As Práticas Jurídicas e a Judicialização no Trabalho da Assistência Social

The Juridical Practices and the Judicialization at Social Assistance Work

  • Lucia Regina Ruduit Dias
  • Andréa Vieira Zanella
  • Jaqueline Tittoni
O objetivo deste artigo é analisar a forma como as práticas jurídicas de trabalhadoras da assistência social se coadunam aos fluxos judicializantes do/no trabalho, ressaltando a resistência destes profissionais mediante a criação de processos de contraconduta. As ferramentas utilizadas para produção de informações na pesquisa-intervenção foram: acompanhamento das atividades da equipe, observações, entrevistas, conversas informais e oficina de fotografia. As análises realizadas, fundamentadas em Michel Foucault, evidenciaram forças judicializantes no trabalho da assistência social, bem como práticas jurídicas enraizadas através dos mecanismos da prova, do exame, do testemunho e do medo de advir criminosa. Entretanto, o estudo evidenciou também a presença de contracondutas às forças judicializantes, que se constituem através da coletivização no/do trabalho e a potência da pesquisa-intervenção para as análises dos processos de trabalho e para a construção coletiva de alternativas a problemas em tal processo.
    Palavras chave:
  • Assistência social
  • Judicialização
  • Práticas jurídicas
  • Pesquisa-intervenção
The objective of this article is to analyze how the legal practices of social workers are connected with the judicial flows of work, as well as the processes of counter-conduct created by them. The tools used to produce information in the research-intervention were: team activities monitoring, observation, interviews, informal talks and photograph workshop. Michel Foucault’s ideas supported the analyzes that showed that in the work of social assistance there are judicialization forces, as well as the juridical practices rooted through the mechanisms of the test, the exam, the testimony and the fear of becoming criminal. However, the study also indicated the presence of conter-conducts to the judicialization forces, established through the coletivization of and at work and how much the research-intervention can contribute to the analysis of the work processes and to the collective construction of alternatives to problems in such process.
    Keywords:
  • Social assistance
  • Judicialization
  • Juridical practices
  • Research-intervention

1 Introdução

O campo das políticas sociais não é um terreno pacífico, pois nele se fazem presentes conflitos e contradições de interesses (Couto, 2015; Ferreira, 1999; Pereira, Freitas, & Dias, 2016; Romanini & Detoni, 2014; Silva, 2013; Yamamoto & Oliveira, 2010). Dentro deste campo de tensões, várias são as questões jurídicas que atravessam o trabalho da assistência social brasileira e os desencontros que se dão entre as trabalhadoras1 do sistema de justiça e do sistema de assistência social. Pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica aplicada (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA], 2015) mostrou que dentre tais tensões encontram-se: o desconhecimento do trabalho e dos fluxos de um sistema para com o outro; a falta de interlocução; a precariedade dos serviços públicos e o abuso de poder por parte do sistema judiciário que frequentemente ordena tarefas para a assistência social que são impossíveis de serem cumpridas e/ou conflitantes com os códigos de ética das categorias profissionais que compõem as equipes.

O presente artigo parte de uma pesquisa (Dias, 2017) que demonstrou que, na assistência social brasileira, há um conglomerado de forças que pressionam na direção da judicialização do trabalho e da vida. Esse conglomerado de forças compreende: a trama pobreza-assistencialismo-tutelamento-culpa; o Estado social produtor de biopolítica e individualização; as práticas jurídicas e seus mecanismos de exame, prova, testemunho e produção de criminosas; e a precarização no/do trabalho. Tais forças pressionam na direção da judicialização das práticas das trabalhadoras que, por seu turno, constituem contracondutas para resistir a essas forças. Quer dizer, ao produzirem contracondutas, as trabalhadoras resistem às forças que exigem obediência integral e incondicional; produzem, por conseguinte, contrafluxos ao poder individualizante que podem esfacelar o comum (Foucault, 1980/2011, Grabois, 2011).

No contexto do presente artigo é trazido um recorte de tal pesquisa, enfocando, mais especificamente, a questão das práticas jurídicas e seus mecanismos. O objetivo é analisar de que forma as práticas jurídicas de trabalhadoras da assistência social coadunam às forças judicializantes do/no trabalho (Foucault, 2004/2008; Grabois, 2011), bem como os processos de resistência objetivados nas contracondutas criadas por elas.

