El día a día de la mujer Guaraní MBYA, los ojos del pasado en las lentes del presente

O Cotidiano da Mulher Guarani MBYA, os Olhos do Passado nas Lentes do Presente

The Everyday Life of the Guarani Woman MBYA, the Eyes of the Past on the Lens of the Present

  • Elena Valdivia Díaz
  • Catalina Revollo Pardo
  • Samira Lima de Costa
Neste trabalho apresentamos uma proposta de metodologia investigativa, com a fotografia como ferramenta decolonial, parte dos resultados de uma pesquisa realizada com mulheres de uma aldeia Guarani no estado do Rio de Janeiro. O artigo explica o método para identificar as produções do cotidiano da mulher Guarani Mbya utilizando a linguagem imagética da fotografia a partir do olhar-pensamento contracolonial proposto especialmente por Jaxuka, filha do cacique, que investiu na presentificação visual do passado invisibilizado. O presente artigo se atém a este recorte, apresentando variações do uso da fotografia enquanto recurso de presentificação do passado, estabelecendo reflexões referentes às narrativas de afirmação nelas contidas e sua relevância para os processos de transmissão intergeracional.
    Palavras chave:
  • Comunidades
  • Mulheres Guarani Mbya
  • Vida Cotidiana
  • Linguagem imagética
  • Memória Coletiva
In this paper we present a proposal for an investigative methodology, with photography as a decolonial tool, part of the results of research with women from a Guarani village in the State of Rio de Janeiro. The article explains the method for identify the everyday productions of the Guarani woman Mbya using the imaginary language of photography and reflecting from the postcolonial and decolonial thought proposed by Jaxuka, daughter of the cacique-was the visual presentism of the invisible past. The following article stick to this snippet presenting variations of the use of photography as a means of presentism the past, establishing reflections that refer to the affirmation narratives contained therein and their relevance to intergenerational transmission processes.
    Keywords:
  • Communities
  • Mbya guarani women
  • Everyday life
  • Imaging language
  • Collective Memory

1 Introdução

O objetivo deste artigo é analisar uma proposta de metodologia investigativa com a fotografia como ferramenta decolonial, por meio dos legados de memória do cotidiano das mulheres da comunidade indígena Guarani Mbya, registrados em fotografias do próprio cotidiano, feitas por Jaxuka, mulher indígena desta comunidade. Nesta análise contra-hegemônica, procuramos compreender como em seu contexto social, político, econômico e cultural as mulheres Guarani Mbya articulam suas re existências. O artigo está dividido em 5 seções; (a) memória e imagens das mulheres Guarani Mbya; da perspectiva decolonial que compreende o marco teórico do artigo, (b) o método, está composto pela explicação da instrumentação e participantes da proposta metodológica investigativa, (c) os resultados compreendem as fases do trabalho de campo e como nestas fases se desenvolveu a proposta metodológica, (d) desenvolve-se a análise da trilha metodológica, (e) apontam-se as considerações finais.

As imagens nesta pesquisa aparecem como um caminho para evocar as memórias das mulheres guarani Mbya, de forma que conseguem criar um vínculo entre passado e presente e recriar suas histórias individuais e coletivas. A fotografia favorece que se conheçam realidades diversas, nos contextos das histórias de vida dos sujeitos. A fotografia como forma de comunicação contra hegemônica, permite tirar das sombras realidades através de outras miradas: as menos escritas, as menos visíveis, as menos escutadas. Este artigo é produto da dissertação de mestrado chamada “A Re existência do Cotidiano: Imagens e Mulheres guarani Mbya”, a pesquisa teve como objetivo conhecer, por meio da produção imagética das mulheres guarani Mbya, quais são os processos de resistência e re-existência que elas desenvolvem em seu cotidiano problematizando os limites e as potências do uso de recursos audiovisuais para a pesquisa que se propõe descolonizar. As participantes da pesquisa foram quatro mulheres Guarani Mbya da comunidade Guarani Ara Hovy, em Itaipuaçù (Maricá): Jaxuka, Para, Dona Catarina e Ilza. As imagens se apresentaram como uma linguagem que nos aproximou enquanto culturas diferentes. Ao longo da investigação, as participantes criaram muitas cenas e lugares diferentes para fotografar seu cotidiano na aldeia. Os resultados da pesquisa apontam as imagens como importantes recursos políticos e sociais na pesquisa que desvendam as (re)existências das mulheres guarani Mbya assim como as dificuldades às que se enfrentam no dia a dia.

Neste artigo iremos nos deter ao processo realizado por uma das mulheres participantes da pesquisa, Jaxuka, que por meio das imagens do seu cotidiano presente, estimula uma reflexão sobre o passado dela e de sua comunidade. Utilizar a imagem como linguagem ajuda-nos a compreender o contexto no qual foram criadas, nos levando a entender outros significados, entendendo a imagem como uma linguagem específica, compreendendo que a fotografia não tem pretensão de mostrar verdades, mas sim produzir certas realidades em momentos determinados.

A forma de acessar a essa memória se conseguiu por meio de uma metodologia decolonial que buscou formas diferentes nos modos de fazer pesquisa. Uma pesquisa que reuniu muitos lugares de olhar e modos de falar e pensar – entre: mulheres Guaranis com olhares de deslocamento entre Uruguay e Brasil, mulheres acadêmicas com olhares desde o Brasil, a Colômbia e a Espanha. As fotografias não foram apenas apoio ou ilustração das narrativas, mas foram a própria narrativa com característica autobiográfica. As fotografias, assim, narram tanto a vida e as memórias das mulheres guaranis quanto registram narrativas desde um lugar acadêmico, mobilizando falas de uma perspectiva dentro-fora, guarani-juruá, Brasil-Uruguai-Colômbia-Europa, aldeia-cidade. Por meio das fotografias da Jaxuka conseguimos nos aproximar de suas lembranças, lugares do seu passado, recriados por meio das imagens que nos compartilhou.

Entendemos o cotidiano das mulheres indígenas guarani Mbya como aquelas estratégias de resistência mais silenciosas, aquelas que não podem ser vistas, que estão enraizadas numa perspectiva de fundação nas práticas do dia a dia, as que operam para subsistir, às vezes subordinadas, mas como confronto das posições hegemônicas, as que interessam para este trabalho. As resistências das mulheres indígenas no cotidiano da tekoã.

