Colonialidade, Estética e Partilha do Sensível: debates em torno da arkhé do mundo moderno/colonial

Coloniality, Aesthetics and Distribution of the Sensible: debates around the arkhé of the modern/colonial world

  • Felipe Augusto Leques Tonial
  • Kátia Maheirie
  • Claudia Junqueira De Lima Costa
Objetivamos, sob a ótica do pensamento decolonial, problematizar a colonialidade a partir das contribuições do pensamento de Jacques Rancière orientados pelos conceitos de estética, partilha do sensível e arkhé. A partir do referencial decolonial, o pensamento de Jacques Rancière avança no debate sobre a colonialidade quando traz o conceito de estética como uma configuração do sensível. A ideia de partilha do sensível pode nos indicar as maneiras de separar e compartilhar a um só tempo, lugares sociais e identidades, trazendo suas divisões, culminando em percepções que coadunam e/ou percepções que rompem com o estabelecido. O conceito de arkhé nos fornece a inteligibilidade dos processos de colonização e a pensabilidade que se coloca na base da naturalização das hierarquias. Assim, faz-se necessário compreender não apenas a distribuição de lugares, mas, por ser um regime de sensibilidade, compreender também os mecanismos de subjetivação inerentes ao processo de decolonização.
    Palavras chave:
  • Colonialidade
  • Colonização
  • Descolonização
  • Estética
  • Partilha do sensível
We aim, from the perspective of decolonial thought, to problematize coloniality from the contributions of Jacques Rancière’s thought guided by the concepts of aesthetics, distribution of the sensitive and arkhé. Based on the decolonial framework, Jacques Rancière’s thought advances in the debate on coloniality when he brings the concept of aesthetics as a configuration of the sensitive. The idea of distribution the sensitive can show us the ways to separate and share social places and identities at the same time, bringing their divisions, culminating in perceptions that match and/or perceptions that break with the established. The concept of arkhé provides us with the intelligibility of colonization processes and the thinkability that is at the base of the naturalization of hierarchies. Thus, it is necessary to understand not only the distribution of places, but, because it is a regime of sensitivity, also understand the mechanisms of subjectification inherent to the decolonization process.
    Keywords:
  • Coloniality
  • Colonization
  • Decolonization
  • Aesthetics
  • Distribution of the sensible

1 Introdução

Vivemos no Brasil e no mundo uma realidade decisivamente marcada por processos de exclusão, de violência, de empobrecimento da maior parte das populações, de violações dos direitos básicos, para citar apenas algumas das caraterísticas infaustas das nossas sociedades. Temos visto também, em especial desde pouco antes do golpe jurídico-parlamentar que ocorreu no Brasil em 2016, aliado a seus efeitos nefastos, ações que promovem e reforçam lógicas que hierarquizam e inferiorizam ainda mais alguns segmentos da sociedade, tomando como tônica de vida, governo e projetos de futuro e sociedade ideias pretensamente neutras, mas que propagam um modo de vida baseado em diversas posturas fascistas, preconceituosas e discriminatórias.

Podemos indicar que tais posturas se baseiam em relações de poder e dominação naturalizadas, que delimitam lugares, funções e identidades para cada um/a, contingenciando o campo de possibilidades destes/as em cada contexto. Propomos neste artigo, sob a ótica do pensamento decolonial, problematizar o funcionamento da colonialidade, a partir das contribuições do pensamento de Jacques Rancière, orientados, fundamentalmente, pelos conceitos de estética, partilha do sensível e o conceito de arkhé. A partir do referencial decolonial, acreditamos que o pensamento de Jacques Rancière (2000/2014) pode nos ajudar a avançar no debate sobre a colonialidade, quando traz o conceito de estética como um regime de sensibilidade, como uma configuração do sensível, indicando formas de ver, ouvir e pensar, culminando em experiências sensíveis em contextos sociais específicos. A ideia de partilha do sensível pode nos indicar as maneiras de separar e compartilhar, a um só tempo, lugares sociais e identidades, trazendo as divisões e seus lugares, culminando em percepções que coadunam com elas, e/ou percepções que rompem com o ordinário de tais divisões, configurando a possibilidade de experiências outras acerca do dano sofrido por uma parcela dessa divisão. O conceito de arkhé nos fornece a inteligibilidade dos processos de colonização e a pensabilidade que se coloca na base da naturalização das hierarquias tão bem descritas na perspectiva decolonial. Assim, fica urgente compreender não apenas a distribuição de lugares, mas, por ser um regime de sensibilidade, compreender também os mecanismos de subjetivação (Rancière, 1998/2014) inerentes ao processo de decolonização.

Dentre a riqueza teórica presente no pensamento de Jacques Rancière, optamos por explorar, em especial, os conceitos de estética, partilha do sensível e arkhé, por nos permitir compreender a colonialidade como um regime de sensibilidade que sustenta as divisões, hierarquias e os privilégios em sociedade. Por se pautar em uma configuração do sensível, a colonialidade se constrói na experiência. Se se constrói na experiência, é por meio de novas experiências que podemos abrir o campo para outras possibilidades, na medida em que se fazem possíveis outros olhares, outros sentires e outros pensares, o que faz Rancière (1998/2014) afirmar que a política acontece no âmbito da experiência e, portanto, ela é sempre estética.

Trata-se nesse artigo de um ensaio teórico, por meio do qual, partindo de um pensamento decolonial, estivemos pautados nas contribuições do pensador franco-argelino Jacques Rancière, através dos conceitos acima citados. No que se refere ao pensamento decolonial, optamos por focar naquelas argumentações que desdobravam o funcionamento da colonialidade e, em consequência, do mundo moderno/colonial, não priorizando como foco as argumentações que tratavam do processo de decolonização.

Como critério de inclusão para a seleção das obras de Rancière, optamos por focar nas que exploram em maior profundidade os conceitos escolhidos e justificados anteriormente. Para o conceito de arkhé, focamos, em especial, a obra “O Desentendimento” (Rancière, 1995/1996), mas sem desprezar, evidentemente, outros escritos que nos auxiliaram na elaboração de nossas argumentações. Sobre estética e partilha do sensível, as obras “Partilha do Sensível: estética e política” (Rancière, 2000/2014) e “Nas Margens do Político” (Rancière, 1998/2014) foram as principais obras consultadas. Recorremos, também, para o complemento de nossas ideias, a interlocutores do autor que, com seus escritos, puderam contribuir significativamente com nosso propósito aqui.

2 Estética, partilha do sensível e hierarquia social

A estética é uma configuração específica do sensível que apresenta um modo de percepção e inteligibilidade do campo social. Rancière (2000/2014) a define como um “sistema de formas a priori determinando o que se dá a sentir” (p. 16). Podemos dizer que o conceito de estética está na base do que o autor chama de partilha do sensível, que deve ser entendida em um duplo sentido: primeiro, que existe uma forma de viver, de se relacionar com o mundo, a sociedade e as pessoas que é compartilhada por todos/as em uma determinada sociedade; e, segundo, que este comum que é partilhado por todos/as funciona a partir de divisões que instauram partes exclusivas, organizando a forma do que pode ser pensado, vivido, percebido e experienciando pelos sujeitos (Rancière, 2000/2014). Ela é a própria configuração do que se considera o normal, o aceitável, o desejável e impossibilita a compreensão daquilo que é excluído desse regime. Vemos que esta argumentação, obviamente, parte da certeza de que a sociedade, sua distribuição e organização, não é natural, ela é construída historicamente.

