Dez livros que um sanitarista não pode deixar de ler

Ten books that a health worker cannot stop reading

  • Stela Nazareth Meneghel
Este texto foi apresentado em um encontro promovido pela Editora Fiocruz, que teve lugar no 6º Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Saúde, organizado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva em 2013. A ideia do ensaio foi apresentar e discutir textos técnicos e literários, que trouxessem aspectos relevantes para a saúde pública e coletiva. Elaborou-se então uma lista de livros que deveriam ser lidos pelos sanitaristas, incluindo alguns clássicos, referências históricas, outros com caráter regional ou de época. Alguns aspectos autobiográficos procuraram mostrar a relação da autora com a literatura. Foram elencados temas referentes à medicina social, biopoder, medicalização, fome, gentrificação, pedagogias libertárias, determinantes sociais, de gênero e raça. Espera-se que o texto aproxime os sanitaristas e trabalhadores de saúde aos textos literários, já que a literatura pode ampliar a compreensão daquilo que diz respeito ao adoecimento e ao sofrimento humanos.
    Palavras chave:
  • Saúde Coletiva
  • Saúde Pública
  • Literatura
This text was presented at a meeting promoted by Editora Fiocruz, which took place at the 6th Brazilian Congress of Social Sciences and Health, organized by the Brazilian Association of Public Health in 2013. The idea of the essay was to present and discuss technical and literary texts that brought aspects relevant to public and collective health. A list of books that should be read by the health workers was prepared including some classics, historical references, others with a time or regional character. Some autobiographical aspects sought to show the author’s relationship with literature. Subjects related to social medicine, medicalization, biopower, hunger, gentrification, libertarian pedagogies, social, gender and race determinants were listed. It is hoped that the text will bring sanitarians and health workers closer to literary texts, since literature can broaden the understanding of human sickness and suffering.
    Keywords:
  • Collective Health
  • Public Health
  • Literature

1 Explicando o porquê

Agora que terminou minha escada, devo deitar onde começam todas as escadas, no empoeirado brechó do coração
(Yeats, 1997, p. 356)

Este texto foi elaborado para o evento Espaço & Letras promovido pela Editora da FIOCRUZ no VI Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, em novembro de 2013, com o objetivo de apresentar e discutir aspectos da produção textual acadêmica, técnica ou de divulgação em saúde coletiva.

A partir do convite, a ideia que brotou foi a de elaborar uma lista de livros de cabeceira para os sanitaristas ou trabalhadores de saúde, a qual representaria, por sua vez, um conjunto de autores e, na medida em que uma referência poderia se ramificar em várias outras associadas à primeira, abriria a possibilidade de os autores conversarem entre si, incluindo ou citando outros mais. Desta maneira se poderiam resgatar livros pouco conhecidos, livros de época, os que saíram de moda, aqueles esquecidos, os que já não são mais lidos e valorizados. O difícil foi fazer uma seleção, já que muitas obras importantes caíram no esquecimento e que poderiam/deveriam ser lembradas, tiveram de ser omitidas.

Começando a pensar no assunto, uma das primeiras referências que me ocorreu foi a obra de ficção científica de Rad Bradbury (1967/2009), o Fahrenheit 451 que se passa em um momento futuro da humanidade, em que os livros são queimados pelos bombeiros e estão completamente proibidos com a justificativa de que devido ao seu caráter de estimular o pensamento crítico podem causar sofrimento aos leitores, a solução então é bani-los em prol do bem estar da humanidade. Neste cenário, uma comunidade de fugitivos do sistema, entre os quais o bombeiro Montag, decora livros clássicos, livros exemplares ou simplesmente livros prediletos de cada um deles. Esses infratores, leitores contumazes, se sacrificam para que as obras e autores sobrevivam ao regime ditatorial em que vivem, pelo amor à cultura, para preservar a história e a memória coletiva que a literatura representa. Ao ler este livro, eu ficava a cogitar qual o livro que eu escolheria para decorar, caso me defrontasse com essa necessidade. Esta pergunta não deixa de fazer eco com a elaboração da lista, ou da indicação dos livros que não podem ser esquecidos, uma questão que me seguiu pela vida, a partir do conto de Bradbury (figura 1).

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Figura 1

Fahrenheit 451
(Ilustração de Ralph Steadman, 2003)

Retornando à tarefa, pensei em começar a conversa, contando um pequeno excerto de uma escrita de Jorge Luiz Borges (1989/2007), um autor que não se pode deixar de ler, embora não tenha sido colocado na lista. A obra citada refere-se a um texto borgeano acerca de uma enciclopédia chinesa no qual ele compõe uma categorização surreal da qual fazem parte animais reais e imaginários, junto a outros mitológicos e cotidianos, fantasiosos e verídicos, em posições diversas, em diferentes ângulos, pertencentes a esta ou aquela pessoa e assim por diante. Assim inclui, por exemplo, um unicórnio e os camelos dos Reis Magos, um vira-lata, o Pégaso e a rena do Papai Noel.