Michel de Certeau (1990/1998) aposta por um espaço de reivindicação do cotidiano, como luta ante as imposições do poder dominante, como uma estratégia de resistência que atua em silêncio. E é essa estratégia que se considera fundamental para perscrutar os espaços cotidianos pelos quais se movimentam as mulheres Guarani, acreditando em suas habilidades usadas nas atividades da vida cotidiana, para fazer frente aos interesses hegemônicos, às propostas impostas desde fora a partir de interesses de fora.

Por conseguinte, é através dessas mil maneiras de fazer/desfazer que os participantes do cotidiano deixam suas histórias. Michel de Certeau (1990/1998) na sua concepção do cotidiano mostra como resistências se movimentam na vida cotidiana, fazendo uma distinção entre tática e estratégia.

Eu chamo estratégia de cálculo (ou manipulação) às relações de forças que tornam-se possíveis desde um sujeito de vontade e poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica) é isolável. A estratégia postula um lugar suscetível como seu próprio e será a base onde gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças (p. 42) [...] chamo tática à ação calculada que determina a ausência de um lugar próprio. Portanto, nenhuma delimitação da exterioridade proporciona uma condição de autonomia. A tática não tem mais lugar do que o outro. (Certeau, 1990/1998, p. 43)

Os processos de desenvolvimento hegemônicos seriam essa estratégia de poder, e as táticas seriam as resistências, para enfrentar as estratégias dos mais fortes. Elas vão se realizando pouco a pouco, com astúcia. Em conexão com a tática, Michel de Certeau (De Cerdeau & Mayol, 1994/1998) fala do uso e consumo para se referir a esse sujeito que de forma silenciosa, através das práticas cotidianas, embora possa ser visto como passivo, é na realidade um sujeito em constante resistência às pautas estabelecidas pelas elites produtoras da cultura.

2 Memória e Imagens das Mulheres Guarani Mbya; da Perspetiva Decolonial

A fotografia ao longo da história assumiu diferentes funções sociais, na maior parte das vezes condicionada por um olhar determinado sobre o outro, de modo vertical. Segundo Anibal Quijano (2000), na década de 1930, com a chegada dos primeiros pesquisadores europeus, se iniciam os registros de povos indígenas do Brasil, criando uma representação eurocêntrica desde a superioridade, e estabelecendo hierarquias raciais e patriarcais. As visões do pesquisador e do nativo eram separadas, deixando a visão do nativo sem nenhuma implicação no registro da sua própria vida, que era contada exclusivamente pelo pesquisador, deixando-o deste modo fora da história. Deste modo segundo Sergio Luiz Silva (2014):

A imagem da América Latina, aos olhos não latino-americanos, têm uma configuração homogênea, determinada por uma forma de olhar sobre essa cultura. A imagem nesse sentido, é determinada pelo conteúdo ideológico referido a ela, dentro dos sistemas culturais externos. A fotografia tornou-se um instrumento poderoso para a representação da realidade colonial, mas do mesmo modo, pode ser também uma ferramenta poderosa para a expressão do olhar indígena. Por meio do auto registro, as comunidades tradicionais têm a oportunidade de se mostrar a si mesmas, seu cotidiano, fazendo-nos refletir sobre os saberes e tradições próprios da sua cultura, e assim, por meio das imagens conhecer suas práticas e estratégias de re-existência. (p. 6)

Ainda hoje, o campo das ciências sociais habitualmente situa o conhecimento ocidental como o único e verdadeiro, considerando todos os demais saberes e culturas como parte do ‘não conhecimento’, por afastarem-se das epistemologias e metodologias eurocêntricas e ocidentais. Assim, dentro dos paradigmas hegemônicos só têm espaço os cientistas brancos, europeus.

Embora este ainda seja o desenho atual, já ao final do século XX, surge a necessidade de buscar outros significados, incentivando o debate para novas epistemologias e metodologias. Ganha destaque um projeto teórico-político que propõe uma mudança de paradigma, questionando hegemonias. Interroga os modos de pensar e produzir conhecimento, assim como a forma de coletar informações. Este movimento permite o surgimento de novas formas de pensamento e de novas metodologias, como o uso da imagem e das narrativas.

A crescente onda de produção de registros de auto-imagens feitos por indígenas – tanto de fotografias quanto de filmes – evidencia a apropriação desta linguagem como meio de recolocar as narrativas imagéticas sobre o indígena no Brasil, desde o lugar de enunciação do próprio indígena. Assim, surgiram no Brasil muitas iniciativas como o “cinema indígena” e os cursos de domínio cinematográfico e fotográfico, direcionados à população indígena em particular. Neste âmbito, destaca-se o projeto “Vídeo nas Aldeias” (VNA), que utiliza recursos audiovisuais para fortificar a identidade dos povos indígenas e sua cultura, se concretizou a partir de uma atividade realizada na ONG Centro de Trabalho Indigenista por Vincent Carelli, que o fundou em 1986. O objetivo do projeto é formar diretores cinematográficos indígenas. Em 2000 o VNA deixa de ser um projeto da ONG Centro de Trabalho Indigenista e se constitui como uma ONG independente, que esteve inserida no Programa Cultura Viva do extinto Ministério da Cultura (Brasil), de onde recebeu parte de seus recursos. Nas eleições de 2018, Jair Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil, e com ele chegam medidas que, com um discurso autoritário colocam em risco os direitos humanos. Consegue desvincular do órgão indigenista especializado, a Fundação Nacional do Índio (Funai), do Ministério da Justiça (MJ). Por meio da Medida Provisória (MP) 870/19 e do Decreto 9673/19, a vinculou ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Este novo governo está significando um ataque contra os povos indígenas de Brasil, tentando destruí-los como povo e saqueando suas terras.

As terras indígenas do Brasil desempenham um papel fundamental para a manutenção de ecossistemas como a Amazônia, pelo que tem sido consideradas até agora como áreas protegidas.

A utilização da imagem como ferramenta da metodologia decolonial pode trazer novos dados à pesquisa em relação a questões metodológicas específicas, carregadas da intenção do pesquisador, sendo também uma forma de reconhecer esse “Outro” como também produtor de perguntas, de percursos metodológicos e de análises, desconstruindo velhas representações baseadas numa ótica colonial eurocêntrica. Devemos entender o uso das imagens como uma ferramenta que está viva para uma maior compreensão dos saberes que nos rodeiam, para um maior conhecimento da cultura e tradições na qual estamos inseridos e, ainda, admitir a importância da complementaridade desta com a oralidade e a escrita, como ferramentas multidisciplinares.

