 2004; Frúgoli & Chizzolini, 2012) — é complexa e mesmo contraditória: um local de exercício da alteridade, de acesso a serviços de cuidado e assistência, mas também, de grande exploração. Será importante vermos o esforço da mídia em camuflar a diversidade presente na Cracolândia, o que poderia ser interpretado no sentido de tornar prioritários certos interesses privados, de promover determinada Agenda-Setting (Noto et al., 2013).

A produção acadêmica somada às falas das pessoas que frequentam o local e usam crack poderão revelar um quadro mais humano da Cracolândia e dos que lá encontraram um modo de vida. Procuraremos revelar o quanto a vida na Cracolândia pode dar vasão a interpretações positivas a respeito de sua existência, não só como resultado de abandono, mas também, repleto de alegria e humanidade.

2 Quanto à Cracolândia, do que mesmo se trata este lugar?

Importante termos claro de antemão que apesar de sabermos que existem indivíduos na Cracolândia que não fumam crack, assim como e outros que apenas visitam aquele lugar, mas, não residem no território, ao falarmos das pessoas do “fluxo”, nome dado à aglomeração mais densa de consumidores da droga no interior da Cracolândia, e da Cracolândia em geral, queremos nos referir, principalmente, ao que o médico, pioneiro no atendimento na cena de uso, Marcelo Clemente (2016, p. 29) designava como “moradores de rua que eram mais (ou menos) que moradores de rua: eram moradores de rua e usuários de crack”. Pois bem, vamos iniciar nosso esforço pelo lugar, no intuito de expor a complexidade dos pontos de vista a respeito deste território para, posteriormente, retornarmos às pessoas.

Em termos morfológicos, a palavra cracolândia encontra-se nos limites entre afixação e composição; ‘lândia’ em Disneylândia, sua palavra-modelo, significa: lugar em que se concentra (Gonçalves, 2011). Esta concentração é de usuários de crack, muito embora não sejam os únicos a circular pelo local. O “fluxo” atrai pessoas em situação de rua que não fumam crack, assim como usuários de crack que não moram nas ruas. O termo ‘lândia’ atribui ao território uma identidade por fontes externas e pelo aspecto negativo de representação, então: “Os indivíduos que moram nessas regiões jamais se sentirão como pessoas que moram no território da ‘Cracolândia’” (Maiorki & Dallabrida, 2015, p.41). Talvez, ‘jamais’ seja um termo um pouco acima do tom, mas o fato é que as práticas oficiais sobre esta territorialidade itinerante (Frúgoli & Chizzolini, 2012; Perlongher, 1987/2008) dos usuários de crack se deparam com uma realidade muito próxima da definida por Taniele Rui et al. (2014, p. 103): um amplo “mercado no qual se busca sensações, provindas de fontes legais e ilegais e que favorece múltiplos empreendimentos. É, também, um balcão de informações, local de exercício da alteridade e, não sem contradição, local de grande exploração”.

Talvez esta multiplicidade seja a chave para compreender sua capacidade de atrair pessoas e enorme resiliência. Esta ideia é semelhante à de “campo de gravitação”, presente para quem, a despeito de ali se fumar crack, é também um espaço “de trocas e rede de sociabilidades desenvolvidas em torno dessa substância, a cracolândia se consolida como ponto de passagem nos percursos urbanos também por ser um local de acesso de serviços de cuidado e assistência, do Estado ou não” (Nasser, 2016, p. 141).

Mas, nem só com positividade se define a Cracolândia. Isto pode ser visto, por exemplo, em Rodrigo Valverde (2016) que apontou o local como sendo uma área distante da centralidade do fluxo de capital e mercado imobiliário, marcada como espaço imoral e marginal, e por necessidades ligadas à pobreza e às drogas. O que pode ter sido uma descrição parcial, ao menos até 2018, ano em que se inaugurou um imenso empreendimento imobiliário de moradia popular no entorno do “fluxo”. A Câmara Técnica de Saúde Mental, do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, após o fracasso da Operação Dor e Sofrimento, de 2012, também se dispôs a tratar de maneira negativa a cena aberta de uso de crack da Luz, como: “uma entre outras zonas urbanas consagradas ao uso explícito e incoercível de crack, as chamadas ‘cracolândias’” (Cremesp, 2012, p. 11).

A ideia que aparentemente reina em nosso País de que existam zonas urbanas consagradas ao crack pode esconder muita coisa: a primeira e mais óbvia, é que se faz muito mais que somente fumar crack numa cracolândia; a segunda, é que nem mesmo a droga prevalente possa ser essa, mas, outra. O fato de que o álcool fosse o maior causador de problemas de violência entre a chamada população de rua, e não o crack, foi observado por Ygor Alves (2014), porém, se faz necessário ir mais fundo nesta questão. Não menos que algumas dezenas de trabalhadores sociais e da Saúde, com quem pudemos conviver em nossa etnografia, observaram a prevalência do álcool como substância mais utilizada na Cracolândia; que, portanto, poderia muito bem ser chamada de Corotelândia, dado o sucesso de vendas representado pela cachaça1 de marca Corote, naquele local. Dialogamos, também, além das trabalhadoras vinculadas à Saúde e Assistência, com técnicos e técnicas do Programa Operação Trabalho (POT), ligado ao programa De Braços Abertos (DBA). Esse último, refere-se a uma política pública da prefeitura de São Paulo que, entre 2014 e 2016 ofereceu moradia, alimentação, atenção à saúde e formação profissional a centenas de moradores da Cracolândia. Convivemos com essas pessoas por todo período de existência do DBA e um pouco ainda após seu término; acompanhamos o trabalho de Rogério, técnico do POT, junto às equipes de varrição, nas imediações da Praça Princesa Isabel. Varrer calçadas era uma das atividades remuneradas do programa. O uso problemático de álcool era um de nossos assuntos, como nesta conversa, que nos levou a algumas conclusões.

Rogério: O que eu quero dizer também Ygor, que é uma coisa que a gente sempre fala, é assim: na Cracolândia eles usam muito aquela cachaça gordinha que chama Corote sabe?

Pesquisador: Sei.

Rogério: Essa cachaça ela é equiparável ao uso de crack né.

Pesquisador: Aham.