Esse conto de Borges inspirou Michel Foucault que o utiliza na introdução de As palavras e as coisas (1981/1999). A taxonomia que classifica esses animais, diz Foucault é simplesmente a enumeração segundo as letras do alfabeto, estando lado a lado animais reais e fabulosos, os pertencentes ao imperador, os embalsamados, os domesticados, leitões e sereias, aqueles que se agitam e os que parecem moscas vistas ao longe. Esse quadro gera uma inquietação acerca da similaridade das coisas e lança ao leitor a interrogação sobre o mesmo e o outro, sobre as tênues fronteiras entre o normal e o patológico, o real e a fantasia, ao quebrar a possibilidade de um padrão, da formação de categorias e ao agrupar objetos segundo similaridades que logo se evanescem. Essa ausência de limite entre o real e o imaginário limita os esquemas científicos, classificatórios, excludentes, reforçando a ideia de Borges (1952/1972, p. 436) de que “a metafísica é apenas um ramo da literatura fantástica” ou como pontuou Clifford Geertz (1988, p. 140), “na ópera italiana ou na mecânica quântica a etnografia é um exercício de imaginação, menos extravagante que a primeira e menos metódica que a segunda”.

Trazer novas vozes para serem ouvidas na saúde coletiva, seja de outras áreas científicas relacionadas, como a antropologia, as ciências sociais e a história, seja de áreas não científicas e raramente ouvidas, como a filosofia, a arte, a literatura, a poesia, só tem a fecundar o campo. Para João Ricardo de Mesquita Ayres (2007/2009, p. 142) “esse trânsito entre os conceitos e entre estes e as linguagens não conceituais – as palavras altamente significativas de nossa linguagem cotidiana – é o que segundo a hermenêutica, faz a razão humana manifestar-se mais plenamente na sua condição emancipadora”.

Falar de literatura e saúde significa apostar em uma escrita que não é asséptica e higiênica, pois é povoada de dúvidas e impasses e deixa rastros de inúmeras implicações que a tecem (Machado, 2004). Significa escrever com sangue, sem temer nem mesmo o ridículo, como já havia escrito Walt Whitman (1855/2014).

Essas foram, portanto as apostas iniciais. Elaborar uma lista, que pretensiosamente escapasse do usual, dos livros mais citados, dos imprescindíveis, dos tops e, que incluísse os esquecidos, os fora de época. Uma lista dos 10 livros que um sanitarista não pode deixar de ler, mas que na realidade englobasse muitos outros que arborescessem a partir da primeira citação. Uma lista de livros que dizem respeito ao sanitarista, mas que não necessariamente tratem de temas do campo da saúde. Uma lista que pode ser considerada um convite, um jogo, uma viagem. Um olhar ao lado B, que inclua escritos considerados ultrapassados, anacrônicos, de outras épocas, fora de moda. Uma lista que talvez, como afirmou Marc Augé (1992/2012), diga mais de quem a escolheu do que dos próprios livros e autores citados. Apresento então, sem a pretensão de exaurir o tema, a lista dos livros cuja leitura indico aos sanitaristas, ou “os livros que um sanitarista não pode deixar de ler”. Enfim, vamos a ela.

2 A lista dos dez livros, que são outros tantos

Escreve com sangue e saberás que sangue é espírito (Nietzsche, 1994, p. 56)

Livro primeiro. O primeiro autor a ser citado é Friederich Engels. Sim, o filósofo, companheiro de escrita e militância de Karl Marx. Não se trata de uma escrita de saúde pública, é claro, mas do clássico, embora pouco lido atualmente, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (1845/2008). Mesmo assim, o relato jornalístico que para Engels constituía uma parte da história da Inglaterra, não deixa de ter matizes epidemiológicos. Escrito em 1845, o livro apresenta um amplo quadro das mazelas decorrentes do processo de industrialização que acontece na Inglaterra da Revolução Industrial e suas consequências na saúde física, mental e social da população trabalhadora, incluindo tanto o proletariado urbano, quanto o campesinato. O texto resulta de profundo trabalho de campo, desenvolvido pelo autor, que compreendeu visitas a cidades industriais, observações in loco em bairros operários e fábricas, entrevistas com médicos, administradores e vasta consulta a fontes documentais da época, incluindo periódicos de diversas orientações ideológicas. Engels descreve as epidemias de fome entre os camponeses da Irlanda e Escócia, o processo migratório para as grandes cidades, as condições de insalubridade, aglomeração, fome, jornadas de trabalho de 14 horas ou mais em troca de um salário que “só lhes permitia comprar batatas”. Conta da elevada mortalidade infantil e materna, do trabalho de crianças nas minas, nas fábricas, do não acesso à escola. Isso tudo minimizado pelo discurso de ideólogos conservadores, como a citação que descreve eufemisticamente o trabalho infantil. Atual?:

Visitei muitas fábricas em Manchester e arredores e nunca vi crianças maltratadas, submetidas a castigos corporais ou mesmo mal-humoradas. Pareciam todas alegres, tendo prazer em fazer trabalhar os músculos sem fadiga, gozando a vivacidade natural de sua idade (p. 190).

