Luzes e sombras sobre as tradições: a Escola cubana de balé clássico

Lights and shadows on traditions: The Cuban School of Classical Ballet

  • Deysi Emilia García-Rodríguez
  • Andrea Vieira Zanella
Apresentamos os resultados de uma pesquisa que teve por objetivo analisar algumas das tensões entre variadas vozes sociais que ecoam e é possível auscultar nos corpos que (se) constituem (n)o balé clássico em Cuba. Foram realizadas entrevistas com o historiador do Ballet Nacional de Cuba e com bailarinas/os que atuam em Cuba. Somaram-se a esse material entrevistas publicadas em livros, jornais, revistas digitais ou impressas, vídeos e programas de televisão. As tensões entre gênero e tradição foram sendo evidenciadas no decorrer da pesquisa e as análises possibilitaram constatar que a tradição na Escuela Cubana de Ballet é uma condição complexa, paradoxal, produtora de sentidos, alguns dos quais configurados como porta-vozes de valores instituintes dos corpos dos/as bailarinos/as em relação ao gênero, em seus valores e condições hegemônicos. Visibilizam-se no balé as suas tradições, os sentidos de ser homem e mulher instituídos em tempos históricos, sociais e culturais.
    Palavras chave:
  • Tensões
  • Balé clássico
  • Cuba
  • Tradição
  • Gênero
We present results of research that aimed to analyze the tensions between the various social voices that echo and can be heard in the bodies that make up classical ballet in Cuba. Interviews were conducted with the historian of the National Ballet of Cuba and with ballerinas performing in Cuba. Interviews published in books, newspapers, digital or print magazines, videos, and television programs were attached to this material. The tensions between gender and tradition were noted throughout the research. The analyses on the topic made it possible to verify that the tradition in the Cuban School of Ballet is a complex and paradoxical condition. It produces meanings, some of which are configured as spokesmen of the instituting values of the dancers’ bodies to gender, its values, and hegemonic conditions. The traditions, the meanings of being male and female established in historical, social, and cultural times are visible in the ballet.
    Keywords:
  • Tensions
  • Classical Ballet
  • Cuba
  • Tradition
  • Gender

1 Introdução

Deambulando por diferentes tempos e espaços da dança clássica, buscamos neste artigo analisar algumas das tensões1 entre variadas vozes sociais que ecoam e é possível auscultar nos corpos que (se) constituem (n)o balé clássico em Cuba. A escolha pelo balé como foco de estudos justifica-se pela sua importância no contexto cubano, bem como pelo seu interesse no diálogo da psicologia com a arte2.

A partir das ideias de Mikhail Bakhtin (1963/2013), compreendemos as vozes sociais como ideias, como concepções do mundo que se expressam em relações dialógicas, compreendidas como relações de força entre variadas vozes, de tempos e espaços diversos. As vozes sociais participam ativa e responsavelmente no devir, com independência, coexistindo com outras vozes, gerando sentidos diversos numa relação de respondibilidades. Essas vozes podem se expressar de diversas maneiras, compondo um complexo tecido: algumas são ouvidas com maior força, outras não se ouvem propriamente, permanecem latentes; outras ainda não são pronunciadas, soam como ruídos que visam ao futuro, que esperam os tempos e os espaços sociais, culturais, históricos, propícios para (re)nascer.

O contato inicial com esse tecido nos conduziu a diálogos que permitiram identificar questões pouco desenvolvidas no contexto das pesquisas psicológicas em Cuba, mas especificamente as que dialogam com as artes. A respeito, Alicia Reyes (2008) apresenta uma análise histórica das pesquisas desenvolvidas em Havana destacando que as pesquisas em psicologia relacionadas com a arte começaram no ano de 1980. Desde então identificou 99 pesquisas com esse foco, as quais representam 2,9% do total de 3453 estudos registrados no acervo da Facultad de Psicología da Universidad de La Habana. Em seu trabalho, Alicia Reyes (2008) cria dois grupos para classificar esses projetos: aqueles em que a psicologia usa a arte3 (50 pesquisas ao total), e aqueles classificados como psicologia da arte profissional4 (49 trabalhos, 46 deles realizados como trabalhos de conclusão de curso, e três de pós-graduação). As descobertas e inquietações que emergiram do encontro com essas pesquisas conformaram o pano de fundo que nos levou à construção de caminhos investigativos na área da Psicologia.

Os ecos que chamaram nossa atenção voltam-se ao balé clássico em Cuba e à sua constituição como a Escuela Cubana de Ballet, (re)criação descrita de formas diversas. Uma de suas vozes, com projeção internacional, perambula por prestigiados cenários do mundo das artes: trata-se do dançarino Carlos Acosta, o qual aponta que

La escuela cubana es muy respetada. Cuando contratan a un cubano, es por su talento, pero también por su técnica. El bailarín nuestro es diferente. Nos distingue eso mismo: la cubanía. En los giros, en el desplazamiento por el escenario. Se ve fuerte, de carácter, expresivo. La tropicalidad de sus movimientos, la alegría, la extroversión. Hay mucho calor humano en los bailarines nuestros. Contagian a los otros y el resultado es excelente. (Acosta, 2009, párr. 3)

Destaca Acosta que uma escola de balé, e neste caso a Escuela Cubana de Ballet5, abrange não só um estilo, ou a estética que a distingue; produzem-se relações com os modos de criar, de dançar, de afetar os corpos dos que dançam que a singularizam, revelando as características de suas cubanidades.

A partir dessa compreensão, neste trabalho tecemos diálogos com diversos autores que têm, a cada momento, protagonismos diferentes no que se refere à construção dessa história. Cada voz que participa do diálogo estabelece, entretecida com as vozes das autoras, uma multidão de relações que engravidam de sentidos cada análise, (re)criando conhecimentos, experiências e constituindo outros nesses diálogos. Além dessas vozes, é necessário destacar a existência de vozes outras que perambulam pela obra toda: tratam-se das discussões de Lev Vigotsky e Mikhail Bakhtin. São essas vozes referenciais epistemológicos que acompanham o texto, e suas compreensões da dialética e dialogia, as respostas/inquietações que se apresentam como abertura a um universo de possíveis.

As perspectivas desses autores assumem como princípio axiológico as relações como foco através da palavra comprometida, da respondibilidade dos participantes nessas relações. A visão de dialogia (Bakhtin, 1963/2013; 1979/1997; 2009; Bakhtin & Volochinov, 1977/1986), como visão do mundo, perpassa de modo interessante as análises do discurso que se fazem a partir dela, o que abre caminhos a uma filosofia que visa focar as produções de sentidos para além do diretamente expressado. A dialética, no caso de Lev Vigotsky (1932/1987), pretende arquitetar uma teoria psicológica geral a partir de um pensamento filosófico que defende o valor do movimento, do processo, do histórico nas explicações da constituição subjetiva, da compreensão dos processos psicológicos como inexoravelmente sociais e culturais. Nesse sentido, propomos olhar as linhas porosas6 que abrangem a compreensão da dialogia na obra Mikhail Bakhtin e seu Círculo7, e a tradução que faz Lev Vigotsky dos enunciados8 da Psicologia através dos enunciados da dialética.

De tal modo, ao olhar a compreensão de ambas as posições, observam-se devires, processos, movimentos. Também se destaca a questão da alteridade constitutiva do sujeito, da impossibilidade da existência e desenvolvimento de cada um a não ser na complexa relação com muitos outros, presentes e ausentes. Tanto para um quanto para o outro autor, o desenvolvimento, o devir, o processo, seja qual for, está prenhe de tensões ou contradições que vão marcando os seus ritmos. Ambas as posições contêm as vozes, os vestígios, as mediações das condições ou as qualidades de outros tempos, num processo de (des)continuidades, de (des)(re)organizações que visa à transformação, à criação, ao futuro. Assim, nas vozes de ambos os autores, existe uma dialética povoada de múltiplas vozes que dialogam na polifonia dos tempos e dos espaços, abrindo um leque de possíveis a seus movimentos. Essa compreensão permitiu abrir o diálogo, provocar novos rumos e (re)desenhar outros tecidos.

