Participação política de mulheres quilombolas rurais no nordeste brasileiro

Political participation from rural quilombola women in the Brazilian northeast

  • Jáder Ferreira Leite
  • Magda Dimenstein
  • Victor Hugo Belarmino
  • João Paulo Macedo
  • Candida Dantas
  • Andressa Veras Carvalho
  • Antonio Alves Filho
Objetivamos discutir as formas de participação política de mulheres quilombolas rurais, considerando os espaços de inserção, os desafios enfrentados e efeitos produzidos na vida cotidiana. Para tanto, realizamos entrevistas semiestruturadas como tática de produção de dados. As principais instâncias de participação das mulheres se dão em movimentos sociais, sindicato, a associação de moradores e grupos religiosos. Nesses espaços contribuem na presença em reuniões como ouvintes e na contribuição financeira mensal ao sindicato e à associação. As mulheres apontam dificuldades relativas aos lugares tradicionais de gênero, de ordem material como a falta de transporte, inviabilizando a participação em eventos, bem como forte desmobilização comunitária. Identificam repercussões da participação política em termos da melhoria nas condições de vida, na aquisição de novos conhecimentos e alteração nas relações comunitárias e familiares. A identidade étnico-racial e o racismo foram questões pouco evocadas no tocante aos conteúdos tratados nas instâncias de participação política.
    Palavras chave:
  • Participação Política
  • Mulheres
  • Comunidades Quilombolas
  • Rural
We aim to discuss the forms of political participation by rural quilombola women, considering their insertion spaces, the challenges faced by them and the effects produced in dayly life. Therefore, we conducted semi-structured interviews as a tactic of data production. The main instances of participation by women are social movements, trade unions, local residents’ associations and religious groups. In these spaces, they contribute as listeners and in monthly financial aid to unions and residents’ associations. The women point to difficulties related to the traditional gender roles, as well as the ones of a material order, such as lack of transportation, making participation in events impossible, and communitary demobilization. Repercussions were found in the political participation in terms of improvements to life conditions, the acquisition of new knowledges and the changes made in family and community relations. The ethnic and racial identity and racism were matters that were not touched upon at length as far as the content treated in the instances of political participation goes.
    Keywords:
  • Political Participation
  • Women
  • Quilombola Communities
  • Rural

1 Introdução

Discutir os atuais espaços de participação política considerando a intersecção mulheres-quilombos rurais leva-nos a percorrer duas trajetórias: a dos movimentos de mulheres rurais, destacando a influência da igreja católica e do sindicalismo na organização política; e a das lutas dos movimentos negros em torno do reconhecimento étnico-racial e territorial.

Por “participação política” nos ancoramos na ideia de que “o pessoal é político”, sugerido pela feminista Carol Hanisch em 1969. Primeiro, porque é necessário superar a concepção de política como o mero processo de escolha de um representante popular ou ao que é institucionalizado no âmbito do Estado, ainda que seja fundamental lutar por mecanismos de gestão e controle social em diferentes instâncias estatais, produzindo maior enraizamento e legitimidade das políticas públicas (Fleury, 2014). Em segundo lugar, porque subverte a ideia do privado como a-político, esvaziando as possibilidades de re(existências) das mulheres no espaço doméstico-familiar (Brito, 2001). Também entendemos que o exercício da participação política sob o crivo da “consciência política”, ancorado no positivismo da racionalidade e intencionalidade dos sujeitos, mostra-se demasiado determinista e reducionista (Costa & Prado, 2017).

Em uma breve digressão histórica, sabe-se que a década de 1980 representou um momento potente no país para a configuração dos espaços de mobilização popular nos quilombos rurais posto que: (1) foi marcada por um processo de abertura democrática e efervescência política de diversos movimentos sociais em várias regiões (Gomes, Nogueira, Vazquez & Toneli, 2016); e (2) surgiram novos atores sociais que se estabeleceram fora dos tradicionais enquadres do sindicalismo rural, tais como os povos atingidos por barragens, seringueiros, indígenas, ribeirinhos, comunidades quilombolas e quebradeiras de coco babaçu (Aguiar, 2016; Almeida, 2011). Tais grupos incorporaram elementos étnico-raciais, religiosos, identitários e ecológicos à luta política em torno da afirmação de seus modos de vida e da garantia de seus direitos.

Esse contexto favoreceu também a luta política das mulheres pelo reconhecimento enquanto trabalhadoras rurais (Oliveira & Leite, 2016), garantindo o acesso à documentação, à benefícios de seguridade social, como a aposentadoria e o direito à ocupação dos espaços de participação nas estruturas sindicais como sócias, uma vez que, até então, sua presença era restrita à condição de dependentes do pai ou do marido (Aguiar, 2016; Deere, 2004). Assim, a cumpre destacar a pressão dos movimentos sociais de mulheres do campo e sua expressiva participação na Assembleia Nacional Constituinte ocorrida durante a década de 1980 no Brasil, após 21 anos de regime militar, da qual resultou na nova constituição democrática brasileira em 1988. No texto constitucional foram assegurados direitos quanto à sua inclusão na titulação da terra no âmbito da política de reforma agrária, à igualdade entre homens e mulheres rurais e urbanas em relação à legislação trabalhista e aos benefícios da previdência social (Deere, 2004; Paulilo, 2016).

A Igreja de base popular, enquanto ala progressista e ligada à Teologia da Libertação, também cumpriu papel importante na mobilização política das mulheres do campo, através da atuação da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) (Paulilo, 2016). Estes espaços foram cruciais na organização das mulheres em torno da luta pela terra, bem como para estimular a saída das mulheres do âmbito doméstico e projetá-las aos espaços públicos (Favareto, 2006; Aguiar, 2016). Ademais, produziram enfrentamentos ao sindicalismo homogeneizante, corporativista, assistencialista e paternalista, encabeçado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) (Picolotto, 2018), dando vida ao chamado “novo sindicalismo” — termo referente às oposições sindicais, que tinham como principais bandeiras a reforma agrária, a luta por direitos trabalhistas, o fim da violência no campo, ao mesmo tempo em que faziam frente ao latifúndio e ao patronato (Boni, 2004; Favareto, 2006).