Nesse excerto, que nos parece quase uma paródia, o autor citado por Engels omite a vulnerabilidade das crianças aos constantes acidentes ocorridos com as máquinas pouco seguras da época, as afecções pulmonares adquiridas nas minas e tecelagens, a péssima alimentação e o excessivo dispêndio de energia para a idade e estatura, levando ao raquitismo e outras deformidades ósseas. Houve relatos de gênero mostrando, por exemplo, que as jovens operárias precisavam casar cedo para fugir da pobreza e dos assédios, engravidavam em seguida e, após o parto precisavam voltar imediatamente a seus postos, interrompendo a amamentação e mesmo sedando os bebês para mantê-los quietos enquanto trabalhavam. O alcoolismo era hábito disseminado e usado para aliviar os efeitos do trabalho extenuante e repetitivo. Engels relata a eclosão de epidemias de doenças infecciosas: cólera, febre tifoide, diarreias resultantes das péssimas condições de saneamento, acrescidas de aglomeração, contaminação de água e alimentos, jornadas de trabalho extensas, insalubres e perigosas, trazendo à tona a relação entre doenças, inclusive as infecciosas, e condições de vida.

Esta é a situação do proletariado inglês, conclui o autor. Para onde quer que nos voltemos vemos miséria, permanente ou temporária, doenças provocadas pelas condições de vida ou trabalho, a imoralidade, o extermínio, a destruição lenta da natureza humana, tanto do ponto de vista físico como moral. Será esta uma situação duradoura? (p. 239)

Parece-nos que sim, que esta situação continua até hoje, nas periferias, nas cidades dormitórios, nas favelas, incidindo cada vez mais na população daqueles considerados supérfluos, sobrantes, poderíamos responder a Engels, 150 anos após.

Livro segundo. Falar de populações supérfluas, sobrantes, elimináveis, remete ao conceito de necropolítica, formulado por pensadores atuais, mas pautado nos escritos iniciais de Michel Foucault. Então, falemos um pouco de Foucault, embora ele não possa ser considerado um autor pouco lido. Ao contrário. Mesmo assim, um sanitarista não precisa se tornar um foucaultiano, mas precisa ler, pelo menos, a Microfísica do poder (1979/2001), fazendo jus ao pensador que inventou o conceito de biopoder, a política de Estado que faz com que alguns tenham o direito de viver e outros não. A formulação deste conceito mostra a passagem de um regime em que o Estado soberano detinha o poder de matar para outro em que o Estado já não utiliza o ritual da morte espetacularizada, mas passa a exercer o poder de cuidar de alguns – fazendo-os viver – e deixar que outros simplesmente desapareçam. A Microfísica do Poder reúne uma série de textos e entrevistas que, de certa maneira, constituem uma síntese de vários conceitos, temas e perspectivas que atravessam a obra foucaultiana. Nesta coletânea aparecem pesquisas e análises caras à saúde coletiva, destacando-se os capítulos acerca do surgimento da medicina social, assim como as referências à organização do hospital na modernidade e uma apresentação da “casa da loucura”, trazendo reflexões sobre as práticas de asilamento que iniciam na idade moderna. Ainda aparece na obra, apresentada por Roberto Machado, conceitos referentes à sociedade de controle, aos regimes de verdade e à genealogia como método para investigar os discursos e as rarefações que acontecem ao longo das séries históricas de eventos. No texto acerca do nascimento da medicina social, uma referência essencial para quem estuda saúde pública ou saúde coletiva, Foucault mostra, que ao contrário do que muitos pensam, a medicina moderna ocidental, que surge em fins do século XVIII é uma prática social ancorada em certa tecnologia do corpo. Ou seja, o controle que a sociedade exerce sobre os indivíduos não opera apenas por meio da ideologia (interessante que neste texto Foucault usa a palavra ideologia, conceito que ele viria a refutar mais tarde), mas começa no corpo, no biológico. Assim, “o corpo é uma realidade biopolítica e a medicina é uma estratégia biopolítica” (p. 80). Mas não foi o corpo como força de produção aquele primeiramente assumido pela medicina, diz Foucault, outros foram os objetos e cenários focados pela organização médica na modernidade ocidental: deste modo, as atividades médico-sanitárias constituíram o escopo da medicina de Estado alemã; a arquitetura urbana e os elementos da polis potencialmente geradores de doenças foram abordados pelo urbanismo francês, e a medicina da força de trabalho na Inglaterra, esta sim, atuou sobre o corpo da população trabalhadora, incluindo melhoria nas condições laborais, diminuição da jornada de trabalho, supressão do trabalho infantil e alguma proteção em relação ao trabalho feminino.