3 Método

O estudo delineou-se no campo da pesquisa social qualitativa, definindo a produção livre de narrativas – imagéticas e orais – como caminho. A análise foi composta de múltiplos olhares e vozes: o que viam e narravam as mulheres que fotografaram, o que via a pesquisadora de campo, enquanto também fotógrafa, o que se produzia em seus encontros, o que se multiplicava e transformava nos encontros com as demais pesquisadoras, matizado por muitas línguas e linguagens: português, espanhol, guarani mbya, imagens, gestos, danças, músicas, olhares e silêncios. A chegada de uma pesquisadora fotógrafa à aldeia Ara Hovy em Maricá (interior litorâneo do estado do Rio de Janeiro), se deu por mediação de pesquisadoras mais antigas e com contatos pré-existentes, de modo que foi feita uma aproximação suportada na confiança dos vínculos preexistentes entre as pesquisadoras e a comunidade.

Embora o plano inicial fosse fazer um trabalho de campo durante dois meses, com o tempo o plano foi se refazendo. Foi necessário aprender a escutar o silêncio, entender as linguagens, os códigos culturais, os tempos da aldeia, compreender que o convívio na aldeia demandaria mais tempo; o plano de permanência então se extendeu para cinco meses e meio. O contato com o cacique e com as mulheres foi imediato, mas suas aproximações com a pesquisa aconteceram em tempos e modos diferentes. Pode-se dizer que foi uma trilha metodológica, no sentido que tanto a proposta metodológica quanto a aproximação dos participantes da pesquisa foram surgindo no caminhar da trilha do trabalho de campo.

As participantes foram convidadas a produzir ou participar da produção de materiais visuais que registrassem cenas de seu cotidiano e as significações que fazem dele. A produção foi feita em distintas etapas.

Durante os três primeiros meses, o trabalho foi feito somente com uma das mulheres da comunidade, a Jaxuka, de 45 anos, que se apresentou imediatamente interessada na produção fotográfica. Esse tempo de aproximação permitiu conhecê-la de uma forma mais íntima e é especificamente sobre parte da sua produção que trataremos neste artigo.

As imagens foram produzidas sem estabelecer uma quantidade determinada, tendo aproximadamente cinco meses para fotografar livremente. Desta forma, ela podia interagir com a câmera questionando o seu cotidiano e se apropriando do material produzido. A câmera lhe foi entregue e desde o começo da pesquisa ficou na aldeia. Durante todo este período, a pesquisadora de campo frequentou a aldeia diariamente e residiu em suas imediações, participando de suas ocupações cotidianas, a convite delas, e colocando-se à disposição para resolver dúvidas referentes ao equipamento (que deixaram de existir rapidamente).

A etapa posterior, focada na significação das imagens, foi feita de forma conjunta, buscando afirmar suas narrativas registradas nas imagens e evitar interpretações ou representações de outros. Desta forma, as mulheres narraram os modos de produção das imagens, o planejamento envolvido em cada fotografia, os sentidos de cada uma delas e as escolhas das cenas e cenários, nas imagens do material produzido. Nessas narrativas, conversamos sobre o sentido que a imagem em si tinha para elas, como produtoras das imagens. Foi desta forma que as imagens e suas narrativas compuseram o registro sobre o seu cotidiano.

4 Resultados

O trabalho de campo vai se dividir em três etapas diferenciadas:

(a) Encontro entre duas artes, (b) O cotidiano nas lentes das mulheres guarani Mbya, (c) Nhemongaraí (Imagens não físicas). O motivo de organizar deste modo o percurso do campo tem a ver com deixar nítida a forma como uma fase do trabalho de campo vai abrindo o caminho para a seguinte e vão estar estreitamente relacionadas com a análise das imagens que mostraremos depois.

4.1 Encontro Entre Duas Artes

A primeira mulher com a que trabalharia na aldeia se chama Jaxuka, dado o interesse que vinha de seu trabalho artístico com o desenvolvimento de peças de artesanato e por meio do seu pedido para fotografar seu trabalho é que se iniciou a nossa relação. Foi um “encontro entre duas artes”, a partir desse momento, começa ser a pesquisadora de campo interessante para ela.

Segundo Maria del Carmen Oleas (2013) a fotografia tem se definido como uma técnica com práticas diversas, e estabelece uma distinção entre prática artística e prática documental.

A fotografia que Jaxuka estava pedindo era aquela fotografia relacionada com a prática artística, com um fim artístico (ver figura 1). Neste tipo de produção artística, a fotógrafa tem uma intervenção direta na imagem, além de ter uma relação com a técnica, com a escolha da cena onde vai se tomar a fotografia, assim como os aspectos estéticos que possam fazer ela mais bela, mais interessante. Outro aspecto importante é a luz, o uso da lente, a hora em que se tirara a fotografia, e a relação com aqueles elementos com os quais pode interagir. Uma experiência delicada que identificaria intimamente o objeto artístico com o sujeito artista.

Neste tipo de fotografia, a fotógrafa busca que se reconheça a sua autoria através da imagem buscando o componente estético a cada momento. Deste modo, durante várias tardes a pesquisadora de campo se dedicou a fotografar cada um dos trabalhos que a Jaxuka cuidadosamente tinha feito, ao mesmo tempo em que ela ia contando tudo relacionado ao artesanato.

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Figura 1

Elena Valdivia, Rio de Janeiro, 2017

Nesses encontros, falou-se dos adornos corporais, da coleta de sementes, e seu componente de proteção, da cestaria como uma arte principal na sua cultura, da coleta das sementes. Deste modo, estas primeiras fotografias foram feitas a partir do olhar que a pesquisadora de campo, como fotógrafa, tinha sobre as atividades e práticas artísticas do seu cotidiano, um olhar direcionado pela própria Jaxuka, e mediado pelos referenciais acerca do universo guarani e suas composições estéticas como pesquisadora fotógrafa. A partir deste momento, a Jaxuka começa a se interessar pela fotografia e aí começa a segunda fase do trabalho de campo.