É importante frisar que a questão da judicialização do/no trabalho não se encontra limitada à positivação em lei de direitos requisitados pela sociedade ou à ampliação do acesso ao sistema judiciário pelos cidadãos, como é vista pelo Direito (Barroso, 2012). Tampouco se limita à relação entre as trabalhadoras do sistema de justiça e do sistema de assistência social. No presente artigo, o tema da judicialização é visto de forma mais ampla, pois implica um alastramento de controles em uma política de subjugação de forças sob a lógica do capital que passam a abranger o próprio viver (Augusto, 2012; Coimbra, 2011; Oliveira & Brito, 2013; Prado, 2012). Ou seja, a judicialização da vida diz respeito às regulações normativas do viver, aos processos de controle, julgamento e punição em um processo mais amplo que não apenas recorre ao Judiciário, mas se incorpora aos seus modos de operação. A judicialização da vida está relacionada, então, às relações que cada um estabelece com as práticas de julgamento, é o tribunal em nós e na vida cotidiana que julga e estabelece sentenças produtoras de vítimas, culpados e algozes, em uma mobilidade de lugares. Trata-se de um processo de alastramento do judiciável, presente quando a lei toma um papel pedagógico de mudança de comportamento e, em nome de mecanismos protetores, acaba por exercer o controle da vida (Lobo, 2012). Tal alastramento pode ser visto quando há o endurecimento das penas em relação aos jovens ou quando ocorre a criminalização de comportamentos diversos (aborto, homofobia, uso de substância psicoativas, etc) (Rifiotis, Vieira & Dassi, 2016) ou, ainda, quando o trabalho da assistência social produz o lugar de negligente em relação às mães de famílias pobres, culpabilizando-as por suas estratégias de sobrevivência (Nascimento, 2012).

Para a compreensão das sutilezas e enraizamentos dos poderes judicializantes serão aqui apresentadas e analisadas algumas experiências junto às trabalhadoras de um Centro de Referência Especializada em Assistência Social – CREAS. A análise dos movimentos de tal equipe pode contribuir não somente para o trabalho junto à equipe estudada, como pode auxiliar também na reflexão de equipes de outros CREAS, de outros níveis de complexidade da assistência social, bem como de outras políticas públicas.

2 Abordagem metodológica

As reflexões aqui apresentadas decorrem de uma pesquisa-intervenção (Aguiar & Rocha, 2007; Dias, 2017; Lourau, 1993; Maraschin, 2004; Paulon, 2005, 2009; Paulon & Romagnoli, 2010; Rocha & Aguiar, 2003; Zanella, 2013) realizada com uma equipe de vinte trabalhadoras de um CREAS da região sul do Brasil2. A equipe estava composta por técnicas sociais com formação em psicologia, serviço social, direito e sociologia, bem como por agentes educadoras sociais, algumas com formação de nível médio e outras de nível superior em psicologia, serviço social e educação física ou cursando serviço social. Cabe situar que o CREAS é um equipamento de média complexidade, inserido em uma rede de equipamentos de baixa, média e alta complexidade da assistência social brasileira, constituído para atender e acompanhar indivíduos e famílias aviltadas em seus direitos, mas que ainda mantém íntegros seus laços familiares e comunitários.

O CREAS estudado possuía, à época, uma equipe consoante com o formulado pelas Políticas Públicas em Assistência Social – PPAS, através da NOB-RH/SUAS (MDS, 2006), contando com dez profissionais de nível superior, as chamadas técnicas, a saber: uma socióloga exercendo a função de coordenadora do local, cinco psicólogas, três assistentes sociais e uma advogada. Já no quadro de educadoras sociais, cuja formação escolar exigida é de nível médio, o local contava com oito trabalhadoras. O CREAS possuía, ainda, duas estagiárias de serviço social.