Livro terceiro. Mencionando a medicina social e as três vertentes que lhe deram origem, há que citar George Rosen, autor de outro clássico: Da polícia médica à medicina social (1980). Neste texto, Rosen entende que o estudo da história da medicina funciona como subsídio teórico para os médicos situarem e avaliarem criticamente suas práticas. Porém, constata a presença irrelevante ou mesmo inexistente da história da medicina e da prática médica nos cursos de medicina da maior parte dos países. No capítulo denominado “O que é a medicina social?” o autor explica que a história da medicina social é, em grande parte, a história da política e da ação social em relação aos problemas de saúde. Ao referenciar as origens da medicina social, descreve os movimentos revolucionários que ocorreram na Europa na metade do século XVIII e que repercutiram fortemente na ação de médicos comprometidos com a saúde e o bem-estar da população. Esses médicos sociais ampliaram a concepção da medicina para entendê-la como política e social, expressas na formulação de Rudolf Wirchow de que “a medicina é uma ciência social e a política nada mais é do que a medicina em grande escala” (p. 81). Essas ideias já haviam sido descortinadas pelos estudiosos franceses como Villermé, que identificaram a existência de uma associação causal entre miséria social e doença. Neste contexto os médicos sociais estabeleceram uma série de princípios, sendo o primeiro deles a inequívoca responsabilidade do Estado pela saúde da população, em que todas as pessoas possuem direitos iguais. O segundo princípio explicita a relação entre condições socioeconômicas e estado de saúde e doença, de modo que a maioria das doenças pode ser atribuída a condições artificialmente produzidas. Nesse sentido, estes pensadores desenvolveram uma teoria das epidemias, consideradas como a expressão de distúrbios de natureza social e econômica e, para tal questionaram se “as epidemias não apontarão sempre para deficiências na sociedade?” (p. 84). O ultimo princípio propunha a inclusão de medidas não apenas médicas, mas sociais para a proteção e combate às doenças. Ainda nesta obra, Rosen descreve as duas outras vertentes da medicina social: a polícia médica que se desenvolve na Alemanha, representando um esforço de analisar sistematicamente os problemas de saúde das comunidades, culminando com a atuação de Johan Peter Frank e a medicina da força de trabalho que se organiza na Inglaterra, voltada para a melhoria das condições de trabalho, o que iria repercutir na chamada Revolução Vital, que proporcionou pela primeira vez na história da humanidade um significativo aumento na expectativa de vida da população.

Livro quarto. Tecemos agora, dando um salto temporal, algumas considerações acerca do modelo da História Natural da Doença, elaborado em 1929, frente à crise do capitalismo, que fazia premente a busca por estratégias que significassem redução de custos ao modelo hospitalocêntrico, dispendioso e pouco eficiente. Estamos falando de O dilema preventivista. Contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva, a tese de doutorado de Sergio Arouca, uma das figuras chave do sanitarismo brasileiro. Nesta obra, elaborada em 1975, Arouca expõe a crítica realizada pelo movimento preventivista à medicina curativa, uma prática dispendiosa, especializada, focada no biológico, em que a prevenção e a reabilitação são secundárias. Em contrapartida os preventivistas postulavam a possibilidade de enfrentar, interromper ou impedir as doenças, apostando na prevenção e promoção da saúde. Para analisar o modelo preventivista como uma “nova atitude” ou uma nova ideologia, Arouca demonstra que a medicina funciona como reguladora da produtividade da força de trabalho e de diminuição de tensões sociais. Nesse sentido, o movimento preventivista representou uma leitura liberal e civil dos problemas do crescente custo da atenção médica nos Estados Unidos e uma proposta alternativa à intervenção estatal, mantendo a organização liberal da prática médica e o poder médico. A proposta preventivista baseou-se em uma redefinição da prática médica relacionando-a com a comunidade, com os serviços públicos de saúde, com a promoção e a proteção da saúde do indivíduo e de sua família. Introduziu o conceito ecológico de saúde e doença, a ideia de uma História Natural das Doenças que opera como um modelo reorganizador do conhecimento médico, compondo o conhecimento fisiopatológico e epidemiológico em um mesmo espaço envolvido por um social mistificado, deteriorado, minimizado. A História Natural das Doenças está baseada em um esquema cartesiano em que em um dos eixos está o tempo e no outro a enfermidade. Inicia com um estado de equilíbrio entre o homem, submetido a fatores determinantes de enfermidades, o ambiente e os agentes das doenças, dentro de um enfoque nitidamente mecanicista onde os homens e os agentes agem como os pratos de uma balança e o ambiente como fiel da mesma interferindo no sentido em que a balança se inclinará. Os homens estão submetidos à “capa misteriosa do ambiente”, uma combinação homogênea entre os níveis físico-químico, biológico e social. A Medicina Preventiva assume a ideia de multicausalidade na gênese das doenças, que representa uma simplificação do real, subestimando a determinação social da saúde/doença. Em síntese, a teoria preventivista, “possui uma baixa densidade política ao não realizar modificações nas relações sociais concretas e uma alta densidade ideológica ao constituir, através do seu discurso, uma construção teórico-ideológica do adoecimento” (p. 179), conclui o autor.

Livro quinto. Gêneros, mulheres, feminismos. Gênero, apesar das intenções de ser tratado como um tema transversal às políticas públicas e de constituir um dos determinantes da saúde/doença, ainda é um tema periférico na saúde coletiva. O movimento de mulheres, que protagonizou a luta sufragista no fim do século XIX, inicia uma nova onda a partir de maio de 68, alavancando intensa produção teórica e prática, que no contemporâneo ramifica-se em inúmeras vertentes, dentre as quais o feminismo da igualdade, a teoria do patriarcado, o feminismo negro, a perspectiva decolonial, a teoria queer. Para introduzir a perspectiva de gênero conversando com a literatura, cito um ensaio despretensioso, escrito por Virginia Woolf chamado Um teto todo seu (1985) no qual a autora chama a atenção para a precariedade de recursos econômicos das mulheres, os novos pobres do mundo. Virginia inventa uma pretensa irmã de William Shakespeare, que vivendo o mesmo mundo do irmão, gostaria de se tornar escritora. A questão é que a irmã, como mulher de seu tempo, não foi à escola e não aprendeu a ler, nem podia sair de casa e perambular pela cidade acumulando experiências porque estava amarrada ao trabalho doméstico. Precisou se prostituir e morreu pobre e solitária. Virginia Woolf conclui que as mulheres para fazer literatura [e para sobreviver], necessitariam de uma casa e uma renda ou um salário. Autonomia e trabalho, igualdade de direitos e de oportunidades para homens e mulheres, uma demanda mínima e que ainda não foi atingida em uma sociedade onde as mulheres continuam ganhando menos que os homens para o desempenho das mesmas atividades, constituem a maioria das trabalhadoras em situações de precariedade, ocupam os postos que geram mais cansaço, tédio e sofrimento mental, e seguem realizando dupla ou tripla jornada de trabalho. Indicamos, para introduzir o tema do patriarcado, O contrato sexual (1993), de Carole Pateman. Nele, a autora afirma que o contrato social inaugurado pelo liberalismo, deixou subsumido o contrato sexual, no qual o direito político, na realidade, constitui o direito patriarcal ou o poder que os homens exercem sobre as mulheres.