Rogério: Porque eles falam que eles usam muito quando eles fumam muito crack, a cada paulada2, que eles falam, eles tomam um gole desse Corote e o Corote dá uma aliviada na brisa3 para eles continuarem usando o crack.

Pesquisador: Era exatamente o que fazia quando usava cocaína, cara. Tomava cerveja com cocaína e os seus amigos devem fazer coisas parecidas também né?

Rogério: Estou falando! E é isso. O que eu estou querendo dizer também é o seguinte: a gente fala sempre da Cracolândia, da droga ilícita, mas a droga lícita que é o álcool e eu acho esse álcool vendido dessa forma tão irresponsável, porque é tão barato né. Custa dois reais4 dentro do fluxo.

Pesquisador: É dois reais meio litro né?

Rogério: Exatamente. E as pessoas não falam sobre isso porque existe toda uma questão da indústria do álcool e tal, mas, é importante dizer isso.

Pesquisador: Porque sabe que você me deu uma ideia cara? A gente pode pensar o contrário.

Rogério: Exatamente. Eu ia falar isso agora.

Pesquisador: Não é o álcool que permite você fumar mais crack, é o crack que potencializa o consumo do álcool.

Rogério: Demais!

Pesquisador: Porque a pinga5, na rua, já existia antes do crack.

Rogério: Exatamente.

Pesquisador: Agora com o crack se pode beber mais pinga.

Rogério: Exatamente, e outra coisa, o uso do crack por essas pessoas não traz a violência. A pessoa não se torna violenta, o que deixa ela violenta, e os lares brasileiros sabem muito bem disso, é o álcool. O álcool que produz toda violência.

Pesquisador: Sim.

Rogério: Você não ouve dizer que a pessoa bateu na mulher quando chegou em casa por uso de crack ou de maconha, muito pelo contrário, você ouve que eles batem nas suas respectivas (esposas) e a violência acontece através do álcool né?

Pesquisador: Sim. O que o crack tem é a brisa.

Rogério: Isso. Deixa a pessoa brisando, olhando para cima e pra baixo, deixa brisando. Agora o álcool não, o álcool potencializa a violência na pessoa. E as pessoas não falam nisso né?

(Rogério, entrevista pessoal, abril de 2017)

Tivemos esta conversa com Rogério, enquanto o acompanhávamos em seu trabalho com as equipes de zeladoria que faziam a varrição do quarteirão ao lado da praça Princesa Isabel, onde ficam o antigo palácio do governo do Estado de São Paulo e o 13º Batalhão da Polícia Militar (PM). O percurso da equipe se iniciava na avenida Rio Branco, seguia à esquerda, pela calçada da alameda Nothmann, virava à esquerda na rua Guaianases e novamente à esquerda, na alameda Glete, até encerrar o trecho na calçada da praça Princesa Isabel. Saímos da base do POT localizada, então, na rua Barão de Piracicaba, cerca de 8:00 e nos dirigimos à avenida Rio Branco.

A prevalência do uso do álcool em um local estigmatizado pelo consumo do crack é assunto corrente e quase um consenso entre os técnicos com quem tivemos interlocução, nestes anos. Devemos ter em mente que o crack se estabeleceu nas ruas de São Paulo, onde o “cobertor de pobre” (Maior, 1985), um dos inúmeros codinomes da aguardente de cana de açúcar, possuía uso imensamente difundido. Em diálogo com Lucas, então beneficiário do DBA, pudemos tecer algumas considerações sobre a relação álcool/crack.

Pesquisador: Porque na rua, bem ou mal é ruim pra dormir. É frio né, cara?

Lucas: Tem que dormir no chão. E o frio? Não consegue dormir. Fica só andando. Compra um ‘Corotinho’ [...].

Pesquisador: E fica só andando, né? Não consegue dormir.

Lucas: É. Uns colegas vêm, dá um ‘trago’ de droga, já começa a andar. Quem usa droga não para, fica andando.

Pesquisador: Fica andando, né?

Lucas: A droga tem o espírito andarilho, né?

Pesquisador: (Risos)

Lucas: Tem uma hora que eu estou aqui sentado. Se estivesse usando droga, eu não estava aqui. [...] Tem pessoas que não conseguem dormir, eu mesmo não consigo dormir.

(Lucas, entrevista pessoal, maio de 2017)

Na ausência de quarto, cama, cobertor, a pessoa que está passando a noite na rua faz uso do álcool para enfrentar o frio; e de crack para se manter acordado e escapar do “sono da morte” (Alves, 2017), expressão que ouvimos em referência ao ato de adormecer na calçada. Como afirmaram Lúcio Oliveira e Solange Nappo (2008), o consumo de álcool cria “ciclos de uso álcool-crack, de forma que uma droga passava a estimular o uso da outra e vice-versa”. Portanto, se manter acordado pelo consumo de crack e aquecido pelo Corote poderia ser visto como uma atitude perfeitamente racional frente à situação enfrentada na Cracolândia. Basta relembrar o sambista paulistano Adoniram Barbosa, que participou durante muitos anos de programa de rádio em que um de seus personagens mais famosos era mendigo, ávido consumidor de ‘cobertor de pobre’ ou cachaça, que dormia na praça e não gostava de trabalhar. O uso de bebida alcoólica por pessoas que precisam dormir nas calçadas e praças da cidade deve ter surgido muito cedo na urbe nacional; ao contrário do crack, apenas recentemente incorporado aos hábitos citadinos.

A cocaína cheirada permitia, desde o início do século XX, que se estendesse o consumo de absinto na região central da cidade de São Paulo (Carneiro, 1993), parte dela futuramente conhecida como Boca do Lixo e depois Cracolândia. Comumente, a combinação cocaína/álcool dá ao segundo o papel, além de ser gatilho que pode desencadear uma dependência cruzada (Gonçalves, 2015), de moderador ou apaziguador dos efeitos do consumo exagerado do primeiro, como a fissura e a paranoia. O álcool vem “baixar a bola” da cocaína. Porém, nas calçadas da cidade, onde dormir significa se entregar não aos braços de Morfeu, mas, ao “sono da morte”, a pinga possa ter uma utilidade a mais. Como nesta declaração de um morador de rua colhida por Antônio Lancetti (2015 p. 99): “antes (do DBA) eu dormia com um olho só fechado, agora (no hotel) eu durmo com os dois fechados”. Poderíamos conceber que o consumo de crack ajude a manter-se vivo na rua, além disto, manter-se aquecido no corpo e no espírito, considerando que as pedras de crack possibilitam consumir álcool por mais tempo. Com suas tramas a agasalhar o corpo e encobrir as lembranças de sofrimentos, talvez, jamais totalmente esquecidos.