A partilha do sensível se caracteriza por formas consensuadas e naturalizadas que fixam e determinam aquilo que é (com)partilhado por todos/as nós na medida em que divide em partes exclusivas os lugares, as funções e as identidades de cada pessoa em comunidade. A partilha do sensível tem uma estética, uma forma específica de organizar, classificar e distribuir, material e simbolicamente, o comum que é (com)partilhado em uma determinada sociedade.

Não há partilha do sensível que não esteja baseada em uma hierarquização. Em toda a vida social há uma distorção, um dano, que produz uma hierarquia de lugares e gera identidades subalternas e relações de opressão (Machado, 2013), pois atribui o poder de forma desigual entre os diferentes modos de fazer, de ser, dizer e sentir (Marques, 2011). A forma como o sensível é partilhado tende a permanecer da forma como está a partir de um processo que Rancière denomina de polícia. Esta pode ser entendida como aquele processo que busca a permanência da ordem e do consenso comunitário, naturalizado, fixando identidades e legitimando as divisões como fundamentais à ordem da sociedade. Por ser também uma questão simbólica, acaba por contingenciar um determinado regime de sensibilidade. Como apresenta Samuel Chambers (2014), no pensamento de Rancière “todas as ordens sociais são marcadas por hierarquia e dominação, e todas as ordens políticas (todos os regimes políticos) procuram naturalizar a própria desigualdade que a ordem policial pressupõe e decreta” (p. 64).1

Na tentativa de explicar as hierarquias (o dano, como diz o autor) presente no social, Rancière nos conduz à Aristóteles, considerado um dos fundadores da filosofia política. Para Aristóteles, diz Rancière (1995/1996), é a capacidade do animal humano em manifestar o que é justo e injusto que o diferencia dos outros animais, que lhe torna um ser capaz de exercer a política. O/a humano/a tem a palavra (logos), enquanto que os animais têm voz (phoné). Quem detém o logos pode falar do que é justo e injusto, do bem e do mal, do útil ou do nocivo, enquanto que aqueles/as que detém a phoné podem expressar apenas a dor, o prazer ou, quando muito, uma interação em um nível pouco complexo. A phoné tem um limite.

Da expressão do útil e do nocivo, chega-se a constatação do justo e do injusto. Como salienta Rancière (1995/1996), “funda-se, por aí, não a exclusividade da politicidade, mas uma politicidade de tipo superior, que perfaz na família e na polis” (p. 18). Entretanto, no jogo de palavras utilizado por Aristóteles para definir o que é útil e nocivo, e justo e injusto na comunidade grega, há um erro que passa desapercebido: o dano da partilha dessa comunidade é apagado, desaparece. Há um erro de contagem na matemática aristotélica.

Este erro da contagem, ou apagamento do dano, se evidencia no jogo que existe entre o que é útil ou vantajoso (sympheron) e o que é nocivo (blaberon). O blaberon tem duas concepções: por um lado, é o desagrado que sofre alguém por qualquer razão, seja por catástrofes naturais ou por relação que estabeleceu com outro/a; por outro/a, é a consequência negativa que alguém sofre por seus atos ou pelos atos de outros/as – tem um sentido jurídico e é facilmente identificável. Blaberon designa uma relação entre duas partes. O sympheron, por outro lado, denota uma relação consigo mesmo. É uma vantagem que alguém ou uma coletividade de pessoas obtém ou diz obter por uma ação (Rancière, 1995/1996).

Para Aristóteles, o justo da polis acontece quando existe um sympheron sem a existência de um blaberon (Rancière, 1995/1996). Mas se o blaberon designa o dano de uma relação entre dois ou mais seres humanos e o sympheron designa uma vantagem que se sente a nível individual, eles não se correspondem. Como diz Rancière, são falsos opostos. O oposto ao blaberon, como uma má ação que se dirige a um outro/a, é ôphelimon (o socorro que alguém recebe); e o oposto ao sympheron, “da vantagem que um indivíduo recebe, não se infere, de forma alguma, o dano que outro sofre” (Rancière, 19951996, p. 19). No jogo entre esses dois termos chega-se a uma falsa conclusão: de uma vantagem que se tira e se sente de uma situação, não há um dano.

Na verdade, o dano existe, mas não aparece, porque a noção de vantagem exposta por Aristóteles está baseada num cálculo em que a justiça já não parte da igualdade. Assim, cabe perguntar, por que Aristóteles não viu essa diferença? Porque a sociedade pressuposta por Aristóteles está baseada em uma vantagem que é naturalizada. É um dano naturalizado, e por isso não percebido. A vantagem pode ser entendida como privilégio e, podemos dizer, o trabalho que Rancière propõe voltando a Aristóteles é mapear o privilégio a partir das proposições deste autor. Nota-se aqui, que este privilégio está sustentado por um regime simbólico que invisibiliza o dano.

Como argumenta Rancière (1995/1996), essa é a constatação de Trisimaco quando, no livro I da República de Platão, afirma: a justiça é a vantagem do superior (normalmente traduzido por “a justiça é o interesse do mais forte”). É por trás dessa oposição entre o sympheron e o blaberon que reside, de acordo com Rancière (1995/1996), o objeto da filosofia política e a questão política essencial. Neste contexto, afirma-se:

O que a refutação de Trasímaco antecipa é uma pólis sem dano, uma pólis onde a superioridade exercida de acordo com a ordem natural produz a reciprocidade dos serviços entre os guardas protetores e os artesãos provedores. [...] A boa distribuição das "vantagens" pressupõe a supressão prévia de um certo dano, de um certo regime do dano. (Rancière, 1995/1996, p. 20)

Em que consiste, então, esse regime de dano? É uma partilha baseada em valores que distribuem os lugares em sociedade. Mas, antes de expor suas considerações, convém ressaltar outras duas. Primeiro, que a intenção de Jacques Rancière em trazer Aristóteles, não é para reformular, ou “corrigir” as ideias de Aristóteles. Sua intenção é apresentar como a nossa sociedade tem sido pensada, estudada e organizada hoje e, acima de tudo, o que de fato pode ser entendido por política (não entraremos nesta última questão). Em segundo lugar, o que Rancière está fazendo é apresentando a vantagem como um dano que é apagado. Em outras palavras, Rancière está questionando a noção de justiça que perpassa os clássicos da filosofia política, porque o justo para esses autores é dar para cada parcela da sociedade o que lhe convém – e, segundo o mérito, convém parcelas diferentes/exclusivas para cada uma.