4.2 O Cotidiano nas Lentes das Mulheres Guarani Mbya

Inicia se aqui um segundo momento, como num diálogo com as primeiras fotografias, as mulheres guaranis se apropriam da ferramenta artística e recontam seu cotidiano e suas atividades, com base em seus próprios referenciais. As mulheres guarani passaram a registrar o seu cotidiano, baixo a consigna do fotografar o cotidiano que faz com que sua cultura e tradição resista e se fortaleça.1

Num primeiro momento, a ideia inicial consistia em fazer um pequeno grupo com as mulheres da comunidade e assim começar uma toma de contato com a fotografia, com o registro das fotografias que iriam nos mostrar a forma como elas enxergam seu cotidiano. Uma tentativa de analisar as narrativas a partir de uma perspectiva de gênero que me permitisse conhecer mais de perto a sua participação dentro da comunidade.

Uma vez no campo, os tempos, as atividades do dia a dia e as ocupações das diferentes mulheres iam marcando os espaços entre os quais teria que ir me encaixando. A realidade foi bem diferente àquela que tinha imaginado, por exemplo no que se refere ao número de mulheres, já que, ao invés de reunir um grupo, percebimos que inicialmente só iriamos trabalhar com uma mulher que foi a que mostrou um maior interesse no que a fotografia e a pesquisa. Depois o campo iria oferecendo mais surpresas e alternativas. A Jaxuka se mostrou interessada em participar na pesquisa desde o começo, segundo falou, ela tinha tido já uma experiência fotográfica com uma pesquisadora que esteve numa outra aldeia onde ela morava quando ela tinha 25 anos. O que contava Jaxuka nos deixou bastante confundidas, já que parecia não ter tido acesso a nenhuma dessas fotografias, além parecia que não tinham saído muito bem. Más tarde soubemos que a Jaxuka tinha estragado a câmera e aí ficou com medo de usá-la de novo.

Já desde o segundo dia ela começou a registrar o que considerava mais importante para o registro de seu cotidiano: aquilo que contribuía para a manutenção da sua cultura e, segundo ela, o que dava sentido ao modo de ser e viver guarani, desde o olhar da mulher guarani. Na maior parte das vezes, ela fotografava quando estava sozinha.

Em algumas ocasiões nas quais ela registrava a pesquisadora de campo estava presente, porém, foram maiores as ocasiões nas quais ela registrava sem a pesquisadora estar presente. A câmara sempre ficava com ela e só quando o cartão de memória estava cheio, o tinha que carregar a bateria e que a pesquisadora levava em casa e dava de volta ao dia seguinte.

Jaxuka gostava fazer fotografias, e com muito pouco tempo começou a fazer fotografias artísticas, onde era ela a que escolhia onde deveria se fazer a foto, as roupas ou elementos que se deviam usar, a posição, o momento e começava a contar pequenas histórias com as imagens, contava as suas histórias particulares. Com o tempo ficou evidente que Jaxuka não separa a imagem da narrativa que faz sobre ela, de forma que as fotografias podem ser muito diferentes para quem as olha separadamente, e para quem acessa o que diz Jaxuka sobre elas. Nessa inter-relação da imagem e as significações que ela fazia a partir dela iam aparecendo as narrativas que nos faziam entender e aprofundar nas suas cosmovisões do mundo.

Sobre uma fotografia onde se vê uma moça caracterizada com adereços guaranis, ajoelhada ao lado de um pequeno ramo seco de milho (figura 2), Jaxuka narra:

Com esta fotografia eu queria mostrar o nosso milho, o milho guarani, que não é o mesmo que o milho do branco. Para nós guaranis, o milho não é só um alimento, o milho para nós guaranis é sagrado. A gente tentou plantar milho, fizemos uma hortinha, mas não deu, embaixo da árvore não dá, essa terra aqui não é boa. A minha filha, que está aqui na fotografia ainda não foi batizada. Não é batizado assim como para o branco, a gente faz por meio do milho, mas aqui na aldeia não temos milho, não pode se plantar. Hoje não tem nada aqui, para sentir bem, mas antes, quando a gente morava em Rio Grande do Sul, plantávamos muito, fazíamos a comida com feijão, arroz mesmo que plantamos. Quando eu tem 23 ou 24 anos é que eu sabia que a carne compra se no supermercado, feijão tem que se comprar. Até o milho tem que se comprar... Quando a gente chegou aqui tivemos que comprar tudo, batata doce, aipim, verdura. Aí que a gente começou comprar no supermercado, o frango, fazemos sopa, mas só as crianças que estão acostumados a comer carne do supermercado, eu, meu pai e a minha mãe que não gostamos, só galinha que a gente tem aqui. E aí fazemos doce com batata doce, torta de milho verde, sem sal sem azeite, é assim mesmo (Jaxuka, entrevista, outubro de 2017).

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Figura 2

Jaxuka, Rio de Janeiro, 2017

Jaxuka realiza toda uma proposta de cena em uma de suas fotografias, na qual sua filha apresenta-se com os adereços próprios da cultura guarani, mostrando sua resistência num plantio que já não existe mais. Problematiza, por meio da cena fotografada, a situação de sua aldeia, a dificuldade para plantar o seu milho guarani e a significação que faz dele como símbolo da sua cultura. A relação que estabelece com o passado e as mudanças nas suas práticas alimentares aparecem em sua narrativa como reivindicação do que foi e já não é. É por meio dos processos de produção da memória e também de rememoração, que a memória social contribui para o sentimento de pertencimento a um grupo de passado comum, cujas memórias são compartilhadas. Esses processos garantem o sentimento de identidade do indivíduo por meio de uma memória individual que se alimenta de uma memória produzida coletiva e historicamente, e incluem elementos mais amplos do que a memória construída pelo indivíduo e seu grupo.

Na figura 3, Jaxuka registrou três meninas com adereços guaranis sentadas em uma grande pedra. Aí utiliza de novo a imagem como uma evocação ao passado, como uma forma de mostrar o que falta em sua comunidade, a água.