Para pensar as lutas no âmbito das comunidades quilombolas é importante subverter a ideia homogeneizante da reforma agrária enquanto pleito genérico do movimento camponês tal como sugerem Janine Bargas e Luís Cardoso (2015). Ou seja, diluir as experiências de lutas quilombolas em torno de uma mesma categoria “rural” é produzir o apagamento das “injustiças sociais que sofreram e sofrem ao longo da história, mas também o reconhecimento, que pressupõe sua valorização no plano simbólico, cultural, étnico” (Bargas & Cardoso, 2015, p. 484). Rosa Marin e Edna Castro (1999) observam ainda que as primeiras mobilizações das comunidades negras rurais guardaram especificidades em relação às dos movimentos negros, de raízes mais urbanas. No primeiro caso, o território, enquanto espaço concreto de vida, mostra-se indispensável na formação cultural, étnico-racial e identitária, fazendo emergir diferentes elementos das desigualdades raciais, como os conflitos socioambientais, as disputas pela demarcação de terras e as violências no campo (Lacerda & Silva, 2016).

É inegável, todavia, a importância do Movimento Negro enquanto propositor de discussões e lutas pela valorização da ancestralidade africana como um valor positivo, visibilizando a luta histórica e a participação política das mulheres e dos homens negros pela garantia de dignidade e contra as injustiças sociais (Santos, 2019). A partir daí, inúmeras comunidades quilombolas em diferentes regiões do país, organizadas em associações, começaram a reivindicar políticas a partir do reconhecimento étnico-racial.

Em todos esses espaços de organização política, as mulheres não só estiveram presentes, como assumiram papel fundamental na construção democrática e na luta contra as iniquidades sociais. Apesar disso, essas mulheres sofreram retaliações com base nas normas tradicionais de gênero, reprovações oriundas, inclusive, de outras mulheres (Moraes, 2017), e enfrentaram desafios de distintas ordens, tais como as desigualdades de gênero nos espaços de poder/decisão (Ramos, 2015) e as dificuldade de fortalecimento e renovação dos movimentos de mulheres com a participação da nova geração (Gomes, Nogueira & Toneli, 2016).

Tendo em vista tal panorama e que a atualidade política do nosso país exige o fortalecimento das lutas contra a invisibilidade e o abandono pelas políticas públicas de homens e mulheres moradores de comunidades quilombolas, o presente trabalho objetiva analisar as formas de participação política de mulheres quilombolas rurais dos estados do Rio Grande do Norte e Piauí, considerando seus espaços de inserção, os desafios enfrentados e efeitos produzidos na vida cotidiana.

2 Considerações Metodológicas

Tratou-se de um estudo com delineamento qualitativo, de natureza descritivo-exploratória. A pesquisa, financiada pelo Edital Universal 2016 do CNPq, contou com a participação de 72 mulheres, maiores de 18 anos e residentes em duas comunidades quilombolas rurais no estado do Rio Grande do Norte e do Piauí: Grossos e Olho D’Água dos Negros, respectivamente. O primeiro contato com as comunidades se deu através de suas lideranças e, por meio de assembleia na associação das referidas comunidades, foi autorizada a realização da pesquisa. A etapa de campo, ocorrida em 2018 e 2019, contou com o auxílio e acompanhamento de “guias”, moradores do próprio quilombo, os quais viabilizaram o acesso a determinadas localidades e a potenciais participantes de nossa pesquisa.

Realizamos entrevistas semiestruturadas nas casas das participantes, conformando um tipo de amostragem por conveniência. Na ocasião, foram tratados aspectos éticos, tais como: assinatura do termo de consentimento para participação da pesquisa, autorização para gravação de voz e garantia de sigilo. A análise dos dados foi realizada a partir da análise de conteúdo temática, procedendo os seguintes passos: 1) transcrição integral das entrevistas; 2) categorização dos conteúdos de acordo com os eixos de análise; 3) Discussão coletiva acerca das categorias sínteses de análise; 4) Escrita e análise dos dados.

3 Resultados e Discussão

3.1 Caracterização das participantes e suas comunidades

A comunidade quilombola Olho D’Água dos Negros está localizada na zona rural do município de Esperantina, no Piauí, e conta, atualmente, com cerca de 87 famílias. Em 1998, os moradores criaram a Associação de Desenvolvimento Comunitário dos Pequenos Produtores da Comunidade Olho D’Água dos Negros (ADECOPOL) e, em 2004, conseguiram uma vitória, por intermédio da Prefeitura de Esperantina, que comprou as terras do antigo proprietário e doou à comunidade. Em 2005, a comunidade foi reconhecida e certificada pela Fundação Cultural Palmares, e em 2006, obteve a titulação da terra, expedida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) em parceria com o Instituto de Terras do Piauí (INTERPI). Algumas mulheres da comunidade também estão organizadas politicamente no Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), criado em 1991 sob o nome de Articulação Interestadual de Quebradeiras de Coco Babaçu, abrangendo os estados do Piauí, Maranhão, Pará e Tocantins.

A comunidade de Grossos, por sua vez, situa-se na zona rural do município de Bom Jesus, localizado a 46 km de Natal, capital do Rio Grande do Norte. Atualmente é composta por 140 famílias. O processo de identificação e reconhecimento da comunidade pela Fundação Cultural Palmares aconteceu em 2003. Todavia, diferentemente da outra comunidade, não recebera, até a ocasião da pesquisa, a titularidade das terras.

As participantes de nossa pesquisa apresentam idades entre 18 e 59 anos (maior percentual na faixa dos 30 aos 39 anos — 40%). Majoritariamente são casadas (72%), formam famílias com 3 a 4 membros (58%), declaram religião católica (92%) e possuem até o ensino fundamental (completo ou incompleto — 53%) ou ensino médio (completo ou incompleto — 37%). Por comporem uma comunidade com fortes laços de consanguinidade, 54% referem residir na comunidade desde o nascimento, entretanto, é elevado o percentual de mulheres vindas de outras comunidades rurais e que residem na comunidade há mais de cinco anos (37%). Um dos motivos que situa o elevado número de pessoas “de fora” da comunidade consiste na existência de relações sociais, produtivas, simbólicas e afetivas com outras comunidades rurais quilombolas do entorno.