Esses rumos estão marcados por atitudes e posições diante da pesquisa que visam uma apertura à aventura, ao deixar-se surpreender, pois não existe nada predeterminado, nada que mantenha rumos fixos quanto o que baliza o pesquisar é o encontro com um outro. Segundo Andréa Zanella (2017, p. 24),

A via de mão única que se produz com a adoção restrita do caminho previamente delimitado, com a sua prescrição, oblitera possíveis que pode levar a pesquisadora e o pesquisador a um encontro outro, a alguma diferença, alguma surpresa, quiçá potente. Não há como saber se não nos abrimos para a aventura em relação ao desconhecido. Não há como saber se não nos dispomos a correr riscos, a experimentar, a estar com o campo, com as pessoas, com a cidade.

Essa é a posição que pretendemos levar neste texto, pois só andando com a cidade, com as pessoas, com o campo, com as experiências própria e alheias, em dialogia, se (re)criam os conhecimentos, produzem-se sentidos outros, são abertas fendas que nos levam a outros possíveis. A inquietação, o estranhamento, a necessidade de auscultar, nos vestígios dos tempos, os ecos das vozes que povoaram cada espaço, a necessidade de descobrir os (in)visíveis que ficaram detrás de um caminho planejado, guiado, dirigido a um determinado objetivo, orientaram, pois, a pesquisa que aqui apresentamos.

Consideramos necessário discutir uma outra posição que direcionou a pesquisa, aquela que abrange a possibilidade de “enquadrar”, com “atos de delimitações” que são potencialmente interpretativos (Butler, 2009/2015). A compreensão de enquadramento aparece nas relações dialógicas com as vozes de Judith Butler (2009/2015). A autora fala que o ato de enquadrar é sempre um ato interpretativo. Tem também uma determinada intencionalidade, mesmo que o olho que enquadra, às vezes, não tenha certeza dos possíveis que abre o enquadramento produzido. Enquadrar, segundo pensamos, perpassa um contexto determinado, um tempo, uma história, as relações sociais, culturais. Vai além, e abraça o campo da (re)significação, da atualização, da interrogação, das imagens e seus negativos, das relações de sentidos que se constituem em dialogia com as vozes de outros, as vozes oficiais e marginais, as vozes alheias e as próprias. Assim,

Podemos pensar no enquadramento, então, como algo ativo, que tanto descarta como mostra, e que faz as duas coisas ao mesmo tempo, em silêncio, sem nenhum sinal visível da operação. O que surge nessas condições é um espectador que supõe estar em uma relação visual imediata (e incontestável) com a realidade. (Butler, 2009/2015, p. 112)

Ao mesmo tempo, Judith Butler (2009/2015) reconhece uma função delimitadora do enquadramento, mediada pelas normas políticas e sociais que colocam em foco imagens admissíveis no domínio das representabilidades, escondendo imagens outras. Mas o que é excluído fica criptografado no próprio enquadramento, no limiar9 do que se expõe. Sendo assim, o enquadramento, segundo pensamos, continua abrindo um leque de interpretações, desta vez, a partir das (in)visibilidades desvendadas, de suas porosidades.

Com as orientações anteriormente apresentadas, fomos tecendo uma montagem, a partir de imagens e acontecimentos que comportam as relações espaço-temporais entre olhares diversos e vozes múltiplas, em diálogo com as nossas próprias vozes. Montagens que seguem os rumos de Walter Benjamin (1982/2005), ao defender a noção de ruptura e descontinuidade na compreensão da história. O autor critica tanto as perspectivas evolutivas de história, bem como as compreensões da dialética que conduzem ao estabelecimento de relações dicotômicas posto que sublinham, por um lado, o bom, o positivo, o promissório, e por outro, o inútil, o atrasado, o insignificante de uma determinada época, contexto, área específica. Afirma que se tratam de dicotomias que instauram distâncias e marcam destaques a uns em detrimento de outros.

Perante a linearidade e a dicotomia, propõe uma outra maneira de abordar os estudos históricos: o princípio da montagem (Benjamin, 1982/2005). Usada fundamentalmente no cinema, a montagem (re)nasce na literatura, sendo utilizado material de toda ordem. Documentos que podem parecer isolados, heterogêneos, anacrônicos, justapõem-se dialogando, coexistindo de modo que, nesse fluxo, aparecem seus movimentos e (re)nascem novos sentidos. Sobre a montagem como método, esclarece:

No tengo nada que decir. Sólo que mostrar. No hurtaré nada valioso, ni me apropiaré de ninguna formulación profunda. Pero los harapos, los desechos, esos no los quiero inventariar, sino dejarles alcanzar su derecho de la única manera posible: empleándolos. (Benjamin, 1982/2005, p. 462)

Assim sendo, a montagem permite auscultar as relações das condições que se misturam e dialogam com múltiplos acontecimentos, numa aparente (des)(re)organização dos tempos, num aparente desvio dos caminhos, mostrando as potências das trilhas, dos becos, das fendas dos tempos e espaços, na produção de conhecimentos. É necessária, para tanto, outra articulação dialética, para a qual tem uma grande importância

Volver a efectuar una división en esta parte negativa y excluida de antemano, de tal modo que con desplazar el ángulo de visión (¡pero no la escala de medida!) salga de nuevo a la luz del día, también aquí, algo positivo y distinto a lo anteriormente señalado. Y así in infinitum, hasta que, en una apocatástasis de la historia, todo el pasado haya sido llevado al presente. (Benjamin, 1982/2005, pp. 461-462, itálicos no original)

Ao auscultar as vozes das sombras, abre-se um imenso leque de possíveis para quem dialogue com elas, fica exposto um mundo (des)conhecido, antes silenciado, (in)visibilizado, provocando uma parada para olhar ou escutar outras vozes que convidam à reflexão.

A montagem geralmente acontece devagar, pois o/a montador/a escolhe um a um, numa relação cuidadosa, os fios que ligam cada uma das peças a serem montadas num desenho prenhe de e ao mesmo tempo potente produtor de sentidos outros. Isso se dá fundamentado nos diálogos com as vozes que o habitam e as que vão emergindo a partir de diferentes condições espaço-temporais, tentando descobrir as tensões ‘ocultas’ nessas relações contextualizadas, situadas, para abrir outros possíveis na compreensão e produção de conhecimentos. É por isso que os encontros com as vozes, os documentos, as imagens, as temporalidades diversas que se mesclam, os acontecimentos que se tecem, não são fortuitos, nem arbitrários, pois o princípio da montagem permite “levantar las grandes construcciones con los elementos constructivos más pequeños, confeccionados con un perfil neto y cortante. Descubrir entonces en el análisis del pequeño momento singular, el cristal del acontecer total” (Benjamin, 1982/2005, p. 463).

A escolha por fazer uma montagem das condições de existência da Escuela Cubana de Ballet e desvendar as tensões que nela são possíveis auscultar foi movida pelos paradoxos das dicotomias: os brilhos que a singularizam, as luzes, a beleza que cuida e conserva, e o desconforto que provoca o que não se expõe, os silêncios que a circundam.

2 Os caminhos da pesquisa

Os enunciados aos quais este trabalho se dedica aparecem num devir dialógico, de diferentes lugares: provém de acontecimentos do existir das/os bailarinas/os, nas suas relações com a vida e com/na arte; dos que habitam os espaços da dança; dos que foram produzidos pelos diversos enquadramentos que se mostram, mas também os acontecimentos da própria pesquisa e as pesquisadoras.

Nessa caminhada, escolhemos não evidenciar as pessoas singulares, nem aprofundar nas trajetórias de um/a ou outro/a bailarino/a, nem destacar uns de outros. Todos os corpos falam numa multidão de vozes, numa relação dialógica marcada pelas tensões que os tempos impõem a seu existir no contexto da Escuela Cubana de Ballet. Decidimos juntar peças isoladas em histórias, momentos diversos, tempos diferentes, espaços múltiplos, e abrir os diálogos a novos possíveis.

