Partimos da premissa de que é de fundamental importância uma representação plural da mulher na mídia. Essa preocupação é a maior motivação da presente pesquisa. Mais além, uma observação sem cunho científico chamou nossa atenção. Trata-se de uma possível mudança no tocante à representação, tanto das marcas Avon Brasil quanto Natura. Algumas ações comunicacionais recentes dessas marcas geraram repercussões, especialmente nos espaços virtuais, divulgadas no canal do Youtube das mesmas, em canais de TV aberta e por assinatura, entre outros ambientes, e resultou em compartilhamentos nas redes sociais, em blogs feministas, apontando uma mudança visível no modelo de representação que prepondera no universo dos cosméticos, que historicamente privilegia retratar o padrão hegemônico de beleza.
Sobre as marcas, a Avon foi fundada em 1886, nos Estados Unidos, por David H. McConnell e logo de início já apresentava como diferencial a venda direta. Ela chegou ao Brasil em 1958 e atualmente a empresa ocupa o segundo lugar no ranking mundial de vendas diretas, com mais de oito milhões de revendedoras autônomas. Somente no Brasil são mais de 1,1 milhão de profissionais, sendo considerado o maior mercado da marca no que concerne à força de venda e influência nas decisões acerca dos produtos (Décadas apoiando mulheres, 2020).
Já a Natura foi criada em 1969 por Antônio Luiz Seabra, no Brasil, e é considerada a indústria líder no mercado de cosméticos no setor de vendas diretas do mercado brasileiro. Após a abertura de uma fábrica em São Paulo, em 1974 a empresa deixou de oferecer seus produtos em lojas e passou a vendê-los no modelo de venda direta. A empresa está presente em sete países da América Latina e na França (Natura: bem estar bem, 2020).
Traremos a seguir alguns exemplos das campanhas publicitárias que simbolizam uma possível transformação do modo de representar mulheres em ações promovidas por essas marcas de cosméticos, tradicionais no Brasil. Em 2015 a Avon realizou a campanha “Outubro Rosa” (#EuUsoAssim, 2015) sobre o câncer de mama, estrelado por uma modelo transexual e negra, a cantora da Banda Uó, Candy Mel Gonçalves. Ela apresenta um tutorial de maquiagem com a temática da cor rosa simbolizando o mês voltado ao combate à doença. Ainda que a transexualidade não estivesse em foco — o que também pode ser interpretado como positivo, garantindo naturalidade à sua presença — entendemos esta escolha como uma ruptura. Em 2017 dois outros comerciais da marca apresentaram diversidade de representação, um deles (#OQueTeDefine, 2017) é estrelado pela cantora Karol Koncá, que também foi capa do catálogo da marca no mês de fevereiro deste ano. Além de mulher negra, ela representa o empoderamento das mulheres negras devido ao teor de suas músicas. O outro (Avon: Maiara e Maraísa, 2017) é estrelado pelas cantoras Maiara e Maraísa, que além de serem ícones femininos em um ambiente historicamente masculino — e machista —, o da música sertaneja, também são mulheres fora do padrão corporal de beleza, por serem consideradas plus size. No comercial, elas demonstram o uso de hidratantes corporais, expondo seus corpos.
A Natura, por sua vez, em 2016, promoveu a campanha #velhapraisso (#Velha pra isso, 2016), onde são representadas várias mulheres de diversos estilos e idades sentindo-se livres e confiantes para romperem com o padrão, como por exemplo, fazer tatuagem ou voltar a estudar. A campanha traz um debate de gênero, reafirmando que não existe idade certa para você ser você e desmistificando a juventude como modelo único de beleza. Seguindo este mesmo posicionamento, também em 2016, a Natura lançou uma campanha intitulada: Viva a sua Beleza Viva, composta por uma série de vídeos, a exemplo do “Refaça o pacto com a sua beleza” (Natura: Viva a sua beleza viva, 2016). Nele, além de haver uma representatividade plural, com a presença de mulheres de idades, raças e comportamentos diversos, também o próprio texto em locução em off promove a liberdade de fugir de padrões sociais.
Emerge aqui uma importante discussão acerca da apropriação da luta feminista pelo discurso institucional mercadológico. Ainda que esse não seja o foco do artigo, é válido mencionar alguns tensionamentos que se fazem presentes. O chamado femvertising — léxico constituído da junção das palavras feminismo e publicidade em inglês — propõe o empoderamento feminino em um cenário de esgotamento da representação da mulher através de padrões irreais em campanhas publicitárias (Nunes e Vale, 2020). Em um estudo focado no discurso de empoderamento como novo posicionamento da marca Avon, Ana Paula Nunes e Rony Vale (2020) concluem que a estratégia funciona como mecanismo para ofuscar o real objetivo do discurso publicitário (“fazer vender”) por meio do enfoque dado à “reparação social” a ser conquistada, no caso, a igualdade de gênero. Assim, se por um lado tomamos como positiva a mudança de posicionamento das marcas, por outro entendemos que o “empoderamento feminino” não é a finalidade central desses discursos, os quais tendem a esvaziar o feminismo como movimento político e social. Nesse sentido, “um grande desafio da sociedade seria verificar e pressionar as corporações para que esse tipo de discurso ativista não se resuma a ações e campanhas pontuais, mas sim se estenda na atuação no ambiente da empresa e na sociedade em geral” (Bayone e Burrowes, 2019, p. 36).