Para se chegar a uma compreensão do que é justo ou injusto na lógica aristotélica, temos um cálculo que é feito entre duas formas de corrigir o que pode ser considerado injusto: a justiça distributiva e a justiça corretiva. A justiça corretiva devolve aquilo que foi tirado, governa a compreensão dos lucros e das perdas, e a justiça distributiva trata da distribuição segundo o mérito de cada parcela (Rancière, 1995/1996). E aqui entramos na questão dos valores, dos títulos, ou das axiais como diz Aristóteles. A justiça corretiva baseia-se em uma lógica aritmética (dar a cada um/a mais ou menos coisas segundo os lucros e as perdas das trocas de bens e serviços), enquanto que a justiça distributiva se baseia em uma lógica geométrica (dar a cada um/a a fração que lhe convém em sociedade segundo seu título).

Cada axiais, cada título, carrega um valor (traz um valor à comunidade). E, segundo Aristóteles, temos três axiais: os oligois (que detêm a riqueza), os aristoi (que detém a virtude ou excelência) e o demos (que detém a liberdade). Na perspectiva de Aristóteles, para que a polis seja organizada para o “bem comum” é necessário que a divisão da sociedade esteja em consonância com estas axiais. Ou seja, “ao valor que ela traz para a comunidade e ao direito que esse valor lhe dá de deter uma parte do poder comum” (Rancière, 1995/1996, p. 21). E é por isso que a questão política primeira está baseada no jogo entre sympheron e blaberon, porque a vantagem, o lucro, o dano, a perda, o justo e o injusto estão baseados em uma prevalência da justiça distributiva.

Rancière faz, assim, uma crítica aos clássicos da filosofia política, na medida em que os entende como incapazes de ver o dano presente na sociedade. Dividir e compensar lucros e perdas baseadas numa lógica econômica é algo sumamente visível. Nesse jogo, o dano é facilmente percebido, mas não conseguem ver o dano em outro nível de reparação necessário: nas vantagens e desvantagens que uns/umas e outros/as têm pelas divisões segundo o valor de cada título, de cada parcela.

Disso, Rancière tira uma constatação importante: é também por esse motivo, pela submissão da lógica corretiva à lógica distributiva, que perdura até hoje, e pela supressão/apagamento do dano que esta distribuição causa, que existe a possibilidade da política. E argumenta sobre essa afirmação a partir do lugar que o demos ocupa nessa distribuição. O demos detém a liberdade, os oligois detém a riqueza e os aristói a virtude. Ora, os oligois e os aristói também são livres e, portanto, também detém a liberdade. Logo, o demos não detém nada em particular, e o que lhes resta é somente se identificar com o todo da comunidade, com sua forma (Rancière, 1995/1996).

Já que existe uma diferença qualitativa entre as pessoas que têm liberdade (e todos/as tem liberdade) se produz uma igualdade impossível, porque o demos nunca estará em posição de governar, porque não tem título (valor algum) para trazer ao governo, seja a virtude ou a riqueza, e assim nunca participará do governo da cidade e sempre será governado. Dessa forma, existe uma assimetria nessa relação e não há igualdade entre oligoi, aristoi e demos. O demos representa, então, o próprio erro de contagem, e a única coisa que lhe resta é trazer o conflito, ou seja, mostrar o dano, o lugar de privilégio que o inferioriza.

O demos, é essa parcela que não tem parcela nenhuma, que não tem título para governar e por isso só pode trazer o dano a comunidade; ele é o dano, pois representa a vantagem apagada, o privilégio não percebido. Como diz Rancière (1998/2014), “pertence ao demos aquele que fica fora da conta, aquele que não tem palavra a dizer, digna de ser dita” (p. 142). Aqui Rancière liga o demos a phoné, e não ao logos. Ele não tem logos, ele não manifesta o que é justo e injusto, e por isso quando fala é interpretado como ruído (phone), não como palavra. O demos é o próprio litígio da partilha, o surgimento de um povo que apresenta o dano na distribuição dos corpos. Se por um lado apresenta o dano da comunidade, por outro traz uma heterogeneidade incomensurável, aquilo que não está visível: percepções, formas de sentir, compreender a partilha.

Para o autor, essa naturalização de lugares em sociedade é sustentada pela produção de um consenso em torno da ideia do que seria uma arkhé. Este consenso, evidentemente, é estruturado simbolicamente, instaurando um regime de sensibilidade específico em sociedade. Arkhé é um conceito grego que expressa tanto o começo quanto o comando, o governo. Ela funda um valor em sociedade de acordo com as possiblidades de cada pessoa por se destinar ou não ao governo. Rancière fala que a arkhé é uma antecipação, uma antecipação para o comando e o governo (Rancière, 2005/2014). “A arkhé é o comando do que começa, do que vem primeiro. É a antecipação do direito de comandar no ato do começo e a verificação do poder de começar no exercício do comando” (Rancière, 2005/2014, p. 53). Ou seja, a arkhé é o princípio que organiza uma determinada sociedade e que antecipa o direito de governar e comandar. Essa questão do comando e do governo não se resume aos lugares institucionais de poder; comandar aqui é a capacidade de propor caminhos, leituras e projetos de mundos e futuros. É a legitimidade que determinadas vidas e vozes têm e outras não.

3 Colonialidade e a partilha moderno/colonial

Há que se fazer uma diferenciação inicial, entre colonialismo e colonialidade. O colonialismo acontece quando um povo, com uma identidade X, chega ao território de outro povo, com outra identidade, e, pela força, subjuga a população do outro território para garantir a exploração do trabalho e da riqueza da colônia em benefício dos colonizadores (Quijano, 2010). Como apontam Aimé Cesaire (1955/2010) e Frantz Fanon (1952/2008) esse processo não parte e tem sua efetividade apenas a partir de mecanismos militares e administrativos, funciona concomitantemente a partir de discursos que inferiorizam os/as humanos/as colonizados/as, enaltecendo os/as que colonizam. Sendo assim, o colonialismo tem também uma dimensão enunciativa e simbólica, que pode ser explorada a partir da noção de colonialidade.

A colonialidade é um fenômeno mais complexo e duradouro que o colonialismo. Se o colonialismo tende a terminar, a colonialidade se propaga de diferentes formas, sendo entendida como uma dimensão simbólica deste. Assim, a noção de colonialidade parte da afirmação de que mesmo com o fim das colônias, uma lógica colonial de relação permanece: entre os Estados-nação, entre humanos, entre os diferentes modos de vida, entre as formas de produzir conhecimento, propor projetos de mundo e assim por diante. Ela é como uma máquina que produz diferenciações e classificações, hierarquizando os diferentes humanos/as e a vida em sociedade. Eduardo Restrepo & Axel Rojas (2010) a definem com um padrão de relação de poder que opera por hierarquias naturalizadas (étnico-raciais, de gênero, de classe, epistemológica, etc.). Esse padrão de poder não apenas garante a exploração de uns seres humanos e modos de vida sobre outros, como também subalterniza, invisibiliza e apaga o que não é identificado como o modo de vida válido e desejável. Assim, o principal efeito da colonialidade é o apagamento da heterogeneidade do mundo, sendo a naturalização o mecanismo que possibilita a reprodução destas relações de dominação, subalternização e exploração.

