O presente artigo é um recorte da dissertação de mestrado “Terrapia: o diálogo da alimentação viva na cultura local e digital”, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (EICOS – IP/UFRJ)1. O Terrapia, comunidade para a qual direcionamos nosso estudo, é um núcleo de práticas e aprendizagem da alimentação viva que funciona há mais de vinte anos com atividades abertas ao público. O projeto começou em 1997 por iniciativa da médica Maria Luiza Branco nas ações de promoção de saúde da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), localizada na cidade do Rio de Janeiro. Atualmente, após a aposentadoria de sua fundadora, o projeto permanece com o modelo de trabalho voluntário e atividades gratuitas e está associado, na Fundação, ao Programa Fiocruz Saudável. Em uma perspectiva interdisciplinar, nosso investimento para o estudo dos sentidos e significados da alimentação viva, nesse contexto, foi fundamentado a partir dos princípios da antropologia digital e dos estudos socioantropológicos da alimentação.
O objetivo deste texto é apresentar a construção metodológica qualitativa desenhada com base em etnografias digitais (Hine, 2015; Miller et al., 2016; Miller & Horst, 2012) e visuais (Pink, 2001/2013; Pink et al., 2016) que proporcionaram a compreensão da comunidade mencionada a partir da relação de suas atividades presenciais (campo presencial/offline) e de sua linguagem e interações digitais (campo digital/online).
A divisão do campo entre online e offline foi usada para pensar didaticamente os instrumentos de investigação do campo, que foram escolhidos de acordo com a realidade encontrada. Assim, o presencial ou offline se demarca pelo espaço físico do projeto Terrapia, e o digital (online) corresponde aos locais de observação e vivência nas mídias sociais dos quais emergem conteúdos e interações pertinentes à pesquisa, ou seja, que estejam relacionados aos interlocutores e ao Terrapia. Portanto, a observação participante com redação de diário de campo (ilustrado com fotografias) e entrevistas semiestruturadas e foto-elucidativas foram os instrumentos utilizados no campo presencial. As entrevistas representam uma ponte entre o presencial e o digital pois, na ocasião de sua realização, foram utilizadas fotos das mídias sociais para observar, comentar e obter mais informações sobre as motivações e a subjetividade por detrás das publicações. Além disso, para o campo digital, houve também a coleta de imagens e o acompanhamento das publicações das interlocutoras em mídias sociais diversas.
O entendimento do tema de estudo perpassou o conhecimento de características da alimentação viva — segundo consta na descrição contida no Livro Vivo, esta alimentação é caracterizada pela busca por conservar a vitalidade (ou energia vital), pois esta é considerada como “fonte essencial de alimento” e não a matéria que o constitui que pode ser representada pelos carboidratos, proteínas etc. (Branco, 2017). Para compreensão dos sentidos observados na sociabilidade digital e nas representações dos participantes do Terrapia (comensais do “vivo”), realizamos um levantamento de pesquisas que trouxessem elucidações para a noção de vitalidade (ou energia vital). Ademais, buscou-se compreender se tais pesquisas abordavam conceitos consonantes com o observado em campo. Esta finalidade foi atendida pela leitura de pesquisas na área de Saúde Coletiva e de Alimentação e Cultura que investigaram as medicinas alternativas, outras racionalidades médicas distintas do paradigma clássico/moderno e o simbolismo dos estilos naturais na alimentação (Carvalho & Luz, 2009, 2011; Luz, 2003, 2005). Conclui-se, portanto, que a noção de vitalidade do Terrapia se articula com a proposta de Maria Cláudia Carvalho e Madel Therezinha Luz (2011) sobre o paradigma da vitalidade, que é abordado em seus estudos sobre o simbolismo do natural na alimentação, em que:
Considera que a energia vital é um atributo essencial e constituinte do ser humano e, nesse sentido, se articula com o vitalismo no campo da filosofia e da saúde. A vitalidade está associada à saúde, através da ideia de energia vital, e também à alegria e à beleza. Estar distante da natureza é como estar longe de si mesmo, de sua energia vital, como estar sem “vida” ou alegria e, assim, de certo modo adoecido. (p. 150)
A manutenção da vitalidade dos alimentos direciona as escolhas dos ingredientes na culinária viva, na qual há o consumo de vegetais crus, brotos e sementes que passaram pelo processo de germinação. A culinária não utiliza o fogo para cozinhar, contudo, alguns alimentos são amornados até os 42,5oC ou até a temperatura que as mãos suportem tocar. A alimentação viva estudada neste trabalho está inserida no vegetarianismo e, no projeto, o uso de produtos de origem animal se restringe ao mel de abelhas, desde que também seja cru.
No site do Terrapia, é possível ler sobre a preocupação do projeto não apenas com a alimentação que proporcione uma boa saúde, mas também com o ambiente e as práticas ecológicas (Branco, 2017), indicando que os significados construídos pelo grupo ultrapassam o ato de comer e expressam uma teia de atributos e práticas que se relacionam com a proposta teórica de autores que estudam a alimentação e os contextos ambientais, ecológicos, socioeconômicos e culturais (Contreras & Gracia, 2005/2011; Goldenberg, 2011; Murrieta, 2001).“Na alimentação humana, natureza e cultura se encontram, pois se comer é uma necessidade vital, o quê, quando e com quem comer são aspectos que fazem parte de um sistema que implica atribuição de significados ao ato alimentar” (Maciel, 2005, p. 49).
Em síntese, estudar a alimentação de um grupo específico de pessoas pela perspectiva da antropologia digital é uma busca por compreender o seu simbolismo alimentar ao representar seus rituais, seus repertórios discursivos e visuais com auxílio das mídias sociais. O olhar de uma etnografia que estuda a comida não deve se ater meramente àquilo que se come – assim como sugere Christine Hine (2015), a abordagem do etnógrafo deve ser flexível ao inesperado no que diz respeito ao significado da comida para as pessoas. A observação do contexto, que inclui rotina, formas de sociabilidade, rituais e identidade auxilia a compreender como o comer — ou os seus significados atribuídos — influencia os comportamentos cotidianos de forma mais abrangente.
