Pesquisa Ação no Cotidiano: considerações epistêmicas e metodológicas de uma experiência contra a banalização das subcidadanias

Research Action in Everyday Life: theoretical-methodological considerations of an experience against the trivialization of sub-citizenship

  • Alexandre Bonetti Lima
Neste artigo, serão apresentadas reflexões epistemológicas e metodológicas construídas a partir de pesquisa realizada em bairro de grande vulnerabilidade social na região norte do estado do Paraná, Brasil. Nela, buscamos mergulhar no cotidiano do bairro, de modo a compreender, reconhecer e dialogar com a pluralidade de saberes e fazeres que compõem a dinâmica de suas histórias, experiências e interações, e assim somar forças para construir junto com as pessoas do local ações que viabilizem a produção de condições mais dignas nas suas vidas, social e politicamente marginalizadas. Os conceitos chave utilizados para o desenvolvimento da pesquisa foram os de subcidadania, habitus, práticas discursivas, práticas sociais e o de lugar. O artigo finaliza com apontamentos de continuidade através do estabelecimento de redes de interrelação e aproximações ético-políticas com outros bairros periféricos do município, de modo a tornar mais potentes as oportunidades emancipatórias.
    Palavras chave:
  • Psicologia social
  • Subcidadania
  • Vulnerabilidade social
  • Ações emancipatórias
In this article, epistemological and methodological reflections will be presented based on research carried out in a neighborhood of great social vulnerability in the northern region of the state of Paraná, Brazil, seeking to immerse ourselves in the daily life of the neighborhood, in order to understand, recognize and dialogue with the plurality of knowledges and actions that make up the dynamics of their stories, experiences and interactions, and thus join forces to build together with local people actions that enable the production of more dignified conditions in their socially and politically marginalized lives. Some key concepts were used for the development of the research: sub-citizenship, habitus, discursive practices, social practices and place. The article ends with notes of continuity through the establishment of interrelated networks and ethical-political approaches with other peripheral districts of the municipality, in order to make emancipatory opportunities more potent.
    Keywords:
  • Social Psychology
  • Sub-citizenship
  • Social Vulnerability
  • Emancipatory Actions

1 Introdução

Neste ensaio, buscamos expor considerações com base em projeto de pesquisa realizado em um bairro de grande vulnerabilidade social em um município da região norte do estado do Paraná (Brasil), de modo a contemplar elementos epistemológicos e metodológicos envolvidos na pesquisa ação, na perspectiva de uma Psicologia Social comprometida politicamente nos cotidianos, e que tenciona, mais do que desvelar verdades essenciais e generalizáveis, somar forças no sentido de construir alternativas coletivas às relações de opressão e desconstruir discursos e ideologias que naturalizam o pensamento abissal (nós versus eles) e justificam desigualdades sociais. Ele se situa entre os que procuram problematizar o modelo hegemônico de desenvolvimento na contemporaneidade, o qual tem afastado bilhões de pessoas das possibilidades de inserção nos quadros de cidadania plena, paradoxalmente em um período histórico no qual nunca se produziu tanta riqueza, controlada, por sua vez, por uma esmagadora minoria.

2 O Mapa da Desigualdade no Brasil

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), de 2013, mostram que a renda de cada um dos 1% de brasileiros(as) mais ricos equivale a cem vezes a renda de cada um dos 10% mais pobres. A mesma pesquisa verifica que o índice de analfabetismo atinge 8,3% das pessoas com mais de 15 anos, e o analfabetismo funcional chega a 17,8%. Constata ainda que 25,7% dos brasileiros(as) não tem ensino fundamental completo e 7% não possui qualquer instrução formal. Não poder agir espontânea e efetivamente num mundo tomado por formulários e contratos, para não falar das tecnologias digitais, é a realidade cotidiana de quase 30% dos habitantes do país. Realidade que os restringe aos espaços de vulnerabilidade extrema.

O Instituto Trata Brasil, em pesquisa de 2014, verifica, ademais, que somente 48,6% da população brasileira têm acesso à coleta de esgoto. Índice assombroso em um país que está entre as dez maiores economias do mundo, promovendo situações bastante desiguais no que diz respeito aos perfis do processo saúde doença, bem como expectativa média de vida e mortalidade infantil, conforme o estrato social a que se pertence.

Tal quadro socialmente perverso retrata a situação de vulnerabilidade que inúmeros habitantes vêm progressivamente denunciando com sua existência insistente. Diante disso, uma questão se faz premente: como se sustenta ao longo do tempo, e em período histórico no qual nunca se produziu tanta riqueza, tal quadro social? Para respondê-la, Milton Santos (1999/2010) denuncia o que denomina como fábulas perversas da globalização, mediante as quais discursos ideológicos anunciam e justificam aos mais diversos cantos e recantos, amplificados pelos meios de comunicação de massa, um processo de construção progressivo e inevitável de um mundo homogêneo, no qual uma verdadeira aldeia global cada vez mais harmonizada, justa e unificada vem a se materializar. Mas em vista da crescente desigualdade e exclusão sociais que ordinariamente gritam aos olhos e ouvidos de todos, como essas fábulas tornam-se críveis? Que mecanismos as fazem tão bem sucedidas no processo de ser significadas como realidade quase incontestável nos mais diversos cotidianos, docilizando corpos e consciências habitualmente oprimidos e violentados?