Nesse interim, surgiu o interesse de verificar se o novo modelo, ou posicionamento em voga, refletia em alguma medida nos catálogos da Avon Brasil e da Natura — marcas as quais dependem de seus catálogos — impressos ou virtuais — para vender seus produtos, por não possuírem lojas físicas. Atualmente, notamos que os métodos de venda dos produtos estão se atualizando, porém, a venda direta ainda prepondera. Através dos catálogos, as empreendedoras independentes — como são chamas pelas marcas —, deixam essas revistas, publicadas periodicamente, para as clientes olharem e marcarem seus nomes nos produtos que desejam comprar. Com os catálogos impressos em mãos, as consumidoras podem ter mais tempo para olhar lentamente seu conteúdo, em uma espécie de ritual, para escolher o produto que lhe interesse. Portanto, o catálogo é uma grande vitrine, um veículo de imaginários sociais concretos de feminilidade. Sua pertinência como mostruário com pluralidade de representação é ainda maior. Seu significado extrapola a lógica de outros conteúdos publicitários, pois não apenas se insere na vida cotidiana de mulheres em termos de práticas e rituais, como envolve milhões de mulheres em suas atividades laborais.
Considerando sua relevância e o cenário ora exposto, nosso objetivo central é verificar se este posicionamento recentemente explicitado pelas marcas em questão em seus canais de comunicação também se reflete nos catálogos para venda dos produtos. Reforçamos que estes espaços simbólicos de representação possuem forte influência social. Erving Goffman (1979), ao analisar a representação dos corpos em espaços publicitários, concluiu que a publicidade influencia a forma como a sociedade idealiza a masculinidade e a feminilidade. Ademais, que os modelos hegemônicos de representação expressam fortes assimetrias de poder entre homens e mulheres. O conceito «exibição de género» é basilar do trabalho de Goffman, intitulado “Gender Advertisements”, e pontua como a noção de gênero e suas relações de poder são operacionalizadas na publicidade.
Assim, entendemos que as análises propostas pelo presente artigo, as quais serão melhor detalhadas no tópico seguinte, possuem potencial de descortinar em que medida a pluralidade de representações se faz presente nos catálogos das marcas Natura e Avon Brasil. Ainda que compreender a frequência de modelos de representação seja nosso objetivo primeiro, numa perspectiva quantitativa, os resultados serão interpretados qualitativamente, embasados por meio de uma revisão bibliográfica acionada pelo conteúdo, na etapa interpretativa dos dados.
Especificamente acerca do objeto proposto, identificamos apenas três publicações centradas nas análises de catálogos de cosméticos e suas funções como espaço de representação, em consulta nas principais bases acadêmicas do campo — Scielo, Google Scholar, Portal de Periódicos Capes e Catálogo de Teses & Dissertações Capes. Trata-se de uma dissertação (Vásquez, 2014) e um artigo científico (Nunes e Vale, 2020) focados na marca Avon, mas com diferentes propostas teórico-metodológicas, e uma tese (Torres, 2016), a qual considera como base os catálogos das marcas Avon e Natura. A ausência de mais pesquisas acadêmicas com essa abordagem, em meio a um universo muito mais amplo de estudos focados na representação da mulher em revistas e outros espaços publicitários, reforça a importância do presente artigo.
Definimos como objeto desta pesquisa os catálogos das marcas Avon Brasil e Natura. Assim, selecionamos como corpus os catálogos lançados por ambas as marcas no primeiro trimestre de 2017 — de janeiro a março —, totalizando seis revistas de cada marca, considerando que sua publicação é quinzenal. Determinamos, ainda, que todas as imagens de mulheres ali presentes seriam analisadas, independentemente se seu enquadramento, podendo assim se tratar de partes isoladas de seus corpos. As imagens analisadas totalizam 755, sendo 344 da Natura e 431 da Avon, o que já se mostra representativo. Justificamos o recorte do corpus com o critério de atualidade e viabilidade. Atualidade porque o objetivo da pesquisa é compreender se o relativamente novo posicionamento das marcas está refletido nos catálogos, e viabilidade considerando o tempo para o desenvolvimento da pesquisa.
Como método, definimos a Análise de Conteúdo (Bardin, 2009), em uma abordagem quanti-qualitativa. Quantitativa, pois pretendemos mensurar a frequência dos diferentes tipos de representação identificados, codificados em categorias. Qualitativa porque pretendemos apresentar uma interpretação e discussão dos dados obtidos na etapa quantitativa, teoricamente fundamentada. O princípio que norteia a Teoria Fundamentada em Dados (TFD) é a elaboração de categorias capazes de organizar e interpretar os fenômenos em questão, explicando suas propriedades, demonstrando suas origens e as condições nas quais as ações se manifestam (Ferreira e Felizola, 2012). Essas categorias são, assim, a base da construção da estrutura teórica explicativa do fenômeno, ou ainda, suas hipóteses teóricas. A TFD pressupõe que a condução da revisão de literatura ocorra após a análise dos dados pelo pesquisador (Charmaz, 2006).
Para este estudo, codificamos categorias as quais definem diferentes representações da mulher no conteúdo do corpus. O trabalho de codificação executado pelo analista é, para Laurance Bardin (2009), uma poda, uma delimitação das unidades de codificação. Ela afirma a relevância desta etapa da pesquisa para uma realização eficiente da análise, considerando que não pode haver ambiguidade nos elementos codificados. A autora reforça que “o aspecto exato e bem delimitado do corte tranquiliza a consciência do analista” (Bardin, 2009, p. 36). Portanto, cada categoria seria uma caixinha que proporciona a classificação dos elementos de significação que formam a mensagem. Nesta pesquisa, tais categorias estão associadas às formas corporais, traços étnicos, faixa etária, enquadramento dos corpos, entre outras, com possibilidade de cruzamento de dados para um maior aprofundamento.
A partir dos resultados obtidos nesta etapa empírica, produzimos tabelas que contém a frequência e descrições das imagens e construímos gráficos que melhor ilustram nossos achados. Na etapa de interpretação dos resultados exporemos esses gráficos e discorreremos sobre as principais temáticas analisadas, em uma discussão de fundo social alicerçada na fundamentação teórica.