Enquanto pesquisa-intervenção, o estudo, pautado nos pressupostos de construção conjunta do conhecimento entre pesquisadora e sujeitos de pesquisa, buscou proporcionar momentos de reflexão coletiva (Lourau, 1993) a respeito dos processos de trabalho e sobre o tema da judicialização. Em 2 visitas semanais de aproximadamente 4 horas cada, ao longo de 8 meses de imersão foram acompanhadas reuniões de equipe, com outros níveis da assistência social e com outras políticas públicas, além de reconhecimentos de território, abordagens de rua, visitas a equipamentos da alta complexidade, seminário sobre Medidas Socioeducativas — MSE, audiências públicas junto à Câmara de Vereadores sobre o reordenamento da assistência social na cidade, bem como, audiências sobre os adolescentes em conflito com a lei junto ao juizado.

Essas atividades, assim como as conversas informais com as trabalhadoras e dois encontros de uma oficina de fotografia,3 foram registradas por escrito pela pesquisadora em diário de pesquisa. Para a execução da oficina de fotografia foram utilizados os arquivos de fotografia digitais, bem como fotografias impressas, produzidas pelas próprias trabalhadoras ao longo dos anos de trabalho do CREAS. Tais imagens foram organizadas em temáticas com a ajuda da coordenadora do CREAS. Após este processo, uma centena delas foi escolhida pela pesquisadora para serem utilizadas na oficina de fotografia, momento em que se realizou, assim como em todos os outros, a análise coletiva do próprio trabalho.

Além das atividades citadas, foram realizadas entrevistas com as coordenações dos serviços do CREAS com foco no cotidiano do trabalho, as quais foram devidamente registradas em áudio.

O material produzido ao longo da pesquisa foi analisado tendo como referência a análise do discurso de inspiração genealógica foucaultiana (Foucault, 1984/2006, 1970/2007, 2004/2008, 1984/2009, 1980/2011). O foco de atenção consistiu nas práticas das trabalhadoras e nas relações de poder em que se encontravam imersas.

3 Quando rostos e corpos se crispam perante o medo do trabalho como prova e de advir criminosa

Para analisar de que forma as práticas jurídicas no trabalho da assistência social se coadunam às forças judicializantes do/no trabalho, bem como os processos de resistência objetivados nas contracondutas criadas pelas trabalhadoras, algumas situações vivenciadas no decorrer da pesquisa serão apresentadas.

O acompanhamento do trabalho da equipe do CREAS transcorreu em princípio conforme o previsto: o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido — TCLE havia sido apresentado e havia sido acordado que, oportunamente, o projeto de pesquisa seria debatido de forma mais atenta, assim como a possível utilização de fotografias, vídeo e audiogravação. Esse momento era aguardado pela pesquisadora, quando eclodiu uma greve dos funcionários públicos da cidade e, depois, um evento esportivo mundial que mobilizou o país. Em decorrência, o que estava previsto para acontecer coletivamente foi substituído por estratégias outras: durante esse tempo as audiogravações foram sendo negociadas caso a caso. Nenhuma recusa se dera com relação à gravação das entrevistas iniciais com as referências4 dos serviços. Também não havia emergido qualquer incômodo com o fato da pesquisadora fazer anotações do que acontecia nas reuniões durante o tempo de seu transcurso. Entretanto, em uma reunião de técnicas que já não ocorria há algum tempo e que, com o início da pesquisa, foi reavivada, foi feito o pedido de que não ocorresse a gravação sob o argumento de que as técnicas não se sentiriam à vontade. A segunda recusa veio por parte da equipe de trabalhadoras das MSE, em reunião realizada com a técnica da terceira vara da infância e da juventude, responsável por aplicar o instrumento de avaliação do trabalho.

Essas duas recusas, perante tantos aceites, impulsionaram algumas questões: O que podia ser gravado ou não? Em que circunstâncias? O que significava o registro de algumas conversas para a equipe e para seus subgrupos? O que a diferença de aceite ou não do registro em áudio, nos diferentes espaços, poderia significar e dizer dessa equipe de trabalhadoras e, consequentemente, do trabalho na assistência social?

