Coreopolítica: a dança presente na cidade

Coreopolitics: the dance present in the city

  • Marina Souza Lobo Guzzo
É objetivo deste artigo desdobrar a noção de coreopolítica proposta pelo pesquisador André Lepecki, ampliada a partir de uma discussão entre as fronteiras da dança e da performance, colocando em evidência o corpo como produtor de discursos estéticos e políticos. Essa aproximação acontece partir de uma cartografia de trabalhos recentes da cena contemporânea da cidade, recortados das edições do edital de Fomento à Dança de São Paulo, que existe desde 2006, e vem fomentando formas distintas de produção e criação em dança. Este edital proporcionou que a criação tenha extrapolado palcos e equipamentos culturais, se apropriando do espaço público para criar “manifestos”. Três noções de aproximação da cidade são apresentadas para aproximar o corpo de dança ao conceito de coreopolítica: a flaneurie, a cartografia e a deriva.
    Palavras chave:
  • Dança
  • Política
  • Cidade
  • Arte
The objective of this article is to unravel the notion of coreopolitics proposed by the researcher André Lepecki, amplified from a discussion between the boundaries of dance and performance, highlighting the body as a producer of aesthetic and political discourses. This approach comes from a cartography of recent works from the contemporary scene of the city, cut from editions of the edict of Fomento à Dança de São Paulo, which has existed since 2006, and has been fomenting different forms of production and creation in dance. extrapolating stages and cultural equipment, appropriating the public space to create “manifestos”. Three figures of approach of the city are presented to bring the body of dance closer to the concept of coreopolitics: the flaneur, the cartographer and the nomad.
    Keywords:
  • Dance
  • Politics
  • City
  • Art

1 Introdução

É objetivo deste artigo desdobrar a noção de coreopolítica proposta pelo pesquisador André Lepecki (2012), ampliada a partir de uma discussão entre as fronteiras da dança e da performance, colocando em evidência o corpo como produtor de discursos estéticos e políticos. Pretende-se examinar a aproximação da performance ou coreografia política como manifesto e como essas ações aconteceram a partir de uma maneira de produzir dança na cidade de São Paulo. Essa aproximação acontece partir de uma cartografia de trabalhos recentes da cena contemporânea da cidade, recortados das edições do edital de Fomento à Dança de São Paulo, que existe desde 2006, e vem fomentando formas distintas de produção e criação em dança. Este edital proporcionou que a criação tenha extrapolado palcos e equipamentos culturais, se apropriando do espaço público para criar “manifestos”. Três noções de aproximação da cidade são apresentadas para aproximar o corpo de dança ao conceito de coreopolítica: a flaneurie, a cartografia e a deriva.

A cidade, as políticas culturais e os próprios artistas criam outros contextos para a dança, inventando a forma de se relacionar com o espaço e com o corpo. O que se destaca nesse tipo de contexto criativo recortado por este artigo é que o coreógrafo, que também é pesquisador e artista propositor de modos de fazer dança distintos e conectados com a cidade, abandona a ideia de “imagem” e “representação” para performar.

A ideia de representação é complexa e envolve elaborações de diversos autores, mas neste trabalho, ela está circunscrita a partir da obra de Jacques Rancière (2012), "O espectador emancipado"1, na qual o autor critica uma ética hierárquica de autoridade no campo das artes, propondo uma relação de jogo entre o espectador e a obra, propondo uma outra forma de relação entre artistas e espectadores:

O “instinto de jogo” próprio à experiência neutraliza a oposição que tradicionalmente caracterizava a arte e seu enraizamento social: a arte se definia pela imposição ativa de uma forma à matéria passiva, e esse efeito a coadunava com uma hierarquia social na qual os homens da inteligência ativa dominavam os homens da passividade material. (Rancière, 2012, p. 58)

A dança, ou a performance de dança, passa a ser proposta como experiência, manifesto e ocupação, portanto, política, num jogo encontro com a cidade e a arquitetura, seja por obras feitas exclusivamente para espaços públicos ou por trabalhos de dança que são feitos em espaços “alternativos” de centros culturais. Essas obras emergem principalmente da política pública da cidade de São Paulo, que teve seu início em 2006 e já alcança sua 20a edição de financiamento à dança contemporânea — e que atualmente passa por reformulações e gera protestos por parte da classe artística.

O Programa de Fomento à Dança de São Paulo, criado em 2006 a partir da Lei 14072/05, por um grupo de artistas e militantes provenientes, principalmente, do que se conveniou chamar “Dança Contemporânea”, comprometeu-se a destinar recursos da Prefeitura Municipal de São Paulo para pesquisa, produção, circulação e manutenção de companhias estabelecidas na cidade há pelo menos três anos, com o objetivo principal de refletir e formar novos públicos para dança. Em 2016, o Fomento completa 20 edições tendo fomentado mais de 216 projetos de 73 grupos da cidade de São Paulo.

Ao longo desse tempo, que somam 10 anos, observa-se um grande número de obras e artistas que se propõem a dialogar com a cidade, incluindo formas de ocupação, diferentes usos do espaço (mesmo do palco) ou outros espaços arquitetônicos (sendo centros culturais ou não) colocando outras perspectivas de coreografar mesmo quando o palco e a plateia poderiam estar configurados da forma tradicional italiana.

Durante esse período, também é possível apontar uma grande movimentação política e cultural na cidade de São Paulo, proposta não só pela Lei de Fomento à Dança, mas também pelos programas de formação propostos pelo Plano Municipal de Cultura, que desde 2013 inclui um debate intenso com artistas e comunidades sobre metas e diretrizes para programas de formação como VAI 1 e VAI 2 e Projeto Vocacional, e também para os equipamentos culturais da cidade, que são mais de 200 incluindo bibliotecas, casas de cultura, centros culturais, casas históricas, cinemas, espaços museológicos e teatros municipais (Plano Municipal de Cultura). Nesse período, a dança passa a fazer parte de um cenário de intensas possibilidades de ação e transformação. Perguntas para ampliar e construir essa realidade começam a tecer e construir alguns projetos artísticos dessa linguagem. Habitar, coexistir, viver junto: aproximação dos artistas das crises vividas nos colapsos das grandes cidades, onde o artista passa a ter papel fundamental de apontar caminhos e inventar modos possíveis de conviver e estar junto?

Essas perguntas nortearam o recorte metodológico para escolher os trabalhos que constam nesta pesquisa: foram analisados trabalhos que aconteceram de 2011 a 2014, que tiveram o apoio do edital do Fomento à Dança e que, em sua pesquisa, apontaram discussões sobre coreografia como política de ocupação, uso de espaços da cidade que não sejam teatros. Os trabalhos foram analisados a partir de documentos escritos, críticas e experiência da pesquisadora (diário de campo). Os trabalhos selecionados estimulam a reflexão sobre a relação de dança com política, seja pela maneira como os corpos se movimentam e ocupam os espaços públicos — questionando fluxos, usos e maneiras de estar na cidade — seja pela forma como a pesquisa foi proposta, em articulação com o público, equipamentos ou espaços culturais abandonados, esquecidos, criando novas formas de ocupação e olhar para a cidade.

A noção de coreopolítica de André Lepecki (2012) foi fundamental para esse recorte: uma noção expandida da dança, onde o coreógrafo e bailarinos, atentos aos seus gestos e propostas coreográficas, se colocam num fazer “particular e imanente de ação cujo principal objeto é aquilo que Paul Carter chamou, no seu livro The Lie of the Land, de ‘política do chão’” (Lepecki, 2012, p. 47). Para Carter (apud Lepecki, 2012), a política do chão é estar atento a todos os elementos de uma situação, principalmente suas particularidades físicas, ou seja, o chão que estamos pisando, de maneira a incluir o chão e o corpo para compor a história.