Desta forma, misturam-se as falas obtidas nas entrevistas realizadas com o historiador do Ballet Nacional de Cuba10 e com as/os bailarinas/os11 a outras falas, recolhidas de entrevistas publicadas em livros, jornais, revistas digitais ou impressas, vídeos e programas de televisão. Tratam-se, essas falas outras, de documentos públicos que, numa rede de inter(relações), permitiram dialogar com espaços e tempos diversos. Também se mesclaram a essas falas as observações que acompanharam cada uns dos encontros com a dança e as/os suas/seus protagonistas. Essas observações caracterizaram-se como relações porosas, relações cunhadas pela condição de espectadoras que pesquisam. Espectadoras do Ballet Nacional de Cuba, no acontecer da entrevista com seu historiador, e espectadoras também do espaço que habita o Ballet de Cámara da cidade de Holguín, cidade natal da autora Desyi García-Rodríguez. Ao longo de um mês, a pesquisadora assistiu os treinos e os ensaios das/os bailarinas/os, acompanhando seus passos pelo espaço, em relações de proximidades e afastamentos que permitiram a realização das entrevistas, problematizadas e estruturadas metodologicamente como conversas, a partir dessas relações.

A entrevista com o historiador do Ballet Nacional foi viabilizada com a mediação do então vice-diretor de Artes escénicas12. Com as/os bailarinas/os da companhia, o caminho foi outro. Após solicitado o acesso à diretora da Companhia, participamos alguns dias dos treinos, dos ensaios, imergimos no cotidiano do espaço que habitam, à espera de seus tempos. Observamos cada um dos movimentos das/os bailarinas/os, detalhando o que consideramos suas maiores virtudes, seus melhores desempenhos, e aqueles que foram retificados pelas maîtres, desde a posição de espectadoras, aliás, posição privilegiada pelas suas potências.

Uma dessas potências tem a ver com a possibilidade de estabelecer um diálogo diferente com as/os bailarinas/os. Começamos a fazer parte, mesmo que de passagem, de seu espaço. E, ao mesmo tempo, seus corpos, tempos e movimentos iam se constituindo no nosso corpo, provocando questões. Com esse movimento, iniciamos os diálogos com os corpos que dançam, através de conversas/entrevistas, nas quais a posição de espectadora quebrou, de certa maneira, as hierarquias que se impõem ao outro/a ao ser questionada/o. Os diálogos fluíram melhor a partir do momento que se incorporaram as observações às conversas.

As/os bailarinas/os explicaram, assentiram, dançaram para exemplificar com seus corpos, aprofundaram no devir desses movimentos, no processo de suas constituições como bailarinas/os. Foi assim que elas/es surgiram, sem serem questionadas/os sobre si, através das tensões dos espaços – geográficos, culturais, sociais, econômicos – e dos tempos que habitam seus corpos. Tensões que abrangem os domínios dos (in)visíveis, dos desafios, das contradições, dos devires e seus (des)dobramentos. Tornaram-se, nesse processo de (re)construir seus passos pela dança, de narrar dançando, de comunicar seus movimentos, de constituir a si mesmos como inquestionáveis corpos que carregam as cubanidades constitutivas da Escuela Cubana de Ballet. Como afirma Lev Vigotsky (1932/1987, p. 74), “sólo en movimiento el cuerpo muestra lo que es”; só em movimento, os corpos dos/as bailarinos/as visibilizaram os tempos/espaços que os habitam.

Ao nos referirmos a trechos das conversas/entrevistas, optamos por incluir os nomes reais de cada um dos que participaram. A decisão responde, primeiramente, ao consentimento das/os participantes. Todas/os concordaram, nas diferentes conversas/entrevistas, em que fossem gravadas suas falas. Do mesmo modo, aceitaram que seus nomes aparecessem no texto, sob a condição de não gravar ou comentar os trechos que eles determinassem, o que foi respeitado13.

Outro elemento que consideramos para usar os nomes das/os participantes foi, justamente, a necessidade de ser coerente com nossas escolhas metodológicas e orientações epistemológicas. As entrevistas de domínio público que foram trazidas ao diálogo são conversas com primeiras/os bailarinas/os do Ballet Nacional de Cuba, ou outras vozes consideradas relevantes e assim reconhecidas como referentes inquestionáveis no mundo do balé. Suas vozes aparecem identificadas no texto, o que contribui para reafirmar esse lugar de importância. No entanto, as conversas/entrevistas realizadas para a pesquisa trouxeram diálogos com outras/os bailarinas/os, não ouvidos com frequência: tratam-se de artistas que de certo modo ficam nas trevas, ou se movimentando nos ‘limites imaginários’ dos espaços oficiais da dança clássica. Identifica-las, por conseguinte, constitui em opção política que visa tensionar justamente as hierarquias e os lugares instituídos de (des)importância, de (in)visibilidade no cenário do balé cubano.

Enfim, o que se apresenta neste texto são relações espaço-temporais entre os participantes dos diálogos que foram emergindo na densidade dos encontros. A escrita foi tecida ligando fio a fio os documentos que continham as entrevistas realizadas por outros, as imagens, as conversas/entrevistas realizadas por Deysi Gracía-Rodríguez, as observações, os diversos autores com os quais dialogamos no decorrer do desenvolvimento da pesquisa, os acontecimentos econômicos, políticos, religiosos, dentre outros que acompanharam a dança clássica no devir dos tempos, das sociedades, das culturas diversas, dos costumes, expressadas nas tradições e suas particularidades em contextos do balé clássico e mais especificamente da Escuela de Ballet em Cuba. Trata-se, pois, de uma montagem que dialoga, que se movimenta, que interage responsiva e responsavelmente com cada uma de suas partes, de seus (re)cortes.

Nessas interlocuções, aparecem no contexto do balé clássico cubano, modos de fazer consistentes, duradouros, que informam de práticas, de modelos de comportamentos que tem um caráter repetitivo, imitativo, ritualizado, ‘invariável’. Modelos que, por sua vez, regulam, organizam, ordenam as maneiras em que – no caso do balé clássico – as/os bailarinas/os se relacionam. Dialogia de sistemas de símbolos, valores, costumes, normas, que têm a ver com o que se espera, com o que é bem ou mal feito, com sacrifício, consciência, deveres, responsabilidades; são assim condições que verificam e reconhecem as pessoas como parte de um determinado contexto, de um domínio específico, seja na arte ou na vida. Dentre eles, as relações de gênero se constituem como uma das que localizam as/os bailarinas/os nesses contextos e tensionam o que foi instituído como ‘tradição’ no campo do balé clássico e, mais especificamente, do balé em Cuba.

3 O gênero e as tradições

Foram múltiplas as relações que durante a pesquisa falaram de tradições (re)criadas pelos corpos que são produzidos e produzem o balé clássico em Cuba, foram diversas suas expressões, inúmeras as vozes que se fizeram ouvir. Várias das vozes tradicionais ouvidas trouxeram à tona relações de gênero. Enxergar os corpos dos homens que dançam fica no campo das (in)visibilidades, perpetua os não ditos deste tipo de dança: o homem é o partenaire (aquele que acompanha a um outro na atividade que realiza) da bailarina; é aquele que não dança nas pontas dos pés, mas carrega, no seu corpo, o leve peso de outros corpos. (In)visibilidades que vão (re)produzindo em cada dança relações constituidas ao longo dos tempos, sempre em tensões diversas com as culturas e as sociedades, relações de submisão/dominação, relações de poderes que abrangem as multiplicidades de sentidos de ser homem ou mulher num determinado contexto.

Mas, ao mesmo tempo, essas relações expressam sintonias, reciprocidades, que vão (re)produzindo estereótipos. Segundo Oriol Fort (2015), historicamente algumas manifestações da dança se constituem como um reflexo dos papéis que são atribuídos socialmente ao ser homem ou mulher desde o ponto de vista biológico. Isso responde a uma representação dos corpos desde uma lógica patriarcal, com os poderes que são atribuídos social, histórica e culturalmente a uns e outros: força/delicadeza, por exemplo. Desse modo, na dança clássica, se reproduz a noção de que o corpo da mulher precisa ser leve e frágil para ser sustentado no ar, e o corpo do homem precisa ser forte para sustentar esse corpo outro. Relações que perpetuam os lugares sociais atribuídos historicamente a homens e mulheres, em tempos remotos e que perduram no presente. Mas, o que se torna visível e o que é invisível na reprodução desses lugares pelo balé?