2.1 Globalização e a Produção de Refugos Humanos

Em Vidas Desperdiçadas, Zygmunt Bauman (2004/2005) cita um dos contos de Ítalo Calvino, do livro Cidades Invisíveis, no qual o autor refere-se à cidade de Leônia. Nela, a paixão de seus habitantes é sempre desfrutar de coisas novas e diferentes. A partir da referência ao conto de Calvino, Bauman inicia reflexões contundentes acerca das sociedades capitalistas contemporâneas, sociedades nas quais o consumo é imperativo, o consumo como um fim em si, a procura incessante dos novos produtos, das novas marcas, dos novos lançamentos. Como desdobramento, a inevitabilidade de uma problemática até então inexistente na história: o que fazer com a vasta quantidade de lixo produzida? Onde depositar os refugos diariamente descartados?

Quando o autor refere-se aos refugos, porém, não se restringe às mercadorias industrializadas e vendidas diariamente, transformadas posteriormente em lixo. Descartados também são cada vez mais os seres humanos, alerta. Se nas sociedades dos produtores, orientadas pelo paradigma taylor-fordista, os desempregados, embora miseráveis, tinham seu lugar relativamente seguro como exércitos de reserva, e portanto alimentavam-se de claras perspectivas de retomar seus empregos em breve, contemporaneamente, na sociedade de consumo em que prevalece o capitalismo financeiro, como consumidores falhos – e “mercadorias humanas” desqualificadas – perdem essa segurança. “Só podem estar certos de uma coisa: excluídos do único jogo disponível, não são mais jogadores – e portanto não são mais necessários” (Bauman, 2004/2005, p. 22). O processo de fetichização das mercadorias encontra ressonância significativa no processo de reificação do humano (Mansano e Lima, 2017). Nele, afirma Olgária Matos (1993), as relações entre os humanos e os produtos de seu trabalho se invertem.

Expressões habitualmente ouvidas nos jornais e noticiários televisivos a anunciar os humores da economia (“o mercado está nervoso”, “a economia deprimida” etc) são ilustrativas. Nelas, artefatos produzidos socialmente pelos humanos assumem vida própria, e passam a determinar e regular a vida cotidiana, justificando e naturalizando o jogo de inclusão/exclusão das possibilidades do consumo qualificado. Aos refugos desse jogo, restam as franjas periféricas da sobrevivência miserável, da vulnerabilidade social extrema, das latas de lixo das cidadanias de segunda classe (Mansano e Lima, 2017).

Em casos de países como o Brasil, ainda fortemente orientados pelo que Boaventura Souza Santos (2010) classifica como paradigma colonialista, a efetuação do sistema capitalista assume características drasticamente peculiares. Como destaca Marilena Chauí (1994), o Brasil é uma sociedade cujas relações sociais são manifestamente autoritárias, uma vez que “conheceu a cidadania através de uma figura inédita: o senhor-cidadão” (p. 53). É uma sociedade que forja a cidadania como um privilégio de classe, e na qual os direitos são concedidos aos demais estratos sociais de modo tutelado e estritamente regulado pelo Estado. Uma sociedade que naturaliza a desigualdade, a assimetria, configurando relações sociais de rígida hierarquização, ilustrada com o antigo e ainda bastante citado provérbio popular: “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Uma sociedade, ademais, na qual as leis não são instrumentos de definição de direitos e deveres para todos os cidadãos igualitariamente, mas “armas para preservar privilégios e o melhor instrumento para a repressão e a opressão” (Chauí, 1994, p. 54).

Em convergência aos argumentos de Chauí, Florestan Fernandes (1978), em estudo sobre a integração do negro após a abolição da escravidão em São Paulo, defende a tese de que ao negro ex-escravo faltou as condições para sua pré-socialização à nova ordem social e econômica que se instaurava, a qual exigia modelos de conduta, de valores, uma subjetividade, enfim, conformes à sociedade capitalista baseada no trabalho livre. Tal situação se deu, afirma o autor, porque a libertação da escravidão não foi acompanhada por políticas de inclusão social do negro ex-escravo, deixando-o a própria sorte. Desorganização familiar e social, violência em função de discriminações racistas, impossibilidade para educar-se e qualificar-se profissionalmente são algumas das imprecações que a sociedade impôs aos negros, constituindo o que Jessé Souza (2012) denomina subcidadania, alcunha metafórica com que o autor refere-se aos indivíduos destituídos das condições objetivas e subjetivas, culturais e sociais para serem incluídos nas molduras da cidadania plena em uma sociedade capitalista. Ele delineia, assim, a situação prototípica da constituição da exclusão social brasileira, ou seja, o processo histórico e social pelo qual o país confere e naturaliza um lugar social desqualificado a uma vasta gama de pessoas, não as reconhecendo como detentoras de direitos.

Para compreender os mecanismos da reprodução desta condição subcidadã, Souza (2011, 2012) busca na concepção de habitus, de Pierre Bourdieu, uma resposta. Por habitus, Bourdieu (1980/2007) define um conjunto de esquemas cognitivos, inculcados e incorporados desde a infância ao longo da trajetória social de cada um de nós, a partir dos quais são demarcadas as possibilidades de sentidos e significados, oportunidades e coerções, liberdades e limites de acordo com as condições objetivas, por sua vez encarnadas em cada indivíduo ou grupo social específico. Em outras palavras, o habitus refere-se ao processo de socialização por onde se apreendem, se institucionalizam, inscrevem-se no corpo ações, disposições, comportamentos, escolhas, em suma, uma hierarquia moral socialmente compartilhada e esperada, seja no âmbito das diferenças de gênero, classe social, etnia. “É o habitus”, diz Souza (2012), “que produz a ‘mágica social’ que faz com que pessoas se tornem instituições feitas de carne” (p. 46). Assim, o homem em oposição à mulher, o branco em oposição ao negro, o abastado em oposição ao pobre, objetificam-se, no cotidiano das relações, como diferenças e desigualdades sociais que se naturalizam institucionalizando-se hierarquicamente.