Por se tratar de uma pesquisa de grande amplitude, privilegiaremos, aqui, os principais resultados obtidos por meio das análises, aqueles que consideramos demonstrar modelos de representação mais significativos da mulher no corpus. Começamos as interpretações das análises a partir da observação da forma corporal das mulheres representadas no corpus. Nos gráficos (ver figuras 1 e 2), consideramos as revistas da Avon Brasil e Natura separadamente. Ao realizar esta separação, pretendemos observar se, em alguma medida, existe disparidade ou consonância entre os modelos de representação ali expostos.
Figura 1
Forma Corporal: relativos aos catálogos Natura, ciclos 1-6
Figura 2
Forma Corporal: relativos aos catálogos Avon, campanhas 2-7
No que tange a forma corporal, pontuamos haver mais similaridades do que discrepâncias entre as marcas, ainda que algumas diferenças mereçam destaque. Ao interpretar o gráfico da Natura, observamos que mulheres as quais denominamos plus size — nomenclatura utilizada no mundo da moda para referenciar mulheres gordas, a qual pode ser problematizada como uma expressão da gordofobia1 — simplesmente não aparecem. Cerca de 95% das mulheres exibidas nessas 6 revistas tinham a forma corporal magra, e apenas 5% eram de corpo médio. Pontuamos, assim, que a Natura é uníssona e reforça os padrões de beleza que enaltecem a magreza como única forma aceita.
Ao observarmos os números extraídos das análises da marca Avon, encontramos 89% de mulheres de corpo magro, 9% médio e 2% plus size. Assim, se entre as marcas existe consonância ao supervalorizar a magreza como modelo de beleza, a Avon buscou, em alguma instância, trazer para o seu catálogo outras formas corporais, inclusive de mulheres consideradas socialmente “fora do padrão” — socialmente porque as representações midiáticas impactam a sociedade e reforçam que o belo é magro. Com base nas ideias de Magdalena Piñeyro, a aversão ao corpo gordo está impregnada nos nossos pensamentos e comportamentos, desencadeando culpa e promovendo a exclusão das pessoas gordas, em uma espécie de exílio social. A fuga do corpo gordo é alimentada pela contínua possibilidade de emagrecer, enaltecida pela mídia (Paim, 2019) e é nesse contexto que a gordofobia se expressa socialmente (Rangel, 2018).
No universo dos cosméticos, entendemos que para demonstrar maquiagem, cremes corporais ou até mesmo perfumes não há uma necessidade estética de que a modelo tenha características físicas específicas no que se refere à forma corporal. Mais além, entendemos que catálogos constituem espaços de divulgação de produtos os quais se utilizam de corpos fotografados como display. Desse modo, ao optar por uma única forma corporal, as marcas reforçam que para alcançar a beleza ali promovida é preciso se enquadrar a esse padrão, em um processo de disputa.
O século XXI traz a obsessão por ser magra, por ter um corpo musculoso, ‘perfeito’, isento de qualquer descuido ou preguiça. A mulher deve ter um corpo plasticamente perfeito, à prova de velhice, um corpo que se torna, cada vez mais, um objeto de design. (Samarão, 2007, p. 50)
Podemos ponderar, no entanto, especificamente no caso da Avon, que parte das representações ali expostas foge desse padrão, expondo — em torno de 2% do corpus analisado — corpos considerados socialmente como gordos. Ainda que pífia, essa representação sugere uma intenção de inclusão, provavelmente em forma de “cotas”, em uma espécie de “visibilidade controlada” (Hall, 2003), considerando que a esmagadora maioria das mulheres apresenta corpos magros.
Neste processo de análise, focamos nossas atenções especificamente nas imagens que compõem as capas dos catálogos analisados por entender que estes espaços possuem maior relevância no que concerne à representação, considerando o destaque que estas imagens possuem, funcionando como publicidade da própria revista, com a finalidade de atrair a atenção do consumidor para o conteúdo interno da mesma. Aqui deparamo-nos com uma maior pluralidade de representação, especialmente no caso da Avon, com 40% de corpos magros, 40% de corpos médios e com 20% de corpos plus size.
Trazemos a capa de um catálogo (ver figura 3) que exibe uma mulher plus size, onde temos uma modelo trajando roupas íntimas para divulgar hidratantes e sabonetes. Entendemos ser intencional a escolha da modelo para compor uma das capas, e que a maior exposição do seu corpo, vestindo roupa íntima, também é uma ruptura. Ponderamos, no entanto, que seu corpo recebeu tratamento de imagem e que qualquer aspecto esteticamente questionável, como dobras nas barrigas, não faz parte da imagem. Visualizamos um corpo liso, firme, apenas alargado. Sobre a aversão a uma estética gorda, Marina Paim (2019), fundamentada na obra de Magdalena Piñeyro, afirma que nossos complexos alimentam fortunas, pois há um interesse econômico na propagação do ódio ao corpo gordo e na promessa de acesso à magreza tão (publicitariamente) sonhada.
Figura 3
Capa do catálogo Avon, campanha 6
Reconhecemos que a marca Avon se mostra a frente da Natura no que tange a representação de formas corporais. Não podemos falar em pluralidade, mas sim em uma singela mudança que, em alguma medida, significa a ruptura de um modelo de beleza absoluto e excludente.
Padrões estéticos são continuamente aculturados em nossa sociedade, potencialmente fazendo com que os indivíduos vivam numa incessante busca pela beleza e jovialidade.
Juventude é uma categoria privilegiada e aparece como mais que uma designação para uma categoria de idade. É também uma palavra "mágica", que evoca um estado de espírito e físico ideal, perseguido por uma massa de indivíduos de várias idades. [...] A juventude é veiculada como "paradigma existencial", independente da idade real do indivíduo. Assim a imagem de juventude veiculada não se esgota na correspondência exclusiva a uma determinada categoria etária, e aparece enquanto um "modelo ético-estético" para qualquer indivíduo consumidor. (Vianna, 1992, p. 2)
Nesse modelo de sociedade, ao atingirmos a velhice, somos impelidos a lutar pela juventude ameaçada. Vivemos uma cultura que reverencia a juventude e o novo como virtudes em si mesmas, assim, envelhecer parece caminhar no sentido contrário aos “chamamentos midiáticos” e estéticos. Para a mulher, a relação entre representação e construção de uma autoimagem positiva pode ser muito mais difícil conforme ela se aproxima da velhice (Mendonça e Silva, 2014, p. 123).