Ou seja, para esse trabalho, a partir desse conceito, foram escolhidas obras e artistas que, de alguma maneira, praticaram em suas propostas uma política coreográfica do chão, atentando à maneira como suas obras coreográficas determinam os modos como danças se situam no(s) chão(s) da cidade de São Paulo, que as sustentam; e como esses "diferentes chãos sustentam diferentes danças transformando-as, mas também se transformando no processo" (Lepecki, 2012, p. 47). Após o recorte teórico, a metodologia para a pesquisa foi cartográfica, baseada na proposta de Virginia Kastrup (2007), que se baseia no rastreio, observação dos dados e na desfocalização e na atenção para seguir um processo, empenhando-se em estudá-lo e analisá-lo.

A medida do cartógrafo está baseada na consideração relevante dos dados e informações obtidos na observação como um todo, dando ênfase em absorção do conteúdo e seu sentido sem deixar de tomar notas por tendências de irrelevância de modo ou expressão influenciadas de si próprio. Neste caso, quando em observação flutuante ou desconexa, a atenção pode ser guiada por caracteres no trabalho prático cartográfico, como o rastreio, o toque, o pouso e o reconhecimento atento. (Kastrup, 2007, p. 18)

Isso se fez muito presente no que diz respeito ao colhimento de dados para esse artigo, em que a pesquisadora se propôs a dar o máximo de atenção possível às informações e que, em alguns momentos, se tornam focada em determinada situação ou elemento, e dispersa, flutuante sobre o ambiente (“prestar igual atenção a tudo” [Kastrup, 2007, p. 16]).

O contexto político que vivemos é complexo, confuso. A cidade se torna palco da promessa de resolução e entendimento de conflitos. Ao mesmo tempo, é na rua que o encontro com a violência, com a desigualdade e com as forças que habitam esse sistema se dá de forma explícita. O artista da dança não está fora disso. Um engajamento no “agora”, no presente e no “provisório” torna-se necessário para construção de uma arte que cria narrativas do presente (Foster, 2014). Para Hal Foster, crítico e historiador de arte, essa presença do provisório, da narrativa do presente na arte, tem como efeito “revelar os limites convencionais da arte num tempo e lugar específicos" (Foster, 2014, p. 37). Essa fragmentação e, ao mesmo tempo, precariedade do objeto artístico estariam relacionados com a subjetividade contemporânea, também atravessada por cenários e contextos igualmente fragmentados do ponto de vista político e social.

Esse contexto cultural, que muitos chamam de contemporâneo, ou pós-moderno, apresenta, ainda segundo Hal Foster (2014), alegorias e não símbolos, contextos e não espaços, efemeridades e não obras concretas:

A arte pós-modernista é alegórica não só por sua ênfase nos espaços em ruínas (como nas instalações efêmeras) e nas imagens fragmentárias (como em apropriações da história da arte e dos meios de comunicação de massa), mas, acima de tudo, por seu impulso para subverter as normas estilísticas, para redefinir as categorias conceituais, para desafiar o ideal modernista de totalidade simbólica. (Foster, 2014, p. 92)

Ao pensar na dança produzida na cidade, nas ruas ou em espaços não reconhecidos como, tradicionalmente, “palcos”, pode-se apontar uma dança de contextos, de realidades provisórias e de alegorias desta mesma cidade, a ação coreográfica e a prática performativa passam a ser concebida como construção de uma experiência de estar com pessoas e lugares, criando espaços para criação estética, ética e política. As propostas feitas na/com a cidade nem sempre se parecem com o formato do que tradicionalmente conhecemos como "dança". Aspectos da performance, das artes visuais e principalmente da relação com o tempo e fluxo de movimentos dos artistas em contraposição à cidade se colocam em cena para jogar com os corpos de quem dança.

Em outro trabalho importante André Lepecki (2006), "Exhausting dance: performance and the politics of movement" identifica como o modo de criar e existir de vários artistas da dança pós-moderna detonam a proposta da dança como "movimento" ou "agito", que não dialoga com a proposta de uma intensificação do campo de intervenção coreográfico. Na ambivalência desse termo "exaurir", existe, para Lepecki, uma dança que também nos cansa, por sempre propor a mesma estrutura de movimento, sem pensamento ou proposta de problematização do tempo presente. Ao mesmo tempo, o indica também um desejo de repensar o que seria uma política de movimento, de esgotar a ideia de movimento.

O desenvolvimento da dança como forma artística autônoma no Ocidente, a partir do Renascimento, se alinha cada vez mais com um ideal de motilidade constante. O impulso da dança para uma exibição espetacular do movimento se converte em sua modernidade, tal como o define Peter Sloterdijk [...] como uma época e um modo de ser em que o cinético se corresponde com ‘aquilo que na modernidade é o mais real’ (grifos adicionados ao original). Na medida em que o projeto cinético da modernidade se converte na ontologia da modernidade (sua iniludível realidade, sua verdade fundacional), o projeto da dança ocidental se alinha cada vez mais com a produção e a exibição de um corpo e de uma subjetividade aptos para executar essa incessante motilidade. (Lepecki, 2006, p. 17)

2 Entre a dança e a performance

Como pensar essa ideia nas ações em dança que incluem a cidade, o espaço e a coreopolítica? A coreografia ou a ação coreográfica que se aproxima de experiências com potenciais políticos, quando pensadas e criadas para acontecer em espaços públicos ou alternativos da cidade, dialogando com situações cotidianas entre trânsitos e fluxos, entre pausas e deslocamentos, pode ser coreopolítica. Ela se propõe como ação e acontece a partir do corpo do coreógrafo/bailarinos, como programas e manifestos, criando corpos e desenhos no espaço, que atravessam não só a pele do artista, mas de quem vive a experiência com ele.

Na história das Artes Visuais, o manifesto geralmente é entendido como uma forma de expressão, um posicionamento individual e coletivo, considerado gênero fundamental para a compreensão de políticas e práticas elaboradas na América Latina, Ásia e África ao longo de todo o século 20. A publicação do Manifesto Futurista por Filippo Marinetti (1909) caracteriza uma das primeiras utilizações deste formato como gênero textual ou instrumento de legitimação artística. A partir de então, muitos outros artistas e movimentos escolheram essa estratégia para expressar as escolhas estéticas e éticas. O formato do manifesto ganhou grande importância política, demarcando ou incluindo problematizações críticas do fazer artístico e relacionando movimentos, práticas e obras aos acontecimentos políticos. Podemos considerar o manifesto como um documento que surge nas vanguardas do século XX, abrindo muitas outras formas de articulação entre a arte e ação política que se consolidariam a partir de então na arte contemporânea.

A primeira observação é de que, talvez, os manifestos artísticos não se caracterizem por uma forma textual, como normalmente é conhecido esse gênero ou formato. Uma ação, ou, ao menos, parte de uma determinada ação, a maneira de fazer, a estratégia de aproximação entre a obra e o público, os caminhos de produção, os lugares escolhidos para mostrar e estar — tudo pode ganhar o status de manifesto. Nesse sentido, podemos pensar que manifestos não são apenas uma etapa de teorização de um tipo específico de fazer artístico, mas a própria ação artística em si.

Chantal Mouffe (2007) em Artistic Ativism and Agonistic Space se pergunta se as práticas artísticas podem ainda exercer um papel crítico em uma sociedade onde a diferença entre a arte a propaganda tem se tornado turva, e onde artistas e trabalhadores culturais tem se tornado parte necessária da produção capitalista. O manifesto em si parece um formato esgotado e facilmente reconhecido, perdendo a capacidade de engajar questões políticas em torno de seu tema. Se sua natureza panfletária incorre, muitas vezes, em certos maniqueísmos, o manifesto também aponta para um questionamento do status quo e um alargamento das visões tradicionais de mundo.