A nova sociedade civil criada através do contrato original é uma ordem social patriarcal. Assim, a dominação dos homens sobre as mulheres e o direito masculino de acesso sexual regular a elas estão presentes na formulação do pacto original. O contrato social é uma história de liberdade; o contrato sexual é uma história de sujeição. O contrato original cria a ambas, a liberdade e a dominação. (p. 16)

Atualmente a relação entre classe, raça e gênero denominada interseccionalidade pelo feminismo negro, inclui o ponto de vista do patriarcado moderno no qual as mulheres negras são as mais espoliadas e reforça a importância de não segmentar os temas e as lutas, de não isolar as questões culturais e identitárias dos determinantes sociais e econômicos.

Livro sexto. Pele negra, máscaras brancas (1952/2008) um livro escrito no pós-guerra, no qual Frantz Fanon faz coro ao poeta Aimé Césaire (1978, p. 26), antilhano como ele, que dizia: “falo de milhões de homens em quem deliberadamente inculcaram o medo, o complexo de inferioridade, o temor, a prostração, o desespero, o servilismo”, referindo-se à ideologia racista e ao comportamento escravocrata, mesmo que disfarçado, presente na sociedade ocidental. Fanon nos conta do homem negro cindido pelo padrão de branquitude vigente, em que não há escapatória a não ser para o negro “bom”, aquele que beija a mão do branco supostamente protetor. Fala do quão difícil é romper com a inferioridade inculcada e com o processo de menorização e desvalorização, que os próprios negros podem reproduzir e aceitar. Conclui que só há uma solução para o homem negro, a luta no combate contra a exploração, a miséria e a fome. “Toda vez em que um homem fizer triunfar a dignidade do espírito, toda a vez em que um homem disser não a qualquer tentativa de opressão do seu semelhante, sinto-me solidário com seu ato” (p. 187). O jovem negro, médico psiquiatra, morto prematuramente, escreve como um profeta para denunciar a escravidão que ainda subjuga o povo negro. Finaliza o livro com uma série de prescrições, nas quais o humanismo, a consciência crítica e a luta pela libertação, se fazem ouvir:

Que cesse para sempre a servidão do homem pelo homem. Ou seja, de mim por outro. Que me seja permitido descobrir e querer bem ao homem, onde quer que ele se encontre. O preto não é. Não mais do que o branco (...). Minha última prece: que meu corpo faça sempre de mim um homem que questiona! (p. 191)

A metáfora da máscara branca colocada para sobreviver denuncia o racismo presente na sociedade e deixa claro que a raça é um dos determinantes das iniquidades que sustentam o sistema capitalista.

Livro sétimo. A expropriação da saúde. Nêmesis da medicina (1975). Ivan Illitch, autor da obra, ao verificar a alta frequência de eventos adversos decorrentes da medicalização maciça da sociedade, cunhou o termo “iatrogenia médica”. Illich entendeu que a medicina no capitalismo preocupa-se com o indivíduo doente e não com a saúde da população como um todo. Neste cenário, a atividade de cura sofre uma transformação, passando da concepção de “dom” para a de mercadoria. O autor usa o conceito grego de “nêmesis” ou justiça equitativa, cujo significado implica que as pessoas ou a sociedade devem pagar pelas infrações cometidas. Diz ele:

Nêmesis se tornou estrutural e endêmica. O efeito indireto de empresas que poderiam proteger o homem contra um meio ambiente hostil e contra a injustiça praticada pela elite foi reduzir a autonomia e aumentar a miséria da humanidade. (...) Quanto maior é o progresso econômico de uma comunidade, mais importante é o papel da nêmesis industrial para gerar o mal. (p. 191)

Esse livro influenciou profundamente a geração de sanitaristas dos anos 1970 e embora o autor tenha criticado seus próprios conceitos alguns anos mais tarde, minimizando os efeitos iatrogênicos da medicina e apontando avanços no cuidado das pessoas, o livro não perdeu o poder explicativo e o sabor contestatório. Illitch identificou que o mito da supressão da dor e o prolongamento artificial da vida impedem que os homens encontrem um sentido para a doença e para a morte, em última análise para a vida. De maneira similar, o modelo iatrogênico estimula o incremento de toda a sorte de intervenções e uso de artefatos e fármacos em benefício do capital, em detrimento do humano.