Os resultados desta pesquisa coadunam com um modo de representação que brinda a juventude. Ao observamos os catálogos de ambas as revistas, deparamo-nos com a disparidade de mulheres entre 20 a 30 anos — a faixa etária foi analisada com base na imagem representada e não na idade real das modelos — em relação às mulheres com idade similar ou superior a 40 anos. Mulheres que estão nessa última faixa etária possuem pouca representatividade, como veremos nos gráficos (ver figuras 4 e 5).
Figura 4
Faixa Etária: relativos aos catálogos Natura, ciclos 1-6
Figura 5
Faixa Etária: relativos às capas dos catálogos Avon, campanhas 2-7
É possível notar que nos catálogos de ambas as marcas mais de 70% das mulheres possuem uma imagem concernente à faixa etária entre 20 e 30 anos. Em contra partida, dados do IBGE comprovam que houve um aumento da população adulta e idosa no Brasil, enquanto a população de jovens diminuiu. Esse fator é resultado da diminuição das taxas de mortalidade e natalidade e aumento da expectativa de vida no país, que chega a 73 anos em média. Ao observarmos os gráficos, percebemos claramente que a beleza não está associada à velhice, nem mesmo à meia idade.
Através da supervalorização da juventude enquanto categoria trans-etária, a cultura de massa veicula uma ideologia da "eterna juventude". Trata-se de uma ideologia alienante e utópica, pois desvaloriza, nega, uma afirmação da "natureza" em função de algo que sabemos ser falso — temos plena consciência de que não seremos sempre jovens, apesar da juventude eterna ser apresentada como possível e real. (Vianna, 1992, p. 16)
Para melhor compreender o quadro representativo das mulheres com idade aparente superior a 40 anos, observamos que na maioria dos casos essas mulheres estavam presentes nos catálogos por motivos específicos, para anunciar produtos anti-idade/antirrugas, salvo poucas exceções. Dentre as poucas mulheres que povoaram os catálogos das duas marcas com idade aparente superior a 40 anos, no caso da Natura, 89% estavam associadas a produtos anti-idade e apenas 11% a outros produtos. A imagem dessas mulheres também aparece associada à figura arquetípica da “mãe madura” (ver figura 6). Esse papel social de mãe/avó justificaria a aparição dessas mulheres em espaços de destaque, não como parte integrante, mas como exceção. Conforme concluíram Laura Prodanov e Carlos Reinke (2016) em seu estudo, mesmo que o envelhecimento da população brasileira potencialize a importância desse grupo social no mercado consumidor, percebemos que a velhice não é reconhecida pela maioria dos profissionais da área como público em potencial.
Figura 6
Capa do catálogo Natura, ciclo 6
Ao focarmos nos catálogos da Avon, notamos que 59% delas estão vinculadas a produtos anti-idade, e 41% são mulheres famosas, como é o caso da Luiza Brunet que é a modelo do perfume de mesmo nome da revista Avon. Neste caso, a idade deixa de ser relevante por se tratar de uma celebridade com potencial para influenciar consumidoras.
Ao anunciarem, em sua maioria, produtos anti-idade, devemos refletir que a presença dessas mulheres fundamenta a discussão proposta por Letícia Vianna, da negação ao envelhecimento e busca incessante em deter esse processo natural. Essas mulheres são escolhidas como símbolos de uma juventude artificial, com uma aparência sempre mais jovem do que sua idade representa. Desse modo, ainda que estudos apontem para uma “sociedade do envelhecimento” a qual, segundo Alejandro Klein (2016), inevitavelmente reconfigurará modelos, paradigmas e estruturas sociais e culturais, seus reflexos ainda não estão visíveis nos catálogos de produtos de cosméticos, tendo o corpus como base. Certamente esse universo ainda esteja arraigado a um modelo social que reluta em aceitar as marcas do tempo, especialmente para as mulheres.
Adentrando aspectos os quais contribuem para a definição da etnia da mulher presente nos catálogos da Avon e Natura, pareceu-nos necessário a delimitação do tom de pele para uma melhor compreensão das nuances que fogem a uma determinação da raça a qual essa mulher pertence. Partimos da premissa de que a definição de raça é muito mais complexa do que a observação de fenótipos, “uma construção política e social. É a categoria discursiva em torno da qual se organiza um sistema de poder socioeconômico, de exploração e exclusão — ou seja, o racismo” (Hall, 2003, p. 66). Traremos essa discussão ao longo das análises, porém, limitamo-nos a observar fenótipos presentes nas imagens, os quais nos permitem entender quais os tipos físicos ali representados. Esta resposta nos levará a reflexões mais profundas e, por demandar a análise de diferentes características físicas e cruzamento de dados, o espaço destinado a ela será maior do que para as análises anteriores (ver figuras 7 e 8).
Figura 7
Tom da pele: relativos aos catálogos Natura, ciclos 1-6
Figura 8
Tom da pele: relativos às capas dos catálogos Avon, campanhas 2-7
Primeiramente pontuamos que essas três categorias criadas para definir o tom da pele não são absolutas, dentre as mulheres de pele clara observamos diferentes tons, do branco ao rosado, porém, consideramos que as diferenças não se mostravam tão significativas e para o gráfico geral não as abarcamos. Ao optarmos pela nomenclatura “pele média”, não posicionamos essas mulheres em nenhuma definição racial — se é que esta definição seria possível por ser antes social e política do que fenotípica. Outros traços, como textura do cabelo, seriam mais significativos para tal, especialmente em um país miscigenado como o Brasil. Pontuamos apenas que essas mulheres possuem a pele entre o tom claro e o escuro, por vezes em consequência de fatores externos, como técnicas de bronzeamento e iluminação. A escolha do termo “pele escura” também foi intencional e nos propiciou observar se determinados fenótipos são preteridos.