A noção de manifesto na arte, justamente se opõe ao que está proposto na obra "O Espectador Emancipado", de Jaques Rancière (2012), que questiona relação entre o artista e os espectadores, ou a obra e os espectadores, a partir das camadas de análise perceptivas e as formas como somos afetadas por elas, sugerindo que o que seria importante destacar nessa relação é o potencial especulativo das imagens, o modo como podemos relacioná-las, distinguindo nelas e através delas a realidade da qual partem.

O espectador, para Rancière (2012), não é apenas um sujeito passivo perante um objeto artístico a consumir (e a aplaudir), mas alguém que pode fazer coisas (construir referências, por exemplo) a partir de um manancial de objetos artísticos, culturais, sociais e políticos. O espectador no espaço público, ou também fora do palco, no caso dos trabalhos discutidos neste artigo, pode ser desde um transeunte, alguém que está de passagem, um trabalhador que não necessariamente se programou para ir até um espetáculo de dança, até alguém que foi até uma casa tombada, ou um viaduto abandonado, para justamente assistir ou participar de uma ação em dança.

A emancipação dessa relação entre a performance e quem a assiste, argumenta Rancière (2012), é sobretudo o poder de escolher entre "uma imagem dominante e uma outra construída a partir de relações individuais", dos espaços e dos tempos em que ela se apresenta. Na criação artística, a questão não é a de representar o mais fielmente possível a realidade, mas a de representar uma certa cartografia do real que não o reproduza. Ou seja, passar de um regime de percepção para outro. O que a arte pode fazer é, de certa forma, mudar as hierarquias sensíveis do pensamento e de apreensão da cidade, dando as mesmas experiências a pessoas diferentes, que vivem em universos sensíveis muito diferentes.

De alguma maneira, a noção de coreopolítica proposta por Lepecki (2012) se aproxima dessa relação proposta por Rancière (2012), pensando que o fazer coreográfico propõe deslocamentos de quem faz e de quem assiste dança em espaço público, entendendo que o espectador, na cidade, muda constantemente de papel, podendo também agir e propor transformações estéticas e políticas, como no caso dos movimentos occupy que surgem no cenário político a partir de 2011.

O paradigma centrado no olhar do espectador pressupõe um olhar na mente, que é desligado de um corpo. Uma noção mais adequada para o que vivemos hoje é a noção de performance ou performatividade (Cvejic, 2015), como um novo modo de estarmos no mundo, como algo motivado por um impulso capitalista de mostrar que alguém ou alguma coisa sempre pode ir mais longe ou ter um desempenho melhor. A imposição hoje é da performance ou da performatividade como força de uma crítica à razão instrumental, na qual se entende o ato de performar como uma ideia de ambivalência entre a motivação de “ser melhor” do espírito capitalista.

Ela [a performance], mostra uma cuidadosa ideia de ambivalência, que nos força a considerar, em cada situação específica e em diversos registros ao mesmo tempo (ontológico, político, econômico e assim por diante) qual é a questão da performance e o quê, como, para quem e por quê a performance faz o que faz: constrange, normatiza, monitora, permite ou inventa. (Cvejic, 2015, p. 30)

Então, a diferença entre a Sociedade do Espetáculo, baseada na imagem e na representação que nos leva a uma espécie de cegueira (Debord, 1997) é, pouco a pouco, substituída pela da performance, que aponta numa direção de fazer e mostrar que faz consciente, auto-supervisionada e corporificada (Schechner, 2006). A dança, quando sai do palco, se coloca nessa relação? Não necessariamente, mas de alguma forma se aproxima mais de espectadores e de espaços com os quais ela não se relacionaria, a priori.

Eleonora Fabião, atriz e performer da escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, chama as ações performativas de “programas”, pois entende como sendo essa palavra mais apropriada para descrever um tipo de ação metodicamente calculada, conceitualmente polida, que em geral exige extrema tenacidade para ser levada a cabo, e que se aproxima do improvisacional exclusivamente na medida em que não seja previamente ensaiada. Performar um programa, para a autora, é fundamentalmente diferente de lançar-se em jogos improvisacionais (Fabião, 2008).

Para a mesma autora, o performer, que nesse caso está sendo pensado como artista da dança no encontro com a cidade, não improvisa uma ideia: ele cria um programa e programa-se para realizá-lo (mesmo que seu programa seja convidar espectadores para ativarem suas proposições, por exemplo). “Ao agir seu programa, des-programa, organismo e meio” (Fabião, 2008, p. 237).

A inspiração para a inserção de “programa” na teoria da performance apresentada por Elenora Fabião (2008) vem do texto “Como Criar Para Si Um Corpo Sem Órgãos”, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, onde se propõe que o programa é “motor de experimentação” (Deleuze & Guattari, 1999, p. 12 apud Fabião, 2008). Um programa pensado como um ativador de experiência. Longe de um exercício, prática preparatória para uma futura ação, a experiência é a ação em si mesma. A palavra experiência, se pensada etimologicamente, inclui os sentidos de risco, perigo, prova, aprendizagem por tentativa, rito de passagem. Existe implícita a ideia de transformação, de passagem, de conhecimento/reconhecimento no corpo.

A contradição é criada pelos trabalhos, que articulam acontecimentos da própria realidade e criam uma espécie de manifesto a partir dela, como obra e não como texto, tensionando, para inventar uma nova maneira de olhar. Para Rancière (2007), a “resistência” da arte é a tensão entre esses contrários, a tensão entre Apolo e Dionísio, a figura feliz do dissenso anulado, emoldurada pela figura de um belo deus, e o dissenso exacerbado pela figura de Dionísio, com seu furor exacerbado e “inumano”. Essa tensão possibilita uma aproximação com a própria humanidade, trazendo na experiência estética a promessa de uma “nova arte de viver” das pessoas, das comunidades, da humanidade. A liberdade e a igualdade são sensíveis e não abstratas. E essa resistência da arte define assim uma política própria, não unindo a comunidade com a forma abstrata da lei, mas com a experiência viva e sensível.

Junto a isso, os movimentos de ocupação, ou “occupy”, que têm acontecido no mundo desde 2011 e se intensificaram no Brasil a partir de junho de 2013, criaram imagens que circularam pela mídia global, produzindo e reproduzindo um jeito do que seria fazer política, ou manifestar dissenso no espaço urbano.

Para o pesquisador André Lepecki (2012), essas imagens, coreografadas, seriam uma “coreopolítica dissensual”, algo como um “refrão global contemporâneo” que ousa agir e fazer parte, com movimento de ocupação da pólis, performando e endereçando esse tipo de entendimento para nossa vida ativa e nossa função política. Lepecki explora em vários de seus trabalhos o limite entre a dança e a performance, explorando coreografia em outros contextos, a partir da ênfase num sentido mais político e social. Em seu artigo “Coreopolítica e coreopolícia” (2012), dá visibilidade ao poder da mídia e da polícia à coreografia, ao citar uma série de imagens que a mídia produziu no ano de 2011 — de grandes ocupações e manifestos de rua, afirmando que:

Todas essas imagens que a mídia global produz, reproduz e faz circular são já coreografadas pela câmera e por um aparato de representação midiático que, em si mesmo, já é produtor e reprodutor de certa imagem do que é fazer política e manifestar dissenso no espaço urbano. (Lepecki, 2012, p. 50)

Assim como para Rancière (2012), Lepecki (2012) entende que arte e política são atividades co-constitutivas e são fundamentais para o exercício de convivência nas cidades contemporâneas. A partir da reflexão estética e política, os corpos e a cidade criam uma capacidade de “coreografar” ou “performar” espaços a partir de suas mobilizações, ocupações e fluxos de contestação.