O acontecimento mais marcante, entretanto, relacionado à questão dos modos de registro das informações, ocorreu em uma reunião de equipe subsequente, após o período da greve e o evento esportivo, quando foi pautada a combinação do dia em que seria realizada a discussão do projeto de pesquisa e do TCLE. Nesse mesmo dia foi proposta a retomada do assunto das audiogravações das reuniões de equipe. A coordenadora disse não ver problema algum, mas que essa deveria ser uma decisão coletiva. Neste momento foi explicado o procedimento tomado até então, de ser feito o pedido de autorização antes de gravar, nas diferentes situações. Nesse instante os rostos das trabalhadoras ficaram sérios, alguns comentários sobre o descontentamento com a gravação e de não se sentir à vontade ou retirar a espontaneidade emergiram. Como forma de provocar reflexão, os diferentes momentos em que a gravação foi autorizada e outros em que não foi, foram apresentados pela pesquisadora. A diferença entre alguns momentos e outros foi questionada. Uma das trabalhadoras, com ar de incredulidade, como a duvidar que os aceites houvessem se passado, perguntou em quais momentos havia ocorrido o aceite de gravação. Tais momentos foram nomeados e mais tensão pairou no ar.

Em meio à conversa surgiu um comentário de que, em um desses espaços, era possível a gravação porque a equipe se “comportava” perante a presença de uma trabalhadora da fundação responsável pela gestão da assistência social na cidade. Surgiu também a ideia de “cuidar o que falar” porque às vezes “diziam coisas de um jeito não tão adequado”. Ao longo da conversa ficou evidente que “comportar-se” ou ter que “cuidar o que falar” significava entrar em alguma discussão sem se deixar tomar pelas emoções. Mas na continuidade do debate, outras falas emergiram, a afirmar que “comportar-se” ou “cuidar o que falar” não seria viável porque perderiam completamente a naturalidade da/na reunião. Os rostos se crisparam e tensionaram mais ainda. O corpo da pesquisadora se mantinha como portador de sensações estranhas e intensas, um corpo de passagem (Sant’Anna, 2001), veículo das angústias e intensidades ali presentes e não nomeadas. Nesse momento, a pesquisadora deixou claro que a decisão de gravar, ou não, seria de toda a equipe e que o momento poderia ser profícuo para colocar em análise os processos grupais e de trabalho.

Enquanto momento fecundo para se pensar a relação com o sistema de justiça (SJ) e a presença de práticas jurídicas dentro do próprio grupo é que o momento foi utilizado para operar uma intervenção, um dispositivo de análise coletiva (Lourau, 1993) sobre o que estava ocorrendo naquele instante. Nessa direção, foi proposto que se pensasse por que algumas falas podiam ser gravadas e outras não e o que isso dizia sobre o próprio trabalho. Como uma pesquisadora-inventora-criadora (Zanella, 2013) foi possível deslocar a equipe de um grupo onde há alguns indivíduos que preferem não serem gravados porque sentem isso como um incômodo para quais as contingências do trabalho que fazem com que, no âmbito da assistência social, gravar seja um incômodo. Depois desse apontamento emergiu a fala de que a equipe já havia vivenciado situações de exposição em outros tempos, quando muitas pessoas de fora do grupo, inclusive outras pesquisadoras, circulavam nas reuniões. Outra trabalhadora disse: É complicado até assinar uma coisa que não sabemos ao certo como vai ocorrer”. Essa fala se referia ao TCLE e ao fato de não saberem como se daria uma possível oficina de fotografia, estratégia que havia sido apresentada nesse dia como uma possível forma de restituição5.

Após a intervenção da pesquisadora, questionando porque algumas situações podiam ser gravadas e outras não, uma trabalhadora apontou que a reunião era um espaço onde emergiam muitas emoções, muitos desabafos, referindo-se à intensidade do próprio trabalho: o grande volume de demanda e de casos discutidos; as decisões que tiveram que tomar sobre as vidas das usuárias e tudo o que isso envolve, como as inúmeras reuniões e relações com outros níveis de complexidade da assistência social, outras políticas públicas, outras organizações e serviços; a intensidade dos afetos que circulam nesse processo.

Essa e outras falas subsequentes denotavam que, ao mesmo tempo em que haviam intensidades advindas do trabalho, as quais muitas vezes não era possível atender, havia outra intensidade da ordem da relação entre assistência social e sistema de justiça6. Uma relação “bastante difícil e complexa”, como diziam as trabalhadoras.