Seguindo o mesmo raciocínio para a observação etnográfica da comida, Roland Barthes (1975/2013) propõe que o consumo de alimentos não consiste apenas na seleção de determinados ingredientes e sim em um posicionamento social que se relaciona com circunstâncias que estão além da comida. Os fatores históricos e culturais são determinantes na observação de um grupo e na compreensão de seus hábitos alimentares. Segundo o autor, na sociedade contemporânea, a comida tem a tendência constante de se transformar em uma situação. Como exemplo, é indicado o caso do café que, ao longo de muito tempo, foi considerado como substância estimulante do sistema nervoso, contudo, atualmente, vem sendo contraditoriamente relacionado com momentos de pausa, descanso e relaxamento (Barthes, 1975/2013). Os significados situacionais de um alimento, para serem interpretados, requerem, portanto, a observação de seus consumidores e o entendimento da subjetividade envolvida em seu contexto, pois é possível que haja variações de acordo com ele (Hall, 2013/2016).
O comportamento de um grupo em relação às suas escolhas alimentares também pode ser observado nas mídias sociais, pois na contemporaneidade, comumente, fotografam-se situações triviais da vida cotidiana, o que envolve também os pratos de comida ou o momento do preparo culinário. Nesses casos, a alimentação é também uma forma de se comunicar, um registro de usos e comportamentos (Barthes, 1975/2013) que podem se desdobrar em significados de uma escolha pessoal, um estilo de vida, uma habilidade, um posicionamento social, econômico, político, etc. No enquadramento desta pesquisa, procuramos saber, durante o trabalho de campo e durante as entrevistas presenciais, como o grupo estudado se relaciona com o Terrapia e como desempenha a sua presença nas mídias sociais. No meio digital, observamos como ele se expressa por meio de suas interações e imagens publicadas.
A pesquisa de cunho etnográfico foi eleita como método para o objeto de estudo uma vez que o Terrapia já existe como um núcleo praticante da alimentação viva por vinte anos e possui profundidade em sua prática de difusão da alimentação viva. Como propõe Clifford Geertz (1973/1989), em uma pesquisa com essa particularidade metodológica, “ganhamos acesso empírico aos sistemas de símbolos inspecionando os acontecimentos” (p. 13). A etnografia, como descrita por Michael Angrosino (2007), é uma narrativa que traz detalhes da experiência vivida e, consigo, o convite de que os leitores também vivam a experiência da comunidade. Seguindo essa perspectiva, as imagens em conjunto com o texto trazem à pesquisa mais um suporte para imaginação dos leitores e para composição das cenas descritas e vivenciadas na pesquisa. Desse modo, ao longo do trabalho de campo, as imagens foram utilizadas para ilustrar o reconhecimento do local de pesquisa.
A antropologia digital tem como proposta metodológica de trabalho a tradicional observação participante do campo com adição de uma observação simultânea das formas de sociabilidade digital dos sujeitos. Além disso, é uma subdisciplina da antropologia e, em sua proposta, pretende propiciar a compreensão de que as situações e relações mediadas pelo meio digital são tão autênticas quanto aquelas da vida analógica ou pré-digital. Há ainda, em seus princípios, a proposta de manter o comprometimento com o holismo — em que as características da vida dos sujeitos são consideradas em sua integralidade e, portanto, são observadas de forma a evidenciar seus particularismos.
A proposta de etnografia digital na qual nos baseamos, advém da escola inglesa de antropologia e dos exemplos nas publicações da série Why we Post (Miller et al., 2016; Miller & Horst, 2012). No contexto dessas publicações, Daniel Miller (2017) considera a etnografia como uma contextualização holística. Nessa proposta, a observação não se destina somente às plataformas digitais, mas requer a convivência com os sujeitos digital e presencialmente. O autor (2017) explica que, no início do projeto, o etnógrafo não sabe as motivações para as publicações nas mídias sociais e, por conseguinte, para estar a par dos assuntos é preciso que a etnografia seja tão íntegra como a vida cotidiana.
Em síntese, a etnografia digital busca um entendimento direto e autêntico de um fenômeno, independentemente de onde esteja, de forma que o caminho metodológico possa ser construído incluindo as formas mediadas da experiência pertinentes à pesquisa (Miller & Horst, 2012). Hine (2015) aponta para a relevância de se incluir o digital como campo de pesquisa — com investigações sobre as especificidades de uso das mídias sociais — em ocasiões em que as mesmas se apresentem como parte da dinâmica da comunidade estudada.
Considera-se, ainda, que o digital intensifica a natureza dialética da cultura, em que o dialético se refere à relação entre universalidade e particularidade e às suas características inerentes tanto positivas quanto negativas (Miller & Horst, 2012). Um outro princípio da subdisciplina sustenta que o digital não conduz seus usuários a uma homogeneização e, por outro lado, aborda a pluralidade dos conteúdos que é observada nos meios digitais e as questões que se relacionam com cultura, posicionamento político ou religião que influenciam e moldam as experiências digitais (Miller & Horst, 2012). Nas publicações de pesquisas feitas com os pressupostos da antropologia digital (Costa, 2016; Miller et al., 2016; Miller & Sinanan 2017; Nicolescu, 2016; Wang, 2016), constata-se que cada localidade estudada apresenta sua singularidade no uso das ferramentas de sociabilidade digital. O que retrata que, em uma comunidade específica, encontraremos padrões que estão entrelaçados à cultura e aos costumes locais, proporcionando, portanto, diferentes resultados em experiências de pesquisa de uma mesma mídia social realizadas em países ou comunidades diferentes (Miller & Sinanan, 2017).