Livro oitavo. Geopolítica da fome de Josué de Castro (1951). Nordestino, filho de retirantes, médico e ativista, dedicou a vida ao combate da fome. Em Geopolítica da fome o autor denuncia a fome como um flagelo fabricado por homens contra homens, devido à desigualdade entre regiões e classes sociais. Entende a fome como um fenômeno político e social e um tema tabu. Quais são os fatores ocultos que tornam a fome um tema demonizado pelos que desejam se apoderar e concentrar cada vez mais a propriedade da terra, é uma das perguntas formuladas por Josué:

Trata-se de um silêncio premeditado pela própria alma da cultura, já que os interesses e os preconceitos de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental tomaram a fome um tema proibido [ele responde]. Nenhum fator é mais negativo para a situação de abastecimento alimentar do país do que a sua estrutura agrária feudal, com um regime inadequado de propriedade, com relações de trabalho socialmente superadas e com a não utilização da riqueza potencial dos solos. (p. 178)

Como solução, Josué propõe a Reforma Agrária, outro tema eivado de preconceitos pelas elites interessadas em manter a estrutura fundiária nas mãos de poucos. A concentração da propriedade rural e a legião dos sem-terra que produz, constituem o mecanismo perverso de geração da fome. Josué de Castro questionou os neomalthusianos que atribuem a problemática da fome ao aumento demográfico, considerando que na realidade é a pobreza que leva ao aumento da taxa de natalidade. Propôs um programa para vencer a fome, que incluía o combate ao latifúndio e à monocultura, a isenção de impostos e o financiamento bancário aos produtores rurais, o estímulo à pesquisa e a criação de bons hábitos nutricionais. Um livro [quase que] esquecido, mas relevante e atual.

Livro nono. Planeta Favela, do Mike Davis, ou o que está ocorrendo no processo de ocupação do território urbano. Embora seja um livro recente, Planeta Favela (2006), ainda é pouco conhecido no campo da saúde. Nele, Mike fala de uma nova geografia habitacional e urbana do século XXI, em cenários de pobreza onde vive a maioria dos habitantes das megacidades quer seja na América Latina, na Ásia ou, mesmo, nos quintais dos europeus e americanos. Ele analisa as consequências desastrosas das políticas neoliberais nas favelas do mundo: desemprego, criminalidade, máfias, incapacidade dos Estados de oferecer infraestrutura e habitações populares, remoções para a especulação imobiliária, gentrificação, soluções ilusórias de ONGs e organismos multilaterais, riscos ambientais e sanitários, exposição a resíduos tóxicos e carência de saneamento básico, crescimento do fundamentalismo religioso e disseminação de doenças. Neste cenário emerge um novo conflito de classes, entre os que vivem dentro dos muros fortificados dos condomínios de luxo e os excedentes que habitam as quase 200 mil favelas do mundo.

Livro décimo. Pedagogia do oprimido. Paulo Freire não poderia estar ausente nesta lista de obras que precisam ser lidas pelos sanitaristas. Na Pedagogia do Oprimido (1974/1983) estão colocados os princípios da educação baseada no diálogo que supera as velhas formas bancárias de transmitir conhecimento. A pedagogia freireana é instrumento de reflexão crítica, transformação e liberação dos oprimidos, ao contrário dos modelos tradicionais que subordinam e sujeitam. Freire afirma que nenhuma pedagogia libertadora pode ficar distante dos oprimidos e questiona:

Quem, melhor que os oprimidos se encontra preparado para entender o significado de uma sociedade opressora e os efeitos da opressão? Quem, mais que eles, para compreender a necessidade da libertação? Libertação a que não chegarão pelo acaso, mas pela práxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela. Luta que, pela finalidade que lhe derem os oprimidos, será um ato de amor, com o qual se oporão ao desamor contido na violência dos opressores, até mesmo quando esta se reveste da falsa generosidade. (p. 31)

Freire alerta também sobre o fascínio que o opressor pode exercer sobre o oprimido, que quer igualar-se a ele, “carregá-lo dentro de si”. Os oprimidos, de tanto ouvirem de si mesmos que são incapazes, que não sabem nada, que são preguiçosos, acabam se convencendo disso e, enquanto não se dão conta de como são manipulados, assumem posições passivas, fatalistas, de descrédito de si, indiferentes à necessidade de luta pela conquista da liberdade. Na luta pela libertação, ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho, os homens se libertam em comunhão. Palavras revolucionárias de uma pedagogia de libertação. Paulo Freire está tão incorporado nas práticas e no dia-a-dia do trabalho dos sanitaristas, quer seja na educação popular, na promoção da saúde, no cuidado e no diálogo com as pessoas e com as populações, que mesmo quando não citado seus princípios e ideias estão presentes.

3 A literatura na minha vida

Mesmo entre chamas ferozes pode-se plantar o lótus dourado.
(Baghavad Gita, citado por Carvalho, 2003, p. 35)

A literatura, assegurei em outro texto (Meneghel, 2015), assim como a arte, a pintura e o cinema, tem traçado um painel de época, inclusive no âmbito sanitário, muito mais atual e preciso do que dezenas de compêndios e artigos científicos. Escritores, ao longo da história, descreveram situações de saúde e doença, falaram de epidemias e vulnerabilidades, das agudas diferenças sociais, de gênero e raça que afetam as populações.