Acerca dos aspectos socioeconômicos, apontam como principais fontes de sustentação da família: a agricultura familiar e de subsistência (87%), oferta de serviços, mercadorias ou mão de obra remunerada (74%), aposentadoria (6%) e o auxílio de programas sociais como o Bolsa Família (100%). Apesar de estarem envolvidas em diferentes atividades laborais, a renda familiar não ultrapassa um salário-mínimo (60%), sendo importante o índice de famílias sobrevivendo com até ½ salário-mínimo (31%). Quase a totalidade dessas mulheres tem renda individual de até ½ salário-mínimo (96%), o que em muitos casos é a maior renda fixa da casa, haja vista que 72% referiram ser as únicas ou principais responsáveis pelo provimento da família.

3.2 Formas de participação política

Dentre um conjunto múltiplo de instâncias de participação política, foram referidos: sindicato rural (72,2%), associação de moradores (65,3%), grupo religioso/espiritual (20,8%), cooperativa (18,1%), grupo ou movimento social (5,6%), grupo ou associação cultural (5,6%), grupo educacional (5,6%), conselhos ou comitês setoriais (5,6%) e ONG ou grupo cívico (1,4%).

No caso do sindicato rural e da associação de moradores, as mulheres restringem sua participação à contribuição financeira mensal, o que leva às que não possuem rendimentos suficientes, se sentirem desautorizadas a integrar estes espaços. Outra forma consiste na presença em reuniões e assembleias, momentos que, em sua maioria, ocorre sem participação ativa destas mulheres por conta de se sentirem envergonhadas, mantendo-se como ouvintes. A vergonha serve como analisador, de um lado, da verticalização dos modelos de participação entre aqueles que detêm o poder da palavra e aqueles destituídos de fala; e, de outro, dos tradicionais lugares de gênero que reforçam a articulação da mulher à esfera do privado e o do homem à pública (Moraes, 2017). Desse modo, ainda que homens e mulheres sejam objetos de uma mesma historiografia colonialista, a construção ideológica de gênero mantém a supremacia masculina (Spivak, 2010). Nas palavras desta autora: “Se, no contexto da produção colonial, o sujeito subalterno não tem história e não pode falar, o sujeito subalterno feminino está ainda mais profundamente na obscuridade” (p. 67):

Agora por hora eu tô afastada, porque eu “não estou em dia” com a associação. Aí eu fico assim meio constrangida de comparecer, né? Porque todo mundo tá “em dia” e eu tô atrasada, porque tem que pagar lá uma quantia lá, e eu não tenho dinheiro agora no momento pra botar em dia. Eu sempre digo a mulher que tá na frente: “quando eu tiver o dinheiro eu chego lá” (Entrevistada 32, entrevista pessoal, março de 2019).

Nestes termos, a ida ao sindicato ocorre em momentos específicos nos quais as mulheres se sentem autorizadas a acionar seus direitos — na busca aos projetos comunitários e na garantia de direitos: acesso ao salário-maternidade, aposentadoria, benefícios continuados etc. —, resultando na sua baixa assiduidade e participação.

Para além do uso instrumental do sindicato, isto é, somente como meio de acesso às garantias legais enquanto trabalhadoras rurais (Duarte, 2011), outra motivação para a atuação das mulheres neste espaço é o seu caráter hegemonicamente masculino. Os sindicatos, historicamente, reforçaram a invisibilidade das mulheres trabalhadoras rurais ao permitir a filiação de apenas uma pessoa por família, tomando a figura masculina como o “chefe da família” (Deere, 2004). Ademais, igualdade de gênero sempre foi uma temática paralela aos “verdadeiros interesses” do sindicalismo (Duarte, 2011). Assim, esse aspecto foi disparador para a constituição de muitos movimentos de mulheres, que ainda mantendo laços com o sindicalismo, se autonomizaram e organizaram caminhos próprios de condução do movimento, a exemplo do Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco Babaçu (Aguiar, 2016).

Nessa pesquisa, em ambos os estados, a associação de moradores, não somente apresenta organização mais horizontalizada, como também é constituída majoritariamente por mulheres. Isso viabiliza a integração das mulheres aos espaços de decisão, diversificando temáticas e ampliando a potência da própria organização comunitária. É nesse espaço que as mulheres acompanham as ações desenvolvidas dentro da comunidade e para a comunidade, a exemplo da realização de pesquisas acadêmicas, da participação em eventos interestaduais, de mobilizações coletivas para trabalho nos roçados e discussão acerca dos usos individuais e coletivos do espaço e dos bens materiais conseguidos, tanto a partir de projetos e financiamentos governamentais, quanto por recursos da própria associação de moradores:

Na associação a gente se reúne, seja mulher ou seja homem. E é assim “Hoje você vai plantar o roçado de sicrano. Hoje o de fulano” e sai. É um grupo de amigos que se reúne pra plantar no roçado de todos. (...) Isso é uma coisa que nasceu da associação. (Entrevistada 25, entrevista pessoal, março de 2019)

A participação política na forma de liderança comunitária gira em torno do desenvolvimento da própria associação e no seu manejo como ferramenta de mediação entre as necessidades da comunidade e as instituições públicas e os órgãos de fomento. De acordo com a liderança comunitária do RN, algumas de suas principais funções envolvem atrair projetos para a comunidade, mediar os interesses e conflitos comunitários, convocar e realizar eventos, bem como integrar coletivos negros e quilombolas de representação nacional, a exemplo da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ).