Paradoxos interessantes se revelam. O balé clássico é um tipo de dança desempenhada, em seus primórdios, por homens, porém o que ganha destaque atualmente são os corpos femininos. Entre os anos de 1650 e 1750, quase todos os bailarinos eram homens, os quais também interpretavam os papéis de mulher. Nessa época, as mulheres estavam confinadas aos espaços domésticos, como (re)produtoras dos lugares a elas destinados socialmente. Eram mães, boas esposas, o que significava submisão ao homem; eram dotadas dos conhecimentos necessários para ordenar os espaços limitados às paredes do espaço doméstico.

Foi no ano de 1681 que apareceu a figura da mulher em cena. Segundo Roberto Méndez (2000, pp. 24-25), nessa data Mademoiselle La Fontaine14 se apresentou na Academia criada pelo rei Luis XIV dançando El triunfo del amor. Outras bailarinas seguiram sutilmente seus passos, até firmarem presença, atualizando o tradicionalmente estabelecido na história do balé.

Já entre os anos de 1750 e 1830, aparece registrado em documentos um equilíbrio entre a quantidade de homens e mulheres nas companhias de balé. Porém, os movimentos dos corpos eram pensados por homens, pois todos os maîtres e coreógrafos eram homens.

Todos los coreógrafos y Maestros de Ballet desde 1750 hasta 1900, con una o dos excepciones, son invariablemente hombres. Lo son también los críticos, como el imponderable Theófilo Gautier, cuyo machismo raya en el absurdo. Lo son también la mayor parte del público, maridos pequeño-burgueses que arrastran a sus esposas, y en ningún caso a sus hijos. No es sorprendente en cambio que la enorme mayoría de las intérpretes entre 1830 y 1930 fuesen mujeres. Hasta el punto de que en la segunda mitad del siglo XIX la mayoría de los papeles masculinos eran interpretados en travestí por mujeres. (Pérez Soto, 2008, p. 64-65)

Nessas histórias se revelam misturas de papéis, homens e mulheres em relações porosas, homens e mulheres que coexistem, ao mesmo tempo, num corpo travestido. Corpos que vão se reconstruindo nos diversos espaços históricos e culturais. Transformações que acontecem no devir da caminhada pela dança e nos diversos papéis que são interpretados, e fazem dos corpos que dançam um universo de (im)possíveis; corpos que se reinventam, ocultos atrás de mascaras, maquiagens e enfeites. Adornos que possibilitam outros diálogos das/os bailarinas/os com a linguagem das cores, das fantasias. Diálogos onde aparecem relações com outros signos, (re)nascem sentidos que abrangem vozes inimagináveis, anseios, frustrações, realizações.

Segundo aponta Oriol Fort (2015), a historiografia tradicional não visibiliza adequadamente o papel da mulher na dança e seu protagonismo como bailarina ou coreógrafa. O autor comenta que essa posição afeta tanto à mulher quanto ao homem. No caso dos homens, devido ao estigma de feminilidade que rodeia os bailarinos e a uma suposta condição de homossexualidade, de não ‘desempenharem’ os papeis que a sociedade patriarcal e a masculinidade hegemônica lhes impõem.

Foi na primeira metade do século XIX que a mulher ganhou realce na dança clássica como símbolo de delicadeza, de fragilidade. Uma mulher voltada às formas patriarcais de representação, que se torna o centro da interpretação, mas um centro que responde, novamente, aos padrões hegemônicos do ser mulher. É nesse momento que se desloca o papel do bailarino para partenaire. Ou seja, passa a ser aquele que serve como suporte do frágil. Nessas relações se reproduzem os valores sociais atribuidos para um ou outro gênero: o homem protetor, forte, e a mulher frágil, leve, pronta para ser protegida. Tradições também perpetuadas, de modos diversos, em variados tempos históricos, sociais e culturais, como destaca Miguel Cabrera ao falar sobre o lugar do homem no balé atualmente:

El hombre tiene que hacer eso y cargar, y cargar, que la mujer no tiene que cargar, es ella, pero el portal es él, es él quien tiene que cargar, y el que la tiene que colocar en el balance, y siempre tiene el riesgo de cualquier cosa que pase la culpa la carga el varón: me tumbaste el balance, me sacaste de giro, esa es un, un, una competencia siempre entre ellos. (Miguel Cabrera, entrevista pessoal, fevereiro de 2015)

O homem, singular, carregador dos pesos de outros corpos e dos pesos das responsabilidades a ele atribuídas. Individualismos que se revelam, na dança, ligados ao Romantismo nas artes e que vão se constituindo de maneiras diversas nas relações temporais, abrindo fendas de dimensões variadas. Assim, são visibilizadas entre bailarinas e bailarinos relações de poder, na concorrência cotidiana pelas conquistas, pelos espaços, pelos virtuosismos, nas lutas por atingir ideais.

Alicia Alonso15 comenta as relações com alguns de ‘seus partenaires’,

Cada uno tenía algo que dar a su compañera y uno tenía también que enseñarle a su compañero. Estábamos siempre intercambiando.

[…] Bueno, yo he tenido muchos, muchos compañeros… Ígor Youskévitch fue compañero mío durante 10 años en el Ballet Theatre. […] después que hacíamos una función, nos sentábamos y nos poníamos a discutir: esto, lo otro, aquello no salió bien, aquello. Siempre, siempre teníamos discusiones y siempre decía: tu culpa, la culpa…

[…] También tuve a André Eglevsky, un hombre muy fuerte, muy musculoso, muy buen compañero también. Johnny Kriza, que era muy ligerito él, muy del estilo norteamericano, así, de playboy, era más ligero, pero yo no bailé mucho con él, bailé un poquito. Está Erik Bruhn, el danés, que era un príncipe, muy elegante. No, yo he tenido compañeros que cada uno me ha dado algo, y yo he podido, pienso, entregarles algo también de mis conocimientos. (Alonso, 2010, párr. 41)

As relações entre bailarinas e bailarinos cunham os lugares de homens e mulheres. Nos comentários de Alicia Alonso, destacam-se as distinções que são ‘necessárias’ aos homens para desempenhar seu papel, ‘sustentar’ a mulher na dança, mas também nos estereótipos das cotidianidades que se (re)produzem ao dançar: homem forte, musculoso, ágil, elegante; um príncipe. Homem sustentador, homem carregador de corpos, responsabilidades e culpas.

A reprodução das tradições do balé não só estabelece relações com os significados sociais do ser homem ou mulher, como produz efeitos na construção dos corpos de bailarinas e de bailarinos. Numa pesquisa sobre a conduta alimentar desenvolvida no contexto do balé em Cuba, descrevem-se diferenças entre ambos os gêneros na realização dos exercícios físicos, marcados, fundamentalmente, pelas funções que realizam, ainda que para ambos sejam complexos. De tal modo, as bailarinas treinam visando maior equilíbrio e aperfeiçoamento dos movimentos. No caso dos bailarinos, têm de desenvolver maior volume e força muscular para garantir o suporte das bailarinas na maioria dos movimentos (Díaz Sánchez et al., 2010). Homens e mulheres são construídos cotidianamente para exercer suas funções, na dança e na vida.

Neste sentido, Karla Chacón & Raquel Hernández (2016, p. 102) apontam que,

Condicionalmente la danza escénica, en cuanto arena de expresión y manifestación corporal, requiere de una estética de movimientos, expresiones y técnicas corporales que modelan y troquelan el cuerpo de estos varones, y hacen visible, en los indicadores de diferencia de los géneros la confrontación de la masculinidad convencional, asociada a: lo recto frente curvo, lo fuerte frente a lo débil, lo exterior frente a lo exterior, lo público frente a lo privado.