Nesse sentido, a criação em um lugar específico, seja o palco ou outro espaço da cidade, transforma o sentido do que se vê e do que se vive para quem compartilha da experiência artística ali presente. A ocupação da obra e do artista proporciona também uma aproximação a lugares antes abandonados ou esquecidos no espaço urbano.

Um exemplo é o projeto LOTE# de Cristian Duarte, que cria um contexto e um fluxo de utilização de um espaço que antes não figurava no mapa da dança da cidade “A Casa do Povo”. O projeto, que foi contemplado por quatro edições do Fomento à Dança, (11a edição em 2011, 13a edição em 2012, 15a edição em 2013 e 17a edição em 2014), propõe-se a funcionar como um:

Contexto de convívio e aproximação desenvolvido por artistas vinculados ao modo de pesquisa e criação do coreógrafo Cristian Duarte. O Lote, além de ambiente ocupado por distintas ações poéticas, é cosmo fundamental para a continuidade de ações coreográficas de diversos artistas que ali residem. Como residência artística, tem por princípio estimular o trânsito de informação, práticas de trabalho compartilhado, e a experimentação em dança, promovendo cruzamentos e interlocução com outros artistas e pessoas interessadas em ações que possam contribuir para a construção de um espaço de estudo permeável. (Duarte, 2016 parágrafo 1)

Sua quarta edição (Lote Osso, 2014-16) foi formada pelos residentes Alexandre Magno, Aline Bonamin, Bruno Levorin, Clarice Lima, Cristian Duarte, Daniel Cordova, Felipe Stocco, Leandro Berton, Patrícia Árabe, Patrícia Bergantin, Tom Monteiro e atravessada por outros artistas e interventores através de diferentes ações promovidas pela residência. Lote Osso residiu na Casa do Povo e desenvolve-se com subsídio do 17º Programa de Fomento à Dança para a cidade de São Paulo da Secretaria Municipal de Cultura. Foram oferecidas oficinas, aulas abertas, ensaios abertos, residências e, principalmente, espaço para que os artistas residentes pudessem desenvolver suas pesquisas e criações com apoios, olhares e trocas, fundamental para que se desenvolva o trabalho artístico. Como convida o próprio Cristian Duarte, na convocatória de abertura do processo artístico Ó (que teve sua estreia em 2016):

Por acreditar na necessidade do toque de outros olhares e sensibilidades para excitar a matéria deste processo, vislumbro um período de treinamento para pesquisar sua esfera pública. Imagino criar uma situação de estudo mais próxima da dúvida enquanto posicionamento crítico. Uma postura capaz de promover fissuras que possam revelar outros conhecimentos sobre os disparadores desta pesquisa que investiga uma sensorialidade rasteira e maliciosa. (Duarte, 2016, parágrafo 2)

A proposta de se criar contexto acaba sendo desenvolvida não só pela proposição artística, mas principalmente pela criação de um espaço que é vivo, onde circulam olhares e pessoas. A proposta do LOTE traz uma ideia de infiltração, ocupação, de coreografar politicamente o espaço a partir de travessuras, de aventuras, de belezas, de convites e jogos.

A ideia de “travessura” ou de uma dança que se infiltra. Como foi a proposta do artista-interventor, participante da edição de 2016, o espanhol Diego Agulló. Sua residência permitiu uma aproximação entre dança e filosofia, problematizando noções como risco, impermanência e transitoriedade em dança. Na sua residência, realizada na Casa do Povo em dezembro de 2015, no contexto do LOTE OSSO, reuniu 40 artistas e estudantes da dança, e propôs a discussão do termo mischief (travessura), convidando a pensar o poder não a partir da perspectiva de dominação, mas sim como a capacidade ou habilidade para estimular o movimento e mudar, gerar confusão, atrapalhando, deixando o caos entrar, mudando a ordem das coisas. Uma espécie de manifesto. Nas palavras propostas por Diego Agulló:

É sim mais um jogo de estimulação do que um jogo de dominação. Intenções travessas não significam ser perigoso dentro de um domínio de influência e controle fazendo com que as coisas não se movam muito. Em vez disso, a travessura convida a viajar através de um domínio perigoso; convida a projeção de trajetórias transversais através de um domínio de poder. O poder da travessura é o poder de atravessar poder. A travessura evita a tentação de querer parecer perigoso, atua mais como um agente secreto, que não se destina a dominar, mas sim atravessar um domínio e colocar as coisas de cabeça para baixo, permitindo que o caos apareça. As intenções de um agente travesso não são de dominar os outros, impondo um domínio de controle, mas sim estimular os outros para o movimento. O poder de um agente travesso é transformar qualquer domínio em uma pista de dança e de transformar qualquer dominação em um convite para dançar. Mas um convite para dançar pode negativamente afetá-lo. O agente travesso é malicioso per se e implica uma compreensão divertida da violência, uma versão suportável de violência e más intenções (Agulló, 2015).

A dança e a coreografia como jogo, como travessura, como transformação do espaço. Pensamentos de transformação e de subversão do poder. Nessa ocupação realizada pelo LOTE, um dos primeiros exercícios aconteceu no espaço público, na praça que existe bem perto da Casa do Povo, na saída do metrô Tiradentes. Lá os participantes fizeram a proposta de Aguilló chamada “chair game” ou “jogo da cadeira”. Nesse jogo, os participantes sentados primeiramente em roda, tinham como regra apenas manter em seu campo de visão a pessoa que estava sentada à sua direita. Então, configurações diferentes foram se formando pelo espaço. Cada um dos 40 bailarinos e suas cadeiras se posicionavam, transformando a praça. Nada mais acontecia. O jogo durou uma hora. Os transeuntes, incluindo policiais que estavam na praça, se perguntavam o que era aquilo e o que estava acontecendo: “um protesto?”, “uma manifestação?”

A presença dos bailarinos na cidade, sua permanência em pausa frente a movimentação da praça, da rua, das calçadas, de alguma maneira dá visibilidade para uma cidade ocupada, movimentada, desatenta. A proposta de Aguilló para o LOTE, naquele momento, se manifestava como uma travessura na cidade. Danças travessas são danças sem um convite (danças sem convite e coreografias de infiltração), as danças que não impõem um domínio, mas sim atravessam o domínio: eles se movem através de passar e atirar problemas dentro do domínio envolvendo os outros em dificuldades e causando embaraço (Aguilló, 2015). A tarefa de uma coreografia travessa, não é organizar domínios de influência, mas sim coreografar uma infiltração, para obter acesso a um domínio projetando trajetórias transversais, jogando problemas através do domínio do poder, a fim de estimular o movimento e alterar a ordem das coisas (Aguilló, 2015). Essa proposta, se contrapõe a idéia de manifesto, sugerindo uma "infiltração" estética e não uma prescrição estética e política para uma ação coletiva.

São Paulo é uma cidade de quase 20 milhões de habitantes, dos quais quase 12 milhões vivem no município. É uma cidade que pode ser considerada um grande polo cultural, produzindo e recebendo cultura de todas as partes. Certamente, é a maior cidade da América do Sul. Cotidianamente, é possível encontrar manifestações artísticas que inventam múltiplos arranjos culturais: dia, noite, centro, periferia, pontos de cultura, bibliotecas, blocos de carnaval etc.

Frente à imensidão que representa uma política pública de cultura que pense a cidade, o corpo e os múltiplos engajamentos nas manifestações culturais, em 2016 a Secretaria de Cultura lançou o Plano Municipal de Cultura, que constitui no planejamento e diagnóstico das ações realizadas pela Prefeitura Municipal nos mais de 200 equipamentos culturais espalhados pela cidade e suas políticas de ação, materializadas pelos programas e editais de cultura: VAI, Fomento à Dança, ao Circo e ao Teatro, Cultura Viva etc. (Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, 2016). Na apresentação do documento, o então secretário de cultura Nabil Bonduki afirma que para além de políticas e equipamentos, a cultura se dá a partir das pessoas que se relacionam e interferem nos espaços, produzindo mobilizações e linguagens de interesse e sentido. No texto, ele defende ainda o sentido de debates constantes, encontros e processos de avaliação que tornem a cultura e as diversas linguagens em experiências (Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, 2016).