No quadro geral é alarmante a disparidade entre os tons de pele presentes em ambas as revistas, considerando que 73% (Avon) e 78% (Natura) das modelos possuem o tom de pele clara. Ao observarmos esses números, notamos uma dissonância em relação ao tom de pele predominante da população brasileira. Segundo dados do IBGE de 2014, os negros (pretos e pardos) são a maioria da população brasileira, representando 53,6% do total de habitantes. Do total analisado, apenas 5% (Natura) e 13% (Avon) possuem o tom de pele classificado como médio e apenas 17% (Natura) e 14% (Avon) com o tom classificado como escuro. Os tons médios e escuros correspondem ao tom de pele predominante no Brasil.
Esse resultado corrobora com as asserções de Paulo Silva et al. (2012) sobre a desigualdade racial na publicidade. Os autores se baseiam em pesquisas quantitativas brasileiras as quais demonstram que o nível de desigualdade é tamanho que os anúncios parecem ser veiculados para sociedades europeias. A figura do branco seria, assim, normatizada como sinônimo de civilidade.
Voltando aos resultados, os diferentes tons de pele seguem uma escala gradual, principalmente no que diz respeito à pele clara, prevalecendo o tom classificado como “levemente bronzeado ou bronzeado”, remetendo ao tropicalismo brasileiro, mas sem descaracterizá-la do grupo racial ao qual ela faz parte e representa, como podemos observar nas imagens (ver figura 9).
Figura 9
Imagens representando as variações no tom de pele claro
Fonte: Catálogos Avon e Natura
Ao observarmos as mulheres com o tom de pele escura, também notamos uma escala gradual, que vai de um tom clareado artificialmete (técnicas de iluminação, maquiagem ou editores de imagens), ao tom médio, chegando a um tom de pele mais escuro. Podemos observar tal variação nas imagens (ver figura 10).
Figura 10
Imagens representando as variações no tom de pele escuro
Fonte: Catálogos Avon e Natura
Outro ponto a ser observado e evidenciado são técnicas de iluminação e de maquiagem usadas para o clareamento ou escurecimento em ambos os tons de pele, como também para realçar ou diminuir traços faciais e corporais. Tendo em vista essa diferença no que diz respeito aos tons de pele e suas variações, e válido ressaltar:
A publicidade lida com a beleza mercantil, ou seja, com a beleza direcionada à promoção de marcas e ao faturamento das indústrias. Explora imagens que povoam a imaginação da sociedade, e que podem não ser verossímeis, mas, talvez, sejam parte da fantasia convencional dos indivíduos. A publicidade se tornou a cultura da sociedade de consumo. Ela propaga, através de imagens, a crença dessa sociedade nela mesma. (Samarão, 2007, p. 82)
É válido mencionar que a discussão racial, especialmente nos sistemas simbólicos de representação, não emerge somente quando nos deparamos com representações estereotipadas e estigmatizadas do negro existente na publicidade. Mesmo com todo o avanço e discussão sobre o tema, ainda prevalece a imagem do branco associado ao 'belo'. Ao representar uma esmagadora maioria de mulheres de pele clara, alimenta-se a percepção de que o branco é belo e deve ser reverenciado. Nesse sentido, segundo Giovana Xavier (2013), as ideias hegemônicas acerca da feminilidade e, consequentemente da beleza, são díspares com a posição social impelida às mulheres negras em uma sociedade racializada. Ocupar esses espaços de representação significa uma constante negociação e reconstrução do ideal de feminilidade. Como afirma a autora, é preciso desvencilhar a imagem da mulher negra de uma figura bestializada e de mercadoria criada por uma sociedade escravocrata e racista.
Ponderamos, no entanto, que nos últimos anos a Avon, e mais recentemente a Natura, aos poucos vem quebrando estereótipos em seus anúncios publicitários e ações comunicacionais, trazendo uma nova roupagem a sua forma de representação feminina com maior pluralidade, como constataram Nunes e Vale (2020), especificamente sobre a publicidade da Avon. Porém, se em seus anúncios encontramos atualmente maior diversidade, o reflexo desse posicionamento ainda é pouco perceptível nos catálogos, especialmente no que se refere à representação de diferentes tons de pele. Provavelmente 14% (Avon) e 17% (Natura) de mulheres de pele escura signifique algum avanço — não temos dados científicos para comprovar — e, em alguma medida, seja menos excludente que outrora. Todavia, por se tratar de catálogos que expõem corpos como mostruário de produtos, pontuamos que ainda existe uma grande lacuna a ser superada para que a pluralidade de fato prevaleça.
Ao observarmos as capas de ambas as revistas dos ciclos analisados, deparamo-nos com uma discrepância expressiva entre as duas marcas. Enquanto a Natura invisibiliza mulheres de pele escura em suas capas, com 67% de mulheres de pele clara e 33% de pele média, a Avon demonstra sua intenção de promover a diversidade nestes espaços, com 40% de mulheres de pele clara, 20% de pele média e 40% de pele escura. Refletimos que ao menos para a Avon a diversidade de representação de fenótipos raciais nas capas de seus catálogos já é uma realidade. Não que esses números sejam motivos de celebração da pluralidade, porque no conteúdo interno das revistas a situação é bem diferente, como já bem pontuamos. Porém, desconsiderar esse avanço tampouco seria ideal. Como afirma Stuart Hall (2003, p. 321), “eu sei que o que substitui a invisibilidade é uma espécie de visibilidade cuidadosamente regulada e segregada. Mas simplesmente menosprezá-la, chamando-a de ‘o mesmo’ não adianta”.