Aqui com esta fotografia eu queria mostrar a beleza do mato. Eu coloquei assim as meninas porque essa parte da aldeia me lembra muito uma cachoeira, a saudade de quando eu era criança e brincava nas cachoeiras. Tinha água por todo lado. Sinto muita saudade de aquele tempo, eu tinha rio também, e tem muito peixe. Meu pai levantava bem cedo para pescar, e ele já trazia peixe, nós gostávamos muito daquele. (Jaxuka, entrevista, outubro de 2017)

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Figura 3

Jaxuka, Rio de Janeiro, 2017

Sobre a na figura 4 em que mulheres realizam atividades artesanais, Jaxuka comenta:

O artesanato faz parte de nosso cotidiano. É na tarde que nós, mulheres, começamos a fazer o artesanato, é a nossa forma de conseguir dinheiro. E é com a mulher que a comunidade se fortalece, com o trabalho dela. Eu pedi para meu filho Nilson tirar esta foto, porque nós, mulheres, que fazemos artesanato, fazemos os cestos, estes grandes balaios, nós cortamos para fazer e tingimos de cores. Os juruás gostam de cores, então fazemos de cores, de todo tipo fazemos. Fazemos para vender, e assim comprar comida. Aquele bolsa família eu tenho, tá saindo só 300 reais, só para comprar o sabão, para lavar o prato... E vai embora. (Jaxuka, entrevista, julho de 2017)

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Figura 4

Jaxuka, Rio de Janeiro, 2017

Na figura 5, Jaxuka faz referência à sua infância, através da infância de seus filhos e netos, para comentar as brincadeiras e as concepções de segurança e liberdade, na infância guarani.

Essa aqui é a minha filha. Ela gosta de brincar. Ela não vai cair, aqui não tem perigo. Criança guarani gosta muito de brincar no mato e subir nas árvores. É assim que brincávamos quando eu era criança, eu não tinha boneca. (Jaxuka, entrevista, julho de 2017)

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Figura 5

Jaxuka, Rio de Janeiro, 2017

4.3 Nhemongaraí (Imagens não Físicas)

A relação entre Jaxuka e a pesquisadora de campo era mais próxima a cada dia, a fotografia as aproximou, pois trazia uma linguagem de fronteira: a imagem as unia. Muitas vezes as pesquisadoras viram as fotografias, antes de poder ouvir as narrativas de Jaxuka sobre elas. Com frequência a narrativa vinha em momentos posteriores, pois o silêncio é um modo de comunicar muito comum entre os guaranis.

As imagens contavam parte de uma história, e era preciso aguardar que Jaxuka contasse a outra parte. Essa interrelação entre a imagem, o silêncio e as narrativas, nos fazia entender suas cosmovisões. E muitas vezes nos surpreendemos com as diferenças entre o que enxergávamos na imagem e o que ela narrava, a partir desta mesma imagem.

Nas falas de Jaxuka – e dos demais moradores da aldeia – aparecia a importância do milho dentro da cultura guarani, assim como a dificuldade para batizar as crianças, por não haver o milho. Devido às más condições para o plantio do lugar no qual estava situada a aldeia e à escassez de água, tornava-se quase impossível o cultivo do milho naquela região, onde haviam chegado há pouco mais de cinco anos.

Após várias tentativas de plantar, deixaram de insistir. Deste modo, Jaxuka registrou imagens de coisas que não estavam presentes fisicamente, mas apareciam inseridas através de suas memórias. Como fotografar algo que não existe, ou que já não está mais lá? E assim, como se uma coisa viesse atrás da outra, se apresentou o desafio e a oportunidade de achar esse espaço no qual ela pudesse plasmar visualmente esse aspecto tão presente para a aldeia, principalmente pela memória dos mais velhos. Foi deste modo que conseguiu registar parte do que já não existe em sua aldeia, durante a visita a uma outra aldeia, que vive hoje em melhores condições. Isto ocorreu durante o Nhemongaraí, na aldeia de Araponga2.

Durante a cerimônia do Nhemongaraí são colocados os nomes nas crianças. A cerimônia acontece em duas etapas, relacionadas com o plantio do milho. Na primeira, o milho é plantado na primeira lua minguante de agosto, e na segunda etapa ocorre a colheita, em janeiro, quando então serão batizadas as crianças. As crianças nascem com uma alma temporal e só depois do ritual, quando o pajé descobre o nome da criança pela indicação de Nhanderú, é que aparecerá a alma verdadeira, que deverá ser cuidada. Dessa forma, seu corpo e seu espírito ficarão fortalecidos. No entanto, pode acontecer, como no caso da filha de Jaxuka, que Nhanderú não comunique o nome ao pajé. Assim, Jaxuca levou a filha pela terceira vez para batizar, na busca de seu nome guarani. Como diz Graciela Chamorro (1998),

O milho é verdadeiramente uma criança (avatíko mitánte voi). O crescimento do milho é visto como processo de maturação das próprias pessoas. O milho pode mesmo ser tomado como padrão de maturidade masculina. Seu broto é como uma criança recém-nascida. O menino prestes a ser iniciado é um milho crescido. Kunumi ru’ä é a cabeça do menino, seus cabelos e suas mãos, assim como avati ru’ ä é a copa das ramagens e dos galhos do pé́ de milho. Enfeitar os meninos é fazer chover sobre eles, é marcá-los para crescerem e se tornarem maduros como o milho. (p. 175)

Na cerimônia do Nhemongarái participa toda a comunidade. Só depois de estar ali compreenderíamos esta cerimônia é importante aos guaranis. Chegamos na aldeia na tarde de uma sexta feira e ficaríamos até o domingo. Esses eram os dias nos quais poderiam participar os juruás3. Os guaranis haviam começado a cerimônia quatro dias antes.

No momento em que chegamos, estavam se dispondo para entrar na casa de reza, que deveria ser às 17 horas. Na porta da entrada estava um xondaro que dava as indicações sobre como se deve cumprimentar ao entrar na casa de reza, comprovar que todo mundo deixasse os sapatos do lado de fora, assim como indicar onde devíamos nos sentar. O termo xondaro é usado entre os guaranis para designar ao homem guarani que pratica a dança do xondaro, dança do guerreiro. Segundo Bartolomé Meliá (2004) pronuncia-se xondáro e, curiosamente, lembra aspectos das práticas orientais, como a ênfase no equilíbrio, gestos baseados nos movimentos de animais e a atitude de “desviar-se”, preferindo não se contrapor ao oponente, deixando-o gastar suas energias.

Para Bartolomé Meliá (2004) a técnica propicia uma eficiência tal que, segundo os guaranis, os antigos guerreiros Xondaro conseguiam agarrar flechas em pleno voo. Assim como a capoeira, que pode exercer a função de luta ou de dança (conforme as circunstâncias), a Xondaro também possui um papel múltiplo. Luta, dança e canto. Segundo Batolomé Meliá (2004), em seus elementos de música e dança, a Xondaro está totalmente integrada às experiências religiosas xamânicas, aparentemente não sendo exercitada isoladamente como folguedo.