Além disso, a literatura pode operar como um antídoto à doença, à depressão e à vulnerabilidade e assim como assinalado por Vitor Hugo, mais escolas significam menos prisões. E ao falar de Vitor Hugo remeto a minha própria história de vida, na qual a literatura me protegeu da tristeza e da depressão em vários momentos de crise e de perdas, deu sentido e resposta para problemas e me ajudou a entender e enfrentar conflitos existenciais e injustiças sofridas. Muitas foram as bibliotecas em que busquei refúgio e acolhimento ao longo da vida.

E por falar em bibliotecas, lembro-me de uma matéria jornalística que trazia o relato de um trabalhador da coleta de lixo da cidade de Bogotá. Conta ele que certo dia encontra entre os resíduos um exemplar da Anna Karenina de Tolstói. Ele recolhe o livro e passa a noite lendo, como o Montag de Bradbury quando resolveu infringir as normas da sociedade de controle em que vivia e ousou ler um livro. A partir do encontro com Tolstói, ele se torna um leitor assíduo e coloca todo o empenho em organizar uma biblioteca com obras encontradas nos descartes, que contava na ocasião da veiculação da notícia com 4000 exemplares, e se tornou referência para as crianças e os adultos do bairro popular onde vivem na cidade de Bogotá (Aleteia, 2018) .

Fui alfabetizada muito cedo pelo meu pai, também já contei esta história, usando as folhas de papel de embrulho no armazém de secos e molhados. Na casa humilde em que vivia, cultivava-se o hábito da leitura oral, minha irmã lia enquanto a mãe costurava. Certamente foram lidos muitos romances para moças, aquelas estórias açucaradas repletas de instruções para socializar as jovens para “serem belas, recatadas e casadoiras”. Porém, dessas sessões de leitura me marcou profundamente a história de Jean Valjean, contada por Vitor Hugo (1862/1962), o escritor que se notabilizou pela crítica incansável das desigualdades sociais e do cruel sistema prisional vigente na época, capaz de enviar às galés por mais de vinte anos um homem cujo único crime foi ter roubado um pão. A relação de Valjean com o abade, por meio do qual ele conhece a compaixão e com o policial que o caça implacavelmente apenas para satisfazer sua vaidade pessoal, me acompanharam pela vida e, certamente influenciaram a escolha pela saúde pública e coletiva, enquanto ideário de igualdade, equidade e justiça social. Quantas vezes, ao término de um livro, me senti identificada com a vítima entendendo que apesar do sofrimento, das injustiças e da adversidade, a luta continua.

As centenas, talvez milhares de histórias, contos, poesias, relatos de viagem, romances e dramas que fazem parte do legado cultural literário da humanidade, que atravessam diferentes épocas e regiões, trazem uma grande riqueza e diversidade de temas referentes à saúde coletiva. Do clássico Ares, águas e lugares (Cairos & Ribeiro, 2005), escrito por Hipócrates de Cós, ao texto grafitado rua há uma relação de troca e complementaridade entre a escrita poética, metafórica, literária e a saúde. Encontramos relatos preciosos que versam sobre questões relacionadas a doenças e agravos (doenças infecciosas, epidêmicas, agravos de caráter crônico, sofrimento mental, suicídio, depressão), ciclos de vida (nascimento, infância, adolescência, casamento, gestação, velhice, morte), situações de vulnerabilidade (migrações, prostituição, pobreza, população de rua, trabalho precário), gênero (feminismos, desigualdades, estereótipos, exploração sexual, femicídios), raça/etnia (racismo, preconceito, escravidão, eugenia, necropolitica, movimento negro), classe social (revoltas operárias, exploração, trabalho, precarização, acidentes, trabalho escravo, capitalismo) dentre outras tantas perspectivas que, podem ser usadas para ampliar a compreensão tanto dos fenômenos de saúde doença, quanto da sua prevenção e enfrentamento, além de relatos e histórias sobre serviços de saúde, cuidado, educação em saúde, pesquisa médica e experimentos no campo da saúde, questões éticas e participação social.

Mais tarde, a literatura passaria a fazer parte de minhas ferramentas usadas em sala de aula. E como colocou Howard Becker, a experiência docente sempre o levou a preferir os exemplos às definições gerais, evidenciando que muitas vezes ao término de um programa de aprendizagem, o que permanecem são as histórias que contamos. Para exemplificar, Howard Becker (1998/2009) relata que quando iniciava a vida acadêmica como professor de sociologia da arte, tinha especial interesse nas discussões teóricas sobre a arte como produto social. Porém, para ocupar todas as horas das aulas precisava contar muitas histórias. Uma delas era sobre as Torres Watts, a incrível construção realizada por um pedreiro imigrante italiano em Los Angeles da década de 1930. Simon Rodia, o construtor das Torres as fez sem ajuda de ninguém, nem de quaisquer teorias, ideias, material artístico ou história da arte.