Por meio da associação de moradores foi criada uma cooperativa de produção na comunidade do RN, a qual é formada, em sua maioria, por mulheres. Em parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE) e a prefeitura municipal, atualmente desenvolvem atividades de panificação e fabricação de massas, escoando grande parte de sua produção para escolas municipais da cidade de Bom Jesus. Na cadeia produtiva, estas mulheres participam de todas as etapas, englobando desde atividades de gestão, produção, entrega dos produtos e limpeza das instalações. Isso demonstra que a participação de mulheres em grupos comunitários e produtivos reverbera não somente em aspectos de ordem econômica, mas também instrumentaliza estas mulheres a refazerem suas relações cotidianas nos âmbitos familiar e comunitário. Consoante Maurício Mendes et al. (2014), a nova realidade econômica das mulheres no contexto do trabalho familiar, reivindicando o status de produtoras e chefes de família, provoca alterações na hierarquia familiar e nos mecanismos de tomada de decisão, seja no âmbito familiar, seja no comunitário. Ainda de acordo com Julice Salvagni e Janaína Canabarro (2015), mesmo que persistam desigualdades de gênero nas relações de trabalho, a luta das mulheres tem fragilizado o estereótipo de não serem tão capazes e competentes quanto os homens. Os dados de nossa pesquisa confirmam isso, posto que mais de 70% das nossas participantes afirmaram assumir a função de chefia familiar.

No que concerne às organizações religiosas, destacam-se a pastoral e grupos religiosos, tanto evangélicos, quanto católicos. A participação das mulheres se dá tanto por meio da organização, ornamentação, abertura dos espaços e, nas festividades, preparação e venda de alimentos e busca por colaboradores, quanto nas atividades promovidas pela pastoral como seminários em torno de temas como maternidade, saúde da criança, alimentação saudável e gravidez. Contudo, por meio dessas organizações, percorrem os espaços da comunidade, fortalecendo estratégias de apoio e suporte comunitário:

É ajudar. É ajudar o próximo, entendeu? Aqui na festa da padroeira eu ajudo, assim, em venda. As meninas botam a gente pra vender coxinha ou então algum salgado, assim, da noite... então é frango assado, essas coisas. A limpar o terreiro da igreja, ajeitar pra ter a festa, tudo isso a gente faz pra ajudar na festa da padroeira. (Entrevistada 21, entrevista pessoal, março de 2019)

Nas demais instâncias de participação, destacamos os grupos culturais, uma vez que se trata de comunidades tradicionais caracterizadas não apenas por laços de consanguinidade, mas por aspectos étnico-raciais e culturais. As atividades culturais envolvem danças tradicionais como coco de roda, coco zambê e quadrilha junina. Também se comemora o dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. Curiosamente, poucas mulheres participam destes momentos e, quando o fazem, é como expectadora. O esmaecimento das atividades culturais tradicionais, sobretudo aquelas de matriz africana, é uma evidência nessas comunidades e possui causalidade complexa e multideterminada. Isso não deixa de se articular com outra questão que nos chamou atenção: dentre as 72 entrevistas, apenas em uma emergiu a dimensão racial.

Em relação ao enfraquecimento dessas tradições, a maneira de transmissão dos conteúdos, que se dá no campo da linguagem, como um “saber-fazer”, “saber-ser” (Valentim & Trindade, 2011, p. 307), aporta desafios em uma sociedade que sempre valorizou a escrita e o letramento. Os relatos e práticas culturais gradativamente vão perdendo força, gerando desconhecimento desse passado pelos mais jovens. Marcella Furtado, Regina Pedroza e Cândida Alves (2014) apontam que a constituição subjetiva e identitária da sociedade brasileira relacionada à colonização e à escravidão resultou no epistemicídio dos saberes de populações não-brancas, considerados primitivos e inferiores, exatamente por constituírem culturas orais. Isso reverbera de forma intensa em uma certa política de memória que vai se consolidando em torno do esquecimento, historicamente produzido, em relação à cultura negra e à ancestralidade africana.

É nessa linha de argumentação que podemos entender a ausência de referências à questão racial na presente pesquisa. Como dito anteriormente, as demandas das comunidades negras rurais estavam diluídas na agenda de lutas de categorias como a de trabalhadores rurais durante processo de abertura democrática (Bargas & Cardoso, 2015). Enquanto projeto em constante reelaboração pela sociedade brasileira, a identidade quilombola apresentou distintas trajetórias sociais, jurídicas e conceituais (Calheiros & Stadler, 2010). Neste sentido, mesmo mantendo laços culturais, de solidariedade e de parentesco, muitas dessas comunidades quilombolas não agenciavam o dispositivo da negritude como estratégia de reafirmação identitária e de luta pelo reconhecimento (Weschenfelder & Silva, 2018). Bargas e Cardoso (2015) apontam que, historicamente, os movimentos organizativos locais, dentre eles a associação de moradores, tratavam das questões próprias a cada comunidade de maneira isolada e em torno de fins práticos: “conseguir recursos para melhorar a produção agrícola, as escolas, o posto de saúde, sempre de maneira individual e imediata” (p. 473).

Esse individualismo e fragmentação das lutas, na contramão do reconhecimento étnico e territorial, são frutos do que Viviane Weschenfelder e Mozart Silva (2018) chamam de “dispositivo da mestiçagem” (p. 311), o qual trabalha com a negação do racismo e reforçamento de uma suposta democracia racial, fazendo do branqueamento — ou, pelo menos, da pardização — enquanto “perspectiva e um devir civilizatório” (p. 320). Portanto, a desvalorização da raça como condutora de desigualdades sociais e seu consequente velamento na esfera política nos ajuda a compreender, em parte, porque a perspectiva racial não é acionada na maioria das falas das participantes.

3.3 Desafios à participação política de mulheres rurais quilombolas

Ao ocupar estes espaços de participação, as mulheres revelaram dificuldades de distintas ordens. A primeira, já bastante referida na literatura, consiste no tradicional lugar da mulher no cuidado com o lar e com os filhos, colocando a liberação das atividades da casa como um obstáculo ao exercício da vida pública e organização comunitária: “A dificuldade que eu sinto é por conta deles, das crianças que são menores, aí tem reunião que é longe, aí não dá pra eu ir e deixar eles” (Entrevistada 38, entrevista pessoal, março de 2019). Dentro deste mesmo campo semiótico emerge a interferência dos maridos, os quais se opõem à saída das mulheres da casa, movidos pelo “ciúme”, isto é, pelo desejo de segurança, controle e posse sobre o corpo feminino.