A construção metodológica da pesquisa buscou entender as particularidades do Terrapia para desenhar os instrumentos de investigação. Desse modo, a opção por incluir imagens como ferramenta em nossa etnografia está relacionada com alguns fatores: 1) o levantamento de aparições sobre o tema da alimentação nas etnografias digitais da série Why we Post (Costa, 2016; Miller et al., 2016; Nicolescu, 2016; Wang, 2016), constatando que, na maioria dos casos, o tema é apresentado com a utilização de imagens; 2) a afirmação de Daniel Miller et al. (2016) e Daniel Miller e Jolynna Sinanan (2017) de que as mídias sociais transformaram a forma das trocas comunicacionais humanas, tornando-as mais visuais do que textuais ou orais; 3) a observação participante no campo, que nos permitiu verificar a grande ocorrência de fotografias no espaço do projeto realizadas pelos participantes utilizando dispositivos móveis — smartphones com câmeras embutidas. Em ratificação ao item 3, inclui-se a facilidade de acesso às câmeras fotográficas, dada pela popularização dos dispositivos móveis com acesso à internet, que contribui para que as imagens estejam presentes em grande parte dos lugares. Dessa forma, permeiam constantemente a comunicação e a sociabilidade dos sujeitos (Pink, 2001/2013).
Ademais, quando tratamos de comida, os sentidos são aguçados ao visualizar uma bela imagem, proporcionando que se coma com os olhos. Um exemplo para a presença das imagens de comida na sociabilidade digital está nos artigos da coletânea Comida y mundo virtual. Em um deles, em especial, há a relação entre a antropologia visual e a antropologia da alimentação, no qual os autores denominam sua pesquisa como uma etnografía visual alimentaria, indicando que há bastante material visual nas mídias sociais para o estudo da alimentação devido à facilidade para captura de momentos que é proporcionada pelos dispositivos móveis com câmera. O estudo é feito a partir de um grupo do Facebook denominado So Mexican, onde imigrantes mexicanos residentes nos Estados Unidos usam o ambiente digital para se conectarem e reforçarem traços culturais e identitários. Dessa forma, os autores constatam que a alimentação é um dos assuntos protagonistas nas discussões da página e que o ato de compartilhar imagens na rede aciona a conexão entre alimentação e identidade. Essa prática é definida por eles como uma “comensalidade virtual” na qual se “come com os olhos” (Vázquez-Medina & Bayre, 2017). Podemos considerar, portanto, que as imagens se destacam na facilidade de representação dos objetos pois trazem consigo mais semelhança com a experiência vivida e com a percepção que criamos sobre ela. Portanto, partimos do pressuposto de que há nas imagens uma multiplicidade de significados e a compreensão de seus sentidos resulta de fatores como: quem as concebeu, a motivação por fazê-lo e a subjetividade de quem as observa (Hall, 2013/2016).
Sobre os registros fotográficos, Sarah Pink (2001/2013) relata que deve haver flexibilidade do pesquisador, por conta do tipo de equipamento e de tecnologia a serem utilizados para os registros visuais, a fim de evitar situações de desconforto tanto para ele quanto para o grupo pesquisado. A autora exemplifica com o seu próprio trabalho sobre as touradas na Espanha. Inicialmente, a sua ideia era documentar os eventos por meio de vídeos, porém, ao chegar no ambiente, percebeu que a prática mais comum entre aqueles que assistiam às touradas era a fotográfica. A forma de coleta dos dados visuais para uma pesquisa etnográfica requer conhecimento do campo e avaliação do pesquisador sobre a forma mais adequada de fazê-la, pois isso influencia na maneira que se sucederá a vivência no campo, tanto para pesquisador quanto para integrantes do grupo e futuros leitores do projeto. Quando coletamos dados visuais, tanto os dados como a experiência de produzi-los e discuti-los fazem parte do conhecimento etnográfico (Pink, 2001/2013).
Seguindo essa acepção, observamos a dinâmica de funcionamento do Terrapia para apostar na escolha de registros visuais com a utilização de um smartphone e das mídias sociais. O local acolhe participantes de diversas idades, nacionalidades e classes sociais; seu fluxo de participantes, sua multiplicidade e seu modelo de autogestão foram indicativos de que as mídias sociais favoreceriam uma coleta plural de imagens e que a mesma estaria de acordo com a natureza de funcionamento do projeto. Além disso, em um dia de funcionamento do projeto, é possível observar a movimentação de pessoas com celulares registrando as atividades por vídeos e imagens.
Sobre o papel do etnógrafo neste contexto, Pink (2001/2013) afirma que sua função é investigar como e onde as práticas participativas e conteúdos gerados pelos usuários emergem. A base da antropologia digital nos guiou para a observação presencial e digital de forma simultânea e esse aspecto trouxe ao trabalho uma dinâmica em que a aplicação das ferramentas de investigação não findavam para início da outra. Elas se sucedem de formas complementares.
O primeiro levantamento de imagens provenientes de publicações feitas pelos participantes do Terrapia foi realizado com o objetivo de se ter um panorama de particularidades de usos das mídias sociais na comunicação da prática da alimentação viva. Nessa primeira ocasião, foram analisadas 130 imagens. Elas não se restringiram apenas às fotografias, mas incluíram quaisquer formas de expressão visual permitidas nas mídias sociais. A abrangência na definição de imagem faz parte da intenção por perceber como as imagens moldam as possibilidades de comunicação. Outra forma utilizada para observação do campo digital foi o levantamento de imagens relacionadas às palavras-chave que caracterizam a experiência no projeto. Digitamos os termos relevantes e marcamos nas orientações de busca do aplicativo Instagram a opção “tags”, a fim de visualizar a quantidade de ocorrências de imagens publicadas com as palavras-chave que aparecem listadas na tabela 1.