Ao tratarmos de questões étnicas, consideramos a importância da textura capilar como característica que evidencia a etnicidade2. “O cabelo, que pertence ao mesmo tempo à vida pública e à privada, é um dos traços fenotípicos mais marcantes e evidentes de nossa ancestralidade, denotando não apenas nossa etnia como também nosso status e pertencimento social” (Quintão, 2013, p. 1). Os gráficos (ver figuras 11 e 12) se referem ao conteúdo geral de ambas as marcas concernentes à textura capilar.
Figura 11
Textura do cabelo: relativos aos catálogos Natura, ciclos 1-6
Figura 12
Textura do cabelo: relativos aos catálogos Avon, campanhas 2-7
O Brasil é um país miscigenado, onde, segundo pesquisa realizada em 2013 pela consultora Kantar Worldpanel e publicada pela revista Exame, estima-se que cerca de 70% dos brasileiros tenham fios de cabelo cacheados ou crespos e que 25 milhões de mulheres brasileiras alisam o cabelo. No entanto, não é esse o quadro representativo que vemos ao analisar e quantificar as texturas dos cabelos presentes em ambas as revistas, onde 53% (Natura) e 80% (Avon) do número total correspondem ao cabelo liso. Enquanto que os fios crespos pouco aparecem, aqui classificado em três subgrupos: Crespo 1, correspondente ao fio enrolado, formando cachos bem definidos, Crespo 2, com fio similar ao 1, mas com pequenos espirais que parecem inseparáveis, e o Crespo 3, de fios quase imperceptíveis e pouca definição (ver figura 13).
Figura 13
Textura do cabelo crespo (Hair type guide, s.f.)
Somando todas as aparições de cabelos crespos, na Avon, chegamos a apenas 9% do total e na Natura 7%. Estes números demonstram uma pífia representação de texturas de cabelos as quais estão potencialmente associadas a mulheres da raça negra, mais além, considerando a enorme miscigenação brasileira e os dados da pesquisa acima mencionada, eles se afastam da realidade.
Desde pelo menos o século XIX, o cabelo liso do branco europeu vem sendo associado a características positivas — ao cabelo “bom” — enquanto o cabelo crespo do negro vem sendo associado a características negativas — ao cabelo “ruim” — categorizando crespos como inferiores a lisos. (Quintão, 2013, p. 2)
Dois aspectos aqui precisam ser evidenciados, o primeiro é que apesar de seguirmos uma classificação dos fios crespos, sua relação com a vida das mulheres é muito menos determinista do que as três imagens que utilizamos como base. Nilma Gomes (2008) destaca que a textura do cabelo e a tonalidade da pele eram critérios de classificação da escrava no interior do sistema escravagista, ordenando inclusive a distribuição de atividades laborais. Essas marcas permanecem na atual sociedade pós-colonial, também alicerçada no racismo.
O segundo aspecto é que tratamentos químicos e acessórios capilares que deixam os cabelos com texturas mais lisas ou cacheadas são frequentes e não foram analisadas no corpus. O culto ao cabelo liso que é alimentado pela mídia fez com que muitas mulheres buscassem insanamente aquele modelo de cabelo, muitas tiveram a saúde prejudicada e até perderam os fios por agressivos tratamentos de alisamentos. O depoimento de bell hooks sobre esse ritual é bastante significativo e expressa a condição da mulher negra na busca pelo ideal branco, entendido como ideal de feminilidade.
Nas manhãs de sábado, nos reuníamos na cozinha para arrumar o cabelo, quer dizer, para alisar os nossos cabelos. Os cheiros de óleo e cabelo queimado misturavam-se com os aromas dos nossos corpos acabados de tomar banho e o perfume do peixe frito. Não íamos ao salão de beleza. Minha mãe arrumava os nossos cabelos. Seis filhas: não havia a possibilidade de pagar cabeleireira. Naqueles dias, esse processo de alisar o cabelo das mulheres negras com pente quente (inventado por Madame C. J. Waler) não estava associado na minha mente ao esforço de parecermos brancas, de colocar em prática os padrões de beleza estabelecidos pela supremacia branca. Estava associado somente ao rito de iniciação de minha condição de mulher. (hooks, 2005, p. 4)
Tais tratamentos para alisamento dos cachos ganham um contexto político no sentido que representam uma negação da identidade afrodescendente e uma tentativa de aproximação ao ideal branco. Remetendo ao cenário brasileiro, um estudo (Santana, 2014) investigou de forma exploratória as percepções que mulheres brasileiras possuem de sua relação com o cabelo e de que forma a mídia influencia essas percepções. Dentre as respondentes, aproximadamente metade se autodeclarou negra, 27% afirmou ter o cabelo crespo, 55% cacheados ou enrolados e 18% liso. Excluindo as que tinham cabelo liso, quase 80% das respondentes afirmaram já ter alisado o cabelo cotidianamente e quase 60% mencionaram que aprendem a cuidar dos cabelos por meio de revistas femininas. A pesquisa também revelou que a consciência acerca das pressões que impelem mulheres negras a buscarem uma aparência que a distância de suas raízes não significa necessariamente que a liberte dessas opressões, como podemos exemplificar por meio das respostas:
O padrão de beleza é o cabelo liso, por isso é totalmente desafiadora essa transição. Para mim, foi necessário desconstruir todo um padrão que a mídia me forneceu. Não é fácil sair na rua sendo mulher negra com cabelo crespo e de classe baixa, inclusive na faculdade.
Assumir o cabelo crespo tal qual ele é está diretamente ligado à ruptura de padrões, de pressão interna (familiar) e externa (social). É difícil sentir-se bonita, sem a aprovação do meio e assumir o cabelo crespo é deixar de precisar dessa aprovação. (Santana, 2014, pp. 136-137)
No país, o ressurgimento de movimentos antirracistas promovidos por grupos sociais e iniciativas coletivas fez com que o padrão do “liso” perdesse força, enquanto o movimento a favor do fio natural ganha adeptos diariamente, impulsionado pelo feminismo negro em espaços online e offline e projetos de empoderamento de mulheres negras, como aqueles que incentivam o uso de turbantes, a realização da transição capilar e promovem a beleza da mulher negra, elevando a sua autoestima.