A noção de meritocracia, destaca ainda Jessé Souza (2011, 2012), especialmente valorizada nos dias de hoje, igualmente ilustra o processo de naturalização das desigualdades e da exclusão sociais, uma vez que torna invisíveis os diferentes habitus de classe, a justificar e socialmente legitimar formas extremamente desiguais de inserção das pessoas no quadro social. Melhor dizendo, em um modelo societário não mais orientado pela hierarquia estamental, pressupõe-se, por princípio lógico, que todos têm condições iguais e democráticas para alcançar uma situação social e econômica na qual um ser humano pode sentir-se dignamente respeitado e reconhecido, com acesso a emprego adequadamente remunerado, alimentação, saúde, moradia, educação, lazer, segurança etc. A possibilidade de inserção neste quadro, isto é, do lugar ocupado na pirâmide social se dá por mérito, os melhores irão para o topo e os piores para a base. Os critérios de seleção, portanto, mostram-se como critérios justos. Cabe a cada indivíduo dedicar-se e disciplinar-se para adquirir as habilidades necessárias para tanto – e uma vez adquiridas, continuar avidamente dedicando-se para não ser superado, visto que a competição é permanente.

Ora, sabemos que as coisas são um tanto diferentes do que é desenhado acima. As condições de possibilidade de alguém que nasceu e cresceu nas favelas e periferias das cidades brasileiras são bastante diferentes de alguém de classe burguesa, por exemplo. E não apenas devido às diferenças de renda e de acesso às melhores escolas, saúde, lazer, entre outras condições objetivas – embora bastante relevantes –, mas também às diferenças nos processos de socialização (Souza, 2011, 2012; Guareschi, 1999/2013). Como sensibilizar crianças e adolescentes acerca da importância da educação formal no seu processo de desenvolvimento quando não têm um modelo de referência afetiva – no tocante à educação – para mirar e assimilar no ambiente em que vivem? Como vislumbrar um horizonte de possibilidades de ascensão de classe social quando tudo ao seu redor aponta, desde a infância, para obstáculos quase intransponíveis para tanto? Como aprender a lidar com todo o aparato técnico e tecnológico ostensivamente presente nas funções laborais mais qualificadas quando se vive e cresce em um ambiente doméstico de extrema pobreza? Como romper, enfim, com o habitus largamente incorporado ao longo da vida – e, muitas vezes, ao longo de gerações – quando no dia a dia, recorrentemente, se é brutalmente diferenciado?

Diante deste panorama profundamente opressivo que se impõe a um grande número de homens, mulheres e crianças espalhados pelo Brasil, vivendo situações de grande vulnerabilidade no que concerne às garantias de trabalho, educação, saúde, segurança, saneamento, entre outros elementos que compõem os direitos básicos de cidadania, outra urgente indagação se nos impôs: que possibilidades de transformação deste panorama se apresentam? E ainda, como a população mais vulnerabilizada, em cada cotidiano, enfrenta e resiste à tamanha e recorrente violentação? Com tais indagações em mente iniciamos e nos inserimos no campo de pesquisa em questão.

3 Pontuando o Campo de Pesquisa

O local onde o projeto de pesquisa se realizou é um bairro localizado na zona norte da cidade de Londrina, no estado do Paraná (Brasil). É um bairro pequeno, de pouco mais de três mil habitantes e considerado, pela Secretaria Municipal de Assistência Social, uma das regiões socialmente mais vulneráveis do município. Tendo sido fundado há quase 40 anos por uma ocupação de moradores sem teto e, segundo relatos dos moradores mais antigos, melhorado expressivamente desde então, a região ainda sofre com a escassez de atenção e serviços por parte do Estado. Saneamento básico e redes de esgoto são direitos aos quais boa parte da população não tem acesso. A coleta de lixo reciclável é bastante restrita, com apenas um ecoponto em toda extensão do bairro, o que dificulta a sua destinação adequada. Não há vagas suficientes na única creche e na única escola de ensino fundamental para o total das crianças. A escola de ensino médio mais próxima é relativamente distante. Além disso, há uma organização não governamental (ONG) de base religiosa cristã-católica, que oferece atividades de esporte, cultura e ensino técnico a crianças e adolescentes no contra-turno da escola, além de uma igreja católica e uma igreja evangélica – voltadas fundamentalmente para assistência espiritual-religiosa –; uma Unidade Básica de Saúde (UBS – instituição pública voltada para atendimento básico de saúde), que durante mais de seis meses esteve sem nenhum médico disponível, e um Centro de Referência de Assistência Social (CRAS – instituição pública voltada para atenção social às populações mais vulneráveis socialmente), cuja atividade mais significativa tem sido mapear as famílias que se enquadram nos critérios de benefícios sociais do governo.

A quase totalidade dos jovens e adultos desenvolve trabalhos informais e são beneficiários das políticas públicas sócio-assistenciais de transferência de renda. Muitas famílias vivem em espaços reduzidos, com três ou quatro cômodos, e nos últimos dois anos, com o agravamento da crise econômica no país, dezenas de barracos foram construídos em um terreno do estado ocupado por famílias que foram desalojadas por falta de condições para pagamento de aluguel, ampliando ainda mais o volume de moradias precárias já anteriormente existentes.

O tráfico de drogas é comum na região. O número de usuários de crack em situação de rua é alto. Os índices de violência entre gangues rivais são igualmente elevados, e intensificados ainda mais pela truculenta presença da polícia que age com força excessiva e abuso de poder, cujo alvo principal são jovens e adolescentes do bairro.