Trata-se da pedra que não pesa, mas, que alavanca o ser, o projeta para frente no que comumente se chama de binge; que, também, poderíamos entender como tática (Elias, 2001) de sobrevivência quando se está na rua. Aquecido pelo Corote e atento pelo crack segue seguro madrugada a dentro. Mas, quem é esta pessoa, como chegou até aí e o que o crack e a cachaça tiveram a ver com isso? O aportar na rua ou na Cracolândia é um momento chave na “caminhada”6 de cada um, por isso mesmo ocupa lugar importante na história individual. Assistentes sociais de larga experiência no território, como gostam de se referir ao conjunto de ruas, calçadas e praças por onde desempenham seu trabalho, gostam de pontuar que a Cracolândia é um local de chegada após importantes perdas, muitas vezes, materiais, familiares ou relacionadas ao trabalho.

Pudemos ouvir uma interessante história a este respeito contada por Voltaire, usaremos o nome do famoso filósofo iluminista francês por ser nosso interlocutor seu ávido leitor. Trata-se de um homem na faixa dos cinquenta anos de idade e três décadas na região da Luz; certo dia, o convidamos para almoçarmos juntos em um bar de esquina, perto da sede do SESC7 Bom Retiro. Sentamos no balcão, pedimos o prato do dia, frango com macarrão, e não consumimos bebida alcoólica, somente água. A conversa transcorreu animada com ambos energizados pela excelente comida de boteco8. No início falamos sobre futebol e outros assuntos até podermos ter uma pequena amostra da riqueza de possibilidades de quebra de vínculos presentes na cidade; sua relação com a rua, a cachaça e o crack.

Voltaire: O outro contou pra mim que quando ele chegou em casa as roupas dele estavam num saco pra lixo, e não tinha nada em casa, o cara abriu assim e não viu nada, aí foi no banheiro e não tinha nada, até o chuveiro levaram, aí ele foi entrar no quarto das crianças e não tinha nada, e aí por último ele foi entrar no quarto do casal e só tinha três sacos pra lixo assim com as coisas dele.

Pesquisador: A mulher levou tudo?

Voltaire: Aí o que ele fez? Foi lá no Glicério9, tacou no chão, porque ele já passava ali de carro e via os caras vendendo aquelas tranqueiras10 né. Falou: Ah, já que eu tô fodido. Chegou a dar esmola para alguns caras dali. Conversar. Até comprava (crack), mas, jogava fora.

Pesquisador: Ã.

Voltaire: Só para o cara comprar cachaça e droga dele. Aí o cara pegou e pôs a droga e falou: O que aconteceu? Ah, a minha mulher me traiu, levou tudo, levou as crianças, eu desisti. Aí, tem muitos aproveitadores na rua né. “Não, a gente negocia pra você”. Aí, o cara bebendo, o cara estava locão. “Não peraí, você tá muito bêbado, isso aqui desperta, corta um pouco essa bebida”.

Pesquisador: Aí deu uma paulada?

Voltaire: Aí fodeu com a vida do cara!

(Voltaire, entrevista pessoal, fevereiro de 2017)

Decepção amorosa e quebra de vínculo familiar levaram o “parça”11 de Voltaire à rua, onde beber cachaça é algo comum e até esperado. Pode-se ir para a rua com o intuito de se embriagar, mas, não necessariamente de fumar crack. Este último acaba entrando, ao menos inicialmente, no caso acima, como um prolongador da capacidade de continuar se embriagando. Consumir álcool associado ao crack é, portanto, uma forma de enfrentar, no sentido de permanecer vivo, imensos e insuportáveis dissabores. Isto feito na cidade, em meio às suas ameaças constantes de violência.

3 Espaço legalize, communitas ou uma cena aberta de uso?

O fato de, em certas regiões de São Paulo, haver uso coletivo de drogas, como ocorre na Cracolândia, pode ser compreendido, também, como estratégia frente à hostilidade policial ao consumo de substâncias ilícitas, portanto, ao se atacar uma cena de uso, outras podem surgir, “dela (a Cracolândia) os usuários migram e se espalham pela cidade” (Aguirre, 2016, p. 13). Com o devido cuidado quanto às diferenças entre as cidades de Salvador e São Paulo, assim como em relação a um estudo mais dedicado ao consumo de maconha que do crack, podemos ter no trabalho de Fabiano Santos (2017) e na categoria nativa legalize (se fala como no inglês ˈlēgəˌlīz), um importante conceito para pensarmos certas cenas de uso e, inclusive, a Cracolândia. Os territórios assim caracterizados como espaços legalize são ocupados para o consumo livre de substâncias proibidas. Isto não significa necessariamente um isolamento, mas, de certa forma, uma inserção no circuito do lazer na cidade, um circuito legalize. As “caminhadas” pelo centro de São Paulo, empreendidas sob efeito do crack, esta droga de “espírito andarilho”, chegaram a ser vivenciadas em pesquisa etnográfica (Alves, 2017, p. 261). A característica marcante da sociabilidade, percebida por Fabiano Santos (2017) nos espaços legalize soteropolitanos, também é de suma importância para muitos que fumam crack no centro de São Paulo, no entanto, não podem contar, infelizmente, com a ausência de repressão policial, um dos três requisitos considerados fundamentais dos espaços legalize.

A repressão policial mais ou menos dura, porém, sempre presente, dependeu, na Cracolândia, das políticas implementadas por governos com visões por vezes antagônicas, em uma cena de uso de crack com mais de duas décadas de existência; em uma região central de São Paulo, onde se usa cocaína há um século (Carneiro, 1993). Território também marcado por certa ordem simbólica que, como pudemos vivenciar, trafega entre o cristianismo pregado incessantemente por missionários, as regras e valores do Primeiro Comando da Capital12, mais conhecido pela sigla PCC, e toda cultura de cuidado horizontal, entre pares, presente na rua.