No entanto, ecos anteriores voltam a ser ouvidos no diálogo entre tradições e gênero. Os caminhos retrocedem para indicar algumas fendas, abertas à imagin(ação), e assim, à (re)criação. Afinal, há que se considerar que também se visibilizam no balé relações que tensionam estereótipos: novamente uns e outros atuam como complementos na dança, um aprende com o outro, um ensina alguma coisa ao outro, um não acontece sem o outro, responsiva e responsavelmente.

Outras tensões foram introduzidas pelos homens, no balé. Homens que dirigiram caminhos na dança clássica, como o francês Jean George Noverre (1727-1810), criador de tradições no balé. É uma das figuras destacadas por Roberto Méndez (2000) como um dos grandes teóricos da dança, que também atuou como bailarino e professor de balé. Sua obra principal, “Cartas sobre a Dança”, foi escrita em 1758 e editada no ano de 1760. No texto o autor questiona a superficialidade dos espetáculos e o destaque dos solistas virtuosos, propondo uma volta à natureza, à simplicidade.

Por outro lado, o bailarino italiano Gennaro Magri, que inscreveu seu nome na história do balé em razão de sua destreza e habilidade em cena, bem como pelos papeis cômicos que desempenhava, publicou, no ano de 1779, o “Tratado Teórico-prático de baile”. Para Carlos Pérez Soto (2008), esse texto se constitui como a face oposta das argumentações de Jean George Noverre, pelo fato de defender “una práctica de la danza altamente tecnificada, fundada en técnicas de saltos y giros, en modos de desarrollar la agilidad y la energía, en el uso de la pantomima, es decir, de la expresión corporal completa, no solo basada en el rostro o en los gestos” (Pérez Soto, 2008, p. 58).

Tanto Roberto Méndez (2000) como Margarita Tortajada (2007) ressaltam como figura mais importante no universo do balé o coreógrafo e maître Carlos Blasis (1797-1878) que publicou, em 1824, dialogando com várias disciplinas, o “Tratado elementar teórico e prático da arte e da dança”, texto que constitui a base do treinamento da dança clássica nas academias até a atualidade. Ao destacar seus aportes fundamentais, Roberto Méndez (2000, p. 33) declara que:

Blasis aplicó al cuerpo sus conocimientos de Física para determinar los centros de equilibrio, y los de Fisiología, para adecuar las posiciones del mismo. Halló una fórmula precisa para lograr el balance perfecto del bailarín. Entre sus innovaciones técnicas están: establecer un riguroso sistema de entrenamiento diario, con ejercicios primero en la barra y luego en el centro del salón, dar importancia a la colocación de los brazos en diferentes poses y actitudes para lograr equilibrio y a la vez belleza plástica, llevar al máximo el ángulo de separación de las puntas de los pies hacia fuera (180º), estudiar los giros para hacerlos más exactos y elegantes, fijando una preparación y un modo de terminarlos, y crear una nueva pose danzaria: la attitude16, copiada de la escultura Mercurio de Juan de Bolonia.

Segundo aponta Margarita Tortajada (2007, p. 60), no Tratado de Blasis diferenciavam-se claramente a dança masculina e a feminina, pois “los varones debían ser vigorosos y alcanzar ejecuciones maestras, y las mujeres debían se graciosas y mostrar una voluptuosidad ’decente’”. O corpo da mulher era colocado numa complexa relação entre o público e o privado, indicando uma exibição de erotismo que não transgredisse as normas e os bons costumes; ao homem, por sua vez, cabia a demonstração do poder masculino, social e culturalmente imposto.

O sistema apressentado pelo maître Blasis aperfeiçoava a técnica, uma vez que impunha ao balé clássico rumos diferentes dos estabelecidos nas reformas de Noverre, fomentando novamente o realçe ao individualismo das/os bailarinas/os. Se atualizavam, assim, as tensões dos corpos e outras negações do próprio corpo das/os bailarinas/os. Essas novas exigencias pautadas pelos maîtres movimentaram os dominios das tradições, porém preservando valores patriarcais hegemônicos.

Margarita Tortajada (2007) destaca o papel revolucionário do Balé Russo, fundamentalmente de seus bailarinos e coreógrafos Vaslav Nijinski (1889-1950) e Adolph Bolm (1884-1951), os que foram, segundo a autora, figuras importantes para introduzir a dança masculina no balé e quebrar as posições conservadoras de gênero e a sexualidade. Suas obras desafiaram os estereótipos, valoraram os papéis transgressores impondo fissuras às normas heterossexuais masculinas, desafiando a tradição no balé.

Esse caminho foi também percorrido pela primeira coreógrafa da Companhia de Balé Russo, segundo aponta a autora. Bronislava Nijinska (1891-1972) questionou, com suas coreografias, as convenções de gênero no balé, colocou as mulheres como tema central, visibilizando outras problemáticas; o símbolo das sapatilhas de ponta mudou para símbolo de violência matrimonial ao representar facas; a coreógrafa mostrou relações lésbicas e satirizou o papel das bailarinas, dançando travestida. Apesar da importância de sua contribuição, sua passagem pela dança tem sido pouco reconhecida e objeto de críticas carregados de estereótipos de gênero.

Com a experiência no Balé Russo de Montecarlo, Alberto Alonso, bailarino e coreógrafo do balé cubano, tentou desenvolver em suas obras o espírito revolucionário herdado. A partir desse momento, suas obras destacaram-se por apresentar um amálgama de textos, música e ilustrações nas quais apareceram as vozes de artistas cubanos junto aos clássicos do balé, mostrando tanto a originalidade de Alberto Alonso quanto o seu esforço por conseguir uma arte com distinção nacional, onde representava acontecimentos que afligiam uma nação em efervescência. Este cenário constituiu um importante antecedente para a criação da obra Antes del Alba que, segundo Roberto Méndez (2000), provocou um escândalo na época, ao encenar a miséria, a angústia e alienação da sociedade cubana, mas também a música popular produzida em seus espaços marginais (a rumba), permanecendo como uma obra típica da identidade nacional. Foi dançada, no ano de 1947, por Alicia Alonso, que carregou nas pontas de suas sapatilhas os desafios das tradições do balé e suas relações, bem como as tensionou ativamente.

No universo do balé clássico são geralmente os homens, coreógrafos, que pensam e sonham com movimentos e corpos alheios, num turbilhão de sentidos (in)visiveis. Quiçá um desses sonhos seja disciplinar e submeter os corpos femininos das bailarinas ao ‘privilégio’ de dançar na ponta dos pés, tradição que permanece de certo modo inabalável ao longo do tempo. Trata-se de prática que exige, além de uma postura determinada, a deformação dos membros inferiores, que começa na infância e provoca dor ao longo da vida. Dançar nas pontas é uma prática complexa, paradoxal, onde se mesclam dor e prazer, segurança e insegurança, forças e medos:

Pero el que quiere llegar a algo tiene que trabajar mucho con su cuerpo, y eso implica sacrificar su tiempo libre, implica dolor. El mismo pararse en puntas; hay quien toda su vida tiene que trabajar duro para bailar en puntas porque tiene menos resistencia al dolor, porque tiene menos equilibrio, en fin. Hay quien logra tener cayos pronto y duele menos, pero otras simpre tienen ampollas, y sangran constantemente, se parten las uñas, se encarnan. No es fácil pararse y bailar en puntas, sin embargo, si no lo hacen, y lo hacen bien, no pueden ser bailarinas, porque las bailarinas tienen que subirse a las puntas, eso siempre duele, y tienes que seguir (Rosario Arencibia, entrevista pessoal, novembro de 2015).

A opinião de uma das bailarinas entrevistadas pela pesquisadora não é diferente:

Cuando empezamos a usar las puntas era tanto el dolor en los pies que no podía aguantar [...] llegaba a mi casa con ampollas en los pies que no se curaban nunca, y teníamos, las bailarinas, que inventarnos protectores para poder seguir [...] un día yo estaba bailando y no me di cuenta que estaba sangrando por los pies (Kenia Cabrera, entrevista pessoal, outobro de 2015).