Muito além de uma reconfiguração capilar, as subjetividades que transcendem esse movimento contribuem para que novos processos de identificação com a cultura negra sejam facilitados. “Outros saberes são reconhecidos, antigos saberes passam a ser ressignificados e a população negra brasileira passa a ter uma história que tem as formas de resistência como principal elemento” (Weschenfelder & Frabris, 2019, p. 8). Assim, a produção de novas discursividades sobre a mulher negra é indissociável de seu significado político.
Nos espaços virtuais há uma intensificação do saber compartilhado, assim como a distribuição e a apropriação de bens simbólicos. Estes fenômenos ocorrem dentro do feminismo por meio da inserção de mulheres negras nestes ambientes (Malta & Oliveira, 2016). São sites e blogs que através das redes sociais ganham um alcance maior, com potencial impacto social.
Somos mulheres negras e afrodescendentes. Blogueiras com estórias de vida e campos de interesse diversos; reunidas em torno das questões da negritude, do feminismo e da produção de conteúdo. Sujeitas de nossa própria estória e de nossa própria escrita, ferramenta de luta e resistência. Viemos contar nossas estórias, exercício que nos é continuamente negado numa sociedade estruturalmente discriminatória e desigual. (Nunes, 2012)
Retomando a interpretação dos dados, observarmos a textura capilar das modelos que estampam as capas em ambas as revistas. Novamente encontramos discrepância entre a representação dos catálogos das duas marcas, dos ciclos analisados, apenas dois tipos de cabelo foram encontrados nas revistas da Natura, o liso, com 33% dos casos, e o cacheado, com 67%. Quando focamos nossas atenções nas capas apresentadas nos catálogos da Avon, encontramos uma maior pluralidade, ainda que o liso prevaleça, com 60%, observamos 40% de cabelos crespos, estes últimos divididos em 20% de crespo 1 e 20% de crespo 3. Ao interpretarmos estes dados, ponderamos que se no caso das capas da Natura o liso não prevalece, a outra textura encontrada — cabelos cacheados — representa apenas um tipo de cabelo que, socialmente, encontra fácil aceitação por não ser característico da raça negra e por ser considerado “domesticado”, associado a cachos controlados e definidos. Cabelos crespos não encontraram espaço nas capas dos catálogos da Natura analisados.
Em contrapartida, observamos que nas capas da Avon cabelos crespos ganharam os holofotes, especialmente os do tipo 3, considerados os mais crespos. Mesmo não sendo maioria, apenas a presença dessa textura capilar significa uma ruptura do modelo hegemônico e a aceitação de que cabelos naturalmente crespos — típicos de mulheres afrodescendentes — são valorizados pela marca e devem ser associados à beleza da mulher.
Ainda que consideremos esse avanço no que concerne à representação, especialmente das capas analisadas, e o crescente número de mulheres assumindo a textura natural do cabelo, deparamo-nos com a prevalência da textura lisa representada nos catálogos analisados. Para que esse número seja mais igualitário, a sociedade precisa percorrer um longo caminho para igualdade racial. Nossos resultados encontram simetria com as conclusões do estudo desenvolvido por Graça Campos & Mônica Cruz (2018), focado na análise de peças publicitárias voltadas para cabelos crespos. As autoras constatam que o disciplinamento dos cabelos de mulheres afrodescendentes está pautado em discursos que implicitamente sugerem que a estética natural dos cabelos crespos não é a ideal. “Esse disciplinamento age com base em uma memória, ainda muito viva na cultura brasileira, que propõe como referência adequada de beleza capilar as formas dos cabelos lisos, principalmente do liso de matriz cultural branca” (Campos e Cruz, 2018, p. 134).
Ainda sobre a textura dos cabelos, decidimos mensurar a frequência de cabelos crespos especificamente em mulheres de pele escura com o intuito de verificar em que medida traços típicos de mulheres negras — de modo geral — foram respeitados. Ao observarmos os gráficos de ambas as marcas, concluímos que os catálogos da Avon parecem respeitar com mais frequência os fios naturais desse grupo de mulheres, com uma aparição de 13% de cabelos lisos, nitidamente alisados. No entanto, os cabelos crespos ali representados, em sua maioria (55%), seguem um padrão, classificado de crespo tipo 1, cujos cachos são modelados e mais soltos. Os tipos de texturas mais crespas, com cachos pouco definidos e quase inseparáveis (Crespo 2 e 3), somados, chegam a 23% dos casos. Esse dado demonstra que determinadas características são mais aceitas que outras, relacionando a beleza a um grupo segregado de mulheres. Nesse sentido, Campos e Cruz (2018) afirmam que a vigilância da estética dos cabelos das mulheres afro-brasileiras permanece ativa, ao mesmo tempo em que a indústria e a mídia demonstram “valorizar” as características fenotípicas da cultura negra, elas delimitam como essa estética deve se apresentar.
Ao focarmos nossas atenções nos gráficos da Natura, especificamente sobre os dados concernentes às mulheres de pele escura, observamos que os diferentes tipos de cabelos crespos estão presentes com certa frequência nos catálogos, sendo que o de tipo 3 (mais crespo) aparece em 25% das imagens analisadas. Entretanto, a frequência de cabelos lisos, cuja textura foi obtida a partir de tratamento químico ou outra técnica de alisamento é assombrosa, chegando a 31% e superando todos os demais tipos de cabelo codificados. Esses números indicam que mulheres negras ainda são encorajadas a alisarem seus cabelos para alcançarem um padrão de beleza hegemônico, mesmo considerando o atual cenário social, no qual o movimento de empoderamento de mulheres negras a partir da valorização de seus cabelos naturais é crescente, como bem discutimos anteriormente.