Assim, a Cracolândia é vista como difusor de usuários de crack. Ou, de modo inverso, a partir da ação violenta de certos governos, “criam-se redutos como a ‘cracolândia’, onde o artifício de uso coletivo funciona como ritual de sociabilidade e como estratégia para se proteger do controle policial” (Varanda, 2009, p. 28). Além de atrair e repelir, a Cracolândia poderia também ser vista como fruto de uma estratégia da coletividade dos usuários de drogas que comporia uma comunidade bivalente que articularia demandas de dimensões político-econômicas e culturais-valorativas (Oliveira, 2012). Para este mesmo autor, esta dimensão econômica e de política social seria chave para compreender a existência da cena aberta de uso de crack da Luz como reflexo da questão social. Ygor Alves (2014) abordou o aspecto comunitário da Cracolândia, valendo-se da ideia de communitas espontânea que Victor Turner (1974) utilizou para pensar a sociabilidade procurada pelos hippies e S. Francisco de Assis. “Nela, a pobreza é algo fundamental, ela permite a manutenção de um estado desestruturado das relações sociais e possibilita relações fraternais entre despossuídos, marcadas pela reciprocidade das trocas na treta13” (Alves, 2014, p. 95).

Marcel Arruda (2014, p. 128) procurou falar de uma Cracolândia para “muito além do crack” e nela percebeu a reprodução da marginalização social produzida pelo neoliberalismo até, praticamente, isentar o crack de grande relação com o que ocorre por lá: “o problema da pobreza e da miséria na Cracolândia não é justificado pelo consumo de crack, mas, pelo agravamento da questão social”; em uma visão, quem sabe, um pouco aquém do crack. O que nos remete, novamente, à substância, ao psicoativo e à Cracolândia como: 1) território psicotrópico e local de comércio e uso de substâncias psicoativas (Fernandes & Pinto, 2004; Frúgoli & Chizzolini, 2012); 2) campo de relações (Frúgoli & Chizzolini, 2012); 3) local com “hordas de noias14” (Raupp & Adorno, 2015, p. 64); 4) local com pessoas “em trânsito pela rua” que apresentam “um padrão de consumo compulsivo de drogas, especialmente de crack” (Raupp & Adorno, 2015, p. 52)

Estaríamos, então, procurando produzir um discurso sobre os noias, mesmo se considerarmos que nem todos(as) os(as) usuários(as) de crack se identificam com este termo (Raupp & Adorno, 2010). Dado que a designação noia pode encontrar-se reservada, na cidade de São Paulo, majoritariamente para “aquele que está no nível mais baixo, carregando um grande estigma, de alguém sem controle e sem limites em sua busca de uso do crack, não sendo confiável nem para os outros usuários” (Gomes & Adorno, 2011, p. 13).

Rosangela Pezoti (2012, p. 117) apontou que a Cracolândia não corresponde a um lugar específico, “mas a uma condição que afeta diversas pessoas que circulam na região”. Visão muito similar à de Luane Silva (2016, p. 212) para quem a Cracolândia sequer pode ser chamada de região. Região seria o bairro da Luz, e a Cracolândia “um grupo de pessoas usuárias de crack que se movimentam na região da Luz”. Seria mais correto, talvez, acreditarmos que estas pessoas e as políticas públicas levadas a cabo constituiriam “um “campo de forças” nos circuitos de uso, no qual os usuários e suas práticas seriam apenas uma parte da teia de relações e interesses existentes” (Raupp & Adorno, 2011, p. 2620).

4 A construção midiática do lugar e o “fluxo”

Outra questão importante é como nos livrarmos da construção midiática em torno da “Cracolândia”. Especificamente no caso paulistano estamos falando de uma representação que procura caracterizar certo espaço, mesmo que itinerante. Uma representação, ou um conjunto de representações, que podem legitimar ações concretas por parte do poder público, como as violentas, assim como invalidar outras, como o DBA, que não corroboraria o simbolismo criado pelos meios de comunicação, juntamente com toda carga imaginária e de juízos de valor que esse simbolismo carrega (Tavares, 2014). O quadro de terror pintado pela mídia pode ser replicado em textos acadêmicos como esta tese defendida em uma universidade norueguesa que menciona certa “land of crack”15, e que teria deixado o autor “chocado” ao ver crianças fumando crack “até a morte”, junto a “traficantes de drogas vendendo seu crack muito naturalmente e demonstrando nenhuma preocupação com as autoridades. A Cracolândia e as prisões brasileiras são verdadeiras histórias de horror” (Queiroz, 2015, p. IV, tradução nossa, grifo no original).

Esta terra do crack pode ter em seus frequentadores o motivo da “degradação” (Domingos, 2015, p. 10). Confirmada por uma mídia que costuma tratar os frequentadores da Cracolândia de forma pejorativa, valendo-se de toda uma nomenclatura que os diferencia dos demais atores na cidade: “magrinhos com aparência de quem consome drogas”, “negros”, “descabelados”, “desdentados e sujos”, “viciados”, “drogados”, “zumbis”, “craqueiros”, “reféns do crack”, “farrapos humanos”, “sem vergonha”, “andarilhos” (Zanotto & Assis, 2017, p. 777). Estes termos como que sintetizam representações sociais sobre os usuários de crack, ao mesmo tempo em que refletem o modo como a cidade se acostumou a conviver com estes vulnerados (Ataides, 2017), devido a um contexto que favorece a manutenção da precariedade e “situação de vulnerabilidade social” (Santos, 2011, p. 29). Algo que ocorre em um território também vulnerável que, na conceituação de Katzman apud Marcelo Clemente (2016, p. 40), se caracteriza por ser: um “Local onde os indivíduos enfrentam riscos e impossibilidade de acesso a condições habitacionais, sanitárias, educacionais, de trabalho e de participação no acesso à informação, formação e oportunidades”. Situação só parcialmente revertida durante a implantação do DBA.