As desigualdades de gênero se mostram cruciais no afastamento das mulheres rurais do âmbito da participação política. De acordo com Giovana Salvaro et al. (2014), “são ainda as mulheres que precisam conciliar atividades domésticas, cuidado dos filhos, de parentes envelhecidos e/ou doentes, atividades na lavoura, manejo de animais domésticos, entre outras, com a participação e a militância política em movimentos sociais” (p. 61). O trabalho distribuído desigualmente resulta, além da sobrecarga de trabalho às mulheres, a incapacidade de realizar outras atividades fora do âmbito doméstico. Ou seja, a saída da mulher do ambiente familiar altera não apenas o dia a dia doméstico, como advertem as autoras, mas também as próprias relações de gênero na micropolítica das relações familiares, na medida em que estas mulheres passam a reconhecer o trabalho doméstico como estratégico à emancipação política (Mendes et al., 2014; Oliveira & Leite, 2016) e que, portanto, necessita ser dividido equitativamente por todos.

Outro nível de dificuldade diz respeito à desmobilização comunitária de modo geral, e de outras mulheres, o que termina por desencorajá-las a se envolverem ativamente nos diferentes espaços de participação política: “Eu não fui mais por causa que todo mundo desistiu, aí não ia só eu” (Entrevistada 5, entrevista pessoal, novembro de 2018). Surgem categorias como “preguiça”, “desinteresse”, “comodismo” e “baixa integração comunitária”. Também fazem críticas ao modo de funcionamento destas instâncias de participação: são vistas como de pouca efetividade, os equipamentos comunitários pouco aproveitados, apontam para o desconhecimento dos eventos/convocatórias, além de constituírem espaços de conflitos interpessoais e de exclusão de mulheres não quilombolas, casadas com homens da comunidade.

No tocante aos obstáculos de natureza material, é mencionada a dificuldade de deslocamento, considerando a inexistência de transporte público, a distância dos quilombos até o sindicato rural ou mesmo a relativa dispersão das casas no território da comunidade, distantes das igrejas e da associação de moradores. Alguns trajetos na comunidade são difíceis de ser realizados a pé, pela má qualidade das estradas, pelo calor da região, ou pelas longas distâncias. A mulheres dependem de algum meio de transporte, a exemplo das motos — principal meio de transporte na comunidade, mas que, em muitos casos, ficam em posse do esposo ou algum parente homem da casa. Ademais, a pouca renda que possuem não é suficiente para abastecer as motos ou pagar por um frete e chegarem até as reuniões:

De eu ir para associação? Às vezes é o meio de transporte que é complicado. Aqui tem uma moto, mas nem sempre está em casa, aí para eu ir, a gente tem que ir a pé. Quando vai por aqui, pela estrada, mesmo assim é longe. Para pagar, às vezes eu não tenho o dinheiro de pagar. Eu não sei nem quanto é. Pronto, nem sempre eu tenho, não vou mentir. Não vou dizer a você que eu tenho, sem ter. (Entrevistada 13, entrevista pessoal, novembro de 2018)

As lideranças comunitárias indicam outros atravessamentos ao exercício de sua função. Situam como principais complicadores a falta de reconhecimento do trabalho comunitário, a baixa adesão masculina às atividades comunitárias e a realização do trabalho comunitário como uma atividade não remunerada. Por fim, um número expressivo de mulheres defendeu sentir nenhuma dificuldade em participar dos encontros em tais instâncias, posto que: o sindicato organiza um carro para buscá-las em seu domicílio; as reuniões acontecem com frequência mensal, o que possibilita se organizarem com antecedência; o marido não interfere ou não se importa; e porque contam com o suporte de algum familiar para cobrir suas responsabilidades nos dias de encontro.

Em termos de efeitos dessa participação política na vida das mulheres, podemos observá-los em dois níveis: (1) melhoria nas condições de vida, em nível comunitário e familiar; e (2) nos processos de subjetivação. São sobre estes aspectos que falaremos a seguir.

3.4 Efeitos da participação política no cotidiano das mulheres

O primeiro bloco aglutina aspectos referentes às necessidades mais objetivas dessas mulheres. O sindicato é tomado como instância necessária à garantia de direitos, tais como: auxílio-doença, auxílio-acidente, aposentadoria, salário-maternidade, advogado e documentações. É através do sindicato que as mulheres conseguem dar institucionalidade ao seu trabalho como agricultoras e trabalhadoras rurais e, a partir daí, assegurar direitos previdenciários, de assistência social, dentre outros.

Em termos de acesso a projetos — produtivos e de habitação — e cursos para serem desenvolvidos na comunidade, a associação de moradores ganha destaque. As famílias têm acesso a cestas básicas de alimentos, as quais são entendidas também como ganhos provenientes da associação de moradores. Ou seja, fazer parte do sindicato e da associação faz sentido para estas mulheres na medida em que conseguem observar efeitos de melhoria nas condições de vida, em termos de desenvolvimento comunitário e incremento de renda individual e familiar.

Contudo, observa-se que as ações de participação política dessas mulheres apontam para novas possibilidades de existência, isto é, produzem efeitos nos modos de subjetivação, nas maneiras de ser, pensar e relacionar-se — consigo mesma, nos espaços familiar e comunitário, capazes de fazê-las escapar das formas assujeitadoras experienciadas no cotidiano. Estar presente nos espaços de participação política, ainda que em silêncio, representa “pegar a informação em primeira mão” sobre o que acontece de novidade em termos de políticas, projetos e recursos voltados às populações rurais e que podem estar sendo desenvolvidos dentro da comunidade. Frequentar as reuniões representa uma oportunidade de conhecerem melhor seus direitos, bem como qual a função daquela instância no sentido de colaborar com a efetivação desses direitos. O simples fato de sair das suas tarefas cotidianas e acessar outros espaços amplia os horizontes do que se é capaz de fazer e conhecer, o que denota ganhos em termos de autonomia, como será citado mais adiante. Por fim, nesta categoria, comparecer às reuniões torna possível acompanhar como foi utilizado o dinheiro dos contribuintes e, desta forma, fazer cobranças, se necessário:

Ah, eu acho muito bom que a pessoa fique informada das coisas. Eu não participava das reuniões do sindicato, aí ficava desinformada de tudo, sabia pela boca dos outros, e a pessoa indo lá, pronto, a pessoa fica informada, vê os projetos também, a pessoa pode ser incluída. (Entrevistada 27, entrevista pessoal, março de 2019)

Antonimária Oliveira e Jáder Leite (2016) destacam que a participação política é um dispositivo de aprendizagem, aquisições e crescimento pessoal e profissional, na medida em que viabiliza o contato com distintas situações e atores sociais. Este tipo de conhecimento oriundo das experiências coletivas é crucial, na medida que para as comunidades rurais tem-se menos anos de estudo e a escolaridade exerce influência em vários aspectos da vida social (Almeida et al., 2013). De acordo com Mendes et al. (2014), envolver-se em encontros, marchas, campanhas, formação coletivas reforça o lugar dessas mulheres como detentoras de um saber político que as faz repensar seu cotidiano.

As mulheres experienciam alterações nas relações familiares e no cotidiano doméstico, bem como em termos de fortalecimento da identidade comunitária. Em todos esses âmbitos surgem oportunidades de produzir diálogos e integração com pessoas de dentro e fora da comunidade. De encontro ao individualismo, da lógica do “cada um por si”, prevalece a compreensão de que envolver-se no campo político promove a união entre as pessoas e a coesão comunitária, encorajando outras a irem às reuniões. Acerca das mudanças nas relações familiares e do cotidiano doméstico, afirma-se como uma chance de sair do espaço privado da casa, das atividades cotidianas do cuidado doméstico e com os filhos: “Pra mim mudou, porque tem aquela parte que a gente escuta as pessoas. Um diz outra coisa, outro diz outra coisa. Às vezes a gente ficar só presa dentro de casa, a pessoa até fica sufocada” (Entrevistada 49, março de 2019). Esta saída reiterada, paulatinamente, mostra-se potente a romper com a norma social imposta às mulheres enquanto “donas de casa” e subservientes aos esposos.

As transformações provocadas pela participação política de mulheres apontam a inter-relação entre casa e política (Ramos, 2015). Em outras palavras: a socialização de gênero e a produção de sujeitos políticos não são processos paralelos, muito menos antagônicos, mas coextensivos. Em um cenário onde as mulheres rurais são socializadas para aceitar o que os homens decidem, seja na figura paterna, seja na do marido (Boni, 2004), a participação política opera como dispositivo de subjetivação, na medida em que produz posições outras de ser mulher, conduz a questionamentos sobre seus modos de vida, ao tomar que o privado também é político e pautar possibilidades de mudanças no cotidiano (Gomes, Nogueira & Toneli, 2016). Todavia, como ressalta Oliveira e Leite (2016), “essas alterações não se dão em definitivo, mas vão sendo negociadas, construídas a cada vez e fortalecidas com as conquistas alcançadas tanto em termos da organização coletiva quanto da recomposição dos lugares de gênero” (p. 189).

A ampliação dos conhecimentos e acesso a diferentes informações, além da ampliação das relações sociais e dos laços comunitários produz um segundo nível de efeitos subjetivos que são o bem-estar espiritual e a autonomia. No caso do bem-estar espiritual, fala-se especificamente à participação nas organizações religiosas, sendo referidas transformações nos âmbitos pessoal e familiar. Quanto à autonomia, as diferenças são sentidas pelas entrevistadas: (1) quando percebem a entrada das mulheres nos lugares de decisão política anteriormente restritos aos homens, a exemplo das decisões sindicais; (2) quando conseguem tensionar os limites do público/privado; (3) quando nas discussões, sentem-se mais encorajadas a falar e se posicionar publicamente; e (4) quando são reconhecidas e compreendem sua importância em pressionar os órgãos municipais e instituições públicas por melhorias nas condições de vida na comunidade:

Eu penso assim, de participar das reuniões do sindicato, que de primeiro ia só mais homem, a função era mais dos homens, dos agricultores e tal. Só que assim, as mesmas funções que os homens fazem, a gente também faz, aí começou a ir mais mulheres para o sindicato e agora vai até menos homens e mais mulheres, que são as mesmas funções. (Entrevistada 27, entrevista pessoal, março de 2019)

Segundo Salvaro et al. (2013), as mulheres criam modos de existência ao lutar pela superação das posições históricas de “‘donas-de-casa', ‘do lar’ e ‘esposa do agricultor’” (p. 87) e reafirmarem-se enquanto trabalhadoras rurais. O privado é posto então como reivindicação política, no sentido de superação de situações de opressão e invisibilidade no cotidiano, deslocando a questão do plano individual ao coletivo (Gomes, Nogueira & Toneli, 2016). Como diz Margareth Rago (2019, p. 4) eclodem “experiências que agem como linhas de fuga ao biopoder, à biopolítica e à governamentalidade neoliberal” e, desse modo, produzem melhorias nas condições de saúde, na qualidade da alimentação, nas formas de sociabilidade e na autoestima das mulheres (Mendes et al., 2014).

A pesquisa auxiliou na compreensão que a participação política das mulheres é exercida em meio às assimetrias de poder nos diversos espaços em que atua, provocando rebatimentos nos processos de subjetivação, tradicionalmente marcados pelo racismo e sexismo, e questionando os modelos de feminilidade impostos às mulheres. Tais assimetrias de poder são traduzidas em desigualdades sociais quando na intersecção dos marcadores de gênero, raça, classe — e, acrescentamos, socioespaciais: ser mulher, negra, quilombola rural, nordestina e latino-americana implica em precarizações e posições sociais desfavoráveis em comparação aos homens, pessoas de pele branca e moradores dos grandes centros urbanos, por exemplo. No entanto, situar-se neste cruzamento não representa um imobilismo ou incapacidade de provocar resistências e transformações políticas, posto que a experiência vivida não é redutível à condição de precariedade (Marques & Freitas, 2017).