Expliquei a eles que aquela obra deixava transparecer esta independência, ao contrário da maioria das outras obras arquitetônicas. Foi muito alentador ouvir dos alunos mais tarde, que a única coisa que recordavam daquele curso eram as Torres Watts. Alguns se deram conta do trabalho que tive para explicar o tema, mas a maioria lembrava apenas das Torres, da história daquele individuo louco e de sua louca obra de arte. Assim, aprendi que as pessoas prestam atenção e lembram muito mais das histórias e dos exemplos. (p. 19)

A literatura é, então, uma ferramenta potente para ser usada em situações de aprendizagem desde o ensino fundamental até a pós-graduação. Ouvir e contar histórias, trazer para o cenário de sala de aula, descrições literárias, jornalísticas, estimular os educandos a escreverem seus próprios textos literários versando sobre questões caras à saúde coletiva, amplia e enriquece os temas abordados. Assim, aproveita-se tudo, bem disse Umberto Eco (1977/2007, p.233) que “fazer uma tese é como um porco, a gente aproveita tudo”. Aproveita-se tudo, mesmo os elementos inferiores, vergonhosos, escondidos, aqueles considerados sujos e descartáveis, como destaca Walter Benjamin (1994) ao criar a figura do narrador sucateiro. Este narrador sucateiro, trapeiro ou coletador de sucata não tem por objetivo falar sobre os grandes feitos, mas é aquele que recolhe os cacos, os restos, os detritos, movido pela pobreza e pelo desejo de não deixar nada se perder, quer seja o sofrimento, quer seja aqueles que não têm nome, aqueles que não deixam rastro ou aquilo que é inerranável (Gagnebin, 2004).

Entre tantas, fortes e marcantes referências e autores que poderiam ser citados e lembrados e, a guisa de conclusão, trago apenas um autor brasileiro, um cara fora de moda, que retratou cenários e acontecimentos de saúde pública em muitas de suas obras, denunciando a desigualdade social no Brasil de maneira precisa e magistral nos romances de suas várias fases, quase que relatos sociológicos, porém sem nunca se tornar chato, arrogante ou deixar escapar o bom-humor, a sensualidade e a afetividade. Amado, Jorge Amado. Das muitas obras, do ciclo do cacau, dos escritos que falam de Salvador, do cais, do areal, dos saveiros [algumas das quais eu, ainda adolescente, li em pé atrás da porta para esconder rapidamente o livro caso fosse surpreendida, já que eram livros censurados], vou escolher Teresa Batista cansada de guerra. Maravilhosa e bela Teresa, vendida pela tia ao dono do armazém ainda menina, violada sexualmente, empregada doméstica, puta por falta de recursos e opção, sofreu e enfrentou — como tantas outras mulheres brasileiras pobres e racializadas — toda a sorte de iniquidades, preconceitos e violências, mas não se deixou abater. Teresa, filha de Iansã.

Em Teresa Batista cansada de guerra (Amado, 1972/1984), uma história que também mostra o cenário de pobreza e a eclosão de epidemias nos sertões da Bahia, o autor recupera dados históricos e conta de médicos indicados por políticos para trabalhar nos postos de saúde que fugiam rapidamente dos locais de trabalho quando havia epidemias. Conta também das prostitutas que, frente à varíola, se colocaram como protagonistas para cuidar e consolar os doentes, limpar as casas, alimentar os sobreviventes, vestir e enterrar os mortos. Essas mulheres, no caso Teresa Batista, corajosamente se expunham ao risco de se infectarem, como ocorre até os dias atuais, sem salário nem agradecimentos, apenas cuidando e ajudando as pessoas e os doentes de modo solidário e generoso.

Assim, ao descrever a emergência de uma epidemia de varíola no interior da Bahia, Jorge (salve Jorge!) traz para a linguagem poética a determinação social da saúde/doença vislumbrada pelos médicos sociais do século XVIII e pelos sanitaristas de ontem e de hoje. Enfim, ouçamos a narrativa, a voz do contador de histórias que arma, tece e costura a trama:

Cega, vazios os buracos dos olhos, os gadanhos pingando pus, feitas de chagas e de fedentina, a bexiga negra desembarcou em Buquim de um cargueiro da Leste Brasileira, vindo das margens do rio são Francisco, entre suas múltiplas moradas uma das preferidas: naquelas barrancas as pestes celebram tratos e acordos, reunidas em conferências e congressos - o tifo acompanhado da fúnebre família das febres tifóide e dos paratifos, a malária, a lepra milenária e cada vez mais jovem, a doença de Chagas, a febre amarela, a disenteria especialista em matar crianças, a velha bubônica ainda na brecha, a tísica, febres diversas e o analfabetismo, pai e patriarca. Ali, nas margens do São Francisco, em sertão de cinco Estados, as epidemias possuem aliados poderosos: os donos da terra, os coronéis, os delegados de polícia, os comandantes dos destacamentos de força pública, os chefetes, os mandatários, os politiqueiros, enfim o soberano governo. (Amado, 1972/1984, p. 188)

Poderia emendar outros temas, assuntos, autores. Mas essas histórias ficam para outra ocasião (Figura 2).

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Figura 2

Teresa Batista cansada de guerra.
(Xilogravura de Calasans Neto, 1972)

4 Referências

Aleteia. Histórias inspiradoras (2018) Catador monta biblioteca comunitária para crianças com livros achados no lixo. Disponível em: https://pt.aleteia.org/2018/06/19/catador-monta-biblioteca-comunitaria-para-criancas-com-livros-achados-no-lixo/

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