Palavra-chave (hashtags) |
Quantidade de publicações relacionadas |
---|---|
#terrapia | 1.190 |
#terrapiaalimentacaoviva | 10 |
#alimentovivo | 13.915 |
#alimentacaoviva | 8.203 |
#alimentaçãovivaecrua | 144 |
#comidaviva | 27.695 |
Tabela 1
Levantamento de hashtags relacionadas ao tema da alimentação viva no Instagram.
Quantidade de aparições atualizada em 16/10/2017.
A escolha por uma hashtag no ato da publicação demonstra que aquele que publicou a imagem está abrindo possibilidades de que a mesma seja encontrada por outras pessoas que se interessam pelo tema e estão conectadas ao aplicativo. Na reflexão para escolha dos instrumentos de coleta de dados visuais desta pesquisa, consideramos que, em se tratando de um projeto aberto à comunidade e que funciona com um grande corpo de trabalho voluntário, seria igualmente interessante visualizar imagens oriundas de múltiplos atores, trazendo pluralidade para a construção da pesquisa. Como instrumento para a composição da teia de significados do Terrapia, buscamos, a partir da hashtag #terrapia e da localização geográfica “Terrapia Alimentação viva” e “Terrapia”, coletar imagens públicas no Instagram, para que fosse possível examinar as representações visuais pré-existentes (Banks, 1995) produzidas pelos seus participantes. Utilizando o aplicativo é possível perceber pelas suas funcionalidades e imagens presentes que a rede se tornou um espaço de construção de identidades individuais (e coletivas), que podem ser observadas nos perfis, além de possibilitar a divulgação de experiências e serviços.
A palavra-chave apurada no primeiro levantamento da pesquisa, #terrapia, foi a escolhida pois, entre todas, foi a que trouxe mais imagens de experiências relacionadas ao projeto. Tendo em vista a conceituação de Barthes (1975/2013), as características da alimentação se dão pela sua inserção cultural, seu local de proveniência e seu contexto histórico, social e econômico, portanto, a definição de alimentação viva pode ter diferentes significados a depender do contexto em que está inserida. As outras palavras-chave pesquisadas mostram imagens de experiências variadas com a alimentação viva que nem sempre estão conectadas com a proposta da comunidade estudada. Nesse primeiro levantamento em nosso trabalho no campo digital, obtivemos um conteúdo que aponta para algumas categorias que se baseiam nos padrões encontrados nas postagens na mídia social Instagram (ver figuras 1 e 2). Entre as imagens observadas, salientamos alguns enquadramentos discursivos (ver tabela 2).
Imagens | Detalhamento de características |
---|---|
Pratos prontos e dispostos à mesa | Pessoas reunidas atrás da mesa posta com as comidas; alguns dos pratos apresentam combinações de cores vibrantes com frutas e flores comestíveis e outras arrumações que trazem desenhos de mandalas e de símbolos como o yin yang. |
Plantio | Hortas ou canteiros com pessoas plantando, colhendo ou mostrando sua colheita; mãos em contato com o verde; frutos em destaque; flores em destaque. |
Ingredientes da culinária | Folhas verdes, brotos, frutas e sementes dispostas antes do preparo. Imagens das etapas do preparo culinário: brotos em processo de crescimento; sementes germinando dentro de potes de vidro; preparo dos alimentos com as mãos. |
Suco de clorofila | Suco numa mesa ou paisagem verde, na mão do próprio fotógrafo, selfie com o copo de suco. |
Compartilhando da comida viva | Foto de pessoas brindando com suco de clorofila; pessoas segurando pratos de comida e posando; reunião de pessoas em evento de divulgação; foto de pessoas de mãos dadas em roda. |
Espaço do projeto Terrapia | Fotos de atividades ou festas do Terrapia, retratando a sua estrutura física ou o espaço verde do local. |
Tabela 2
Enquadramento discursivo das imagens do primeiro levantamento nas mídias sociais.
Sobre o texto das publicações, é possível observar que existe uma recorrência nos conteúdos das postagens. As legendas textuais podem ser descritivas: apresentam pratos na imagem e suas receitas no texto; fotos do espaço do projeto com dados de seu funcionamento escritos abaixo; convite para um evento com descrição de data, hora e local. Em outras, podem trazer mensagens que representam um estado emocional: gratidão pelos conhecimentos sobre a alimentação viva com uso de palavras afetuosas; pensamentos em forma de trechos de poesias, músicas ou palavras soltas que indicam um sentimento específico.
Entre as publicações encontradas pela busca da palavra-chave #terrapia, algumas não se conectavam diretamente com o projeto Terrapia. Algumas delas tratam de pessoas que consideram o contato com a terra como uma terapia e por isso a expressão “terrapia”. Em algumas ocasiões, tal terapia se referia ao verde das árvores visto pela janela do carro; em outras, aos vasos de plantas decorativas. A classificação pelo termo #terrapia também aparece em imagens de manejo da terra demonstrada por instrumentos como a pá ou pelas mãos sujas de terra que em uma das legendas é descrita como “limpa de terra”. A constatação de que a imagem não tinha conexão com o projeto se deu pela análise do perfil do usuário que postou a foto. Outras ocorrências que não se enquadram no projeto incluem uma prática de movimentos do corpo com auxílio de cordas que aparece na busca #terrapia, que são explicados em língua estrangeira; uma loja online búlgara de remédios à base de plantas com explicações em alfabeto cirílico, em que Terrapia consta como o nome da marca.
O primeiro levantamento teve o objetivo de identificar os primeiros padrões existentes nas postagens. Ademais, permitiu conhecer os perfis mais ativos nas mídias sociais, facilitando o momento do convite para as entrevistas foto-elucidativas. No livro Social Media in an English Village, Daniel Miller (2016) afirma, após seus dezoito meses de pesquisa etnográfica em uma vila inglesa, que as imagens postadas nas mídias sociais não trazem somente um olhar dos jovens, mas revelam meios pelos quais os mesmos vivenciam o mundo.