Uma série de outros projetos discutem e apresentam essa maneira de fazer dança na cidade: coreografando espaços, criando contextos e circunstâncias para que a política seja pensada e vivida por corpos e/em movimentos. A própria criação da lei e o movimento para que ela se sustente no tempo, delimitando um tipo de dança — a contemporânea — como um jeito de produzir e criar arte, demonstra uma ação que também pode ser entendida como coreopolítica.

Segundo uma reflexão feita a partir da ideia de Rancière (2012) e de Lepecki (2012), a militância e o desenvolvimento constante da Lei de Fomento à Dança podem ser entendidos como uma ação que tem constantemente misturado essas duas esferas (arte e política), colocando artistas frente a frente com políticos e gestores culturais municipais. A noção de política que vinha sendo apontada no artigo, até agora, muda, e se refere ao engajamento relacionado com ações no âmbito jurídico e do poder executivo. Constantes mobilizações, reuniões, devolutivas e comissões se propõem a definir essa comunidade que se criou a partir de um financiamento público para a dança contemporânea, que apesar de ser bem específico, gera uma série de dissensos e discussões acerca do objeto possível de financiamento do edital.

Dentre as poucas publicações na área sobre a lei, há o documento criado por Eliane Calux (2012) numa edição que se propôs a discutir os 5 anos do Fomento, contendo uma série de discussões sobre esse contexto feitas por intelectuais e artistas da dança. No capítulo de Marisa Lambert (2012) publicado nesse livro, sobre a múltipla experiência do Fomento à Dança, é apresentada uma série de fatores, ou de encontros de comunidades, de desejos comuns para que a lei fosse criada num contexto histórico e ampliado. É possível perceber que uma série de encontros e medidas, tomadas por um grupo específico que se denominava Movimento Mobilização Dança (criado em 2002), iniciou a discussão sobre o significado e características dos termos “dança independente” e “dança contemporânea” (Moraes, 2011) e, prosseguindo nesse território, vem até hoje propondo ações voltadas à reflexão das políticas culturais e à conquista de incentivos públicos para a dança partindo da cidade de São Paulo.

Helena Bastos (2013) relata sobre um desses momentos ou contextos disparadores de ação política e coletiva em torno da arte, o MTD 90 — “Movimento Teatro-Dança dos anos 90, uma iniciativa de 9 coreógrafos para pensar uma estratégia que desse visibilidade à dança contemporânea produzida na cidade de São Paulo, no teatro da FAAP/SP. Durante 1993, os envolvidos se organizaram de modo sistemático na produção do evento, para que durante dois meses houvesse a ocupação do teatro de segunda à quarta-feira com programação de dança” (Bastos, 2013, p. 38).

A programação sinalizava as singularidades dessas produções: uma dança de autoria, em que todos eram intérpretes e criadores de seus espetáculos. Estavam envolvidos: Ana Mondini, Helena Bastos, Umberto da Silva, João Andreazzi, Márcia Bozon, Mariana Muniz, Miriam Druwe, Sandro Borelli e Vera Sala.

Ainda segundo Bastos (2013), a reverberação do MTD 90 ecoou nos artistas envolvidos e em 1995 nasce a primeira cooperativa de dança em SP, a CPBC – Cooperativa Paulista dos Bailarinos-Coreógrafos. Estavam juntos: Ana Mondini, Célia Gouvêa, Gaby Imparato, Helena Bastos, João Andreazzi, Márcia Bozon, Mariana Muniz, Renata Melo, Suzana Yamauchi, Vera Sala e Umberto da Silva.

Posteriormente, fomos saber que uma cooperativa só existe a partir de 21 integrantes. Até hoje é um mistério o entendimento de como o nosso pedido na época foi aprovado, porém, de fato, ele foi aceito juridicamente. A partir daquele momento, criamos várias intervenções em diferentes estratégias coletivas, como mostras e eventos. Naquele período, espaços importantes para a CPBC foram o “Centro Cultural Vergueiro/SP — Sala Jardel Filho”, o “Teatro da Cultura Inglesa/SP” e o espaço do “Nova Dança/SP. (Bastos, 2013, p. 39)

Nesse mesmo período, Lambert (2012) aponta também a importância do Fórum Nacional de Dança (com ênfase no período entre 2000 e 2004), que propôs o reconhecimento da dança enquanto área profissional das Artes, posicionando-se contra a tentativa do Conselho Regional e Conselho Federal de Educação Física (CREF/CONFEF) de vincular esse campo à área da Educação Física.

A organização da Cooperativa Paulista de Dança (2005), atualmente com aproximadamente 257 cooperados ativos (Lambert, 2012), criou espaço próprio para agregar membros da dança, estimular ações coletivas de cunho político-artístico e dar apoio jurídico a grupos e artistas independentes e a expansão dos Cursos Superiores de Dança — aproximadamente 30 cursos em diferentes regiões do país, sendo quatro no estado de São Paulo. A consequência direta desse crescimento acadêmico em relação à dança é o crescimento de pesquisas prático-conceituais, artístico-acadêmicas (mestrados e doutorados) na área que também propiciam um material teórico e reflexivo abrangente e cada vez mais diversificado do ponto de vista epistemológico para as discussões.

A Lei de Fomento à Dança da cidade de São Paulo, completa, em 2016, 10 anos de criação. Junto a essa lei, ocorreu a criação de dois importantes programas pela Secretaria Municipal de Cultura: o Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), cuja primeira edição foi em 2004, e tem por finalidade subsidiar criações artísticas e dinâmicas culturais locais, principalmente de jovens de baixa renda, moradores de regiões desprovidas de recursos e equipamentos culturais; e o Programa Vocacional-Dança, iniciado em 2007, que propõe a descentralização da cultura por meio de ações de convivência educativo-criativa com as artes, levando diversas linguagens da dança a várias regiões da cidade de São Paulo.

Todos esses elementos, unidos às pautas de discussões e atos realizados por participantes do Movimento Mobilização Dança e A Dança se Move serviram de alicerces na construção de um projeto de lei (Projeto de Lei nº 508/04), assinado por três vereadores (Tita Dias, José Américo e Nabil Bonduki). Assim que aprovado pela Câmara dos vereadores de São Paulo, o projeto de lei se desdobrou na promulgação da Lei nº 14.071, de 18 de outubro de 2005, que instituiu o Programa Municipal de Fomento à Dança para a Cidade de São Paulo (Bastos, 2013).

Uma das discussões sobre o que caracteriza esse incentivo é a maneira como se faz e pensa a dança, incluindo formas de divulgação e difusão. No edital, a palavra “pesquisa” aparece no núcleo identitário da dança contemporânea, entendida como o “modo de produção artística que envolve investigação, pesquisa e criação não diretamente relacionadas a critérios biográficos de artistas ou categorização da obra por estilo, conteúdo ou técnica” (Lei nº 14.071, de 18 de outubro de 2005) e ainda reforça:

Refere-se às práticas de pesquisa da linguagem coreográfica, da dramaturgia da dança e investigação de parâmetros técnicos próprios, mas não se aplica à pesquisa teórica restrita à elaboração de ensaios, teses, monografias e semelhantes, com exceção daquela que se integra organicamente ao projeto artístico. (Lei nº 14.071, de 18 de outubro de 2005)

A prática artística passa a fazer parte de contextos da cidade, passa a interferir em funcionamentos de equipamentos e em processos pedagógicos, ampliando a ideia de dança como experiência encarnada.