Trazendo Rancière a este debate, podemos dizer que a colonialidade naturaliza uma determinada forma de vida e leitura de mundo como a desejável, na medida que em que apaga outras formas de viver no mundo, articulando a arkhé, obviamente, em torno dos elementos naturalizados e sustentando uma experiência específica nas sociedades moderno/coloniais. Cabe perguntar então pelo modo de vida que é naturalizado, pelas hierarquias que se articulam e sustentam este modo de vida e pelos elementos que sustentam esta experiência.

A argumentação fundante do pensamento decolonial é considerar que não existe, ou existiria, modernidade sem colonialidade. Modernidade e colonialidade são consideradas dois lados da mesma moeda, em um processo interdependente e mutuamente constituinte (Mignolo, 2000/2013). A definição de modernidade trazida neste trabalho remete-nos, então, a forma como o pensamento decolonial a entende, como um modo de vida e um projeto civilizatório eurocentrado. Este é o centro do pensamento decolonial e da discussão sobre a colonialidade, problematizar a modernidade e buscar descentrar o mundo moderno/colonial do modo de vida e das narrativas eurocentradas.

O eurocentrismo aqui é uma metáfora, sendo entendido como a construção e distribuição do poder no mundo a partir da ideia de que os/as europeus/éias e a Europa são a “versão mais completa da evolução humana na história do planeta” (Mendoza, 2014, p. 93), ao postular que seu modo de vida e a perspectiva de desenvolvimento (seja cognitiva, tecnológica ou social) é a mais avançada. Este argumento se baseia da ideia de que a forma de produzir conhecimento que veio a partir da Europa (científico e racional), se entendendo como neutro, objetivo e universal, é de fato a única forma possível de produzir conhecimento verdadeiro para pensar a vida, o mundo e seu futuro. Este argumento inferioriza as outras formas de produzir conhecimento e, respectivamente, os povos e humanos/as que não partem dessa perspectiva. Como apresentam Ramón Grosfoguel & Santiago Castro-Gómez (2007), o eurocentrismo é uma atitude colonial frente ao conhecimento, articulando-se simultaneamente aos processos de formação dos centros e periferias no mundo e às hierarquias coloniais.

Vemos aqui uma clara articulação da ideia de colonialidade com a perspectiva de conhecimento da modernidade, a ciência moderna – da perspectiva dos pensamentos decoloniais, este é o primeiro elemento da arkhé. Este é um ponto importante para entendermos a modernidade desta perspectiva: a classificação dos povos e humanos/as do planeta a partir da proximidade ou do distanciamento que estes têm em relação à única forma de produzir conhecimento legítimo (Quijano, 1992). Esta classificação divide o mundo entre aqueles/as que são considerados/as racionais e, portanto, modernos/as e civilizados/as, e aqueles/as que são considerados/as irracionais, primitivos/as, tradicionais e, portanto, inferiores, já que a superioridade assenta na produção de conhecimentos indubitáveis. Os conhecimentos não-científicos passam a ser caracterizados como parte de uma sociedade do passado, pré-moderna e não-desenvolvida. A modernidade passa a ser sinônimo de civilidade e desenvolvimento e, por produzir conhecimentos inequívocos, merece ser mundializada. Aquelas perspectivas de conhecimento não modernas ficam relegadas ao esquecimento.

Este privilégio epistêmico, obviamente, é alimentado e alimenta outras classificações/hierarquias que exploraremos adiante. Assim, para entender esse movimento colonial da modernidade precisamos considerar que ela não nasce aquém da relação que os povos da região que hoje denominamos de Europa estabeleceram com os outros povos e territórios do planeta. Como apresenta Enrique Dussel (1993), a modernidade tem sua gênese numa relação dialética que o povo europeu estabeleceu com o não-europeu, sendo este efeito último desta relação (a construção da ideia de “não-europeu”). A Europa só pode começar a construir uma narrativa sobre si, na medida em que se deparou com o/a outro/a do descobrimento, controlando-o, violentando-o, dominando-o (Dussel, 1993). A modernidade, então, é conceituada a partir da violência, do genocídio dos povos encontrados na invasão das Américas. Este genocídio é, inclusive, epistemológico, o que Sueli Carneiro (2005) chama de epistemicídio. Assim, a percepção moderno/colonial tem como ponto central e constituinte a definição de um ego descobridor, conquistador e colonizador da alteridade (Dussel, 1993, 2005).

Afasta-se aqui a definição de modernidade de perspectivas que a entendem como sendo um processo exclusivamente endógeno à Europa. Em narrativas eurocentradas, a invasão das américas não é pensada como ponto nodal para a definição da modernidade. Considera-se, somente, o Renascimento, a Reforma Protestante, o Iluminismo, o surgimento do capitalismo e a Revolução Francesa como elementos que compõem a história do que denominamos modernidade. Não obstante, nos pensamentos decoloniais, sustenta-se que a experiência da “conquista” é base para a subjetividade e o modo de vida moderno, localizando, nesse processo, a Europa como centro e fim da história, sendo a melhor versão da história humana e seu modo de vida como o desejável. Vemos que a modernidade é entendida também enquanto um modo de subjetivação, um padrão de relação histórico que aponta à uma forma específica de existência como legítima e superior. Por outro lado, localizando a história europeia como o caminho desejável, vemos um movimento de colonização da temporalidade, na medida em que instaura uma perspectiva linear e teleológica de progresso e evolução (Paredes & Gusmán, 2014).

As relações de poder impostas pelo modernidade/colonialidade (sobretudo epistemológica) se articula a outras hierarquias, em especial: étnico-raciais, de gênero, de classe e culturais. Como em Fanon (1952/2008) e Maria Lugones (2014), entendemos que a todas as naturalizações hierárquicas se articulam, de uma forma ou de outra, a noção de humano; a uma noção de humano que é exaltada em detrimento de outras, organizando o mundo ontologicamente. Temos aqui como pano de fundo uma questão de humanidade: uns/as são mais humanos/as que outros/as. O humano exaltado é o humano racional, homem, branco e proprietário. Aquelas pessoas que não estão nesses lugares de poder são consideradas menos humanas, e mais próximas a natureza, já que menos “civilizadas”. Um primeiro ponto, então, para entender a distribuição do poder na modernidade e, portanto, para compreendermos a estética moderno/colonial, é a questão da pureza de sangue, da raça e do racismo.

3.1 Pureza de sangue, raça, racismo e o capitalismo: a colonialidade do poder

Ainda no século XVI, o discurso da pureza de sangue foi o primeiro discurso moderno a classificar as populações em escala mundial (Mignolo, 2000/2013). Mesmo que tenha iniciado antes do descobrimento (invasão), esta classificação/hierarquização se tornou hegemônica com a expansão comercial da Espanha até o Atlântico no começo da colonização europeia nas Américas. Walter Mignolo (2000/2013) argumenta que uma matriz classificatória, pertencente a uma história local (a cultura crista medieval europeia), a partir da chegada dos Europeus nas Américas, se transformou em um desenho global que classificou as populações do planeta e delimitou as possibilidades de cada um/a em escala mundial. Na tentativa de explicar por quais caminhos esta classificação começou a operar, Mignolo (2000/2013) nos volta à teologia do século XV. Antes da invasão nas Américas, a população mundial era classificada de acordo com uma ordem hierárquica que vinha com a história bíblica de Noé. No final do século XV, o mundo era visto como sendo dividido em três partes: Ásia, África e Europa – mesmo que estas denominações ainda não existissem na forma como as entendemos hoje.