No contexto do mestrado acadêmico, a observação no Terrapia ocorreu entre o período de outubro a dezembro de 2017, com um total de quinze dias de participação nas atividades do projeto. Os dias de observação contaram com a escrita de diário de campo que ocorria sempre após a vivência e registro fotográfico utilizando um smartphone. A utilização do diário de campo tem como objetivo apoiar e confirmar no presencial a compreensão dos padrões compartilhados pelos participantes no meio digital (Angrosino, 2007).
Figura 1
Fotos do Projeto Terrapia.
Fonte: Terrapia, 2017a>
Partindo da parte superior esquerda: é possível ver a salada que fez parte do almoço; à direita: os participantes atrás da mesa tirando foto com a torta na comemoração dos aniversariantes do mês; na parte inferior à esquerda: a mesa de suco com desenho de coração e uma flor no centro; à direita: torta em formato de coração com frutas decorativas, o verde das árvores ao redor está refletido no prato espelhado onde está servida a torta.
Nesse sentido, a observação das interações e publicações de imagens nas mídias sociais foi feita em concomitância à observação participante e às entrevistas no local do projeto Terrapia. Os sujeitos entrevistados presencialmente foram acompanhados em seus perfis nas mídias sociais com a finalidade de possibilitar uma reflexão holística sobre o posicionamento online e offline em relação ao tema da alimentação viva. O campo de observação digital se iniciou no primeiro levantamento e se estendeu ao longo de toda observação participante, pois consultamos e observamos a evolução das hashtags e do uso da geolocalização. No período da observação participante, foram realizados convites para participação nas entrevistas tendo como principal critério a possibilidade do acompanhamento online (mídias sociais) e offline (entrevistas e/ou convívio no projeto Terrapia). Portanto, a familiaridade com as mídias sociais foi a primeira característica a ser observada, processo que foi iniciado no primeiro levantamento de imagens — que proporcionou um panorama inicial dos indivíduos mais ativos nas mídias sociais, contudo, após o início da observação participante, foi o convívio com outros sujeitos atuantes no Terrapia que nos conduziu ao convite de participação nas entrevistas.As entrevistas foram guiadas por um roteiro de entrevista semiestruturado e pela visualização das imagens publicadas nas mídias sociais dos indivíduos com o objetivo de que houvesse a construção de sentidos sobre os acontecimentos retratados e a sociabilidade digital dos sujeitos da pesquisa (Pink et al., 2016). As fotos podem ser utilizadas nas entrevistas para cumprir diferentes objetivos, que podem estar relacionados com as memórias, com a interpretação de fotos tiradas pelo pesquisador sobre assuntos específicos ou até mesmo com uma tentativa de tornar os momentos na pesquisa menos desconfortáveis por permitir que o pesquisador e o entrevistado olhem para a foto e comentem sobre ela (Banks, 2007; Pink, 2001/2013). Além disso, foi possível construir junto aos interlocutores interpretações acerca das imagens publicadas em seus perfis das mídias sociais.
Em nossa pesquisa, a observação das fotografias durante as entrevistas se equipara com o que Pink (2001/2013) argumenta sobre mostrar um álbum de fotos ou uma coleção de fotografias, pois os perfis das mídias sociais cumprem papel semelhante. Em ocasiões como essa, a autora aponta que as imagens funcionam de forma a ajudar os entrevistados a descreverem os momentos retratados, trazendo esclarecimentos para os pesquisadores sobre biografias, relacionamentos e materialidades da vida das pessoas. Além disso, as entrevistas foto-elucidativas favorecem um contexto no qual participante e etnógrafo conectam suas experiências e realidades.
Nossa análise foi realizada com a triangulação dos dados coletados por meio das técnicas de pesquisa previamente descritas. E, assim como proposto por Miller e Sinanan (2017), as imagens coletadas no digital foram analisadas de acordo com o conhecimento extraído nas observações presenciais. O tratamento dos dados foi feito com a utilização do software de análise qualitativa ATLAS.ti, que permite reunir elementos em diferentes formatos de mídias, como imagens, textos, áudios, vídeos etc. Depois da inserção das notas do diário de campo, das imagens e das transcrições das entrevistas, foi iniciado o trabalho de codificação e associação dos dados com a facilitação do uso do software. Suzanne Friese (2012) aponta que as ferramentas disponíveis no ATLAS.ti são como um meio para revelar o que há para ser conhecido, o caminho para conhecê-lo se dá de acordo com a proposta teórica e metodológica do projeto.
Pink (2001/2013) propõe uma análise reflexiva das imagens, que preconiza a atenção aos acontecimentos e aos interlocutores, acompanhando o entrelaçamento de suas emoções e histórias. Da mesma forma, devem ser observadas as conexões e interações subjetivas dos indivíduos com as imagens, assim como as diferentes formas de significados que emergem a partir dos fotógrafos e dos observadores. A análise dos materiais coletados é feita a todo momento no projeto, pois é possível que ao longo de seu decorrer surjam insights sobre as relações com o contexto, com o referencial teórico ou com outro material coletado na pesquisa. A forma como os conteúdos são categorizados depende dos temas que emergem ao longo do caminho tomado pela pesquisa. A autora sugere que sejam feitas correlações significativas entre imagens e conhecimentos provenientes de outros instrumentos utilizados ao longo da pesquisa etnográfica.