Uma palavra frequentemente ouvida no contexto de trabalho do CREAS como caracterizando o sistema de justiça era dureza.

Era confrontado a todo instante o dever, o conseguir e o querer, em razão da expressiva distância entre as determinações do sistema de justiça, as possibilidades de realizarem o que este determina e o querer das usuárias. As trabalhadoras da assistência social permanecem nesse entremeio, em que consequências sérias e incisivas nas vidas das usuárias podem advir de suas ações (ou de suas não ações).

Aspectos dessa relação entre sistema de justiça e assistência social transbordava naquela reunião, nas intensidades, ainda sem nome, provocadas pela aparente simples questão de autorizar ou não a audiogravação. Naquele momento foi possível perceber que uma das intensidades que atravessava os corpos, sem pedir licença, era o medo. Este já havia se feito presente em outros momentos, durante várias reuniões de equipe. Medo por parte das técnicas, principalmente, em relação ao dever assinar documentos que enviavam para o sistema de justiça e por responsabilizarem-se pessoalmente pela condução dos acompanhamentos. Ou seja, o medo do descumprimento das “ordens” do Judiciário e de suas consequências, mas também a angústia pelo cumprimento de ordens que poderiam vir a interferir negativamente na condução dos casos acompanhados.

O medo advinha de um lugar em que a trabalhadora deveria estar, pois no momento em que assinam um documento referente a um caso determinado, é essa pessoa que se torna a responsável pela execução das demandas desse sistema e é sobre ela que recaem as cobranças de suas execuções ou não. O lugar destinado às trabalhadoras da assistência social é o de assinar os documentos e se responsabilizar, pessoalmente, perante o sistema de justiça, pelo cumprimento de suas demandas. Elas devem se responsabilizar, então, como pessoa, por um trabalho que depende não apenas delas, mas de todo um sistema de assistência social, de inúmeras outras políticas, bem como do próprio desejo das usuárias.

Desta forma, o trabalho de uma equipe fica invisibilizado e a responsabilização por tudo o que acontece (ou deixa de acontecer) recai apenas sobre uma pessoa. O peso de todo um trabalho, de um sistema de assistência social e de um sistema de garantia de direitos, que deveria funcionar em rede, se coloca sobre os ombros de uma só trabalhadora, revelando a forte presença de um processo de individualização. Uma presença que se faz com o peso adicional da lei que recai sobre uma pessoa e todos os mecanismos jurídicos implicados.

“Cumpra-se” era uma palavra frequentemente utilizada por uma das trabalhadoras quando se referia à relação da assistência social com o sistema de justiça. Tal palavra fazia alusão a uma relação verticalizada, onde um manda e o outro deve obedecer, sem questionar. No cerne dos problemas dessa relação, na visão das trabalhadoras do SUAS, entre outras questões estão as requisições feitas de forma inadequada e/ou autoritária pelo sistema de justiça. As trabalhadoras apontaram que, inúmeras vezes, as demandas chegavam a interferir em sua autonomia, bem como a ferir seus códigos de ética profissionais. Elas apontaram ainda, de forma intensa, a falta de respeito e conhecimento sobre o trabalho das profissionais que atuam na assistência social por parte do sistema de justiça.

A fala de uma trabalhadora evidencia a angústia causada por estar no entremeio da relação assistência social-sistema de justiça: “Este é o brete: Se a gente não tenta, é processado porque não tentou. Se a gente tenta, não dá conta porque as pessoas não querem! E assim vai… Cada um com seu caso, sempre chega nessa angústia” (Fala de trabalhadora, comunicação pessoal, 2014, junho).7

No CREAS, as expressões utilizadas pelas trabalhadoras para falar da relação sistema de justiça-assistência social expressam claramente o medo que as ronda o tempo todo: “estar na berlinda”, “levar paulada”, “com a faca no pescoço”, “é no meu” (gesto de punho fechado sobre a palma da outra mão), “ter uma espada por trás”. Trata-se, pois, para essas trabalhadoras, de um sistema de justiça que concentra enorme poder, bem como de práticas jurídicas − entendidas como a maneira de se arbitrar os danos e as responsabilidades; maneira de fazer, no campo da lei objetivada; dos mecanismos de aplicação da lei; da defesa em juízo; das penalidades; do trâmite processual; dos direitos e das regras – que se evidenciam como uma das principais formas de subjetivação, através de seus inúmeros mecanismos (Foucault, 1996/2013)8. O não cumprimento de alguma ordem do sistema judiciário ou do sistema de justiça pode facilmente se transformar em processo a que devem responder na condição de réus, assombrando as trabalhadoras com o lugar do infrator e do criminoso – daí o medo.