Noé tinha três filhos: Sem, Cam e Jafé. A estes coube repovoar a Terra após o dilúvio que matou toda a população do planeta. Na saga bíblica, esses três filhos estão classificados de acordo com o amor que o pai tem por cada um. Cam é o filho que caiu em desgraça aos olhos do pai, pois tendo visto que o pai estava dormindo nu, chamou os irmãos para zombar dele e foi descoberto. A este, asseverou-se a origem dos povos africanos, os que eram considerados menos humanos. Sem, o filho de bom comportamento, se identifica a descendência dos povos da região asiática. E, por fim, Jafé, o filho amado de Noé, ficou como progenitor dos povos da região da Europa. Temos aqui uma classificação dos povos de acordo com o valor humano de cada um (Mignolo, 2000/2013).

Com a verificação da existência de outro continente, precisava-se, nesta representação, dar um lugar para as novas terras. A América passou a ser considerada uma prolongação das terras de Jafet. Esta argumentação teológica que incluiu a América como um prolongamento da Europa garantiu a exploração dos recursos naturais e humanos, justificando o investimento político-militar sobre estas terras. Uma vez que era apenas a Europa que podia ver o conhecimento verdadeiro sobre Deus, foi visto com naturalidade a expansão do homem branco europeu e sua cultura cristã no novo continente, pois eram, obviamente, privilegiados na escala hierárquica da pureza de sangue (Mignolo, 2000/2013). É importante observar que no século XVI ainda não existia a ideia de raça, e as pessoas eram classificados de acordo com suas religiões. Contudo, como argumenta Mignolo (2000/2013), o princípio de base da classificação era racial, pois a racialização é muito mais uma classificação em torno do paradigma da humanidade, uma figura de humano que é exaltada, do que da cor da pele ou pureza de sangue (Mignolo, 2005/2007).

Esta visão teológica da pureza de sangue predominou até o advento da ciência, que contribuiu com argumentos científicos para a manutenção das classificações da diversidade humana e do racismo (Schucman, 2014). Assim, seja por um argumento teológico ou científico, os/as humanos/as têm sofrido hierarquizações que legitimam ou não seus modos de vida e que lhes destinam lugares específicos nas partilhas em sociedade. O racismo, como aponta Lia Schucman (2014), pode ser entendido como uma construção ideológica, do início do século XVI, a partir da “sistematização de ideias e valores construídos pela civilização europeia, quando estes entram em contato com a diversidade humana nos diferentes continentes, e se consolida com as teorias científicas em torno do conceito de raça no século XIX” (p. 75). O racismo na argumentação decolonial está próximo a noção de etnocentrismo.

A classificação étnico-racial perdura até hoje, sendo identificada, na argumentação do pensamento decolonial, sob a alcunha de colonialidade do poder. É sobre esta denominação que surge pela primeira vez o termo colonialidade, com Anibal Quijano (1992), sociólogo peruano. Com este termo, Quijano (1992, 2005, 2010) busca articular dois eixos que considera fundamental para entender a distribuição de poder: capital-trabalho e europeu/não-europeu, chamando atenção para a ideia de raça presente na distribuição dos lugares e funções no mundo capitalista e seus desdobramentos em termos econômicos e políticos. Para o autor:

A globalização em curso é, em primeiro lugar, a culminação de um processo que começou com a constituição da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado como um novo padrão de poder mundial. Um dos eixos fundamentais desse padrão de poder é a classificação social da população mundial de acordo com a ideia de raça, uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo. Esse eixo tem, portanto, origem e caráter colonial, mas provou ser mais duradouro e estável que o colonialismo em cuja matriz foi estabelecido. (Quijano, 2005, p. 117)

O racismo, portanto, aparece como um princípio organizador da economia (Quijano, 1992, 2005, 2010), pois como salienta Breni Mendoza (2014), sem a servidão indígena e a escravidão dos africanos é praticamente impossível pensar o avanço do capitalismo. Como apontam alguns autores (Grosfoguel & Castro-Gómez, 2007; Restrepo & Rojas, 2010), boa parte dos/as teóricos/as decoloniais tem um passado com a teoria da dependência, desenvolvida especialmente no âmbito do CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe).

A teoria da dependência influenciou as argumentações decoloniais na medida em que compõem a teoria do sistema-mundo de Immanuel Wallerstein (Restrepo & Rojas, 2010), problematização que está na base do pensamento de Quijano (1992, 2005). A ideia central desta argumentação é que vivemos em uma relação de dependência geopolítica que está baseada num sistema global de desigualdades que estruturam e compõem as relações entre centro e periferia no mundo capitalista globalizado, definindo a participação e as possibilidades de cada país e suas populações no jogo por exploração e acumulo de capital (Wallerstein, 2005/2006).

A teoria da dependência não considera a noção de desenvolvimento e, respectivamente, de subdesenvolvimento como parte de um processo de modernização endógeno de um país. Estes são lados de uma relação sistêmica em nível geopolítico, que aponta que determinados países, ou grupos econômicos são desenvolvidos na respectiva intensidade com que outros países são subordinados economicamente, ou subdesenvolvidos. Ou seja, podemos dizer que para existir um país desenvolvido (e, consequentemente, rico) é necessário que se explore outras regiões do mundo, outros países, buscando acumular capital na medida em que se produz uma mais-valia em termos geopolíticos (Grosfoguel & Castro-Gómez, 2007).

É este processo, de acordo com a teoria da dependência e do sistema-mundo, que constrói um centro e uma periferia geopolítica, não o quanto cada país conseguiu se adequar ao mercado globalizado, o quanto conseguiram ser competitivos, ou o quanto conseguiram desenvolver o capitalismo em seu território. Desta perspectiva, não se considera os Estados-nação como a unidade de análise, mas a noção de sistema-mundo.