A comunidade estudada está alocada no campus da Fiocruz em Manguinhos, no Rio de Janeiro, e sua origem foi em 1997, nas ações de promoção da saúde do Centro de Saúde Escola Germano Sinval Faria (CSEGSF) da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP-Fiocruz). A partir dessas ações, o projeto “Terrapia: alimentação viva na promoção da saúde e do ambiente” começou a exercer sua proposta com o cultivo de uma horta comunitária. Atualmente, em sua sede, o espaço da horta permanece, com o acréscimo do espaço para o preparo culinário coletivo e mesas ao ar livre (Branco, 2017). A descrição do funcionamento do projeto que apresentamos neste tópico se deu a partir da observação participante e da redação do diário de campo.
As áreas de atividades no projeto são denominadas “espaços vivos”, que funcionam para a manutenção do ciclo de preparo da culinária viva, da horta e da administração do projeto. Cada um desses espaços apresenta uma placa com letras pintadas à mão indicando o seu nome. Por meio dessas placas já é possível perceber um pouco do repertório discursivo do projeto. A “cruzinha”2 equivale à cozinha, mas no caso do projeto, no qual não se cozinham os alimentos e não há fogão, existe um espaço com uma pia e prateleiras, onde os utensílios que são utilizados na “crulinária” (culinária crua) são guardados. O “brotário”, outro espaço vivo, é onde ficam as bandejas com os brotos de terra em fase de crescimento que são consumidos na “crulinária”. A pia interativa (figura 2) é como uma ilha, contendo dois espaços com bancada e quatro pias e seu formato hexagonal permite que haja interação dos participantes durante o preparo do alimento.
Figura 2
Pia Interativa no espaço do Terrapia.
Fonte: Terrapia, 2017b..
Um dos rituais do Terrapia que acontece em seus dias de funcionamento é a preparação do suco de clorofila. O suco é feito de modo que se aproveite a clorofila das plantas e a vitalidade das sementes germinadas. O sabor doce e grande parte do líquido do suco é dado pela maçã e o sabor predominante é dado pelas ervas aromáticas. Os ingredientes são trazidos pelos participantes e há também a colheita de plantas no próprio espaço verde do projeto. Normalmente, são plantas alimentícias que não são consumidas convencionalmente ou partes não convencionais de plantas alimentícias, conhecidas como PANC (Plantas alimentícias não convencionais), sendo que algumas delas são plantas que nascem espontaneamente na região. E, semanalmente, é feito um quadro com uma amostra dessas plantas com a indicação de seu nome abaixo. Os copos para o suco são arrumados em cima da mesa em formatos circulares, espirais, formato de coração etc. com a quantidade exata de participantes presentes. A arrumação dos copos é obra da criatividade de quem prepara a mesa e, por vezes, são utilizadas flores dos canteiros ou bandejas com brotos para a decoração (figura 1).
Quando o suco já está servido, os participantes começam a bater palmas de forma pausada para avisar aos que não estiverem por perto para se aproximarem para a roda. Antes de todas as refeições, todos ficam de mãos dadas ao redor das mesas e cantam em agradecimento pelo alimento servido. O canto entoado tem sua primeira parte em Guarani e a segunda em Português. A primeira parte cantada é “Tembiu porã, aguivejeté” que, segundo consta no mural do projeto, quer dizer “alimento lindo, agradecido”. A segunda parte cantada é “Alimento vivo, alimento lindo. Quero agradecer, quero agradecer”. A roda gira para a esquerda e todos batem o pé no chão ao girar. O momento de agradecimento em roda acontece sempre antes das refeições seja no suco pela manhã ou no horário do almoço. Conforme relato etnográfico realizado em uma tribo Guarani em São Paulo, o Tembiu porã, no contexto dos índios, significa comida boa para o corpo e para alma, enfatizando que para eles estes dois não se dissociam (Maymone et al., 2017).
Os pratos preparados no almoço, em sua maioria, fazem referência a pratos da culinária brasileira em versão viva. O objetivo é acessar a memória afetiva dos comensais e trazer lembranças familiares ao comer aquela refeição. Alguns dos pratos feitos no projeto são a “macarrão-nada” feita com abobrinhas cortadas em formato de espaguete; o “aveioto” feito com sementes de aveia germinadas e creme de abacates para trazer a semelhança de um risoto e os queijos “vivos” que podem ser feitos a partir de sementes variadas que, após germinadas, são fermentadas, temperadas e enformadas para lembrar o queijo. Em todas as refeições estão presentes saladas coloridas e enfeitadas com folhas, brotos, legumes de cores variadas e, ainda, flores comestíveis. As saladas são especialmente arrumadas em tachos circulares que permitem desenhos de mandalas. Em algumas ocasiões, as saladas são postas à mesa em cima de folhas de bananeira que substituem os tachos de cerâmica ou refratários de vidro.
A culinária é a atividade principal no projeto, contudo, no Terrapia, tratam-se de assuntos relacionados à promoção de saúde, agroecologia, compostagem de resíduos orgânicos, terapias naturais, preservação ambiental, conscientização do consumo e espiritualidade. No curso de introdução à alimentação viva há sempre um horário reservado às conversas teóricas que vão tratar de alguns dos tópicos citados anteriormente. Contudo, o cotidiano no projeto proporciona momentos em que os participantes compartilham entre si técnicas da culinária, práticas sustentáveis, preparo para higiene natural e terapias de cuidado com a saúde.
O campo digital na pesquisa está representado pelas localidades em que se expressam e interagem os interlocutores acerca dos assuntos mais diversos de sua vida nas mídias sociais. Esta proposta de localidades digitais está embasada pela proposta de John Postill e Sarah Pink (2012) de vivenciar os espaços digitais e entender sua importância a partir de pontos de convergência e interação de pessoas e de conteúdos.
Os dispositivos móveis possuem recursos que tornam a sociabilidade de experiências uma tarefa simples e quase que simultânea para os sujeitos presentes fisicamente e digitalmente. O sujeito presente fisicamente está vivendo a experiência e fazendo registros audiovisuais. O resultado do seu registro é publicado em uma mídia social de modo que os sujeitos conectados a ele digitalmente possam visualizar ou assistir a uma determinada experiência somente com alguns instantes de atraso da vivência propriamente dita. A comida posta à mesa pode ser fotografada por um smartphone e publicada em mídias sociais em poucos instantes. Esse registro das mídias sociais cumpre um papel para os atores que se relacionam fisicamente ou apenas digitalmente com o registro.