Um bailarino entrevistado, que reconhece o sofrimento das bailarinas, comenta:

El mismo trabajo con las puntas, el trabajo con las puntas es muy, muy, muy difícil […] Aprender a bailar en puntas es muy difícil, pero más difícil es lo que viene detrás, que es aprender a bailar con los pies llenos de ampollas, con los pies sangrando, y tener una sonrisa en los labios, bella. Por eso creo que el trabajo de la bailarina es más difícil, es más exigente. Ese trabajo de puntas es muy, muy, muy difícil porque tienes que trabajar con el peso de todo tu cuerpo, sobre un pie, sobre los dedos, y, aparte de eso, tener los dedos llenos de ampollas, sangrando.

[…] Para la bailarina clásica es una cosa de las más exigentes, de las más importantes, es una exigencia. Una bailarina clásica que no se pare en puntas, no es una bailarina clásica […] es obligatorio para una bailarina clásica pararse en puntas, y tener buenas puntas […] tener dominio del trabajo en puntas. Y es un trabajo muy difícil de lograr. (Daniel Estrada, entrevista pessoal, outrubro de 2015)

‘Ser bailarinas’. Será somente esse o sentido que abraça o dominio das pontas? Dominar as pontas, no balé, é um devir de possíveis: de domínios sobre um espaço, um corpo, outros corpos. Possíveis abertos via lutas das mulheres que se atualizam a cada día, nos treinos, nos ensaios, nos seus cuidados pessoais. Lutas marcadas por sacrifícios e dores, que configuram uma relação (in)tensa com a dança. Lutas pelo domínio que se institui como símbolo no balé clássico e nas imagens que dele se tem. Símbolo que marca os corpos com feridas (in)visíveis, corpos que nessas relações com as pontas nunca voltam a ser os mesmos. Símbolo que é valorado pelos bailarinos como um dos mais admiráveis desde o ponto de vista físico.

Será que dominar as pontas também abrange os múltiplos sentidos de ser mulher? E quais podem ser os sentidos de ser homem na dança clássica? Uma possível discussão sobre essas questões tem a ver com os preconceitos de ‘ser homem’ e bailarino. Estereótipos culturalmente construídos que criam um hiato entre ‘ser homem’ – aquele padrão hegemônico historicamente construído – e a prática da dança clássica, que marca as trajetórias dos que por ela se interessam. Quer dizer, suas vidas só podem ser compreendidas nas relações que estabelecem e que fazem suas trajetórias expressarem “as vozes dos outros, as vozes de outros tempos, mas as próprias vozes (re)vividas, (re)significadas, oferecendo a possibilidade aos sujeitos de novas aberturas, de opções outras” (Cordovés-Santiesteban, 2017, p. 315), mas também seus limites. Ainda salienta o autor que as trajetórias são construídas em relações de poder, o que pode fazer com que os limites sejam mais marcantes em determinados momentos.

Assim, a caminhada dos homens pelo balé é difícil, suas trajetórias são marcadas por tensões, algumas delas superadas, outras intensificadas. Trajetórias que mostram relações com culturas, projetos, poderes e (des)tempos17. Alguns depoimentos nos permitem compreender esse processo:

Comencé a los 18 años [...] yo no estudié por problemas de mi padre [...] él no aceptaba que un hombre pudiera ser un bailarín, decía que todos eran homosexuales. Me limitó a los 8 años, teniendo yo mi matrícula y todo en la Escuela de Arte.

[...] Lo que me gustaba era el ballet clásico, lo que me gusta [...] lo único que ya la edad me limita [...] hoy tengo evaluación de corifeo18 (Rafael Martínez, entrevista pessoal, outubro de 2015).

[…] Y mi papá, imagínese usted, bailarín. Los padres, sabe cómo son ‘eso es para… muchacho, después se hacen pájaros, se hacen gays… Mi mamá fajá con él, pero bueno, empecé, después ya me gustó y seguí la carrera. (Daniel Estrada, entrevista realizada em 12/10/2015)

[…] Amaury Pérez: ¿Tu padre no tenía ningún prejuicio porque tú bailaras Ballet Clásico?

Carlos Acosta: No, al contrario, por eso es que mi historia es muy bonita. Porque los hombres lo que quieren, cuando tienen un hijo, es que sea pelotero o futbolista, que era lo que yo quería ser. El fútbol era mi pasión. Pero, ¿ballet? ¿Un camionero? Cuando él me dijo: “ballet”, yo le respondí: “¿se come eso?” No tenía idea de qué era, y creo que él tampoco. Porque yo lo que hacía era breakdance. “Si te gusta bailar” -me dijo- “puedes ir a la Escuela de Ballet”, en L y 19, en El Vedado. Y por ahí fue que yo empecé en el Ballet. (Acosta, 2010, párr. 15)

Nessas relações, as trajetórias dos que pretendem dançar compreendem muitas feridas. Trazem marcas dos preconceitos, das diferenças, das discriminações, das exclusões. Marcas que vão conformando maneiras de se relacionar com os ditos sociais. Lutas pessoais, metas a serem alcançadas, oposições, submissões, sofrimentos. Trajetórias de bailarinos no contexto do balé clássico, ligadas às heranças das construções que, sobre os gêneros, constituem as suas tradições. Masculinidade e feminidade no singular, enquadradas pela lógica patriarcal. Papéis para homens e mulheres na arte, no balé clássico, (re)produtores do cotidiano. Idealizações ‘belas’ do dever ser.

Karla Chacón & Raquel Hernández (2016) destacam que o estereotipado como feminino, a dança clássica, impõe ao corpo masculino maneiras de se relacionar que visibilizam um paradoxo interessante, ligado às formas em que expressam a masculinidade/feminidade nela abraçadas. Desse modo, o corpo se constitui como a principal ferramenta, como o terreno de lutas que (des)coloca os/as bailarinos/as, contribuindo para que continuem ou confrontem suas relações com as dominações patriarcais. Assim, “en el hacer de la danza, aprenden a resignificar-se y reinterpretar-se corporalmente con esa construcción cultural, a negarla, a aceptarla o discutirla desde el cuerpo” (p. 103).

Essas relações vão sendo transmitidas em cada dança e se constituem em signos culturais, mediações semióticas que são condição de criações subjetivas diversas. No caso do balé, especificamente, vem a constituir signos que estruturam padrões do que é ser mulher, ser homem, bem como os papeis que correspondem a cada um deles, os modelos a imitar segundo os contextos, as épocas, as culturas, os deveres que se ocultam detrás dos véus da beleza.

São, desse modo, essas relações, mediações semióticas já tecidas nos percursos do balé que emergem nas coreografias e nos corpos de seus protagonistas. Caminhos de respondibilidades, de ativismo, de submissões, de lutas de poder nas relações entre bailarinas e bailarinos; entre as/os bailarinas/os com a dança clássica, com os estilos próprios e alheios; com os tempos e seus ‘deveres’, mas também, com os (des)tempos. Tensões que vão constituindo os sujeitos e suas relações, num tempo nomeado de tradição.

As relações perpassadas pelas questões de gênero invadem outros espaços e tempos e transparecem nos próprios enredos que se apresentam no balé clássico, possibilitando maneiras diversas de olhar as fendas dos contextos sociais e culturais. As histórias que invadem os cenários estão, segundo Carlos Pérez Soto (2008), marcadas pelo machismo caraterístico do Romantismo. Em decorrência, as representações da mulher são marcadas por dicotomias: anjo/diabo, bem/mal, tradição/desarmonia. Os homens ficam impunes, e são pouco representadas as mães e irmãs, talvez pelo papel social que a elas correspondia no interior dos espaços domésticos. Do mesmo modo, Margarita Tortajada (2007) refere que os enredos do balé reforçavam os valores aristocráticos e manobravam os estereótipos da mulher criados no Romantismo, como é o caso do bem e o mal representado por Odette e Odile, no clássico Lago dos Cisnes.