As sociedades e os países não são estruturas autônomas de evolução interna rumo ao desenvolvimento. Ao contrário, são vistos a partir de um jogo histórico de larga duração que nos remete a séculos de exploração dentro da econômica capitalista global, tendo início com a invasão europeia no continente americano (Restrepo & Rojas, 2010), momento este em que se constituem rotas comerciais em nível planetário (Mignolo, 2000/2013). Assim, a invasão nas américas e o processo de colonização e racialização devem ser vistos como uma condição de possibilidade para o desenvolvimento do capitalismo, enquanto sistema econômico global. Como aponta Andrey Ferreira (2014):

O colonialismo como fenômeno antecede o capitalismo enquanto sistema mundial e o acompanha como “política” em suas diferentes fases de desenvolvimento. A expansão europeia do século XVI tem o colonialismo como seu componente central e são as relações de produção e acumulação primitiva e demais processos históricos engendrados nesse contexto que tornaram o capitalismo possível como “modo de produção”. Por outro lado, o capitalismo estendeu as relações coloniais sobre o espaço e as formas sociais, atualizando-o como componente estrutural de seu próprio sistema e amplificando de forma nunca antes vista sua dimensão e significado, tornando-o [praticamente] onipresente na história das diferentes sociedades. (p. 255)

Como apontam Eduardo Restrepo & Axel Rojas (2010), a emergência do mundo moderno/colonial está baseada em diferentes fenômenos que se relacionam entre si, a saber: 1) o capitalismo como sistema econômico, que, a partir de 1492, estabelece uma relação mercadológica entre todos os continentes; 2) o fortalecimento da ciência e da tecnologia, que aumenta a rentabilidade dos processos econômicos e que vem também impulsionado por estes; 3) a secularização da vida social, que vem a partir da articulação do capitalismo com os avanços tecnológicos, relegando tudo que pode ser considerado transcendental (religião, espiritualidade e etc.) a uma dimensão privada da vida; 4) a criação da ideia de Estados-nação e 5) o universalismo, que considera que os conhecimentos, valores e direitos como pertencente a todas as pessoas2.

Assim como a teoria da dependência e do sistema-mundo dá ênfase aos processos econômicos, as argumentações decoloniais também, levando-os a falar em sistema mundo moderno/colonial. Contudo, enquanto a teoria do sistema-mundo considera que as questões culturais, discursivas e simbólicas são efeito dos processos econômicos, as perspectivas decoloniais sustentam que estes processos são mutuamente constitutivos (Restrepo & Rojas, 2010). Estes aspectos organizaram ao longo de cinco séculos e organizam/mantem até hoje a divisão internacional do trabalho, as lutas geopolíticas para expansão do capitalismo e acumulo de capital em uma perspectiva geopolítica.

Esta ideia de Quijano, de vincular a colonialidade à discriminação étnico-racial e ao capitalismo ganhou força em boa parte dos/as teóricos/as que estudam a colonialidade, tornando essa percepção quase hegemônica nos escritos sobre o tema. Esta sistematização de Quijano (1992, 2005) sofreu uma crítica contundente de Maria Lugones, filósofa argentina, que considera este autor cego às questões de gênero, por subordinar o processo de generação ao processo de racialização. Se tomarmos os trabalhos de Lugones (2008, 2014), vemos claramente que Quijano se equivoca ao pressupor que o gênero e a sexualidade não são elementos fundantes do mundo moderno/colonial como o autor pressupõe que a raça seja. Lugones (2008) inicia então uma discussão que nos aponta que o processo de racialização, obviamente, não opera sozinho, mas se articula a outros processos, como o de generação, que será explorado a seguir a partir da noção de colonialidade do gênero.

3.2 Colonialidade do Gênero

Como o feminismo boliviano vem afirmando há algum tempo, não é possível entender o mundo moderno/colonial sem entender as relações de gênero presentes neste (Paredes & Guzmán, 2014; FeCAY, 2016). O contrário também é verdadeiro. Juntamente com a questão étnico-racial, as relações de gênero são centrais para delimitarmos a estética moderno/colonial e a distribuição de lugares de poder e governo.

Da mesma forma que as relações étinico-raciais, o patriarcado é histórico, e isso nos permite traçar uma genealogia e tratá-lo a partir ideia da naturalização. O patriarcado já vem desde antes do capitalismo e, com o surgimento deste, é atualizado em seu funcionamento, se referindo fundamentalmente a um sistema de estruturas e práticas que hierarquizam homens e mulheres e legitimam um mundo no qual os homens oprimem, exploram e dominam as mulheres (Ávila, 2009).

Como já apontou Lugones (2008), o processo de colonização das Américas e de constituição do capitalismo global eurocentrado produziu, inclusive, diferenças e hierarquias de gênero onde anteriormente não existiam, servindo como princípio organizador da sociedade. A partir das pesquisas de Oyéronké Oyewùmi, socióloga nigeriana, por exemplo, vemos que nas sociedades iorubás as diferenças de gênero não existiam como um princípio organizador até o processo de colonização (Lugones, 2008). Trazendo Paula Gunn Allen, poeta e escritora estadunidense, Lugones (2008) conclui que muitas comunidades nativas das Américas, antes do colonialismo, eram matriarcais e reconheciam positivamente as experiências homoafetivas e, inclusive, mais de dois gêneros, contrariando o dimorfismo sexual e entendendo as diferenças de gênero em termos igualitários, não em termos de subordinação. As sociedades descritas por Oyewùmi e Allen distribuíam mais igualitariamente o poder público e simbólico, sendo o princípio organizador mais importante a idade cronológica (Mendoza, 2014). As diferenças de gênero nessas sociedades podiam conter outras variações, não sendo baseadas numa lógica binária e biologizante (Lugones, 2008).

Para além dessas questões, vemos que muitas comunidades indígenas americanas tinham nas suas cosmovisões que as forças primárias do universo eram femininas. Deslocar o controle do universo para um ser masculino, como o caso da cosmovisão cristã, foi fundamental para conseguir submeter e apagar as culturas dessas comunidades (Lugones, 2008). Assim, sendo uma das dimensões da colonialidade o controle sob a produção de conhecimento, a colonialidade do gênero passa também por esta dimensão. Na modernidade/colonialidade, a forma legítima de produzir conhecimento é a partir da ciência, tendo a razão como medida de legitimidade. A razão é identificada com o masculino, enquanto que o irracional e a sensibilidade são identificadas como o feminino. Como lembra Lélia Gonzalez (1988), articulando a questão étnico-racial à epistemológica, a razão é branca e, podemos acrescentar, masculina.

Paulatinamente e por muitos deslocamentos, o poder para governar e participar da vida pública e econômica e, portanto, dos lugares de decisões no mundo capitalista, passa a ser vinculado também ao homem, enquanto que a vida doméstica e privada, menos importante no modo de vida moderno/colonial e capitalista, fica relegada as mulheres, como uma estratégia, inclusive, para afastá-las daqueles espaços. Nesse sentido, a democracia liberal e o capitalismo só foram viáveis por uma fusão entre o processo de racialização e generação, sendo impossível conceber o capitalismo e o Estado-nação como os entendemos hoje sem este processo (Mendoza, 2014). Ainda, precisamos considerar que há no capitalismo uma cumplicidade estratégica entre os homens brancos e homens racializados, assim como homens brancos e mulheres brancas, que invizibiliza e enfraquece as lutas das mulheres e homens racializados. Como aponta Mendoza (2014):

Esta confabulación de los hombres colonizados con sus colonizadores […] impide construir lazos fuertes de solidaridad entre las mujeres y los hombres del Tercer Mundo en procesos de liberación. Pero ignorar la historicidad y colonialidad de género también ciega a las mujeres blancas de Occidente, a quienes igualmente les ha costado reconocer la interseccionalidad de raza y género y su propia complicidad en los procesos de colonización y dominación capitalista. (p. 94)

Assim, o gênero é entendido como uma categoria moderno/colonial que hierarquiza o mundo entre homens e mulheres heterossexuais. Para Claudia de Lima Costa (2012), “ver o gênero como categoria colonial também permite historicizar o patriarcado, salientando as maneiras pelas quais a [cis]heteronormatividade, o capitalismo e a classificação social se encontram sempre já imbricados” (p. 47). A separação entre raça, classe, gênero e sexualidade é estratégica, pois não deixa perceber a violência estrutural do mundo moderno/colonial com nitidez (Lugones, 2014).