Em um primeiro momento, nosso levantamento buscou os conteúdos relacionados à alimentação viva e, posteriormente, os conteúdos que se relacionavam com questões mais subjetivas — acessadas por meio das entrevistas foto-elucidativas. Seguindo a proposta das etnografias digitais realizadas na série de publicações Why we Post, o percurso metodológico não foi traçado a partir da escolha de uma plataforma específica da mídia social. Segundo Miller et. al (2016), as plataformas das mídias sociais podem ser substituídas por outras e não serem mais lembradas em alguns anos. Contudo, segundo os autores, as formas de sociabilidade detêm semelhanças que ocorrem independentemente das mudanças nas tecnologias disponíveis. Logo, buscou-se observar de onde os conteúdos emergem e, ainda, dentro da teoria da polymedia, as questões subjetivas relacionadas às preferências das interlocutoras ao escolher uma plataforma específica para o conteúdo que desejam publicar.
Mirca Madianou e Daniel Miller (2012) cunharam o termo polymedia, que traz a ideia de descentralização da sociabilidade digital. Segundo os autores, a ênfase da abordagem não está nas plataformas nas quais acontecem as formas de sociabilidade e sim nos usos sociais dessas plataformas que são determinados pelos indivíduos estudados (Machado, 2017). A teoria da polymedia pressupõe que cada usuário tem acesso a uma variedade de mídias às quais podem se conectar sem muitas restrições. Existem alguns fatores restritivos — como possibilidade de acesso à plataforma, custo e literacia midiática (familiaridade com a linguagem e capacidade de uso e interação na mídia) — que podem determinar seu uso e escolha. Quando tais fatores passam para um segundo plano, o foco da polymedia se afasta das restrições das plataformas para olhar para as intenções por trás de cada uso (Madianou, 2014). Segundo a autora (Madianou, 2016), escolher uma mídia social entre as opções disponíveis demanda uma intenção emocional que demonstra como as pessoas administram seus relacionamentos. Como exemplo, ela cita que a utilização do e-mail pode caracterizar uma distância no relacionamento por conta da natureza assíncrona desse tipo de ferramenta.
A escolha do primeiro local de observação se deu pelo enquadramento das publicações numa escala de sociabilidade que correspondesse às interações mais públicas e com maior alcance de pessoas (Miller et al., 2016), assim como pela predominância das imagens. Nessa etapa, iniciamos com o Instagram, usando seus recursos de busca por geolocalização e por hashtags. Posteriormente, os locais de observação ficaram mais focados nas interações que ocorriam a partir das interlocutoras, pois, na ocasião das entrevistas, buscamos compreender mais a fundo os significados da alimentação viva e da sociabilidade digital de cada indivíduo. Portanto, não houve uma mídia social de preferência nessa circunstância.
A primeira característica relevante, referente às formas de sociabilidade relacionadas à comida, é a predominância das imagens para representação da comida viva. As fotos dos pratos das comidas que são elaborados coletivamente no Terrapia são bastante presentes nas imagens publicadas pelos participantes do projeto. A divulgação de pratos coloridos e bem-apresentados parece seguir a lógica do comer com os olhos que funciona tanto para quem está diante da mesa quanto para aquele diante da tela do celular. As toalhas de mesa no projeto são sempre brancas para que a comida tenha seu lugar de destaque sem concorrer com outros elementos visuais. As fotos de grupo, em sua maioria, deixam os pratos de comida sempre em primeiro plano.
Os desenhos dos pratos representam corações, mandalas, borboletas e flores. As tortas decoradas com frutas e as saladas coloridas são os pratos que chamam mais atenção no levantamento de imagens e se destacam na expressividade da sociabilidade digital. É possível perceber que há um apreço pela beleza e harmonia na decoração dos pratos. Tal apreço estético pode também ser constatado no relato de uma das interlocutoras sobre o dia retratado na figura 3 com a legenda “Estética da comida viva”:
Eu tenho naturalmente buscado mais sobre as flores comestíveis. (…) eu descobri que está na época da jasmim-manga e todas as árvores estão floridas (…). Então, eu catei todos os jasmins-manga e coloquei jasmim-manga colorindo em todos os pratos e eu acho lindo! Então é isso, quando tá bem florido o prato, eu gosto mais! (Magnólia, entrevista pessoal, novembro de 2017)
Outra forma de interação nas mídias sociais está relacionada com a apresentação do que se come na escolha pela alimentação viva. Como exemplo, a hashtag #whatveganseat (o que comem os veganos) no Instagram possui 8,7 milhões de publicações3. Em um contexto ocidental no qual as carnes e subprodutos derivados de animais estão incorporados à culinária, esse posicionamento demonstra uma busca pela representatividade dos grupos de veganos. Isso, portanto, mostra um movimento contra-hegemônico, pois busca apresentar e provar que existem boas opções, diversidade e beleza dentro na alimentação vegana, assim como na alimentação viva.
Houve ainda, no levantamento de dados nas mídias sociais, publicações relacionadas à espiritualidade que se expressavam em imagens que demonstram conexão com a natureza ou com o alimento. Uma forma de publicação interessante dentro desse tema são as fotos de flores, paisagens ou elementos da natureza com trechos de mensagens positivas. A senha de participação do projeto Terrapia, “só falar de coisas boas”, permanece também nas publicações das mídias digitais em que as interlocutoras trazem mensagens positivas e relacionadas às suas práticas espirituais e almejam, com essa prática, causar impacto positivo em sua rede de contatos.