O Estado cumpriu ao longo da história, e ainda cumpre hoje, uma importante função na gestão dos modos de vida e, consequentemente, nos processos de subjetivação. Apoiando-se nas produções foucaltianas, Angela Marques e Viviane Freitas (2017) produzem o conceito de “enquadramento biopolítico” (p. 18), para aludir às técnicas de governo, as quais formatam de forma impositiva posições de sujeito com base em padrões e normas neoliberais. Nestes enquadramentos, os corpos femininos negros estão entre aqueles mais vigiados e controlados em múltiplos contextos de existência (Marques & Freitas, 2017), dentre eles, enquanto sujeitos políticos. Acrescenta Ângela Figueiredo (2018) que desde o período colonial até a formação do Estado brasileiro, nossa história deparou-se com um projeto excludente com base nas relações de gênero e étnico-raciais, sustentando institucionalmente as hierarquias sociais. Em termos de participação política, um dos rebatimentos disso está na tentativa de situar o exercício político das populações marginalizadas como algo desnecessário ou não legítimo (Barros, 2014), e que se nota no atual governo bolsonarista através de discursos pela criminalização das lutas dos povos tradicionais pelo avanço da reforma agrária e por melhores condições de vida no campo, além da negação do racismo estrutural que constitui a formação da sociedade brasileira.

4 Considerações Finais

A participação política de mulheres quilombolas rurais envolve uma série de atravessamentos. É possível supor que a ampla desmobilização comunitária e a desarticulação destas mulheres enquanto coletivo, despotencializam os espaços já instituídos de participação política, bem como a construção de novas frentes de luta e reivindicação.

Como já indicamos, algumas das razões que interferem na adesão e permanência nestes espaços são as desigualdades de gênero e as dificuldades de ordem material. Além dessas condições, é possível conjecturar acerca da escassez de catalisadores favoráveis ao impulsionamento da organização das mulheres. Por décadas, a identidade de “trabalhadoras rurais” foi o principal dispositivo pelo qual as mulheres do campo se subjetivaram politicamente. Nos relatos de nossa pesquisa essa identidade é evocada, mas não como bandeira de luta e resistência, e sim de forma pontual, o que demonstra o engessamento dos espaços de participação política, os quais são capturados por uma lógica assistencialista e burocratizada.

Ainda sobre a questão dos catalisadores, a negritude e as relações étnico-raciais, apresentados na literatura como fundamentais para o desenvolvimento do movimento negro, do feminismo negro e da construção da própria identidade quilombola, não foram invocados pelas participantes de nossa pesquisa. Uma possível para isso é que a identidade nomeada como “quilombola” é um fato recente, a qual só veio a se concretizar a partir da relação com os outros atores sociais, gerando uma nova possibilidade discursiva de existência (Valentim & Trindade, 2011). Logo, é necessário perscrutar, através de novos estudos, os determinantes socioculturais e políticos que operam na direção oposta à autoafirmação étnico-racial enquanto articulador discursivo capaz de traçar uma interlocução entre corpos e experiências de precarização, como é o caso das mulheres negras rurais.

Apesar dos percalços, a participação política das mulheres tem logrado avanços em várias frentes, tais como: o direito de participar de associações, abrir e gerir a conta bancária da associação, participar de reuniões, viajar para participar de feiras e encontros, contribuir com as lutas sociais, dividir o trabalho doméstico com os homens, além do reconhecimento de sua força de trabalho e maior autonomia financeira (Mendes et al., 2014).

Semelhante ao estudo de Marineide Almeida et al. (2013), nossa pesquisa encontrou fortemente a participação política, enquanto ouvintes e expectadoras, e não enquanto agentes ativos e de lideranças dos movimentos. Concordamos com estes autores que um importante fator que as leva a assumirem esta postura diz da racionalidade privatista e sexista que, ao longo das gerações, impeliu as mulheres a ficarem confinadas ao espaço doméstico. A participação política, nestes termos, pode se tornar algo complicado e decepcionante, se colocada como experiência individual, e não enquanto investimento coletivo. Daí a necessidade de construção de uma ideia de que a participação política se afirme como uma experiência coletiva, como um empreendimento que articule práticas compartilhadas que possam inaugurar novos modos de relação com diversas instâncias presentes em seu cotidiano, tais como família, comunidade e entidades sindicais e espaços institucionais.

5 Agradecimentos

Agradecemos ao CNPQ pelo apoio financeiro à pesquisa, por meio do edital Universal.

6 Referências

Aguiar, Vilenia (2016). Mulheres Rurais, Movimento Social e Participação: reflexões a partir da Marcha das Margaridas 1. Política & Sociedade, 15, 261. https://doi.org/10.5007/2175-7984.2016v15nesp1p261

Almeida, Alfredo (2011). Quilombolas e novas etnias. UEA Edições.

Almeida, Marineide; Soares, Ana; Lima, Josinete & Santos, Marcos (2013). A participação da mulher em organizações sociais rurais na Amazônia: estudo de caso no Arquipélago do Bailique, Estado do Amapá. PRACS: Revista Eletrônica de Humanidades do Curso de Ciências Sociais da UNIFAP, 6(2), 19-31. https://periodicos.unifap.br/index.php/pracs/article/view/801/n6Almeida.pdf

Bargas, Janine & Cardoso, Luís (2015). Cartografia social e organização política das comunidades remanescentes de quilombos de Salvaterra, Marajó, Pará, Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 10(2), 469-488. http://dx.doi.org/10.1590/1981-81222015000200013

Barros, Joana (2014). Movimentos sociais e subjetivação política: anotações sobre sociabilidade política brasileira recente. Revista Em Pauta, 34(12), 91-113. https://doi.org/10.12957/rep.2014.15081

Boni, Valdete (2004). Poder e igualdade: as relações de gênero entre sindicalistas rurais de Chapecó. Revista Estudos Feministas, 12(1), 289-302. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2004000100015

Brito, Maria (2001). Gênero e cidadania: referenciais analíticos. Revista Estudos Feministas9(1), 291-298. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2001000100017

Calheiros, Felipe & Stadtler, Hulda (2010). Identidade étnica e poder: os quilombos nas políticas públicas brasileiras. Revista Katálysis, 13(1), 133-139. http://dx.doi.org/10.1590/S1414-49802010000100016