3.1 Discutindo a Concepção Teórico-Metodológica utilizada na Pesquisa

Para o desenvolvimento desta pesquisa nos focamos, em particular, nas pessoas mais vulneráveis do bairro, que em geral se encontravam desempregadas e ocupavam terrenos vazios de propriedade do Estado onde montavam barracos de madeira e lona para morar com suas famílias. Embora focássemos nossas ações e atenção junto a essas pessoas, não nos restringimos apenas a elas, pois também faziam parte do bairro, vivendo e convivendo cotidianamente com outros moradores. Participavam das mesmas festas juninas de rua organizadas uma vez ao ano pela associação do bairro, frequentavam as mesmas instituições públicas e igrejas que lá haviam, estabelecendo um cotidiano de relações que se estendiam para além dos moradores mais vulneráveis, as quais desdobravam-se, muitas vezes, em oportunidades de trabalho e renda, como bicos de construção civil, faxinas, favores diversos (legais e ilegais), entre outros trabalhos pontuais e remunerados. Nossa atenção, então, estendeu-se também ao conjunto do bairro.

Vale dizer ainda que no processo de pesquisa em nenhum instante nos interessamos por desvelar e definir verdades essenciais e generalizáveis sobre o suposto “objeto de pesquisa”, nos posicionando assim como autoridade intelectual junto à comunidade, nem tampouco nos colocamos como “vanguarda política” que supostamente sabe os rumos acertados que ela deve tomar. Diferentemente, interessamo-nos por mergulhar mais e mais no cotidiano, de modo a compreender, reconhecer e dialogar com a pluralidade de saberes e fazeres que compõem a dinâmica das histórias, das experiências e interações das pessoas do lugar, e desse modo somar forças para construir, juntos a essas pessoas, reflexões/ações coletivas que viabilizassem a produção de condições mais dignas nas suas vidas, social e politicamente marginalizadas. Nos interessava, então, contribuir para dar visibilidade a saberes invisibilizados nos canais hegemônicos da cena social, a personagens anônimos e seus fazeres criativos, individuais e coletivos – solidários em muitos momentos – voltados para o enfrentamento das adversidades de uma vida subcidadã. Além disso, contribuir para promover e fortalecer redes de relações articuladas com instituições locais (públicas e privadas) e, em um segundo momento, estender essas redes também a outros bairros periféricos e vulneráveis do município, buscando aproximações ético-políticas de maneira a tornar mais potentes as oportunidades emancipatórias.

Contando com a presença de quatro estudantes do curso de graduação em Psicologia e uma pesquisadora do programa de mestrado em Psicologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL), em projeto por mim coordenado, procedemos no sentido de circular etnograficamente pela região sem um planejamento prévio das estratégias da pesquisa, tampouco da escolha antecipada dos métodos de investigação. Como já disse Peter Spink, referindo-se ao núcleo de pesquisa que coordenava na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), “a pesquisa tendia a se dar a partir da identificação de um ponto de partida, a partir do qual iria se caminhando sem saber direito como e onde” (2017, p. 88).

A prática de investigação por nós procedida, então, se fazia como uma imersão relacional e conversacional no cotidiano do bairro, atentos aos inúmeros incidentes e acontecimentos que ocorriam, e considerando as múltiplas formas que tomavam as relações com a população pesquisada, e sua inevitável imprevisibilidade e inflexão. Diante disso, consonantes com Peter Spink (2017), evitávamos o uso tradicional de roteiros de entrevistas ou observação pré-estabelecidos, pois entendíamos que poderiam impor um certo distanciamento com relação às pessoas, a limitar a compreensão das redes de relações e das teias de sentidos cotidianamente construídas e reconstruídas no lugar, embora pudessem transmitir a sensação de maior objetividade e segurança nos processos de investigação e análise dos registros de pesquisa. Como argumenta Suely Rolnik (1995), o corpo reclamado para a pesquisa deve ser apto a tornar-se vulnerável ao encontro, afetar-se e afetar o(a) outro(a) desta interação, de maneira a retirar dele(a) elementos afetivos nem sempre racionalmente cognoscíveis.

A investigação, então, deu-se em meio à ação, cujo caminho e estratégias a seguir eram definidas, redefinidas e decididas no dia a dia das interações no lugar, em combinação com as pessoas, com as quais desaprendemos e reaprendemos saberes e fazeres constantemente. Nesse sentido, e coerentes com uma perspectiva etnográfica compreensiva, entendemos que a população pesquisada não pode ser uma fonte meramente respondente às perguntas e aos objetivos previamente traçados pelo(a) pesquisador(a), já que assume um estatuto de agente ativo e co-partícipe de todo o processo. E isso envolve desde a (re)delimitação dos objetivos da pesquisa, dos lugares a serem observados, das ações necessárias, das discussões dos achados parciais, finais, até as maneiras como o relatório conclusivo será compartilhado, além de um possível programa de intervenções a ser realizado, quando conjuntamente entendido como necessário. De nossa parte, como alerta Peter Spink (2008, 2017), o processo de pesquisa se fez pautado em relações ético-políticas e reflexivas, de modo a investigarmos no cotidiano e não o cotidiano, e de modo a falarmos com e falarmos de, e não falarmos por.

Há, portanto, um duplo saber sendo construído quando falamos de uma Psicologia Social crítica comprometida no cotidiano: aquele que atende às exigências da academia com seus rigores conceituais e metodológicos, os quais são condição para o compartilhamento dos saberes e debates com os pares; e aquele por meio do qual pesquisador(a) e participantes se fazem sujeitos no encontro, a confeccionar, engendrar e entrelaçar discursos e práticas acerca do problema que foi colocado em pauta. A importância dessa dupla produção é crucial, tendo em vista a dimensão política da pesquisa social.

É nesse sentido que o corpo do pesquisador(a), com sua potência para afetar e afetar-se, entra no campo de pesquisa. Distante da exigência de uma neutralidade advinda da modernidade, que concebe os participantes da pesquisa e da intervenção como meros objetos a serem desvelados pelo saber legitimado da academia, o que ganha importância nesta abordagem metodológica é a implicação ético-política do(a) pesquisador(a) com as questões em pauta.