O infrator, figura que se constituiu a partir da Idade Média, substitui aquele que cometeu um dano sobre outro indivíduo e a este deve reparação. O infrator é aquele que deve à ordem, à lei, à sociedade e ao Estado. E não cumprir alguma determinação da justiça é crime passível de penalidade. Descumprir uma ordem legal de um funcionário público é crime de desobediência, expresso no artigo 330 de nosso Código Penal brasileiro (Código Penal, 1940, Decreto-Lei nº 2.848).

Da mesma forma que é fácil deslizar para o lugar de infrator, é fácil também deslizar para outro lugar, bem mais contundente e execrável aos olhos de nossa sociedade: o de criminoso. Como diz Michel Foucault, “o criminoso é aquele que danifica, perturba a sociedade”, é “o inimigo interno, como indivíduo que no interior da sociedade rompeu o pacto que havia teoricamente estabelecido” (Foucault, 1996/2013, p. 83). E o pacto, presente na relação entre as trabalhadoras da assistência social e o sistema de justiça, é justamente o de cumprir o que este determina.

Ora, em nossa sociedade, a pena para o crime deve ser a privação de liberdade, ou seja, o afastamento do indivíduo nocivo por meio da prisão (Foucault, 1996/2013). E é esse o peso que se encontra, por vezes silenciado, por trás dos medos das trabalhadoras. A assinatura de uma trabalhadora em um documento que deve ser enviado ao sistema de justiça coaduna com um dos mecanismos do Poder Judiciário, ou seja, tem o lugar de verdade, de prova (Foucault, 1996/2013). Uma prova de que ela está ciente de que entrou na dinâmica das trocas judiciárias, de que sabe que algo deve ser cumprido. Assim é que, na assistência social, o próprio trabalho opera como prova. Prova contra seu próprio trabalho e seu lugar de trabalhadora da assistência social. Prova de que algo falhou perante o olhar do sistema de justiça.

Nessa relação, não somente o que se escreve e se assina pode servir como prova. Aquilo que se diz também. Isso é evidente na fala já citada, no dia da discussão sobre gravar ou não, em que uma trabalhadora se referiu a “comportar-se” e outra disse que deveriam “cuidar o que falar”: naquela situação já se evidenciava o lugar da fala como prova.

Durante a discussão que a apresentação do projeto de pesquisa para toda a equipe de trabalhadoras possibilitou, em meio às falas sobre a relação com o sistema de justiça, uma delas disse: “Precisamos cuidar o que se diz, medir as palavras” (Fala de trabalhadora, comunicação pessoal, 2014, julho). Outra, mais adiante, acrescentou: “O Judiciário trabalha com o ego das pessoas. Pede o relatório para o técnico, que escreve um relatório que o judiciário quer ler. Se escrevemos o que o juiz não quer, acabamos sofrendo com isto” (Fala de trabalhadora, comunicação pessoal, 2014, julho).

Essas falas mostram que a palavra, assim como a escrita, também tem um enorme peso, pois “Falar é exercer um poder, falar é arriscar seu poder, falar é arriscar conseguir ou perder tudo” (Foucault, 1996/2013, p. 136). E a fala pode ser utilizada como prova, principalmente quando registrada.

A prova é um dos importantes mecanismos das práticas jurídicas contemporâneas. Ela é tida como a portadora de conhecimentos objetivos a respeito dos fenômenos e da verdade do ocorrido, como se houvesse uma realidade pura e crua a ser vista, ouvida, dita e conhecida. É através da prova que o poder judiciário estabelece a relação entre dizer a verdade e a “fonte”, em uma dinâmica em que as trabalhadoras da assistência social dão seu “testemunho”. Testemunho da ciência de que estão na dinâmica jurídica, testemunho de seu próprio trabalho e, ainda, testemunho do que ocorre na vida das usuárias. Um testemunho que se coloca como o dizer a verdade daquele que “viu com os próprios olhos” (Foucault, 1980/2011).