Essas relações expostas no Romantismo constituíram-se como tradicionais no contexto do balé e marcam, segundo Carlos Pérez Soto (2008), também as maneiras de enxergar os estilos das bailarinas:

Estas dicotomías simples y simplonas se repiten una y otra vez hasta convertirse en dos modelos de bailarinas, a las que la escritura curiosamente cursi de Gautier19 llama la “bailarina cristiana” (María Taglioni), elevada (a pesar de que medía apenas un metro y cuarenta y cinco), espiritual, hábil en los saltos y la técnica de puntas, y la “bailarina pagana” (Fanny Elssler), apasionada, un poco más fornida, experta en giros y ondulaciones de brazos. Una dualidad sorprendente y curiosa que los balletómanos suelen distinguir aun hoy: Legnani y Pavlova, Makarova y Ulanova, Plisetskaya y Fontayn. A las que habría que agregar quizás a la sólida Susane Farrell y a la delgadísima Sylvie Guillem. (Pérez Soto, 2008, p. 65).

Nas novas fendas que surgiram, as ideias apresentadas por Carlos Pérez Soto (2008) se entrelaçam com as análises feitas por Sherry Ortner (2007). A autora faz valorações sobre os ditos que são (re)produzidos nos enredos típicos do século XIX, onde discute sobre as relações de poder que caracterizam as relações de gênero. Relações que tem a ver com as percepções que se traduzem em estilos definidos para as bailarinas, nas suas formas de dançar e também nos papéis que executam, no conteúdo propriamente das danças.

Para Sherry Ortner (2007), nos contos infantis, o que ela nomeia de “agência” – relativo ao complexo campo dos ativismos dos sujeitos –, é expressa em termos de atividade ou passividade, ou seja, em relações dos sujeitos envolvidos nos contos que visam a manter posições ativas, responsivas e responsáveis com os diversos acontecimentos, por um lado, ou pelo contrário, relações passivas, submissas. A atividade vai, segundo a autora, ao encontro da realização de projetos, e a passividade segue as trilhas dos afastamentos, de se evitar realizar os projetos ou até mesmo de desejar concretiza-los. Assim, o maior ativismo feminino corresponde às personagens más, que perseguem os seus projetos, com meios e fins perversos e que recebem, no final da história, uma punição. Esse tipo de narrativa reforça o castigo para quem transgrede o socialmente aceito.

Seguindo essa lógica, é sublinhada a presença de “heroínas vítimas”, ou seja, as protagonistas das histórias que geralmente são vítimas de acontecimentos ruins. Isso, segundo Sherry Ortner (2007), pode ter várias leituras: pode ser, por um lado, que nada tenha a ver com elas serem ativas, como o são os heróis masculinos; por outro lado, pode ter a ver com um ativismo inicial, que sempre conduz ao castigo. Para Sherry Ortner (2007, p. 60, itálicos no original), “A ação dos contos força-as –sistemática e, muitas vezes, impiedosamente– a renunciar a essa postura ativa, força-as a renunciar à possibilidade de formular e de perseguir projetos, mesmo quando estes são altruísticos”.

Continuando sua análise, a autora discute como esses contos se apresentam como sendo de “passagens”, no sentido que assinalam a transição da infância à idade adulta, a possiblidade de desempenhar papéis de adultos que supostamente significam liberdade. Essa passagem tem caraterísticas diferentes para homens e mulheres. No caso dos heróis masculinos, a passagem geralmente tem a ver com o sucesso nas suas práticas. Já no caso das protagonistas femininas, a passagem implica “a renúncia”. Aquelas que se desenvolvem e mostram determinado ativismo são castigadas, de variadas maneiras: negando a passagem, o que as leva a ficarem para sempre no mundo infantil; voltando para a casa da mãe; negando o casamento como patamar do sucesso feminino; lutando por vencer obstáculos antes de atingir o desejado casamento, obstáculos que geralmente conduzem à passividade, privações, submissões e humildades, arrastando a mulher para um mundo de sombras visíveis. Trata-se da obscuridade que, segundo Gayatri Spivak (1988/2010), é designada à mulher em condições de subalternidade. Quais os espaços para falar e quais as vozes permitidas nesses espaços? Desde esses lugares –infâncias eternas; a volta para a casa da mãe; manter-se solteira; entre outros– não há espaço para vozes que se opõem ao ‘dever ser’. Quer dizer, nesses lugares as mulheres são impedidas de falar.

Essas histórias de sacrifícios, renúncias, disciplinas, punições, como a própria história do balé, fortalecem os laços das tradições em seu vínculo mais estreito com o ‘dever ser’. Os enredos do balé, enquanto (re)produções de enredos do cotidiano social, impedem tanto mulheres quanto homens de estabelecerem outras relações, de articularem outros poderes, de cunharem outros desejos, outros projetos. Enfim, de afirmarem vozes diferentes às estabelecidas no patriarcado.

Nesse caminho, emergem paralelos com as próprias bailarinas e seus desempenhos bem-sucedidos, nas suas lutas prenhes de tensões reveladas pelos tempos. Tensões entre o dançar e aproveitar suas maiores possibilidades e melhores momentos de preparação do corpo, ou escolher se desdobrar em outros, em corpos engendrados por elas, os quais são marcados por outros sacrifícios ligados aos muitos sentidos de ser mulher e dançar. Em entrevista, realizada em 12/02/2015, Miguel Cabrera, o historiador relata:

D: ¿Cuál es la tendencia en las bailarinas para pensar en tener hijos?

E: Como mínimo cuesta dos años, hay una tendencia de hacerlo en un término medio, porque las que empiezan no se pueden permitir el lujo de salir embarazadas porque tienen que probar que son, que sirven, que tienen calidad, que pueden llegar a ser. Pero una vez que llegaron a un tope, hay que mantener ese tope, pero para subir al otro y si vas al máximo, que logren ser primeras bailarinas, tienen que pensarlo muchísimo, porque después, cuando tienen ese nivel, eso es básicamente una problemática, el hombre no tiene esa problemática […] Entonces esa es una decisión que tienen que, que les cuesta mucho tomar, yo lo he visto, les cuesta salir embarazadas. (Miguel Cabrera, entrevista pessoal, fevereiro de 2015)

Aspirações afastadas, escolhas, sacrifícios, ‘luxos’, tradições (des)encontradas numa dança de mulher, relações dança/vida sempre carregadas de tensões e (des)tempos de uns e outras. Ainda que o lugar da mulher tenha se transformado ao longo dos anos, após sucessivas lutas em prol de direitos vários, há várias outras provas que as desafiam, enredos da vida e da dança misturados em histórias de sucessos e punições que permanecem nos cenários, tanto aqueles que desvendam suas cortinas visíveis e aqueles que tem véus no mundo das invisibilidades.

Outras relações se elucidam nos enredos apresentados tanto no balé quanto nas histórias típicas do Romantismo analisadas por Sherry Ortner (2007). O homem-herói e a mulher-que-por-ele-é-salva são estereótipos que são (re)produzidos, (re)criados ao longo dos tempos: a mulher, nas histórias, geralmente “não age”, mas o homem não poderia ser herói se ela se salva ou se o salva. Essas relações trazem à tona o papel do outro na constituição dos sujeitos, nas conquistas de seus projetos, de suas metas. Mas, será que a mulher ‘não age’? Será que o homem tem vontade de ‘sempre agir’, de ser ‘o herói’? É possível um ‘não agir’? Quais tensões ficam abraçadas nos corpos salvos/corpos heróis?

Seguindo o raciocínio de Gayatri Spivak (1988/2010), a encenação de mulheres e homens, de bailarinas e bailarinos, expressa a necessidade de heróis, de procuradores, de agentes do poder. Assim, o balé se apresenta como o espaço que prescreve e proscreve determinadas vozes. E isso tem se constituído como tradição no balé clássico.

Os contos, foco das análises realizadas por Sherry Ortner (2007), são muito próximos das obras mais tradicionais do balé e abraçam os ecos de tempos distantes que se ouvem até hoje. Obras reconhecidas e indispensáveis para qualquer companhia clássica podem ser exemplos das histórias aprofundadas pela autora: A bela adormecida; O lago dos cisnes; Giselle, Cinderela, dentre outros. São obras que toda/o bailarina/o deseja dançar, aquelas que as/os atualizam e consolidam nos dominios da dança, como boas/bons bailarinas/os. Aquelas que são imprescindíveis nos programas das companhias de balé que aspiram a ter um repertório tradicional completo. Tratam-se essas obras de (re)criações que invadem os cenários uma e outra vez, (re)povoando as épocas e os espaços, em cada movimento dos corpos que dançam. Obras que reproduzem os padrões culturais mais tradicionais no seu empenho por estabelecer lugares para os corpos, mas que também criam maneiras de se relacionar no interior da própria dança. Relações povoadas de tensões que marcam os corpos com valores patriarcais, tanto na dança como nas relações que se instituem cotidianamente.