Alguns conceitos chave, e epistemologicamente interfacéticos, foram também relevantes para o desenvolvimento da pesquisa: além dos conceitos de subcidadania e de habitus, discutidos anteriormente, também os de práticas discursivas, práticas sociais e o de lugar.

Mergulhar no cotidiano, e conhecer as pessoas e o lugar em que vivem, bem como os habitus prevalentes que orientam suas relações no mundo e consigo mesmas, os posicionamentos com relação às formas de opressão vividas, as redes de relações estabelecidas, os conformismos e as resistências, foram nossos primeiros passos na pesquisa. Foi assim que conhecemos J.S.B., um senhor de 63 anos, que trabalha cuidando de jardins, e ganha a vida a fazer trabalhos autônomos para pessoas, em geral, de classe média. Descreve seu trabalho como de roçar terrenos, aparar grama, podar ou cortar árvores, levar entulhos das casas em seu velho carro para depositar em outros locais, além de plantar mudas de árvores ou flores. Diz sentir-se desconfortável quando sai das imediações do seu bairro para trabalhar em bairros mais abastados, na medida em que é comumente olhado de “um jeito esquisito pelas pessoas, como se fosse um morador de rua. As pessoas não vê que eu sou um trabalhador, nem me cumprimentam com bom dia, boa tarde... mas fazer o que? Tenho que ganhar o sustento!” (J.S.B., entrevista pessoal, novembro de 2015). Este senhor constrange-se, pois sente projetar nele as lentes da naturalização hierárquica das diferenças sociais. Seus gestos, suas mãos sujas e calejadas por anos de trabalho na terra, as roupas rotas, o corpo endurecido pelos anos de trabalho físico, o veículo precário que conduz destoam dos corpos e artefatos de consumo dos moradores dos bairros nos quais trabalha, que o olham de modo a diminuí-lo na hierarquia social, justificando implicitamente a situação precária na qual vive no quadro social do país.

Mas este senhor é também uma liderança importante no bairro. Compõe o grupo dos primeiros moradores que ocuparam os terrenos para reivindicar moradias. Foi, junto a esposa, o idealizador e principal cuidador da horta comunitária do bairro, que distribui legumes e verduras orgânicas aos seus moradores. Por diversas vezes interveio em defesa dos adolescentes e jovens quando agredidos pela polícia, ou marcados pelas gangues de tráfico de drogas. Seu irmão é um reconhecido músico e compositor na comunidade, tendo já composto sambas para escolas de samba em carnavais da cidade, e junto a J.S.B. utiliza este talento para reunir-se com a comunidade e discutir as questões do bairro junto com o presidente da associação. Em suma, é alguém ativo na defesa pela melhoria de suas condições de vida e da coletividade que o envolve, que luta para não submergir ao lugar social de objeto passivo, de subcidadania, ao qual a sociedade brasileira o condena, e a todos como ele. E nessa luta produz, não poucas vezes, mudanças significativas nas visões de mundo e de cada um no mundo entre as pessoas que o acompanham, dialogam com ele e o escutam.

Tal movimento de resistência ao instituído, ilustrado aqui na figura de J.S.B., fez com que buscássemos os conceitos de práticas discursivas e de práticas sociais para contribuir na compreensão da dinâmica deste lugar. Com ele, pudemos pensar o que víamos e vivíamos para além das possibilidades da dimensão do habitus. Pois se o habitus localiza a atenção no tempo mais extenso da trajetória de cada um(a), a partir da qual são construídos e maturados repertórios de interpretação do mundo, da vida social e de cada um(a) nela, suas possibilidades e limites; se é o processo por onde nos objetivamos e somos objetivados(as) em identidades sociais instituídas no decorrer das relações, as quais tendem a ser socialmente naturalizadas, as práticas discursivas e as práticas sociais, diversamente, processam-se no tempo curto das interanimações dialógicas, no aqui e agora das relações sociais e afetivas, que se caracterizam pelas descontinuidades e rupturas, desenhando possibilidades para ressignificar o que é instituído e naturalizado como habitus (Fairclough, 1992/2001; Spink, M. J., 1999). Descortinam, assim, condições para emergência de novas potencialidades singulares e coletivas que expandam novas perspectivas na vida das pessoas (Lima, 2015).

Por que tenho que aceitar viver em um barraco por mim construído com pedaços de madeira e lona quando a moradia decente é direito de todos? Por que não consigo arranjar trabalho com carteira assinada? Por que meus filhos não têm uma escola de qualidade? Por que a polícia vem aqui sempre atirando e dando porrada nos nossos meninos? Por que o posto de saúde daqui ficou sem médico tanto tempo? Por que eu tenho que aguentar desaforo do meu marido? Por que não consigo [não posso] estudar na universidade pública? Por que ninguém me considera [só porque sou gay], não sou gente igual todo mundo? (entrevista pessoal, junho a dezembro de 2016).

São algumas das indagações que eram trazidas em meio às nossas conversas cotidianas com as pessoas no bairro, ora nas suas casas, ora na praça, ora no pátio da igreja...ora transitando pelas ruas; e muitas vezes seguidas por “o que podemos fazer para mudar isso?”