Os feitos alcançados pelo DBA não se deram sem forte oposição da mídia paulistana, muito em sintonia com o clima político daquele momento, que viria depor a presidente eleita Dilma Rousseff. A Folha de São Paulo, pouco antes do DBA completar dois anos, comemorava a “debandada” sofrida pelo “Programa de combate ao crack da gestão Haddad” (Rodrigues, 2015). O argumento era que 25% dos beneficiários do Programa haviam deixado de participar dos serviços de varrição. Alguns meses antes, em maio de 2015, o mesmo periódico apontava com a manchete: Em SP, 4 em cada 10 desistem de ação anticrack de Haddad. Que, no DBA, a “desistência” era de 43% (Bergamim Jr & Sant’anna, 2015). A oposição midiática não passou desapercebida e foi objeto de crítica na mídia alternativa, como foi o caso da Revista Fórum que publicou matéria intitulada A única coisa negativa da operação ‘Braços abertos’ é a manchete canalha da Folha. O texto descreveu um pouco o clima da época em que as críticas ao DBA se inserem: “É com base nesse tipo de manchete que sociopatas midiotizados saem às ruas xingando e rezando o terço, batendo panelas, tilintando taças de cristais, ameaçando espancar bebês e ofendendo autoridades em estádios, hospitais, restaurantes e casamentos” (Teles, 2015).

O semanário Veja também não deixou por menos e 13 meses após o início do DBA sentenciou que os hotéis, que julgou possuírem condições precárias, onde foram instalados os beneficiários após sua retirada do “fluxo”, seriam “o retrato de um programa que não deu certo” (Gonçalves, 2015). Também pouco adiantou a prefeitura paulistana ter divulgado, poucos dias antes desta matéria, que o DBA havia reduzido em “80% o número de usuários na Cracolândia” (Terra, 2015). Para o semanário da família Civita o “fluxo” havia voltado a crescer.

Para lidar com esta vulnerabilidade, o DBA hospedou, inicialmente, mais de trezentas pessoas que estavam em barracos na Cracolândia. Os hotéis que aceitaram entrar na inovadora iniciativa municipal também deveriam estar perto da cena de uso para possibilitar que seus frequentadores aderissem mais facilmente às novas moradias, muito distintas das usuais malocas. Posteriormente, se pôde escolher edifícios mais distantes para transferir os hóspedes que estavam um pouco mais acostumados com a nova rotina de acomodação. Visitamos vários destes hotéis, entre eles aquele onde trabalhava o assistente social Rodolfo, para quem o território por onde percorre o “fluxo” pode dar vasão a interpretações positivas a respeito de sua existência, não só como resultado de abandono, mas também, repleto de alegria e humanidade.

Pesquisador: Agora, qual que é a sua visão da Cracolândia nesse tempo que você vem acompanhando aí, então?

Rodolfo: A minha visão do fluxo, que é um conglomerado das pessoas que ficam na cracolândia é um grupo de pessoas… É difícil de não falar que eles foram largados pelo Estado porque eles foram marginalizados pelo Estado mesmo, não tem jeito, mas, que eles estão lá por uma diversidade de fatos que aconteceram na vida de cada um, que cada pessoa tem uma caracterização de porquê tá lá, geralmente é por causa de violência que ocorreu na vida deles, mas, eu acho que o fluxo tem um grande potencial de vidas, de luz, de alegria assim sabe? Ainda mais agora trabalhando no DBA e agora na Craco Resiste16 principalmente que eu estou lá quase todos os dias no fluxo.

Pesquisador: Aham.

Rodolfo: Eu percebo como essas pessoas são super humanizadas, eles ficam super alegres. Nada a ver com a estória de que o Dória (então prefeito de São Paulo) disse que eles são um bando de zumbis, sabe? Eles são maravilhosos e ali tem muita potência.

Pesquisador: O título da minha tese é: Jamais fomos zumbis.

Rodolfo: Maravilhoso, isso mesmo, adorei essa tese, acho que é isso mesmo, ali não tem nada de zumbis, nada.

(Rodolfo, entrevista pessoal, fevereiro de 2017)

A marginalização de que falou Rodolfo pode estar relacionada ao fato de que grande parte das pessoas que estão na Cracolândia são egressas do sistema prisional (Adorno et al. 2013; Fromm, 2017; Magalhães, 2015). Este potencial humanizador percebido pelo nosso interlocutor foi associado a toda uma série de atividades cotidianas ligadas a um circuito de trocas denominadas como “treta”; também a vínculos de tipo familiar com pessoas, designando umas às outras como irmão, pai, mãe, tio, sobrinho e demais posições dentro de relações sociais primárias (Alves, 2017). Estas conexões humanas, muitas vezes mediadas por coisas, fato que não se restringe aos usuários de drogas ou de crack em particular, juntamente com o conjunto das atividades em torno ou não da droga, compõem, como apontou Jean-Paul Grund (1993), uma estrutura de vida que vem acompanhada de uma gama de rituais e regras associados a um genuíno modo de estar no mundo.

5 Craqueiros em communitas e a agenda-setting midiática

Desde muito sabemos o quão é importante, como já defendia Norman Zinberg (1984), não considerarmos a totalidade do indivíduo apenas por uma única característica relacionada ao hábito de consumir certa substância psicoativa. O maconheiro foi e ainda é visto, por muitos, como um degenerado. O negro diambeiro (Alves, 1998) constituía um risco à sociedade urbana nascente no Brasil da primeira metade do século XX, seu hábito de fumar maconha o desqualificava integralmente. Algo semelhante se dá com o craqueiro, noia, cracudo, saci, não importando tanto o nome que queiramos mencionar.

Ygor Alves (2017) utilizou o termo craqueiro, baseando-se na pesquisa de Andrea Domanico (2006), em que esta palavra aparece no título do trabalho: Craqueiros e Cracados: bem-vindo ao mundo dos noias! O médico pioneiro na atenção em saúde na cena de uso local, Marcelo Clemente (2016, p. 35), faz uso de uma homofonia, um pouco mais anglicizada, de craqueiro e se vale do termo “crackeiros” ou mesmo “crackees” (op. cit. p. 84). Procuramos esconjurar o termo zumbi, muito utilizado pela mídia como forma de estigmatizar as pessoas que fazem uso do crack e são expostas nas reportagens sensacionalistas sobre a Cracolândia entre outras cenas públicas de uso. Esta exploração midiática é incapaz de dar conta de características por nós observadas em campo, também por Manoel Acioli Neto & Maria Santos (2015) entre frequentadores do Programa Atitude de Olinda, de que sempre se evidencia certo nível de controle sobre o consumo de crack e que “A ética do trabalho conformava a identidade do usuário, assim como seu papel social enquanto profissional” (p. 80).