Em entrevista, umas das interlocutoras ratifica o cuidado com o seu entorno como fundamental para manutenção de sua saúde:
Saúde pra mim é um estado de qualidade de vida que define mente, corpo e espírito. Não é só alimentação, mas é tudo o que você se alimenta, não só comida, matéria como também energia, palavras, imagens, tudo! (Jasmin, entrevista pessoal, dezembro de 2017)
Além disso, há a sacralização do corpo como um templo e a representação nas publicações da visão da comida como uma forma de oferecimento e cuidado com esse templo.
O Terrapia pra mim é um estilo de vida, (…) eu acho que é o melhor estilo de vida de se viver porque ele cuida da sua alimentação, teu templo, o teu corpo. (Melissa, entrevista pessoal, novembro de 2017)
Assim, a alimentação à base de vegetais também é apresentada como aquela que proporciona mais facilidades para uma conexão espiritual (figura 3: Espiritualidade).
Figura 3
Imagens encontradas na sociabilidade digital e seus enquadramentos discursivos.
Na foto superior esquerda: Estética da comida Viva; à direita: Espiritualidade; na foto inferior à esquerda: Selfie com a comida; e na foto inferior à direita: Memória afetiva – Pizza Viva.
A memória afetiva dos pratos também está presente na sociabilidade digital com fotos de preparos que relembram a culinária brasileira, afro-brasileira, baiana e pratos internacionais incorporados localmente, como um tipo de bolo de chocolate chamado de brownie. Nesse contexto, as imagens são uma forma de apresentar a culinária viva de modo mais interessante e atraente para aqueles que a observam e ainda não a conhecem. As receitas buscam trazer as lembranças dos pratos pelo cheiro, visual e forma — contudo, os ingredientes são diferentes dos tradicionais (figura 3: Memória Afetiva).
A selfie, que também está presente nas mídias observadas, é uma fotografia caracterizada pelo fato de que a pessoa que faz o registro está enquadrando a si mesma. Miller e Sinanan (2017) observaram, em sua análise comparativa entre Trinidad e a vila inglesa The Glades, que as selfies possuem motivações diferentes nos dois contextos. Como exemplo, eles trazem a diferença nas imagens das meninas inglesas, que tinham como pré-requisito que seus corpos tivessem uma boa forma, em contraponto às fotos em Trinidad, em que essa restrição não aparecia entre as publicadas pelo grupo de meninas de mesma idade. Os autores apontam que a palavra selfie pode ser comumente associada a um certo egoísmo ou individualismo, contudo, o que observam ao classificar os gêneros de selfies, é que esse tipo de foto normalmente retrata mais selfies em grupo do que individuais (Miller & Sinanan, 2017). Os gêneros de selfies que aparecem em nossa observação das mídias sociais algumas vezes retratam um momento individual que, no entanto, são predominantemente acompanhados de algum item que possua valor simbólico para os participantes, o que ocorre também nas selfies em grupo. Em tais imagens figuram produtos saudáveis, alimentos recém-preparados, flores e frutas (figura 3: Selfie com a comida). Uma das interlocutoras quando questionada sobre o que mais fotografava em sua prática da alimentação viva, respondeu:
O copo de suco ou fazendo suco, uma selfie com o suco. Quando [eu] tinha convidados, porque às vezes as pessoas iam tomar o suco comigo, eu tirava [a foto] com a pessoa. (Flora, entrevista pessoal, novembro de 2017)
Outro aspecto interessante observado no uso das mídias sociais por parte das interlocutoras diz respeito aos empreendimentos pessoais, em que o digital permite que haja a divulgação de cursos, de produtos e dos seus estilos de vida. O Terrapia proporciona, ao longo dos seus cursos, uma formação para que os voluntários conheçam mais a fundo a metodologia do projeto e possam, em um segundo momento, apresentar a alimentação viva em outros lugares ou no próprio espaço do projeto. Como é dito por eles, “espalhar as sementes”. Nesse sentido, algumas das entrevistadas administram seus perfis nas mídias sociais com a finalidade de divulgação de seus trabalhos com o alimento vivo.
A proposta de Daniel Miller e Heather Horst (2012), de que o digital atua de forma a complementar e a reproduzir as características da vida presencial, é corroborada em nosso trabalho. Um exemplo disso é a busca por “se alimentar só de coisas boas” em que os indivíduos, de acordo com suas crenças, procuram investir na sociabilidade e produção de conteúdo digital seguindo esse propósito. Outra relação interessante da comunidade estudada com o digital é o Livro Vivo, que divulga seus estudos e achados de forma opensource4, caminhando conjuntamente com a gratuidade para o acesso aos seus cursos e a movimentação do trabalho voluntário.
O digital, na construção dos instrumentos metodológicos, proporciona ferramentas que contribuem para a construção do relato etnográfico assim como auxilia no conhecimento de características mais subjetivas dos interlocutores. Em suma, permite que se reconheça a expressão de identidade e a atribuição de sentido às suas práticas que se confirmam e esclarecem com a realização das entrevistas. Além da observação de particularidades que remetem à temática consolidada na antropologia, há ainda o olhar para o digital como parte integrante do cotidiano e facilitador na interação interpessoal.
As ferramentas proporcionadas pelo digital permitiram perceber que a sociabilidade de imagens tem potencial na manutenção dos laços de uma comunidade empática, pois podem atuar como incentivo em manter a disciplina de práticas que exigem regularidade para sua efetividade terapêutica. Por outro lado, pode proporcionar um ambiente de vigilância, regulação e competição entre pares sobre quem é mais disciplinado ou faz os pratos mais bonitos. Por fim, a sociabilidade digital, no contexto observado, tem suas potencialidades de ativação individual pela sua possibilidade de empreender e comunicar; e, no coletivo, em comunidade, na colaboração para criação de laços empáticos, de troca de saberes e experiências e na realização de objetivos em comum.
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