Tais conversas e interações, por sua vez, não se fazem no vazio, mas em lugares, promovendo contínuas transformações em sua forma, uma vez que o lugar, como diz Peter Spink (2017), não se define apenas como espaço geográfico, físico, concreto, mas como resultante que vai se confeccionando em meio a práticas, dizeres, saberes, relações solidárias e ou conflitantes entre as pessoas que vivem e ou transitam neste espaço, dando-lhe formas, constituindo-o e o refazendo em tempo, tal como um grande caleidoscópio de figuras humanas. A título de exemplo, há cerca de dois anos, um terreno baldio pertencente ao município foi ocupado por 17 famílias que não mais tinham condições de pagar pelo aluguel das casas em que moravam. Conversando entre si, com outros ocupantes de terrenos baldios nos arredores, e com algumas lideranças do bairro, resolveram demarcar o terreno e ocupá-lo, construindo os barracos de madeira onde passaram a viver. Todos ajudaram-se coletivamente no processo de roçar e preparar o terreno, de aquisição de madeira, lona e pedaços de ferro para a construção dos barracos, bem como nas ligações clandestinas de luz e água. Atualmente já são 32 famílias que lá vivem porque sem condições de pagar aluguel. Em comum, a pressão para que a prefeitura regularize sua situação. Para tanto, articularam-se com a associação de bairro, outros movimentos de ocupação na cidade, a defensoria pública, alguns vereadores, além da universidade estadual através de projetos como o que desenvolvíamos. Internamente organizam-se no sentido de manter o local limpo, o ambiente solidário e todos(as) informados sobre o andamento de suas reivindicações.

Em outro momento, tivemos a oportunidade de acompanhar a história de um garoto de 18 anos, também morador do bairro em questão, ex-usuário diário de crack, sem contato com a família desde os dez anos de idade e que realizava pequenos assaltos e serviços para uma das “biqueiras” de venda de droga para poder pagar pela droga utilizada, e alimentar-se. Durante alguns anos viveu na rua com outros garotos, também usuários assíduos de crack, e há cerca de quatro anos passou a morar em um barraco extremamente precário e sujo (“mocó”), sem saneamento básico, luz nem água encanada. Há dois anos começou a ser acompanhado por um psicólogo e uma assistente social da ONG do bairro além de uma estudante do curso de Psicologia e pesquisadora de iniciação científica de nosso projeto. Inicialmente estas pessoas visitavam o garoto em sua moradia regularmente, e conversavam com ele tentando sensibilizá-lo para frequentar a ONG. Alguns meses depois ele começou a frequentá-la, seduzido pelas refeições diariamente oferecidas a quem participava das atividades existentes. Com o tempo começou a participar mais assiduamente das atividades e oficinas; primeiramente das aulas de basquetebol, depois computação e teatro. Atualmente este garoto não vive mais no barraco, aluga um quarto em uma casa de alvenaria em outro bairro próximo, pago com o trabalho que conseguiu como coletor de lixo reciclável em uma pequena cooperativa. Também voltou para a escola que havia abandonado desde os dez anos de idade, para que futuramente possa “arranjar um emprego melhor e que paga melhor”.

Esta significativa mudança na trajetória deste garoto deu-se em meio a sua entrada em um novo universo de relações – inicialmente com o psicólogo, a assistente social e a estudante pesquisadora, e depois também no âmbito das atividades na ONG –, no qual teve acesso a um cotidiano de interanimações dialógicas e afetivas bastante diferentes do que tinha até então, propiciadoras, por sua vez, de novos sentidos e significados para a sua vida, a viabilizar novas perspectivas possíveis. Ao se inserir em um lugar no qual passou a ser visto com olhos não acusativos nem estigmatizadores, e a ser identificado como ser de direitos, e instrumentalizado técnica, social e afetivamente para tanto (através das atividades e oficinas das quais participava, bem como das redes de relações que estabelecia), o garoto potencializa-se e amplia progressivamente seu leque de possibilidades de ser no mundo. Melhor dizendo, ele incorpora outros repertórios de interpretação do mundo e de si mesmo no mundo, que o fortalecem e o requalificam para enfrentar as agressões cotidianas que porventura experimenta, pois lhe proporcionam ferramentas novas e mais potentes, na medida em que se vê respaldado social e institucionalmente pela rede de relações na qual agora tem a possibilidade de (con)viver. Isso não quer dizer, porém, que este garoto certamente trilhará caminhos seguros para alcançar uma condição de cidadania sólida e definitivamente reconhecida. Mais provável, como em grande parte das periferias do país, que ele transite pela zona cinzenta entre a legalidade de um trabalho formal (ou informal, mas legal) complementado por trabalhos (“favores”) requeridos por membros de organizações do tráfico de drogas, com os quais, muitas vezes, mantém relações afetivas e ou de parentesco. Contudo, não somos juízes, tampouco policiais, não fomos lá para julgá-lo pelas escolhas e caminhos que percorre ou percorrerá, mas para compreender a dinâmica social e intersubjetiva de pessoas que lutam para viver da melhor maneira possível suas vidas e, ao mesmo tempo, tentar contribuir com elas nessa luta, acionando a rede de políticas públicas nas quais têm direito de ser atendidas e, mais ainda, articulando parcerias na rede de milhares de pequenos gestos que as apoiem na expansão – e não na redução – das suas possibilidades.

Outro exemplo ocorreu no ano de 2017. Devido ao acirramento da guerra entre gangues do tráfico de drogas, as quais dividem o bairro em duas partes, cada uma delas dominada por uma das gangues, as pessoas esconderam-se em suas casas fechando portas e portões para defender-se dos tiroteios frequentes. As ruas esvaziaram-se durante semanas, saía-se apenas quando necessário, o espaço da rua deixou de ser utilizado para lazer, e mesmo a escola municipal e o posto da UBS foram temporariamente fechados. O presidente da associação do bairro, então, protagonizou a negociação com as facções. Filho de uma das pioneiras do bairro, e nascido lá há 37 anos, conhecia muitas das lideranças de tais gangues desde a infância e argumentou no sentido de que participassem da luta pela melhoria do lugar onde todos moravam, onde seus filhos, mães e irmãos viviam, assim como os dele mesmo. Com isso, uma trégua entre elas foi conseguida, motivo do gradativo retorno das pessoas às ruas, que foram novamente ocupadas e as casas abertas. Uma audiência pública foi realizada em sequência na Câmara de Vereadores do município, reivindicando a presença mais efetiva dos serviços do Estado na região, e não apenas por meio das ações habitualmente violentas da polícia.