As histórias de violência assassina, praticada pelas pessoas que habitam ou frequentam a Cracolândia, são contadas pela mídia e transmitidas à exaustão nos momentos de pânico moral em torno do crack (Alves, 2017), ajudam a criar uma visão totalizante daquele território e seus ocupantes. Imagens reais para compor uma descrição fantástica com intuito de unir o País “através da obscuridade epistemológica do espaço da morte” (Taussig, 1993, p. 138), onde a tortura e o terror praticados pelos agentes públicos e governantes se tornam não só justificáveis como falsamente necessários.

Violência sobre pessoas cuja forma de agir pode, paradoxalmente, passar a impressão de certo alheamento do mundo e, ainda assim, ser capaz de apavorar um desavisado que os cruzar numa calçada. Não se trata de discutir a veracidade dos discursos construídos, mas, os efeitos de realidade provocados por certos textos sobre a Cracolândia. Beatriz Becker (2005), em sua análise do telejornalismo produzido no País, observou que: “Os enunciados dos telejornais têm a função de permitir que aquilo que se diz exista, e, por outro lado, dizer o que não existe” (p. 55). Neste sentido, o que está em jogo é a atualização dos mitos originários do pânico moral em torno do crack através de um discurso midiático capaz de promover determinada Agenda-Setting (Noto et al., 2013). Ou seja, exercer influência a ponto de tornar prioritários certos interesses privados no processo de interação entre mídia, governo e opinião pública manipulada. A opinião pública sobre a questão das drogas passa a ser a opinião publicada. “Enquanto antigamente a imprensa só podia intermediar e reforçar o raciocínio das pessoas privadas reunidas em um público, este passa agora, pelo contrário, a ser cunhado primeiro pelos meios de comunicação de massa” (Habermas, 2003, p. 221). A agenda da mídia para a Cracolândia possibilita a inversão de prioridades e um total descaso pela epidemiologia. Se deste ponto de vista, o álcool deveria ser a grande preocupação de saúde pública com relação ao uso de substâncias, são as drogas tornadas ilícitas e seus usuários os geralmente associados à violência e ao crime (Noto et al., 2013).

É inegável a existência de pessoas que consomem crack de modo prejudicial, assim como nos parece claro que caracterizar qualquer frequentador da Cracolândia, por mais comprometido que esteja com a droga, como simples e tão somente um usuário de crack, carregará sempre alguma dose de reducionismo. Se faz muito mais que fumar crack na Cracolândia. Vimos que naquele local se desenvolveu certa sociabilidade semelhante a communitas. Além disto, as pessoas que lá residem ou convivem realizam uma série de atividades, genericamente designadas como “corre”, para obtenção de fundos para aquisição, não apenas de crack e álcool, mas, de todo tipo de coisas como alimento e vestimenta.

Isto pode significar que mesmo nossa conceituação de cena de uso, termo que apareceu no País como um anglicismo a partir do termo “drug scenes” (Bastos & Strathdee, 2000, p. 1777), referência aos locais de consumo da cocaína por meio intravenoso, poderia guardar sua parcela de reducionismo. Será que ao falarmos em cena de uso estamos limitando nossa descrição e análise apenas ao consumo de certas substâncias?

As etnografias de cenas de uso de drogas tiveram seu desenvolvimento em Ronald Hitzler & Michaela Pfadenhauer (2002) e em Michaela Pfadenhauer (2005), antropólogos dedicados a estudar a cultura juvenil em torno das raves; e, em demonstrar, por exemplo, seu caráter não necessariamente apolítico. Os autores também enfatizaram outras importantes características das raves: (1) os aspectos comunitários de sua construção; (2) a importância de um campo temático de interesse comum; (3) o caráter não autoexplicativo de seus critérios de afiliação; (4) sua característica de rede cultural tematicamente focada; e, (5) o compartilhamento de materiais e de formas mentais de auto estilização coletiva. Vemos, portanto, que ao se tratar um encontro de pessoas como uma cena, como feito no caso das raves, se deve levar em conta muito mais que o consumo de substâncias. O que não impede que se empregue o termo cena de uso de forma a reificar o craqueiro socialmente desqualificado como zumbi, assim lhe atribuindo concretude, o tornando estático ao invés de o colocar em questão, através, por exemplo, do bom relato etnográfico. Nisto constituiu nosso esforço.

6 Conclusão

Ao pesquisar o uso do crack na região central da cidade de São Paulo, convivemos com pessoas que fumam crack e técnicos que trabalham na região, criamos vínculos que perduram até hoje. Nosso texto foi lido e debatido com estas pessoas, principalmente, as que consomem crack, que a experiência etnográfica nos mostrou, desde o início, serem muito mais que usuários de drogas. Por isso, não pretendemos cair na simplificação de tomar a parte pelo todo, ainda mais se tratando de práticas repletas de representações negativas, como são as associadas ao uso de drogas.

A Cracolândia se revelou um espaço de enorme densidade social, agitado pelo circuito da “treta”. Tivemos encontros com inúmeras pessoas que moravam na rua e consumiam crack, outros consumiam crack enquanto visitavam o local e alguns sequer se utilizavam desta droga, mas, estavam ali, talvez atraídos pela agitação do “fluxo”, tanto quanto pelo consumo tolerado, quase livre, de substâncias proibidas. Muito embora também pudessem aportar na Cracolândia impregnados das representações negativas produzidas pela mídia sobre aquela parte do bairro da Luz, representações estas capazes de legitimar ações violentas por parte de certos governos, assim como deslegitimar outras, como o DBA, dedicadas a ofertar atenção integral à saúde, moradia, alimentação, renda e formação profissional.