Estar na rua, ir para o espaço público ou criar para além do palco é, de certa maneira, um jeito de expandir e propor uma relação artística que confronta os acordos corporais, estéticos e políticos socialmente estabelecidos, andando na contramão de uma visão comercial que vê a arte como entretenimento. O que chamamos de dança contemporânea resiste em se moldar por direcionamentos de interesses públicos ou privados setorizados. Encontra brechas, fendas na cidade.

São intenções utópicas e poéticas, como é da natureza das artes, mas que, incapazes de morrer, vem cavando lentamente seu espaço de materialização. (Lambert, 2012, p. 48)

Um exemplo para questionar essa materialização da dança e das intenções utópicas para o espaço foi o trabalho "Esculturas Breves" da Cia. Musicanoar (Figuras 1, 2 e 3). O grupo ocupou o Largo da Batata, justamente em seu momento de grande transformação. De um lugar vazio, abandonado, ainda sem identidade após sua reconstrução e revitalização, para uma praça onde muitos encontros e mobilizações políticas foram criando espaço e contexto. Num espaço essencialmente de passagem e trânsitos, o grupo passou a construir uma pausa, esculturas breves, que transformaram de alguma maneira aquele espaço, aquelas pessoas e os sentidos que ali se produziram (Bastos, 2015).

Uma ação como essa é continuada, processual, que envolve a escolha e permanência num lugar, com um grupo de pessoas que possam se dedicar e construir uma proposta consistente, tendo o incentivo do fomento. A verba e o tempo para pesquisa e criação são absolutamente necessários. No caso do Fomento à Dança, não só a criação passou a ser realizada em espaços públicos, mas também a pesquisa em si, mas se construiu cada vez mais com constante participação dos artistas da dança em diferentes esferas de ação política-coreográfica: manifestações emergenciais pela manutenção e fortalecimento do Programa, como por exemplo, em um ato no saguão térreo da Galeria Olido, fevereiro de 2009, onde todos os artistas presentes se deitaram no chão, e na arena externa da Câmara Municipal de São Paulo, em novembro de 2010.

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Figura 1

Musicanoar – Esculturas Breves (Correa, 2014)

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Figura 2

Musicanoar – Esculturas Breves (Correa, 2014)

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Figura 3

Musicanoar – Esculturas Breves (Correa, 2014)

Os encontros “A Dança se move” (Figura 4), já citados anteriormente, têm estado à frente de muitas dessas reflexões que buscam problematizar situações e discutir possibilidades de ação para a classe artística, mas também para a Secretaria Municipal e Gestores de Cultura. Como aponta Lambert (2012), e desde então, não tem sido diferente, os artistas agem muitas vezes sem grandes referências históricas de atuação política coletiva e se encontram diante de certas fragilidades no campo da militância política, questionando e lutando por “individualidades” e com dificuldades de se manter uma participação consciente e eficiente no intervalo de coexistência arte-cidade, indivíduo-coletivo, artistas-poder público.

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Figura 4

Reunião "A dança se move" (A Dança se move, 2016).

Aqui cabe pensar a noção de coreopolítica para além do momento em que o artista está em cena, ou está criando com seu grupo, mas também como se articula e propõe danças e programas para coletivos de outros artistas. Ou como propõe Eleonora Fabião (2010), "a ação cênica não nomeia exclusivamente a ação que ocorre em cena" (Fabião, 2010, p. 323), mas uma série de estados e ações que compõem o fazer e a criação do corpo cênico. A atividade política, no fazer da dança em São Paulo, tem sido definitiva para criar, pensar e existir fazendo dança.

3 Dançar a cidade

Meu corpo é como a Cidade do Sol, não tem lugar, mas é dele que saem e se irradiam todos os lugares possíveis, reais ou utópicos. (Foucault, 2013, p. 8)

Dançar na cidade, com a cidade, a partir da cidade é uma espécie de manifesto? Como pensar isso a partir do formato encarnado proposto pela dança? Como pensar em coreografia que ocupa e transforma o espaço a partir de sua ocupação, criando o vislumbre ou a utopia de uma outra cidade?

“Os manifestos proporcionam o vislumbre de um mundo por vir” (Hardt & Negri, 2014, p. 9). Com essa declaração, Michel Hardt e Antonio Negri começam “Isto não é um manifesto”, um texto lançado em 2014 no Brasil que sustenta a sensação de que nos dias de hoje manifestos são apenas “espectros”, que materializam algo que já não faz sentido nos tempos de ocupação urbana. Os autores defendem que os atuais movimentos sociais já inverteram valores, tornando qualquer manifesto obsoleto, indo para as ruas e ocupando as praças, derrubando governos e evocando visões de outros mundos possíveis. Os manifestos ou as manifestações por mudanças questionam na maioria das vezes as maneiras como organizar-se contra as formas de aprisionamento da vida. Ou como podemos constituir as forças de resistências necessárias? “Como as pessoas poderiam se associar intimamente em torno do comum e participar diretamente da tomada de decisões?” (Hardt & Negri, 2014, p. 65). Como elas poderiam se tornar governantes do comum de uma maneira que reivindicassem e concretizassem a democracia? Os autores afirmam, ninguém deve prantear as formas de planejamento do passado, nem mesmo procurar ressuscitá-las. “Esta é a tarefa de um processo constituinte” (Hardt & Negri, 2014, p. 65), isto é, um processo por fazer, por ser criado.

Um corpo entre outros é capaz de se compor no processo de produção das novas subjetividades constituídas segundo a experiência dos movimentos, já que, “discutir, aprender, ensinar, estudar, comunicar-se e participar das ações: essas são algumas formas de ativismo, constituindo o eixo central da produção de subjetividades” (Hardt & Negri, 2014, p. 95). Para Hardt e Negri (2014), essas atividades tornam-se armas essencialmente políticas, como formas de resistência, de novas armas de luta, através das quais uma nova forma de ação política toma lugar, segundo relações democráticas que vêm necessariamente da experimentação. É preciso estar preparado para o acontecimento, dizem os autores, e para tanto a experimentação dessas novas armas de luta enquanto forças da inteligência, dos afetos, do pensamento e da criatividade, tornam-se fundamentais. Damo-nos conta, nesse momento, de que não precisamos de especialistas ou grandes homens políticos e magnatas para que tomem decisões por nós, a própria experiência corporal é transformadora.

Um outro exemplo de trabalho realizado dentro do recorte metodológico deste artigo, é “Deslocamentos” da coreógrafa Marta Soares, que foi contemplado pela 14a Edição do Programa de Fomento à Dança, com temporada na Casa Modernista (Figura 5, Figura 6 e Figura 7). O trabalho compõe-se de coreografias montadas com corpos de bailarinos unidos por um figurino elástico, que transforma os movimentos dos corpos unidos em figuras híbridas, ambíguas, estranhos. São figuras surreais que se concretizam em um espaço específico. O estranhamento da dança de Marta (que ela chama de partituras coreográficas) se une ao estranho lugar – um prédio de arquitetura inusitada em início de restauração em um bairro um pouco fora do eixo cultural da cidade.

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Figura 5

Deslocamentos -Marta Soares (Caldas, 2014)

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Figura 6

Deslocamentos -Marta Soares (Caldas, 2014)

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Figura 7

Deslocamentos -Marta Soares (Caldas, 2014)

Figuras híbridas, inclassificáveis, que podem ser simultaneamente homem e mulher, animado e inanimado, vivo e morto, dentro e fora, figura e fundo. São corpos informes em um trânsito entre a deformação e a transformação. Utopia e transformação na cidade.