Se será definitiva ou provisória esta trégua, não é possível prever. Outras guerras entre gangues ou com a polícia, a levar novamente a tiroteios e mortes, podem ocorrer. As possibilidades de redesenho do lugar, de transformação das relações sociais e das perspectivas das pessoas que nele vivem, contudo, estarão sempre presentes. Pois onde há pessoas há interações sociais, há práticas sociais, há práticas discursivas e, portanto, há negociações, intercâmbios, solidariedades e conflitos a promover, inevitavelmente, processualidades e redesenhos contínuos. De nossa parte, como pesquisadores e atores oriundos da academia, cabe contribuir, partindo dos acontecimentos que ocorrem no bairro e com cada um de seus moradores, para que estas processualidades e redesenhos se deem de modo a produzir vidas plenamente cidadãs.

Mas como exercer esses direitos construindo as políticas públicas de baixo para cima, a potencializar encontros potentes em meio a uma época de desmonte de direitos e políticas? O encontro com uma associação cultural periférica, em um outro bairro da mesma cidade, nos permitiu esboçar uma resposta modesta e situada a esta pergunta.

O ano de 2017 poderia se caracterizar como de desterritorialização, ou perda de território, tanto físico – como no caso de fechamento de escola, UBS ou moradia – quanto dos hábitos do dia a dia – por exemplo, ao não poder sair à rua devido aos tiroteios causados pela “guerra” entre gangues rivais. Esse período de crise e insegurança pôde ser enfrentado ao se tecer inciativas que propiciaram a reterritorialização, construídas como antídoto contra o isolamento.

Assim como as práticas discursivas e sociais possibilitam questionar, no tempo presente do aqui e agora, o habitus que territorializa pessoas, bairros e países em lugares hegemônicos e não hegemônicos, demarcando-os com muros invisíveis (simultaneamente subjetivos e materiais) que colocam cada um no seu “devido lugar”, poder construir um lugar de reterritorialização, de narração e mudança da própria história, promove uma série de transformações micropolíticas que, conquanto pareçam insignificantes, vão a tornar-se mais fortes quando articuladas (León Cedeño, 2015).

Nesse sentido, articulado com a professora doutora Alejandra León (colega do departamento de Psicologia Social da Universidade Estadual de Londrina), iniciamos um segundo momento do processo da pesquisa, levantando materiais que descreviam experiências de moradores(as) das periferias brasileiras e de outros países latino americanos, potencializados pelo que Paulo Freire (1996, 1992/2011) denominava a vocação ontológica de ser mais, produtoras de alternativas de cultura, saúde, ecologia, esporte, comunicação comunitária ou economia solidária em lugares com pouco ou nenhum acesso a esses direitos. No Brasil foi possível encontrar experiências como a Cooperifa, que organiza além de concorridíssimos saraus semanais em um bar da zona sul de São Paulo (que tornou-se um centro cultural), ciclos de cinema, teatro e poesia nas escolas, em um bairro que outrora foi catalogado como o mais violento do mundo. Também o Traficante de livros, que ocupou a casa abandonada por um traficante para fazer uma biblioteca em uma favela de Recife marcada pela miséria. Na Venezuela, o Núcleo Acadêmico de Ecologia Urbana trabalha em comunidades economicamente pobres, junto a estudantes e professores universitários que nelas moram; em trabalho conjunto com as organizações comunitárias de cada local, desenvolvem atividades culturais e de gestão ambiental, trabalhando por uma cultura ecológica e criticando a cultura ecopredatória capitalista. São três dentre muitas experiências encontradas que mostram a potência do ser humano em meio às dificuldades, impossibilidades e contradições. Mostram que é possível subjetivar-se de outras maneiras, mais plenas e encantadoras, agindo como espaços micropolíticos de promoção da saúde e prevenção da violência.

Entre essas experiências, destaco o projeto “Recantos de beleza e resistência”, coordenado pela professora Dra. Alejandra León, que acompanhou durante três anos uma pequena, mas potente iniciativa em uma periferia da mesma cidade do nosso estudo: a Associação Ciranda da Cultura. Este tem sido um lugar que, ao acolher moradores da região de todas as idades, além de receber movimentos sociais, universidades, trabalhadores das políticas públicas e pessoas as mais variadas, permite territorializar em beleza e resistência a desterritorialização destes tempos de crise e insegurança. Foi criada por moradores(as) do bairro em 1999. Após quatro anos de ações itinerantes usando a casa de uma moradora, o Ciranda passou 17 anos funcionando em um mesmo local, 14 deles em comodato e 3 tendo o valor do aluguel pago por outras entidades (uma Central de Intercâmbios e o PROMIC – Programa Municipal de Incentivo à Cultura). Em 2016, ao ficar sem dinheiro para o aluguel, negociaram junto à prefeitura o comodato do Centro Comunitário do bairro parcialmente destruído pelas chuvas, sob a condição de que seus membros arrecadassem os recursos e o reconstruíssem autonomamente. O acordo foi cumprido e as atividades diárias e gratuitas do Ciranda não apenas têm continuado, mas ampliado seu raio de ação, atraindo moradores(as) de outras regiões e inspirando a criação de um cursinho comunitário nos mesmos moldes de funcionamento diário, gratuito e por desejo das pessoas que ali estão.