Assim, usar do conceito de interseccionalidade para dar visibilidade a constituição mútua do mundo moderno/colonial é imprescindível. Explorar este conceito nos ajuda a visibilizar lugares de invisibilidade produzido pela colonialidade, como no caso das mulheres negras ou das mulheres indígenas. Articulada às relações de poder sustentadas pelos processos de racialização e generação, vemos outra característica do mundo moderno/colonial que merece atenção: a dicotomia natureza/cultura, que além de reforçar as relações de poder já descritas, aponta a uma hierarquização entre as culturas.

3.3 A Dicotomia Natureza/Cultura

No mundo moderno/colonial, seja para interpretar ou propor projetos de mundo, partimos de muitas dicotomias: mente/corpo, indivíduo/sociedade, natureza/cultura, sujeito/objeto. Destas, talvez a mais importante para este trabalho e para entendermos a estética moderno/colonial seja a dicotomia natureza/cultura. Esta compõe o que podemos denominar de colonialidade da natureza, um processo de hierarquização entre natureza e cultura que se baseia na distinção entre a história humana e a história da natureza, sendo esta última subordinada aos caminhos da primeira (Chakrabarty, 2013). Assim, há no nosso modo de vida uma divisão entre o mundo natural e o mundo social e cultural.

A filosofia moderna eurocentrada tem sustentado dois axiomas importantes: 1) a anormalidade da desordem, mesmo fazendo parte do debate acadêmico e político; e 2) a separação ou o dualismo entre natureza e cultura, sendo este, implicitamente, o fundamento do debate e das discussões presentes na prioridade das agendas políticas. Este segundo axioma delimita o paradigma moderno/eurocêntrico regido por uma dupla característica: por um lado, a adoração do sujeito individual (humano, nacional e étnico) e, por outro, a fé na razão, na ciência e na técnica científica: objetiva, quantitativa, acumulativa, linear e manipuladora (Busso, 2012).

A separação entre natureza e cultura é reforça pela noção de contrato social, presente no pensamento de Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau. A noção de pacto social ou contrato social é entendida como uma alternativa ao estado da natureza, na medida em que os indivíduos se voltam à vida civilizada mediante um contrato por adesão, não imposição – que em contraposição ao estado da natureza, cria o estado de sociedade (mediado pelo Estado) (Latour, 1994/2013). Esta forma de vida consensuada visa manter a ordem social e, no pensamento liberal, preservar as propriedades (do corpo a terra). Estas argumentações são as condições de possibilidade para a formação do que hoje identificamos como Estado-nação. O que faz a demarcação entre o estado da natureza e o estado de sociedade é justamente a existência do Estado, como um elemento que vem separar a vida civilizada, em sociedade, da vida em natureza. Assim, podemos dizer que a dicotomia natureza-cultura instaura relações de poder na medida em que institui o/a humano/a que tem uma vida regida sob a lógica da ciência e do Estado-nação como mais civilizado, enaltecendo um/a humano/a em específico em detrimento de outros/as.

Sob o enunciado do progresso e da civilidade, sustentam-se muitas ações e projetos de mundo que tomam a natureza exclusivamente como um objeto a ser manipulado, explorado e utilizado para e pelo desejo humano. Esses enunciados, podemos dizer, estão sustentados por uma cosmovisão que pressupõe um modo de vida no qual a Terra é vista como um lugar a ser dominado pelo animal humano, superior, pois detentor da cultura e da ciência. Assim, a dicotomia natureza/cultura mantém e potencializa as hierarquias entre os/as humanos/as narradas até aqui, além da hierarquia entre humanos/as e não-humanos/as, legitimando como único modo de vida válido e desejável o “civilizado”, que nos conduz à vida científica e à vida em sociedade regida pelo Estado-Nação.

Por traz desta argumentação, há o entendimento de que a natureza é inata, dada, biológica e real, enquanto que a cultura é da ordem do aprendido/construído, ideológico e simbólico (Valden & Badie, 2011). O que mantem estes domínios separados, de acordo com Bruno Latour (1994/2013), são as máquinas de purificação: de um lado, a política dos homens, representada por Hobbes, e de outro, a ciência da natureza, representada por Robert Boyle. Essa divisão entre natureza e cultura, cristalizada na compreensão do mundo moderno/colonial, tem sua objetividade questionada por muitos pensadores/as, entre eles/as o próprio Latour (1994/2013), quando apresenta a concepção de híbridos naturais-culturais. Esta visão de Latour se aproxima a de Donna Haraway (2000, 2003), que também considera que humanos/as e não-humanos/as (animais, artefatos, maquinas e tecnologias) estão decisivamente imbricados em sua teorização sobre ciborgues e, mais tarde, sobre espécies companheiras.

Neste enredo, se produz tanto a noção de natureza quando de cultura. Como salientam Felipe Velden & Marilyn Badie (2011), pedras, humanos/as, árvores, objetos e o próprio conceito de natureza não são mais fixos, imutáveis e pré-definidos. Por isso, há que se falar em naturezas, no plural, pois haverá tantas naturezas quanto cosmovisões para se falar delas. O mesmo se aplica à definição de sociedade, ou cultura, sendo entendida como uma construção teórica e metodológica que tem valor heurístico apenas parcial (Valden & Badie, 2011). Nesse sentido, o primeiro trabalho para romper com esta dicotomia talvez seja buscar explicações que não essencializem nem a noção de natureza e nem a noção de cultura, nos obrigando a considerar que há uma definição de natureza para cada cultura, assim como relações específicas entre natureza e cultura em cada modo de vida e perspectiva de conhecimento.

Natureza é, então, uma concepção que atua sobre nós como marcador conceitual para delimitar a cultura, e a cultura funciona de modo inverso, complementando e delimitando a conceitualização da natureza. Duas entidades contingenciadas e que contingenciam a estética moderno/colonial. Seja considerando a noção de híbridos naturais-culturais (Latour, 1994/2013), ou a noção de espécies companheiras (Haraway, 2003) ou ciborgue (Haraway, 2000), a separação entre natureza e cultura é fruto do sentimento de superioridade que a cultura moderno/colonial reserva a alguns/as humano/as em relação à natureza. Todos estes enunciados e justificativas sustentam o modo de vida capitalista, tomando a natureza e a maioria da população do planeta como matéria-prima deste modelo de desenvolvimento.