Durante as três horas de apresentação, o público ficava totalmente livre para passear pelo espaço e assistir da forma e da posição que quiser. A entrada era feita pelo sobrado, considerado a primeira obra de arquitetura moderna implantada no Brasil. Logo da porta, já era possível avistar a primeira instalação de bailarinos, no canto do salão principal, próximo a uma janela. Ainda existiam duplas na dispensa e no andar de cima, onde os artistas ocupavam um espaço entre o corredor e várias portas. Dali também era possível acompanhar a performance na piscina vazia, que fica embaixo. Sobre o local escolhido para a encenação, Marta esclareceu:

Achamos bom que não seja um ponto tão famoso de São Paulo, até para trazer pessoas. Queríamos ocupar um espaço onde o corpo pudesse se transformar em relação a ele. A Casa Modernista, além de linda, mostra esse contraste entre a arquitetura construtivista e esses corpos desconstruídos. (Birdeman, 2014, s/p)

A Casa Modernista, escolhida pela coreógrafa Marta Soares para abrigar seu trabalho, fica na rua Santa Cruz e é um projeto do arquiteto Gregori Warchavchik (1896–1972). Projetada em 1927 e construída em 1928, é considerada a primeira obra de arquitetura moderna implantada no Brasil. Neste período, São Paulo passava por um intenso processo de industrialização e urbanização, com a formação de uma burguesia sintonizada com os costumes da belle époque parisiense e a intensificação de imigração para fornecimento de mão-de-obra fabril, refletidas na criação de bairros inteiramente novos. No campo cultural, a cidade testemunhava manifestações artísticas de ruptura e diálogo com a tradição nas áreas da literatura, das artes plásticas e da música, sendo a Semana de Arte Moderna de 1922 o evento mais emblemático.

O modernismo presente na arquitetura, a ruptura proposta na dança, o encontro do público com uma cidade desconhecida: trabalhos como “Deslocamentos”, de Marta Soares, apesar de apresentar caminhos novos para olhar a cidade e conhecer arquiteturas e histórias a partir da dança, nos remetem a pensar que a dança já estava presente na esfera pública-social e política, muito antes do modernismo. Os grandes teatros, os salões, uma pequena elite apreciadora: tudo isso perpetuou um modelo político de forma estética que refletiu-se em um trabalho corporal específico e sistematizado para um tipo de dança, por muitos anos, e que prevalece ainda, em muitos lugares. Sair para rua, para o espaço público, dançar em outros lugares é então uma espécie de manifesto, uma heterotopia.

Michel Foucault (2013) afirma que as heterotopias são lugares que nasceram da cabeça dos homens, ou “no interstício de suas palavras, na espessura de suas narrativas, ou ainda, no lugar sem lugar de seus sonhos, no vazio de seus corações; numa palavra, é o doce gosto das utopias” (2013, p. 19). Exemplo disso é o teatro, que “perfaz no retângulo da cena toda uma série de lugares estranhos” (p. 24); ou o cinema, que em sua tela retangular sobre um espaço de duas dimensões “projeta-se um novo espaço de três dimensões” (p. 24). Ademais, o maior exemplo de heterotopia seria, talvez, o jardim; essa criação milenar oriental que nasceu a partir de uma significação mágica.

O essencial da heterotopia, portanto, é seu potencial de contestação de todos os outros espaços; contestação que se exerce, geralmente, de duas maneiras: primeiro criando uma ilusão que denunciaria toda a realidade como, também, ilusória; ou, segundo, “criando um espaço real tão perfeito, tão meticuloso, tão bem disposto quanto o nosso é desordenado, mal posto e desarranjado” (Foucault, 2013, p. 28). Neste último caso, seu maior exemplo foi a existência das colônias. Porém, com as colônias, temos uma heterotopia que se apresenta ingênua demais para querer realizar uma ilusão. Nas palavras do autor, este exemplo melhor se realiza com a figura do navio. O navio é, por fim, uma heterotopia por excelência.

E se considerarmos que o barco, o grande barco do século XIX, é um pedaço de espaço flutuante, lugar sem lugar, com vida própria, fechado em si, livre em certo sentido, mas fatalmente ligado ao infinito do mar e que, de porto em porto, de zona em zona, de costa a costa, vai até as colônias procurar o que de mais precioso elas escondem naqueles jardins orientais que evocávamos há pouco, compreenderemos porque o barco foi, para nossa civilização — pelo menos desde o século XVI — ao mesmo tempo, o maior instrumento econômico e nossa maior reserva de imaginação. [...] Civilizações sem barcos são como crianças cujos pais não tivessem uma grande cama na qual pudessem brincar; seus sonhos então se desvanecem, a espionagem substitui a aventura, e a truculência dos policiais, a beleza ensolarada dos corsários. (2013, p. 30)

O que seria a heterotopia na cidade moderna? Qual seria o navio capaz de nos fazer imaginar outra vida possível? O urbanismo modernista trata a cidade como um meio que precisa de ordem e para que isso ocorra, se define 4 funções básicas para a cidade: morar, trabalhar, cultivar o espírito e circular (Jacques, 2003).

Neste período, contemporâneo à revolução cultural e à crise da arte contemporânea, houve uma radicalização das ideias de mapeamento e de suporte artístico. Uma vez que os limites entre a arte e a vida tornaram-se cada vez mais porosos, coube ao artista a prontidão para agir no mundo e forjar novas fronteiras entre as pessoas por meio da sua ação. Para os situacionistas2 (Jacques, 2003), a prática e as intervenções na cidade tinham como alvo a crítica da vida cotidiana e por isso a arquitetura e o urbanismo fizeram parte da sua plataforma de ação:

Sabe-se que no princípio os situacionistas pretendiam, no mínimo, construir cidades, o ambiente apropriado para o despertar ilimitado de novas paixões. Porém, como isso evidentemente não era tão fácil, nos vimos forçados a fazer muito mais. (Debord, 1974 apud Jacques, 2003, p. 18)

Esse referencial estava baseado em conceitos de psicogeografia, de deriva e, sobretudo, de situações, que se estruturavam a partir de perambulações “insubmissas” e regras provocativas (e bem humoradas) de desorientação, cujo objetivo era trazer à tona a paixão e as emoções relacionadas à cidade. Em suma, o jogo era seu método de intervenção. Em sua crítica da geografia urbana, Debord (1974 apud Jacques, 2003) sugere a construção de mapas das influências da natureza, do clima e do relevo sobre os afetos — os mapas psicogeográficos, cujo próprio nome conservava uma incerteza bastante agradável, segundo seu autor. Como exemplo dos jogos psicogeográficos, Debord (1974 apud Jacques, 2003) propunha regras para ocupação de uma rua, sugerindo a construção de uma festa; ou ainda, narrava jogos elementares que ensinavam a técnica de andar sem rumo — a deriva:

Há pouco tempo, um amigo meu percorreu a região de Harz, na Alemanha, usando um mapa da cidade de Londres e seguindo-lhe cegamente todas as indicações. Esta espécie de jogo é um mero começo diante do que será a construção integral da arquitetura e do urbanismo, construção cujo poder será um dia conferido a todos. (Debord, 1955 apud Jacques, 2003, p. 42)

Em sua “Teoria da Deriva”, Debord frisa o caráter extra-cotidiano exigido àquele alguém que se propõe a derivar, ou ainda, a construir novas cartografias, que reverberam princípios técnicos de improvisação e site-specific presentes na performance e na dança contemporânea:

Uma ou várias pessoas que se dediquem à deriva estão rejeitando, por um período mais ou menos longo, os motivos de se deslocar e agir que costumam ter com os amigos, no trabalho e no lazer, para entregar-se às solicitações do terreno e das pessoas que nele venham a encontrar. (Debord, 1958 apud Jacques, 2003, p. 87)

Os situacionistas marcaram de maneira definitiva as novas relações do corpo com a cidade, sugerindo novas formas de pensar a cartografia a partir de jogos e ações efêmeras. Este movimento, apesar de teoricamente ter acabado no início dos anos 70 com a dissolução do grupo, fundou não apenas matrizes teóricas, mas novos modelos de ação que tencionaram as fronteiras entre arte, política e cartografia.