De formas caóticas, rizomáticas e cotidianamente cidadãs, o Ciranda tornou-se uma organização consolidada a oferecer atividades para adolescentes, crianças e adultos (jovens e idosos) da região nas áreas de arte e cultura, cuidados com a saúde, esporte, educação etc. Todas as atividades são gratuitas para quem tiver interesse e são ministradas por moradores do bairro, estudantes universitários – supervisionados por professores – além de profissionais da UBS da região e outros profissionais voluntários que lhe dedicam algumas horas gratuitas por semana – das áreas de fisioterapia, educação física, psicologia, ciências sociais, cozinha, música, dança, entre outros.

O encontro entre as experiências do Ciranda e do projeto no bairro acima mencionado materializou-se em nova etapa da pesquisa, ainda em fase inicial, denominada “Cirandando a cidade”, cujo objetivo é multiplicar a ideia da organização Ciranda da Cultura para outros bairros da periferia da cidade em questão. Com esta multiplicação não se pretende instalar uma organização padronizada em cada novo lugar, mas conversar com as pessoas de cada bairro para apresentarmos a proposta do Ciranda, levantarmos juntos com elas as demandas do bairro em questão, cartografar as características do território e de sua população, e discutir como o Ciranda pode ser um espaço de enriquecimento coletivo, seja para atender as demandas elencadas, seja ao menos para discutir a melhor maneira de alcançá-las, tornando-se assim também um espaço político.

Consonante com sua perspectiva política, o Ciranda multiplicado pretende ser também um eixo de aproximação entre os bairros de periferia da cidade, e tornar-se potencialmente um canal de comunicação entre eles, o que em tese facilitaria ações conjuntas de reivindicação comuns, fortalecendo-os. Com efeito, nenhum lugar é ilhado e independente dos outros. No mundo contemporâneo, em particular, com meios de comunicação e transporte acessíveis a um número cada vez mais vasto de pessoas, as interconexões e intercâmbios são constantes e inevitáveis, fazendo com que, como afirma Anthony Giddens (1990/2000), cada lugar seja composto também pela presença objetificada do que é materialmente ausente – embora materialmente presente em outro lugar. Tais interconexões, por seu turno, não são horizontais e tampouco neutras. Como recorda Milton Santos (1999/2010), há lugares hegemônicos e lugares não hegemônicos. Os hegemônicos tendem a se fazer mais objetivamente presentificados nos hegemonizados, colonizando-os, impondo determinações, coerções e possibilidades de existências monitoradas – não sem resistências, vale dizer. Nesse sentido, criar as condições para a efetivação de ações de transformação nas relações de opressão naturalizadas nos lugares hegemonizados, exige refletir também sobre as interconexões, materializadas e materializantes, bem como sobre os efeitos que produzem nos lugares nos quais nos debruçamos como campo de pesquisa e ação. Assim sendo, trabalhar para promover articulações, redes e aproximações ético-políticas entre lugares e coletividades hegemonizados é fundamental, pois embora tenham suas singularidades e diferenças entre si é possível construir pontes de tradução, interrelação e ação conjuntas entre eles, de modo a tornar mais potentes as possibilidades de enfrentamento e resistência e ampliar, deste modo, as oportunidades emancipatórias. A ideia do Ciranda multiplicado vai de encontro a isso.

4 Considerações Finais e Inconclusivas

Buscamos apresentar, neste breve artigo, a partir da convivência densa em um bairro da periferia de uma cidade paranaense, no sul do Brasil, considerações epistemológicas e metodológicas para uma Psicologia Social comprometida politicamente nos cotidianos; uma Psicologia Social, como já dito, menos interessada em desvelar verdades essenciais e generalizáveis do que somar forças no sentido de problematizar relações de opressão, buscando desconstruir discursos e ideologias que naturalizam o pensamento abissal, combustível para justificar as desigualdades e a exclusão sociais. Para tanto, nos orientamos por uma epistemologia compreensiva (Santos, 2010), de modo a trazer, melhor dizendo, reconhecer e dialogar com a pluralidade de saberes e fazeres que compõem a dinâmica da história das experiências e interações do cotidiano ordinário de cada lugar.

Alguns conceitos foram importantes para nos subsidiar na pesquisa em questão: habitus, subcidadania, práticas discursivas, práticas sociais e lugar. Tais conceitos, no conjunto, compuseram pilares conceituais que nos viabilizaram compreender não apenas a partir de uma perspectiva fotográfica deste lugar, mas a partir da complexidade dinâmica de sua existência em movimento com suas descontinuidades e rupturas potenciais e potentes, só possível por meio da imersão densa nas tramas de seu cotidiano ordinário. Assim imersos, pudemos nos aproximar, apreender e nos afetar com as vozes das pessoas – adultas, crianças, adolescentes –, lideranças e não lideranças do bairro, religiosos e não religiosos, desempregados e trabalhadores formais e ou informais, legais e ou ilegais, homens e mulheres, negros e brancos, profissionais e coordenadores das instituições públicas, privadas, religiosas ou não, entre outros(as). Com cada uma destas pessoas formaram-se diferentes intensidades nos encontros que se teciam. Isso exigia que não incorrêssemos no risco de assumir, como pesquisadores, a arrogância de um personagem – historicamente instituído no campo científico – que se compreende detentor da exclusividade do saber e do fazer acertado, e nos colocássemos como cidadãos e cidadãs co-partícipes de saberes e fazeres construídos socialmente, como quaisquer outros, acadêmicos e não acadêmicos, científicos e não científicos, mas cujas práticas e linguagens singulares podem dialogar e contribuir para a produção de condições mais encantadoras e dignas na vida de inumeráveis pessoas social e politicamente marginalizadas.

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