O “fluxo” pode ser percebido e vivenciado como local repleto de alegria e humanidade, a despeito do pânico moral em torno do crack, que impele a sociedade abrangente a tecer todo tipo de acusações contra quem fuma crack. Ao gerar certa agenda-setting, o discurso midiático faz prioritários certos interesses privados em detrimento das necessidades concretas dos que frequentam a cena de uso de crack e álcool da Luz, onde se faz muito mais que consumir substâncias.

7 Financiamento

A pesquisa obteve financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) do Brasil, através das bolsas de pós-doutorado júnior (PDJ) 155282/2018-2, 150261/2019-5 e 150500/2020-3.

8 Referências

Acioli Neto, Manoel de L. & Santos, Maria de F. (2015). Os usos sociais do crack. Edufpe.

Adorno, Rubens C. F., Rui, Taniele, Silva Selma L. da; Malvasi, Paulo A.; Vasconcellos, Maria da P.; Gomes, Bruno R. & Godoi Tiago C. (2013). Etnografia da cracolândia: notas sobre uma pesquisa em território urbano. Saúde & Transformação Social/Health & Social Change, 4(2), 4-13.

Aguirre, Franklyn M. (2016). Projeto de intervenção educativa para a redução do uso de drogas na adolescência. (Monografia). Universidade Federal de Minas Gerais.

Alves, Ygor Diego D. (1998). Um vício deselegante: o preconceito racial e a transformação da maconha em problema público no Brasil. Dissertação de Mestrado inédita. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

Alves, Ygor Diego D. (2014). A Cracolândia como “Communitas” e o frade craqueiro. In: Tatiana Ramminger & Martinho Silva (Eds.), Mais substâncias para o trabalho em saúde com usuários de drogas. (pp. 83-98). Rede Unida.

Alves, Ygor Diego D. (2017). Jamais fomos zumbis: contexto social e craqueiros na cidade de São Paulo. Edufba. https://doi.org/10.7476/9788523218591

Arruda, Marcel S. B. (2014). A cracolândia muito além do crack. Tese de Doutorado inédita. Universidade de São Paulo, São Paulo.

Ataides, Roberta P. (2017). Estigma e pessoas que usam crack: uma análise das publicações dos dois maiores jornais impressos do Brasil entre 2013 e 2014. Dissertação de Mestrado inédita. Universidade de Brasília, Brasília.

Bastos, Francisco I. & Strathdee, Steffanie A. (2000). Evaluating effectiveness of syringe exchange programmes: current issues and future prospects. Social science & medicine, 51(12), 1771-1782.

Becker, Beatriz (2005). Telejornalismo de qualidade: um conceito em construção. Revista Galáxia, (10), 51-64.

Bergamim Jr., Giba & Sant’anna, Emilio (2015, mayo 17). Em SP, 4 em cada 10 desistem de ação anticrack de Haddad. Folha de São Paulo, São Paulo. http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/05/1629921-4-em-cada-10-desistem-de-acao-anticrack-de-haddad.shtml

Bucher, Richard & Oliveira, Sandra R. (1994). O discurso do “combate às drogas” e suas ideologias. Revista de Saúde Pública, 28, 137-145. https://doi.org/10.1590/S0034-89101994000200008

Carneiro, Beatriz. (1993). A vertigem dos venenos elegantes. São Paulo. Dissertação de Mestrado inédita. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

Clemente, Marcelo (2016). A Cracolândia dia a dia. Giostri.

Cremesp. (2012). Cracolândia, por diretrizes convergentes. Revista Latino-americana de Psicopatologia Fundamental. São Paulo, 15(1), 11-13. https://doi.org/10.1590/S1415-47142012000100001

Domanico, Andrea. (2006). “Craqueiros e Cracados: bem-vindo ao mundo dos noias!” estudo sobre a implementação de estratégias de redução de danos para usuários de crack nos cinco projetos-piloto do Brasil. Tese de Doutorado inédita. Universidade Federal da Bahia, Salvador.

Domingos, Renata C. N. (2015). São Paulo fashion district: modelos de parcerias para viabilizar um polo criativo de moda em São Paulo. (Monografia). Escola de Administração de Empresas de São Paulo.

Elias, Norbert. (2001). A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia da corte. Zahar.

Fernandes, José Luís & Pinto, Marta (2004). El espacio urbano como dispositivo de control social: territorios psicotrópicos y políticas de la ciudad. In: Romaní Alfonso O (Coord.), Uso de Drogas y Drogodependencias (pp. 147-162). Fundación Medicina y Humanidades Médicas.

Fromm, Deborah. (2017). Percursos e refúgios urbanos. Notas sobre a circulação de usuários de crack pela trama institucional da Cracolândia de São Paulo. Ponto Urbe. Revista do núcleo de antropologia urbana da USP, 21. (pp-1-15). https://doi.org/10.4000/pontourbe.3604

Frúgoli Jr, Heitor & Chizzolini, Bianca B. (2012). Moradias e práticas espaciais na região da Luz, Ponto Urbe, http://journals.openedition.org/pontourbe/1135.

Gomes, Bruno R. & Adorno, Rubens D. C. F. (2011). Tornar-se “noia”: trajetória e sofrimento social nos “usos de crack” no centro de São Paulo. Etnográfica. Revista do Centro em Rede de Investigação em Antropologia, 15(3), 569-586.

Gonçalves, Carlos A. (2011). Paitrocínio, tecno-macumba, maridoteca: o comportamento das formas combinatórias no português do brasil. Revista da ABRALIN, 10, 67-90. https://doi.org/10.25189/rabl.v10i2.32060

Gonçalves, Eduardo. (2015, 28 fev). Hotéis da Cracolândia: o retrato de um programa que não deu certo. Veja.com. http://veja.abril.com.br/politica/hoteis-da-cracolandia-o-retrato-de-um-programa-que-nao-deu-certo/#.

Grund, Jean-Paul (1993). Drug use as a social Ritual: Functionality, symbolism and determinants of self-regulation. Institute Voor Verslavingsondersoek, Erasmus Universiteit.

Habermas, Jurgen. (2003). Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Tempo Brasileiro.

Hitzler, Ronald & Pfadenhauer, Michaela (2002). Existential strategies: The making of community and politics in the techno/rave scene. In Postmodern existential sociology. (pp. 87-101). Altamira press.

Lancetti, Antônio (2015). Contrafissura e plasticidade psíquica. Hucitec.