Costa, Frederico & Prado, Marco (2017). Ações coletivas e comportamento político: produção científica da psicologia social brasileira (1986-2011). Athenea digital, 17(1), 205-230. https://doi.org/10.5565/rev/athenea.1785

Deere, Carmen (2004). Os direitos da mulher à terra e os movimentos sociais rurais na Reforma Agrária Brasileira. Revista Estudos Feministas, 12(1), 175-204. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2004000100010

Duarte, Emmy (2011). Uma análise das relações de gênero e classe o papel diferenciado do sindicalismo rural em Alagoa Grande - PB. Revista Pegada, 12(2), 125-148. https://doi.org/10.33026/peg.v12i2.931

Favareto, Arilson (2006). Agricultores, trabalhadores: Os trinta anos do novo sindicalismo rural no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 21(62), 27-44. https://doi.org/10.1590/S0102-69092006000300002

Figueiredo, Ângela (2018). Perspectivas e contribuições das organizações de mulheres negras e feministas negras contra o racismo e o sexismo na sociedade brasileira. Revista Direito e Práxis9(2), 1080-1099. https://doi.org/10.1590/2179-8966/2018/33942

Fleury, Sonia (2014). Educação Popular e questões de poder. Interface: Comunicação Saúde Educação, 18(51), 1489-1491. https://doi.org/10.1590/1807-57622013.0607

Furtado, Marcella; Pedroza, Regina & Alves, Cândida (2014). Cultura, identidade e subjetividade quilombola: uma leitura a partir da psicologia cultural. Psicologia & Sociedade, 26(1), 106-115. https://doi.org/10.1590/S0102-71822014000100012

Gomes, Rita Maciazeki; Nogueira, Conceição & Toneli, Maria (2016). Mulheres em contextos rurais: um mapeamento sobre gênero e ruralidade. Psicologia & Sociedade, 28(1), 115-124. https://doi.org/10.1590/1807-03102015v28n1p115

Gomes, Rita Maciazeki; Nogueira, Conceição; Vazquez, Claudia & Toneli, Maria (2016). Participação política e subjetividade - Narrativas de vida de trabalhadoras rurais do sul do Brasil. Psico (Porto Alegre), 47(2), 148-158. http://dx.doi.org/10.15448/1980-8623.2016.2.21933

Hanisch, Carol (1969). The personal is political [site]. http://carolhanisch.org/CHwritings/PIP.html

Lacerda, Roberto & Silva, Gicélia (2016). Reterritorialização, conflitos ambientais e saúde em comunidades quilombolas de Sergipe. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), 8(18), 239-254. http://abpnrevista.org.br/revista/index.php/revistaabpn1/article/view/50

Marin, Rosa & Castro, Edna (1999). Mobilização Política de Comunidades Negras Rurais. Cadernos NAEA, 2(2), 73-106. Recuperado de http://repositorio.ufpa.br/jspui/bitstream/2011/3131/1/Artigo_MobilizacaoPoliticaComunidades.pdf

Marques, Angela & Freitas, Viviane (2017). Gênero, autonomia e subjetivação política de mulheres negras no Brasil. Líbero, 20(40), 16-28. Recuperado de http://seer.casperlibero.edu.br/index.php/libero/article/view/900/854

Mendes, Maurício; Neves, Sandra; Neves, Ronaldo & Silva, Tânia (2014). A organização das mulheres extrativistas na região sudoeste mato-grossense, Brasil. Revista Estudos Feministas, 22(1), 71-89. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2014000100005

Moraes, Lorena (2017). “Eu escuto o lado bom!” Um estudo sobre mulheres rurais do sertão pernambucano que enfrentam julgamentos e ampliam desejos a partir da participação política. Amazônica - Revista de Antropologia, 8(2), 264-282. http://dx.doi.org/10.18542/amazonica.v8i2.5039

Oliveira, Antonimária & Leite, Jáder (2016). Produção de sentidos sobre a militância política de mulheres vinculadas ao MST. Revista Subjetividades, 16(1), 81-190. http://dx.doi.org/10.5020/23590777.16.1.181-190

Paulilo, Maria (2016). Mulheres rurais: quatro décadas de diálogo. Ed. da UFSC.

Picolotto, Everton L. (2018). Pluralidade sindical no campo? Agricultores familiares e assalariados rurais em um cenário de disputas. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, 104, 201-238. https://doi.org/10.1590/0102-201238/104

Rago, Margareth (2019). “Estar na hora do mundo”: subjetividade e política em Foucault e nos feminismos. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 23, e180515. https://doi.org/10.1590/interface.180515

Ramos, Daniela P. (2015). A família e a maternidade como referências para pensar a política. Revista Brasileira de Ciência Política, 16, 87-120. https://doi.org/10.1590/0103-335220151605

Salvagni, Janaína, & Canabarro, Julice (2015). Mulheres líderes: as desigualdades de gênero, carreira e família nas organizações de trabalho. GeSec - Revista de Gestão e Secretariado, 6(2), 88-110. https://doi.org/10.7769/gesec.v6i2.347

Salvaro, Giovana; Lago, Mara & Wolff, Cristina (2014). Limites e possibilidades da militância política em um movimento social rural de mulheres. Revista Estudos Feministas, 22(1), 51-70. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2014000100004

Santos, Eumara (2019). Ser negro na América Latina: sobre identidades plurais e dinâmicas dos afrodescendentes. Revista Fórum Identidades, 0(1), 45-59. https://seer.ufs.br/index.php/forumidentidades/article/view/11581/8792

Spivak, Gayatri (2010). Pode o subalterno falar? Editora UFMG.

Valentim, Renata & Trindade, Zeidi (2011). Modernidade e comunidades tradicionais: memória, identidade e transmissão em território quilombola. Revista Psicologia Política, 11(22), 295-308. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-549X2011000200008&lng=pt&tlng=pt.

Weschenfelder, Viviane & Silva, Mozart (2018). A cor da mestiçagem: o pardo e a produção de subjetividades negras no Brasil contemporâneo. Análise Social, 227, 308-330. http://dx.doi.org/10.31447/AS00032573.2018227.03