A partir do começo da cerimônia a casa da opy4 permaneceria fechada o tempo todo. Uma vez dentro, as mulheres sentam-se na parte esquerda da casa de reza e os homens na parte direita. Num lugar central se dispunha o coral e, na parte traseira localizavam-se vários colchões nos quais, depois, ficariam dormindo todas as crianças da aldeia.

O pajé Augustinho, com 98 anos, deu as boas-vindas a todos e agradeceu a Nhanderú, por mais um ano dispor do milho guarani, que segundo ele, quase ninguém tem, como consequência das más condições para o plantio num grande número de aldeias guaranis. Jaxuka já havia falado da impossibilidade de plantar milho em sua aldeia, e da dificuldade para eles de dar o nome às crianças. Assim, executaram seus mboraei5 – o canal de comunicação entre os guaranis e as divindades. Os homens utilizavam violino, tambor, chocalho e violão, as mulheres usavam a taquara, batendo no chão, num movimento constante, rítmico que parecia emergir da natureza.

A dança, segundo Jaxuka, permite uma conexão e comunicação com Nhanderú. Além disso, por meio da dança os guaranis lembram de onde vieram e pedem para Nhanderú indicar o caminho e o modo de viver corretos para os guaranis. Através da dança, animais, espíritos e guaranis ficam protegidos.

O mate, (planta originária da região subtropical da América do Sul consumida como chá ou como chimarrão para os guaranis no Brasil, no Paraguai, na Argentina, no Uruguai, na Bolívia e no Chile) e o petynguá (cachimbo sagrado usado pelos guaranis para afastar os maus espíritos e para acalmar) iam passando pelas mãos de uns e de outros. As meninas mais jovens se ocupavam de servir o mate e preparar o petynguá para adultos e crianças. Ao longo dos dias do Nhemongaraí, na cozinha, as mulheres preparavam os alimentos comumente consumidos pelo povo guarani como mbojapé, chipá (que são espécies de tortas feitas com massa de trigo) e batata doce. Ao mesmo tempo as crianças aproveitavam a cachoeira. E assim, apareceu outro tipo de relação com a produção de imagens, num outro espaço-tempo, mas que estava muito presente e que fazia um sentido em seu registro do universo religioso, político e social. Imagens que podiam estar presentes fisicamente em sua aldeia ou não, mas estão inseridas em suas memórias, e outorgam sentidos ao entrar em contato com as imagens materiais.

Durante os dias na aldeia Araponga, Jaxuka tirou algumas fotografias dirigidas ao que não estava ali, mas que os elementos presentes tinham força para convocar em sua memória. A presença da água na aldeia Araponga propiciava àquele espaço experiências já ausentes no cotidiano de sua aldeia, como o banho de cachoeira, a plantação de milho e o batizado; Nhemongaraí Awaxi, Nhemongaraí Kyryngue (batizado do milho sagrado, batizado das crianças guaranis). Foi assim que Jaxuka, ao retornar à sua aldeia e retomar suas fotografias, deu novos significados àquelas imagens prévias, agora compondo com sentidos, sentimentos e lembranças vitalizados pela experiência que só pode encontrar em Araponga.

5 Análise da Trilha Metodológica

A análise apresenta um olhar contra-colonial, de acordo com Antonio Bispo dos Santos, (2015), sobre os imaginários que foram criados pelas mulheres indígenas por meio das imagens, apresentando a construção de narrativas das memórias das mulheres onde a participação tanto da pesquisadora quanto das mulheres teve um papel fundamental. Nas palavras de Sandra Pesavento (1995) “o imaginário enuncia, se reporta e evoca outra coisa não explícita e não presente” (p. 15). Assim a autora continua,

O imaginário é, pois, representação, evocação, simulação, sentido e significado, jogo de espelhos onde o ‘verdadeiro’ e o aparente se mesclam, estranha composição onde a metade visível evoca qualquer coisa de ausente e difícil de perceber. Persegui-lo como objeto de estudo é desvendar um segredo, é buscar um significado oculto, encontrar a chave para desfazer a representação do ser e parecer. Não será́ este o verdadeiro caminho da História? Desvendar um enredo, desmontar uma intriga, revelar o oculto, buscar a intenção. (p. 24)

Desta forma, as imagens nos apresentam as formas de relação que surgem em seu cotidiano e nos aproximam de suas cosmovisões, suas diferentes formas de entender a vida, sua existência, como diz Laura Ribero (2013),

El colonialismo y el poscolonialismo, han significado específicamente para el arte [y la fotografía] un cambio de perspectiva, además de un cambio en referencia a los sujetos que elaboran las propuestas artísticas. De una visión unilateral, hemos pasado a la multiplicidad de ideologías y acercamientos respecto a la contemporaneidad; en los cuales juega un papel vital el contexto político, económico y simbólico con relación directa a los efectos del colonialismo sobre la sociedad y la concepción de yo y de los otros. (p. 31)

Então, é por esse caminho, pela quebra da construção de imaginários da herança colonial, pelas suas práticas artísticas, que as mulheres guaranis Mbya podem se mostrar a esses outros como protagonistas da sua história. Assim, se inicia a análise das fotografias de Jaxuka e suas narrativas, que assumiram muitas vezes o lugar de legendas orais – uma análise conduzida por ela própria.

As narrativas apresentadas nos deixam ver suas construções imagéticas através de um diálogo direto do seu mundo visível, que percorre seu dia a dia, sua vida social, suas problemáticas e desejos e nos adentram nas suas intenções como fotógrafa criativa e criadora de seu cotidiano.

Milton Gurán (2000, pp. 6-7) reflete sobre a rapidez do aprendizado de uma situação na fotografia em relação à escrita e à memória, e destaca que a fotografia permite inventariar cenários, eventos e circunstâncias com precisão e abrangência muito superior à memória ou ao resultado obtido com apontamentos. Ela registra ainda o fugidio, o apenas entrevisto, o inusitado, e, desta forma, abre novas perspectivas para a observação de um fato. Nesta linha, Jaxuka provoca, com suas imagens, uma nova forma de olhar. A escolha dos cenários, os adereços, a posição dos sujeitos que posam, tudo está preparado numa delicada composição, onde ela sabe muito bem deixar-se ir pela sensibilidade, com a intuição de quem sabe exatamente o que quer mostrar, ou salientar.