E assim prossegue a dança no decorrer dos séculos. Os corpos trocam as sapatilhas. Curam as feridas. Assumem novos rostos, se (re)inventam em cada movimento, (re)criam e atualizam os ‘deveres’ através dos movimentos de seus corpos; lutam, (re)existem em cada (des)encontro com a dança, com suas vozes nos pés. Tensionam tradições, mas de certo modo contribuem para perpetua-la, de um modo ou de outro.

4 Considerações finais

A pesquisa realizada possibilitou visibilizar tanto os incomodos que emergiram com os ecos das tradições no balé clássico, bem como arestas que tensionam algumas de suas bases. A permanência, estabilidade e suposta invariabilidade no tempo que foram sendo evidenciados no percurso pelo balé permitiram problematizar a própria ideia de tradição. É certo que uma das condições que institui algo como tradição é a sua permanência no tempo. Mas o que está por tras dessa permanência, dessa aparente estabilidade?

As análises tensionam constantemente a suposta estabilidade, abrindo um leque de possíveis. As tradições permanecem pela sua capacidade de autotransformação, de autoorganização. Pela sua capacidade de gerar novos sentidos, de (re)criar os já existentes, em cada nova situação, em cada momento da história, em cada acontecimento das sociedades e das culturas. Se isso não acontece, o que é tradição morre nessa sua condição, transforma-se em “ruina morta”, em um corpo estranho que invade o presente, segundo falava Mikhail Bakhtin (1997): “fantasmas” sem vinculos com os tempos. O que faz uma tradição permanecer nos tempos é a sua capacidade de atualização.

O que se institui como tradição na dança clássica, portanto, são as maneiras nas quais se expressam seus tempos. Maneiras que distinguem seu devir, seu processo de constituição como dança, nos domínios das artes; a constituição dos corpos que nela são (re)produzidos. É a tradição uma condição da existência da dança clássica, ligada à duração, mas essa tradução é prenhe de tensões, paradoxos, movimentos, diálogos, superações, lutas, criações. Condição que a mantém viva, apesar dos diferentes contextos, das pessoas, das épocas, das condições sociais e culturais.

É assim, a tradição na Escuela Cubana de Ballet, uma condição complexa, paradoxal, que abrange em si mesma a morte e o renascimento, a imitação e a criação; é uma condição produtora de sentidos, alguns dos quais configurados como porta-vozes de valores instituintes dos corpos tanto dos/as bailarios/as como da própria audiência. Desse modo, visibilizam-se no balé as suas tradições, visibilizam-se no balé os sentidos de ser homem e mulher instituídos em tempos históricos, sociais e culturais, os quais se atualizam em cada dança.

5 Referências

Acosta, Nirma. (2009, julio). Carlos Junior Acosta: Nos distingue la cubanía. La jiribila. http://www.lajiribilla.co.cu/2009/n428_07/428_17.html

Acosta, Carlos. (2010, 20 de abril). “Cuba es una sola y la llevo dentro”/Interviewer: Amaury Pérez. Cubadebate. http://www.cubadebate.cu/especiales/2010/04/20/carlos-acosta-junior-cuba-es-una-sola-y-la-llevo-dentro/#.U6DwU_mSz0Y

Alonso, Alicia. (2010, 23 de diciembre). Cuando yo bailaba pensaba que estaba dando vida”/Interviewer: Amaury Pérez. Cubadebate. http://www.cubadebate.cu/especiales/2010/12/23/alicia-alonso-cuando-yo-bailaba-pensaba-que-estaba-dando-vida/#.We1Ix4jq7IU.

Bakhtin, Mikhail. (1963/2013). Problemas da poética de Dovstoiévski (5ª ed.). Forense Universitária.

Bakhtin, Mikhail. (1979/1997). Estética da criação verbal (2ª ed.). Martins Fontes.

Bakhtin, Mijail. (2009). Contribución a la metodología de los estudios literarios. In Desiderio Navarro (Ed.), ƎL PƎИSAMIƎИT● CЦLTЦЯAL ЯЦSO en criterios: 1972-2008 (Vol. 2, pp. 312-321). Centro Teórico-Cultural Criterios.

Bakhtin, Mikhail & Volochinov, Valentin. (1977/1986). Marxismo e filosofia da linguagem (3ª ed.). Editora Hucitec.

Benjamin, Walter. (1928/1987). Rua de mão única. Obras escolhidas (Vol. 2). Brasiliense.

Benjamin, Walter. (1982/2005). N: Teoría del conocimiento, teoría del progreso. In Rolf Tiedemann (Ed.), Libro de los pasajes (pp. 459-490). Ediciones Akal S. A.

Butler, Judith. (2009/2015). Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Civilização Brasileira.

Chacón, Karla & Raquel, Hernández. (2016). Otras masculinidades: prácticas corporales y danza. Nóesis Revista de Ciencias Sociales y Humanidades, 25(50-1), 99-118. https://doi.org/10.20983/noesis.2016.21.5

Cordovés-Santiesteban, Alexander. (2017). Caminantes y caminos que se hacen al andar. Trajetórias de professoras/es de ensino médio em Cuba. Tese de Doutorado em Antropologia Social inédita, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/180434

Díaz Sánchez, María Elena; Mercader Camejo, Onay; Blanco Anesto, Jorge; Wong Ordoñez, Iraida; Moreno López, Vilma; Romero Iglesias, María Caridad & Ferret Martínez, Ana (2010). Un enfoque de género en la conducta alimentaria de bailarines de ballet. Trastornos de la Conducta Alimentaria, 2010(12), 1316-1329.

Fort i Marrugat, Oriol. (2015). Cuando danza y género comparten escenario. AusArt, 3(1), 54-65. https://doi.org/10.1387/ausart.14406

Gagnebin, Jeanne Marie. (2014). Limiar, aura e rememoração. Ensaios sobre Walter Benjamin (1ª ed.). Editora 34.

García, Deysi & Zanella, Andréa. (2017). Entrelaçando fios. Cuba e suas cubanidades no tecido da Escola Cubana de Balé. Urdimento, 1(28), 202-220. https://doi.org/10.5965/1414573101282017202

Méndez, Roberto. (2000). El ballet. Guía para espectadores. Editorial Oriente.

Ortner, Sherry. (2007). Poder e projetos: reflexões sobre a agência. In Miriam Grossi, Cornelia Eckert & Peter Fry (Eds.), Conferências e diálogos: saberes e práticas antropológicas (pp. 45-80). Nova Letra.

Pérez Soto, Carlos. (2008). Proposiciones en tomo a la Historia de la Danza. LOM Ediciones.

Reyes, Alicia. (2008). Psicología del arte en la Universidad de La Habana. Historia de investigaciones. Tesis de Licenciatura en Psicología inédita, Universidad de La Habana, La Habana.

Souza, Geraldo. (2002). Introdução à teoria do enunciado concreto do círculo Bakhtin-Volochinov-Medvedev (2ª ed.). Humanitas/FFLCH/USP.

Spivak, Gayatri. (1988/2010). Pode o subalterno falar? Editora UFMG.

Tortajada, Margarita. (2007). El concepto moderno del ballet: los Ballets Rusos y el retorno de la danza masculina. Revista Casa del Tiempo IX-Época, 3(97), 60-65.

Vigotsky, Lev. (1932/1987). Historia del desarrollo de las funciones psíquicas superiores. Científico Técnica.

Vigotsky, Lev. (1996). Obras escogidas. Tomo IV. Aprendizaje Visor.

Zanella, Andréa. (2017). Entre galerias e museus: diálogos metodológicos no encontro da arte com a ciência e a vida. Pedro & João Editores.