Apesar de aparentemente encapsuladas pelo tempo, tais formas disruptivas de ação fermentaram no subsolo e ganharam potência e novas roupagens a partir da década de 1990, com a consolidação de novos rizomas3 e usos da internet. Na virada do século XXI, os processos urbanísticos passaram a ser pensados e estudados como fluxos e a relação com o espaço físico começa a ser desmaterializada pelas redes de informação, que (re)criam territórios a partir da produção de subjetividades, como é o caso das redes sociais. A própria ideia de espaço passa a ser ressiginificada e entendida como lugar — e também como não lugar, conforme a antropologia da supermodernidade (Augé, 1994). Tal experiência contemporânea provoca no campo da arte (e também da ciência) outros desejos de cartografar, baseados nesta nova configuração urbana e social.

A proposta do Tríade Tour (Figuras 8, 9 e 10), criado pelo Núcleo Tríade em 2011 com apoio da 9a edição do Fomento para a Dança para a Cidade de São Paulo, junta essa ideia do deslocamento, do fluxo, de ocupação de lugares esquecidos da cidade, fazendo com que o público participante esteja coreograficamente envolvido num novo olhar e jogo com a cidade.

Informações históricas e geográficas, deslocamentos, gestos e composição coreográfica colocam os participantes do tour em um estado especial, deslocados do cotidiano, mas no meio da rua. Construções coreográficas em uníssono — por grandes deslocamentos ou apenas pela alteração rítmica — surgem “amarradas” pelo áudio-tour. No final do tour, os participantes são convidados a olhar o trecho da rua pelo qual acabaram de caminhar e observá-la como uma dança, assim como (provavelmente) eles terão sido observados (Macul e Vaz, 2012, parágrafo 1).

Os espectadores tornam-se protagonistas do passeio-performance, subvertendo seu papel tradicional. Nesta operação, cria-se outra camada de espectadores: os próprios transeuntes desavisados que circulam pelo local. Enquanto o público-guiado é convidado a observar o potencial coreográfico e performático da rua, o público-transeunte observa-os executarem coletivamente uma coreografia. A condição extra-cotidiana provocada pelo áudio-guia dialoga com a trivialidade da movimentação cotidiana presente na rua. A fricção provocada por estas camadas sobrepostas instaura uma grande instalação coletiva em movimento e indaga a tênue fronteira entre realidade e encenação. O grupo pergunta em sua proposta: afinal, quem dança na rua? Como espectadores, passamos a olhar para a cidade de outra maneira, e a cidade nos olha de volta, também de outra maneira. Embora esteja relacionado aqui com os situacionistas, o trabalho surge da experiência de contemplar a cidade a partir da figura do Flaneur, de Walter Benjamin (1994).

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Figura 8

Tríade Tour – Ouvidorum (Macul e Vaz, 2012

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Figura 9

Tríade Tour – Ouvidorum (Macul e Vaz, 2012

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Figura 10

Tríade Tour – São Bento (Macul e Vaz, 2012))

O grupo partiu da intervenção urbana “Jardins de Vestígios”, de Mariana Vaz (2011), que emerge do flanar; andar ociosamente, sem sentido certo e experimentar a cidade em outro ritmo, com outros olhos. Foram três ações iniciais: Paraisópolis, rua São Bento e elevado Costa e Silva (Minhocão). Dois eixos eram centrais à intervenção e permanecem fundamentais à pesquisa posterior: i. corpos em diálogo com arte instalada na rua; ii. a rua como tema e espaço de manifestações e indagações artísticas (Macul e Vaz, 2012).

Para concluir esse artigo, a proposta de pensar a coreopolítica, conceito introduzido por André Lepecki (2012) a partir dos manifestos que a dança, a coreografia e os coreógrafos podem propor na cidade. Um recorte foi feito a partir de trabalhos recentes na cena da cidade de São Paulo, que tiveram apoio da Lei de Fomento à Dança e trabalharam em espaços públicos, ou espaços "outros" da cidade, que não palcos ou centros culturais.

A proposta foi de aproximar três metodologias de pesquisa, entendendo metodologia não como algo fixo ou rígido, mas como jeitos de fazer e regras colocadas para um jogo de experimentar algo. Esses três jeitos de coreografar, ou seja, experimentar o corpo no tempo e no espaço, se assemelham à cartografia, à deriva e a flanerie. Cada uma dessas propostas, ou jeitos de fazer, se inscrevem num período histórico e epistemológico, mas de alguma maneira, derivam uma das outras, e se relacionam a partir da ideia central de experiência e cidade. O flâneur, o cartógrafo e o nômade surgem da tentativa de recuperar o sentido da vida na cidade (cada um em seu tempo e em seu método) e os três se relacionam com as práticas artísticas, ou os próprios artistas para pensar essas estratégias de ocupação. Três figuras que agem a partir de coreopolíticas, que agem a partir de "políticas do chão" (Lepecki, 2012, p. 47). Contextualizam seus corpos a partir de diferentes estados de investigação, na relação com a cidade.

Retomemos a ideia de uma coreopolítica, entendendo a aproximação desse conceito às práticas coreográficas envolvidas na própria Lei do Fomento à Dança e, ainda, o contexto de uma cidade como São Paulo, que se caracteriza por suas funções bem definidas, ligadas ao ideal moderno: trabalho, fluxos e circulação livre. Sugerimos que algumas experiências surgidas dessa lei de financiamento tenham sido potentes, justamente por sua ação performática, processual e experiencial, e não espetacular. A própria experiência de pesquisa, de imersão e de experimentação do corpo no espaço pode ser potente e promover uma transformação, um encontro.

Os artistas da dança fazem isso quando ocupam o espaço, quando se propõem a dançar na cidade, a partir dos encontros. Também criam percursos, mapas ou ocupações que usem a cidade como cenário, como objeto para sua dança ser potencializada.

A proposta de relação com essa cidade, e de performance nessa cidade, passa por essa sensação de que estamos deixando de ver e experimentar coisas que se passam aqui. Um corpo que se movimenta, que se posiciona, que pausa, ou que proporciona que algum fluxo se inverta, e que faça isso a partir de uma pesquisa estética, talvez seja uma espécie de flanerie. Uma pequena performance, que desestabiliza a forma já dada daquela experiência cotidiana, monótona e repetitiva.

Esse tipo de iniciativa também se delineia como ação política em dança, pois traz à tona as motivações, as inquietações e os desafios de se dançar no espaço urbano, abarcando aspectos poéticos, estéticos, políticos e éticos deste modo de produção artística, propiciando ao público e aos próprios artistas uma forma interativa e criativa de contato com a história da dança brasileira. Essas trocas e a possibilidade de acessar informações sobre a ocupação de uma esquina, estabelecendo relações de prazer entre pessoas e espaços, já pode considerada uma ação transformadora.

Da cidade como sede da arte, passando pela construção de projetos utópicos, à cidade experimentada pelos corpos de seus passantes. As ações propostas pelos coreógrafos em São Paulo contribuíram intensamente para a apropriação do espaço urbano a partir do lugar da experiência, uma experiência reveladora de faltas mobilizadoras. Retomando a ideia do corpo manifesto como um objeto que se redefine por meio da experiência cotidiana, podemos observar que o espaço vazio da falta é o que orienta suas ações e desejos de reinvenção e manifestação do urbano.

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