Jaxuka utiliza a imagem para nos mostrar uma outra época da sua vida, tão diferente daquela que vive hoje. Neste sentido, Boris Kossoy (1996), fala do fotógrafo como filtro cultural, enquanto a imagem surge do desejo da pessoa que fotografa para plasmar ou salientar um aspecto da sua realidade dentro de um determinado lugar e época. As imagens mentais que testemunham o que aconteceu ganham lugar no presente através das fotografias.

Sobre as imagens realizadas no contexto do cotidiano, Eriel Santos (2009) comenta que:

O registro fotográfico de situações presentes a cada dia, permite um re-encontro visual dos lugares que já se encontram distantes no tempo e no espaço, bem como a possibilidade de construções relacionais entre as imagens e os materiais ou objetos ali presentes. (p. 86)

Jaxuka lembra que, quando tinha 6 anos, participava da colheita do milho e do feijão e de seu preparo. O primeiro espaço de comunicação para as mulheres indígenas acontece ao redor da fogueira e do fogão. A colheita e preparação das comidas, a utilização de plantas e a narração dos mitos se transformam em aprendizagens compartilhadas ao redor do fogo. Para Adolfo Achinte (2011) a comida está intimamente relacionada à ação política:

A comida adquire sentidos simbólicos e políticos, se transformando em fatores tanto de resistência como de re-existência, na medida em que propicia formas de vida particulares e maneiras de se relacionar com a terra mediante sistemas de produção que se articulam, em nível cósmico, com as fases da lua e, em nível lúdico, com as festividades que se constituem em tempos liminares. Festividades onde a cotidianidade alimentar se transforma para dar passo aos pratos e viandas relacionados com as dinâmicas próprias das festividades, constituindo-se desta maneira em referentes de tradições que têm permanecido, mas que igualmente têm desaparecido no instante em que uma determinada celebração deixa de existir no imaginário e nas práticas das comunidades. (p. 8, tradução nossa)

Segundo Roland Barthes (1980/1984), as boas fotografias apresentariam dois elementos à pessoa que as observa. Um deles seria o espectrum, o presente do sujeito, que pode ser representado no seu contexto, um pano de fundo cultural (a fotografia como testemunho político) e o outro que coloca ante o observador um passado, o punctum que, de alguma forma, escaparia ao tema, que surpreende, e que trabalharia à distância junto com a memória, atuando como suplemento. Jaxuka, em suas imagens, visibiliza suas formas de resistência e (re) existência, nos seus modos de existir, as diferenças que a fazem formar parte da sua identidade.

Assim, por meio das imagens, encontra sentidos para estabelecer uma ação política. Continuamente em suas fotografias se apresentam elementos que já não estão presentes. Barthes (1980/1984), numa fotografia da sua mãe morta, diz conseguir se reencontrar com ela. Surge nele uma lembrança muito forte da sua infância, através do olhar da sua mãe. A fotografia aparece, assim, como uma forma de nos colocar de frente para o que já passou.

No estudo sobre o cotidiano de mulheres guaranis, a fotografia abriu uma janela para nos mostrar as situações difíceis que enfrentam cotidianamente as mulheres indígenas, perdas importantes para sua cultura que devem ser visibilizadas, mas também suas novas formas de (re) existir e sua capacidade de resistência. De acordo com Etienne Samain (2012):

O aparente da vida registrado na imagem fotográfica pode assim, de quando em quando, deixar de ser unicamente a referência e reassumir a sua condição anterior de existência. O princípio de uma viagem no tempo em que a história particular de cada um é restaurada e revivida na solidão da mente e dos sentimentos. São em geral viagens de curta duração e de marcada emoção; muitas vezes, nos flagramos nessas viagens imaginárias. (p. 45)

Jaxuka, em suas fotografias vistas com o objetivo da memória, apresenta a roça, os alimentos, o plantio do milho sagrado e a cachoeira como elementos muito presentes em sua vida, elementos que hoje seguem sendo significativos e representados pela fotografia.

Não é uma narrativa de negação, mas de composição entre memória e experiência atual: o cotidiano se constrói ao redor do cuidado da roça, e dos animais. Ao relembrar a questão da água, destaca o rio da infância, onde lavavam roupas, tomavam banho e brincavam. Jaxuka, ao falar do rio, volta a fazer referência à cachoeira, marcando sua importância para os guaranis.

Lembra também que, assim como o rio, a terra é muito importante para os guaranis, por ter sido deixada por Nhanderú. Em combinação com o rio, a terra se torna boa para o plantio:

A terra para nós, mulheres guaranis, é um espaço sagrado. A terra não tem dono, Nhanderú deixou para a gente. A terra é o lugar da nossa comunidade, na natureza. Na terra tem tudo, animais, alimento... e cada forma de vida tem um espírito. A terra é a nossa mãe (Jaxuka, entrevista, julho de 2017)

A ideia de que a terra pode ser propriedade privada é um pensamento que não faz sentido, para as mulheres guaranis; a terra é uma fonte de vida, é por meio da terra que elas estabelecem uma relação com o passado e também com o futuro, aquilo que têm para oferecer aos seus filhos, sendo o espaço físico e psicossocial onde nasceram seus ancestrais. As mulheres guarani Mbya trabalham a terra, cuidam dos filhos, e procuram recursos para toda a família. Na terra elas constroem um sentido tanto econômico quanto de manutenção da sua cultura. Seriam as estratégias e táticas de resistência das quais nos falava Michel de Certeau (2004), táticas e estratégias comunitárias e territoriais.

A saudade de algo que foi perdido aparece continuamente nas fotografias de Jaxuka, as mulheres indígenas guarani Mbya, a infância, os cantos, os ensinamentos da sua avó, os banhos nas cachoeiras, a roça, como algo que não retorna, que as identifica como mulheres guarani, de algum modo ressaltando o medo de perdê-las definitivamente. Para Boris Kossoy (1996),

Apesar de ser a fotografia a própria “memória cristalizada”, sua objetividade reside apenas nas aparências. Ocorre que essas imagens pouco ou nada informam ou emocionam aqueles que nada sabem do contexto histórico particular em que tais documentos se originaram. (p. 152)

São as mulheres da comunidade as encarregadas de repassar a sua cosmovisão sobre o Nhande Reko, Modo de Ser Guarani, para os mais novos. Ao escolher as cenas e imagens para sua fotografia, Jaxuka nos apresenta um plano de transmissão, uma trajetória do passado ao presente, que pretende passar a seus filhos e netos.