Buscamos, ainda, analisar se a presença de mulheres nos catálogos, em alguma medida, se justificava por uma suposta obrigatoriedade, quando, por exemplo, o produto anunciado era uma base para pele escura ou cosméticos capilares para texturas crespas. Em ambas as marcas identificamos que uma pequena parte dessas mulheres foram escolhidas para cumprir esta função de mostruário para produtos específicos, como os citados no exemplo, 7% (Natura) e 14% (Avon). Ainda que estes números sejam significativos, entendemos que na grande maioria dos casos as mulheres de pele escura estavam ali para anunciar produtos variados, colocando-as em situação semelhante a das mulheres de pele clara. Vale ressaltar, como já bem discutimos, que a presença de mulheres de pele clara, em todo o corpus, superou em grande medida a de mulheres de pele escura, o que demonstra a manutenção de um padrão de beleza hegemônico.
Após percorrer uma trajetória empírica, com a qualificação dos dados a partir de pressupostos teóricos que deles emergiram, chegamos a algumas conclusões. Compreendemos que a publicidade é uma produção cultural a serviço do mercado e que as marcas, em um panorama contemporâneo, tornaram-se entidades que são cobradas a se posicionarem socialmente, considerando um cenário de comunicação multidirecional e atuação dos movimentos sociais, especialmente em espaços virtuais. A observação de um novo posicionamento das marcas Avon Brasil e Natura, a partir de suas ações publicitárias recentes, veiculadas em espaços virtuais e mídias tradicionais, as quais promovem uma representação mais plural da mulher, levou-nos a questionar se, em alguma medida, essa diversidade também se refletia nos catálogos de ambas as marcas. Ressaltamos que estas não possuem lojas físicas e que os catálogos — virtuais ou impressos — funcionam como vitrines, prioritariamente em vendas diretas, e possuem grande relevância por extrapolarem a lógica de outros produtos publicitários no que concerne a práticas e rituais, e por envolverem milhões de mulheres em suas atividades laborais.
Nos catálogos analisados verificamos que existe um modelo de beleza preponderante e que este não se difere daquele historicamente aculturado pela mídia como belo. Corpos magros ocupam o corpus e o espaço para corpos gordos é quase que inexistente. Neste sentido, ponderamos que entre as duas marcas, a Avon foi a que propiciou alguma presença destas formas corporais em seus catálogos, ainda que pífia.
A juventude também foi brindada em todo o corpus e para as mulheres acima de 40 (a partir de sua aparência), restou menos de 10% do espaço destinado às modelos. Verificamos, ainda, que sua presença ou estava associada a produtos anti-idade ou se justificava por serem famosas ou cumprirem papeis sociais. Essa associação agrava ainda mais a problemática, já que ao serem assim retratadas — muitas vezes em corpos que passaram por tratamento de imagem que os rejuvenesce —, estão inseridas em um discurso que não aceita o envelhecimento como natural. Desse modo, por mais que ambas as marcas proponham em seus comerciais que a beleza não tem idade e que a linha de cosmético é destinada a todas as mulheres, independentemente de sua faixa etária, no momento de escolher esses produtos as consumidoras passam necessariamente por catálogos que não as representam, tendo como referência mulheres jovens.
Ao adentrarmos aspectos fenotípicos étnico-raciais, nossa primeira conclusão é de que no conteúdo do corpus, englobando aqui as duas marcas, mulheres de pele clara são vistas como ideais de beleza. Algumas nuances são observadas, como tons de bronzeamento, rostos rosados, mas sempre posicionando-as como mulheres brancas. Não consideramos que uma presença de cerca de 15% de mulheres de pele escura no corpus seja sinal de mudança, especialmente em um país de maioria negra. Percebemos essa representação muito mais como uma lógica cotista, de inclusão a base de migalhas e de uma visibilidade controlada, do que realmente a consciência da importância em representar essas mulheres. Esta mesma lógica se reflete na textura do cabelo, com preponderância do cabelo liso e pouca presença de cabelos crespos, sugerindo que a estética dos cabelos crespos não é a ideal. Mesmo em tempos de valorização da cultura e da estética negra, a lógica de branqueamento e de disciplinamento dos corpos negros ainda impera.
Por fim, concluímos que se há um espaço nestes catálogos onde visualizamos uma proposta de mudança no que concerne à representação da mulher, esse lugar é a capa. Sabemos da importância da capa como destaque, como primeiro lugar a ser visto e contemplado pelas potenciais consumidoras das marcas em questão. Nesta ceara, concluímos que a marca Avon Brasil está muito à frente da Natura. Se nas capas da Natura a maior pluralidade de representação é tímida, quando comparada ao conteúdo dos catálogos, no caso da Avon uma ruptura se faz presente. Ali, de fato, observamos a presença significativa de mulheres de pele escura e cabelos crespos na mesma proporção dos lisos, além de modelos plus size. Observamos, inclusive, que estas capas estão, em alguma medida, alinhadas aos comerciais da marca veiculados na mídia, com a presença das mesmas modelos estrelando ambos os conteúdos. Provavelmente contemplar a diversidade nas capas seja um movimento mais fácil, até no sentido logístico e mercadológico, do que alterar todo o conteúdo de catálogos, com imagens que, muitas vezes, se repetem provavelmente há anos.
Desse modo, a grande contribuição desta pesquisa é apresentar à sociedade e às próprias marcas uma análise quantitativa e uma interpretação qualitativa que possa gerar reflexão e impulsionar as marcas a repensarem a importância de uma representação plural, especialmente considerando a relevância de seus catálogos que proporcionam venda direta e se mostram principal contato entre marca e cliente. Acreditamos que as demandas da academia, de movimentos sociais, e da própria sociedade como um todo passam a ser ouvidas quando interesses mercadológicos são ameaçados.
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