Magalhães, Taís R. P. (2015). Campos de disputa e gestão do espaço urbano: o caso da ‘cracolândia’ paulistana. Tese de Doutorado inédita. Universidade de São Paulo, São Paulo.

Maior, Mario S. (1985). Dicionário folclórico da cachaça. Fundação Joaquim Nabuco.

Maiorki, Giovane J. & Dallabrida, Valdir R. (2015). A indicação geográfica de produtos: um estudo sobre sua contribuição econômica no desenvolvimento territorial. In: Valdir R. Dallarida (Ed.), Indicação geográfica e desenvolvimento territorial: Reflexões sobre o tema e potencialidades no Estado de Santa Catarina (pp. 13-25). LiberArs.

Nasser, Marina M. S. (2016). No labirinto: formas de gestão do espaço e das populações na Cracolândia. Dissertação de Mestrado inédita. Universidade de São Paulo, São Paulo.

Nasser, Marina M. S. (2017). Cracolândia como campo de gravitação, Ponto Urbe, 21 (1), 1-16. https://doi.org/10.4000/pontourbe.3530

Noto, Ana R.; Opaleye, Emérita S.; Locatelli, Danilo P. & Ronzani, Telmo M. (2013). Cobertura jornalística sobre drogas: distorções e potencialidades. Ações integradas sobre drogas: prevenção, abordagens e políticas públicas

Oliveira, Natalia. (2012). A intervenção policial na cracolândia e a concepção integrada de justiça de Nancy Fraser. (Monografia). Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora https://repositorio.ufjf.br/jspui/handle/ufjf/5085

Oliveira, Lúcio G. & Nappo, Solange A. (2008). Caracterização da cultura de crack na cidade de São Paulo: padrão de uso controlado. Revista de Saúde Pública, 42(4), 664-671. https://doi.org/10.1590/S0034-89102008000400012

Pfadenhauer, Michaela (2005). Ethnography of scenes. Towards a sociological life-world analysis of (post-traditional) community-building. Forum Qualitative Sozialforschung / Forum: Qualitative Social Research, 6(3): 1-10. http://nbn-resolving.de/urn:nbn:de:0114-fqs0503430

Perlongher, Nestor. (1987/2008). O negócio do michê: a prostituição viril. Brasiliense.

Pezoti, Rosangela (2012). O Projeto Nova Luz e a participação dos sujeitos coletivos e políticos: um processo de reurbanização em questão. Dissertação de Mestrado inédita, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

Queiroz, Jorge (2015). Corruption: Can Brazil win this war? Dissertação de Mestrado inédita. The University of Bergen, Bergen.

Raupp, Luciane M. & Adorno, Rubens. (2010). Uso de crack na cidade de São Paulo/Brasil. Toxicodependências, 16(2), 29-37.

Raupp, Luciane M. & Adorno, Rubens. (2011). Circuitos de uso de crack na região central da cidade de São Paulo. Ciência & Saúde Coletiva. 16(5), 2613-2622. https://doi.org/10.1590/S1413-81232011000500031

Raupp, Luciane M. & Adorno, Rubens. (2015). Jovens em situação de rua e usos de crack: um estudo etnográfico em duas cidades. Revista Brasileira Adolescência e Conflitualidade, 2011(4), 52-67.

Rodrigues, Artur; Lobel, Fabrício; Souza, Felipe & Bergamim Jr., Giba. (2015, abril 29). Operação desastrada acaba em confronto na cracolândia. Folha de São Paulo. http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/04/1622902-operacao-desastrada-acaba-em-confronto-na-cracolandia.shtml

Rui, Taniele, Adorno, Rubens; Calil, Thiago; Gomes, Bruno R.; Malvasi, Paulo; Silva, Selma & Vasconcellos, Maria da P. (2014). Amarga delícia: experiências de consumo de crack na região central de São Paulo (BR). Revista Inter-Legere, 15, 87-109.

Santos, Carla A. dos (2011). A situação do crack na cidade de São Paulo. (Monografia). Universidade Tecnológica Federal do Paraná.

Santos, Fabiano C. dos (2017). O aprendizado social do uso explícito de drogas e a construção dos circuitos legalize na cidade. In: Anais do 6º Congresso Internacional ABRAMD. http://www.congressointernacional2017.abramd.org/

Silva, Luane (2016). As ruas são para dançar: mapas, labirintos e caminhos no baixocentro. Revistacpf, 3(2), 208-23.

Tavares, Felipe R. (2014). Territorializações precárias na cidade: um estudo de caso sobre as cracolândias. História, Natureza e Espaço-Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa NIESBF, 2(2), 1-10.

Taussig, Michael. (1993). Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem: um estudo sobre o terror e a cura. Paz e Terra.

Teles, Lelê. (2015, mayo 19). Como fazer uma manchete canalha. Fórum. https://revistaforum.com.br/blogs/mariafro/bmariafro-lele-teles-unica-coisa-negativa-da-operacao-bracos-abertos-e-manchete-canalha-da-folha/.

Terra. (2015, janeiro 19). Programa reduz em 80% número de usuários na Cracolândia. Terra. https://www.terra.com.br/noticias/brasil/cidades/programa-reduz-em-80-numero-de-usuarios-na-cracolandia,a73ea1a19c30b410VgnVCM3000009af154d0RCRD.html.

Turner, Victor. (1974). O Processo Ritual: Estrutura e Antiestrutura (Tradução de Nancy Campi de Castro). Vozes.

Valverde, Rodrigo (2016). Cracolândia: a heterotopia de um espaço público. Boletim Campineiro de Geografia, 5(2), 211-230.

Varanda, Walter. (2009). Liminaridade, bebidas alcoólicas e outras drogas: funções e significados entre moradores de rua. Tese de Doutorado inédita. Universidade de São Paulo, São Paulo.

Zanotto, Daniele F. & Assis, Fátima B. (2017). Perfil dos usuários de crack na mídia brasileira: análise de um jornal e duas revistas de edição nacional. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 27, 771-792. https://doi.org/10.1590/S0103-73312017000300020

Zinberg, Norman E. (1984). Drug, Set, and Setting: the basis for controlled intoxicant use. Yale University.