Neste sentido, Sylvia Novaes (2005) diz:

Filmes revelam não apenas aspectos de uma realidade retratada nas imagens, mas igualmente o olhar daquele que produziu aquelas imagens. Imagens, tais como textos, são artefatos culturais. É nesse sentido que a produção e análise de registros fotográficos, fílmicos e videográficos podem permitir a reconstituição da história cultural de grupos sociais, bem como um melhor entendimento de processos de mudança social, do impacto das frentes econômicas e da dinâmica das relações interétnicas. (p. 110)

A apresentação da fotografia em conjunto com as narrativas referentes, funciona como uma composição audiovisual, demonstrando que o recurso imagético constitui uma linguagem que fala por si só, mas também se constitui a partir de diálogos entre a imagem e a oralidade. A oralidade está presente em cada uma das manifestações do cotidiano guarani, e pela oralidade o cotidiano resiste e se reinventa. Pela oralidade, Jaxuka subverte a cristalização da imagem, imposta pela fotografia. De acordo com Sonia Regina Lages e Maria Inácia D'Ávila Neto (2007),

Existe no senso comum a idéia de que aqueles que estão sob o regime das ideologias – políticas, religiosas, científicas – acabam por assimilá-las e reproduzi-las, de forma passiva e disciplinada. O fato é que, pelo contrário, eles driblam o sistema e, de forma criativa, re-inventam o cotidiano, inscrevendo-se em uma cultura de resistência e de redefinições dentro da cultura hegemônica. (p. 13)

6 Considerações Finais

Ao estudar o cotidiano das mulheres Guarani Mbya por meio da imagem, como uma dimensão de análise contra-hegemônica, indagamos como, em seu contexto social, político, econômico e cultural, articulam suas (re) existências. Jaxuka buscou nos apresentar e contextualizar, por meio de seus próprios registros imagéticos, as diferentes práticas das mulheres dentro da comunidade, como se apresentam as suas (re) existências, utilizando a produção de imagens como ferramenta pós e decolonial.

Em muitos momentos, as imagens, assim como as significações que as mulheres guarani Mbya faziam delas, nos surpreenderam, pois onde só conseguíamos enxergar o conteúdo estético, aparecia, por meio das narrativas, toda uma intencionalidade. A fotografia, combinada com a narrativa, materializava-se num ato de reivindicação, nos levando até suas memórias. As fotografias produzidas, tanto pela pesquisadora quanto pelas mulheres da aldeia e por Jaxuka, em especial, apresentaram como resultado testemunhos orais das memórias das mulheres. A participação no processo de produção das fotografias, facilitou a construção de narrativas, pelo que salientou a participação no processo de produção como um elemento fundamental para desvendar suas memórias.

No entanto, foi quando Jaxuka se apropriou da câmera que esse componente de reivindicação política adquiriu uma maior potência. As práticas artísticas das mulheres, a alimentação como uma forma de manter as tradições, a participação e preservação de manifestações culturais da sua comunidade, como resultado da forte adesão a seu mundo espiritual, e o vínculo e solidariedade com outras comunidades indígenas aparecem como estratégias de resistência e (re) existência no cotidiano das mulheres indígenas guarani Mbya para a permanência das suas tradições, e são fortemente marcadas nas fotografias de Jaxuka. A necessidade de compor as imagens com suas narrativas não se colocam enquanto intenção de legendar suas imagens, mas sim a clara determinação de marcar a centralidade da oralidade para seu povo. A oralidade se mostra como estratégia de resistência e (re) existência que atravessa cada uma das manifestações cotidianas das mulheres guarani Mbya, ao longo dos tempos e das gerações.

As mulheres guarani Mbya aglutinam conhecimentos tradicionais adquiridos de forma oral, de geração em geração. Nesse espaço onde o visual se mistura com a oralidade, aparece uma oportunidade para (re) existir, de modo a estabelecerem um diálogo com a sociedade hegemônica dominante, constituirem uma ação e afirmação das tradições e da cultura do seu povo. Por meio da narrativa, mostram que as imagens ali registradas, assim como os vídeos, estão em contínuo processo de movimentação.

Além da oralidade, o silêncio e o fazer junto aparecem também como fortes estratégias de (re) existência e de transmissão da tradição, que marcam a convivência cotidiana na comunidade. Assim, Jaxuka abriu um caminho para a produção imagética que ia além do cotidiano, nos apresentava o que já não existe, memórias passadas que ressignificaram o presente. Por meio das narrativas que iam surgindo das imagens foi que começou a se estabelecer o itinerário percorrido no processo de narrar identidades, experiências e caminhos transitados pelas mulheres guarani Mbya. Nas fotografias da Jaxuka, em um claro posicionamento político, surgem elementos significativos da sua infância que já não estão mais presentes, e que tornam-se imprescindíveis para a manutenção da sua cultura e de sua própria vida. Neste sentido, a fotografia se apresenta não apenas como uma evocação do passado, mas para dar testemunho dessa forma de viver que já não existe mais.

Há mais de 500 anos o povo guarani vem enfrentando dificuldades para viver de acordo com suas crenças frente à sociedade hegemônica. Todavia, mostram que essas dificuldades nunca conseguiram incapacitá-los, deixando claro que seu “Nhande Reko” (jeito de viver) é uma escolha, e que a permanência da sua cultura está acima de tudo. Eles entendem que a terra foi deixada para todo/as, inclusive para os juruás. É necessário estabelecer ações políticas e sociais, na direção de alterar o cenário das relações com comunidades indígenas, no que se refere a pesquisas e práticas que priorizem o respeito à diversidade dando prioridade às reivindicações do povo Guarani Mbya, saúde, alimentação, demarcação de terras, respeito a sua cultura.

De outra parte, apresenta-se a oportunidade e o desafio para aqueles e aquelas pesquisadoras que trabalham refletindo o propósito das imagens para poder incorporá-las de forma criativa em suas pesquisas, na produção de artigos e nos lugares de produção e divulgação acadêmica, valorizando a importância das imagens na prática da pesquisa pós-colonial e decolonial.

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