3.4 Efeitos/estratégias coloniais: colonialidade do saber e do ser

Convém destacar outras duas dimensões da colonialidade que operam, em parte como efeito e em parte como estratégia para manutenção do modo de vida moderno/colonial: a colonialidade do saber e a colonialidade do ser. Sendo o mundo moderno/colonial organizado pela articulação do racismo, do patriarcado e da dicotomia natureza-cultura, o privilégio epistêmico no universo moderno/colonial e a legitimidade de um único modo de vida se dará a partir desse arranjo. Ou seja, esta articulação cria um locus de enunciação da verdade que questiona tudo que não parte dele.

Podemos dizer que a colonialidade do saber é a dimensão epistêmica que acompanha a colonialidade apontando a perspectiva de conhecimento europeia como única possibilidade legítima de conhecer o mundo, descartando todas as outras perspectivas de mundo e saberes (Walsh, 2007), e questionando, inclusive, a capacidade intelectual dos/as humanos/as inferiorizados/as.

Restrepo & Rojas (2010) consideram que a colonialidade do saber pode ser entendida como uma arrogância epistêmica por parte daqueles/as que se consideram os/as detentores/as dos meios mais adequados para o acesso a verdade do/no mundo. Esta suposição autoriza estes/as a manipularem o mundo natural e social como bem lhes convém. É da pretensão de neutralidade, objetividade e universalidade do pensamento moderno/colonial, assentado na perspectiva científica de ler o mundo, que assenta a suposta superioridade epistêmica dessas formulações e a suposta inferioridade das outras (Restrepo & Rojas, 2010). O que é branco e eurocentrado é tomado como símbolo do universal e o que não é, é folclorizado e tomado como particular. Assim, por exemplo, é possível falar em cultura negra, música indígena, cosmovisão iorubá e assim por diante, mas não se pode falar em cultura branca, música branca ou cosmovisão branca, porque o branco é o universal, do qual todos/as compartilham, e não precisa ser especificado.

Como já vimos, estas articulações sustentam privilégios que legitimam um modo de vida, uma figura de humano, como superior. Nisso consiste a colonialidade do ser. A colonialidade do ser é o efeito de inferiorização e subalternização de uma vida. Segundo Nelson Maldonado-Torres (2006, 2007), o surgimento de reflexões sobre a colonialidade do ser visa aprofundar os efeitos da colonialidade da experiência vivida por povos e pessoas que são inferiorizadas, desumanizadas, total ou parcialmente, por seus modos de vida, costumes e saberes.

Esses efeitos atravessam a constituição do sujeito, tanto daqueles e daquelas que podemos identificar como estando do lado do/a colonizado/a quanto do lado do/a colonizador/a. Na perspectiva de Fanon (1961/1968), o processo de colonialismo não afeta apenas quem é inferiorizado/a, desumanizado/a, mas também aquele e aquela que encarna a humanidade, percebendo-se, portanto, superior/a aos povos colonizados. É necessário, então, considerar que a perspectiva da colonialidade do ser não diz apenas de uma negação de determinadas existências e do enaltecimento de outras, como pontua Maldonado-Torres (2006, 2007), deve ser pensada também em termos de uma produção de subjetividade eurocentrada (Castro-Gómez, 2012). Estas afirmações nos voltam a uma reflexão que aponta que a colonialidade produz sujeito e produz uma forma de existir, uma estética de si e da sociedade, ou seja, um modo de existir e se relacionar com o mundo e as pessoas. Dessa perspectiva, a colonialidade, suas manutenções, rearranjos e resistências devem ser problematizada também a partir da subjetividade, portanto em termos de assujeitamento, obrigando-nos a problematizar a resistência em termos de processos de subjetivação (Busso, 2012; Cajigas-Rotundo, 2012), pressupondo, em contrapartida, processos subjetivos de desclassificação e dessimbolização (Rancière, 1998/2014).

4 Considerações finais

Pelas considerações levantadas até então, é possível argumentar que os elementos que a colonialidade propaga e mantém no modo de vida das sociedades consideradas modernas configuram o que podemos denominar de estética moderno/colonial, ou partilha moderno/colonial, ou seja, uma forma específica de organizar o sensível e distribuir a vida em sociedade que contingencia as experiências e delimita os lugares, as funções, as identidades e, em consequência, as possibilidades de cada segmento humano e pessoa que participa desde comum (com)partilhado. Se a arkhé é a antecipação do direito de governar, vemos que no mundo moderno/colonial esta antecipação é feita pelos elementos que a colonialidade traz ao jogo, organizando as relações de poder.

Este é o argumento deste artigo: a colonialidade define a arkhé, o princípio que organiza a partilha do sensível segundo a qual estamos sujeitos no mundo moderno/colonial. Pelo caminho percorrido aqui, podemos afirmar que, do ponto de vista das argumentações decoloniais, a modernidade/colonialidade funda a arkhé em torno dos elementos étnico-raciais, de gênero, culturais, epistêmicos e econômicos instaurados por este modo de vida. Este movimento distribui e organiza os lugares, as funções, as identidades e as possibilidades de cada povo ou pessoa na partilha do sensível, configurando o que podemos denominar de estética moderno/colonial. Retomando a argumentação feita a partir de Jacques Rancière, podemos dizer que a modernidade/colonialidade instaura um dano geométrico e aritmético, constituindo vantagens (privilégios) em sociedade.

Assim, a colonialidade dá forma à comunidade definindo a existência do comum e dos recortes exclusivos de participação nesta, hierarquizando, respectivamente, as relações sociais e relegando a algumas pessoas e grupos humanos o lugar de apenas ser governados, por não deterem nenhuma propriedade (título), nada do que por princípio lhes permita governar (seja riqueza, conhecimento, descendência, cor, sexo, gênero, etc.). Estes grupos humanos são relegados, então, a não fazer parte da governança, subalternizando-os/as, apagando-os/as, matando-os/as. Esses/as são aqueles/as que identificamos nos lugares de inferioridade/subalternidade promovidos pela lógica moderno/colonial de relações (mulheres, negros, indígenas, e assim por diante). Sendo, então, a colonialidade um regime de sensibilidade que contingencia as experiências das diferentes pessoas na realidade social, caberia, a partir disso, um aprofundamento quanto aos mecanismos de desidentificação, inerentes aos processos de decolonização. Contribuição também possível a partir do pensamento de Jacques Rancière, mas que seria impossível ser elaborada neste artigo.

Por fim, convém salientar, não podemos supor que existe uma hierarquia (étnico-racial, de gênero, epistêmica, etc.) que se sobreponha as demais ou que possa ser identificada como determinante. A questão é a articulação. Falar que a colonialidade do poder estrutura as relações sociais e a geopolítica sem considerar a colonialidade de gênero, por exemplo, é um equívoco. Para pensar nas disposições de lugares, funções e identidades no mundo moderno/colonial, precisamos partir da articulação entre as diferentes facetas da colonialidade, problematizando a partir de cada localidade, buscamos identificar qual pode estar operando com mais força em determinado momento. Para pensar e analisar a colonialidade, precisamos olhar para a articulação em cada localidade. Há que se trabalhar, então, sempre de uma perspectiva interseccional que consiga problematizar tanto os diferentes lugares de sujeito quanto os diferentes jogos de poder. É esta articulação que definirá a arkhé moderno/colonial.

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