No modelo judiciário, essa dinâmica do saber a verdade, da prova e do testemunho, não se completa a não ser que alguém possa dizer “eu”, ou seja, que a primeira pessoa entre como elemento. Deve haver um “eu” que possa dizer o que viu, o que fez, o que disse, o que lembra. Quer dizer, a memória também entra como elemento nessa dinâmica.

Essa dinâmica da busca pela verdade, mais do que permitir conhecer, permite, segundo Foucault (1980/2011), o exercício de um tipo de poder ao qual o sujeito se submete voluntariamente. E o que um sujeito pode dizer sobre, ou para, ou contra o poder que o assujeita?

As trabalhadoras da assistência social estão atadas ao sistema de justiça, sistema de proteção dos direitos dos cidadãos com o qual atuam diretamente. O trabalho delas depende dos documentos, tanto do que produzem para o sistema de justiça, das assinaturas que emitem, como daquilo que vem e é ofertado por esse sistema. Como seria possível a defesa de direitos, preconizada nos diversos documentos da assistência social (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome [MDS], 2004, 2005, 2006), sem os principais órgãos que operam por ela em nossa sociedade? Como defender crianças e adolescentes, moradores de rua, idosos vulneráveis, entre outros, sem o trabalho do sistema judiciário e do Ministério Público?

Diante do ciclo verdade-prova-testemunho-medo, como não se preocupar ou desconfiar do que seria feito com a assinatura do TCLE? Esse medo e desconfiança é que emergiu no dia da discussão do TCLE e da possibilidade de gravação em nossos corpos de rostos tensos e crispados, de tremores internos e respirações alteradas. Nessa discussão ficou acordado que, em qualquer das atividades que fossem realizadas dali em diante, o recurso utilizado seria a anotação em diário de pesquisa e não a audiogravação.

O desconforto que emergiu a partir da discussão da pesquisa visibilizou, como foi possível observar, um problema maior, um medo concreto presente no cotidiano das trabalhadoras. Se o trabalho enquanto prova contra si própria se constitui como forte ponto de tensão na relação entre assistência social e sistema de justiça, muitos outros também assim se apresentam.

4 Entre exame, prova e testemunho: a trabalhadora como “marionete” da judicialização?

A fala de uma trabalhadora, registrada no contexto de entrevista com a pesquisadora, expõe várias nuances das relações entre trabalhadoras da assistência social e sistema de justiça, mostrando que não é somente a questão da prova e do testemunho que constituem a dinâmica dessas relações:

Na reunião com o MP [Ministério Público], uma pessoa propõe que o CREAS faça um relatório e ela assine! E ninguém fala nada! Eu sou considerada a mais chata e brigona, mas se conseguiu sustentar uma resolução desta equipe de que a gente não vai fazer relatórios para o Judiciário [há um equívoco aqui entre Judiciário e sistema de justiça, que inclui o MP]. Outros CREAS fazem diligência! Como a gente vai sustentar isso? [referindo-se a não realizar tarefas que não são atribuição da AS]. Mas como a gente vai fazer essa discussão se outros CREAS ficam de costas para isso? Se a gente compra isso, o custo pessoal é gigantesco, gi-gan-tes-co [pausando as sílabas]! Se existissem outras pessoas para fazer, essa discussão não seria assim. São sempre as mesmas três coordenações que se levantam para falar. Precisamos disto [de uma discussão conjunta entre os CREAS], principalmente para contrafluxo com o Judiciário, senão viramos braço do Judiciário! Será ‘cumpra-se’! Eu fui chamada para um seminário pelo foco de resistência que temos feito. Eu fui intimada no caso [nome de um usuário] porque não quis responder à forma como que ele queria! [referindo-se ao Judiciário]. (Fala de trabalhadora, comunicação pessoal, 2014, setembro)

A trabalhadora ter sido intimada a falar sobre um caso porque não respondeu ao judiciário na forma que ele demandava corrobora o que explicitamos no tópico anterior: que o trabalho na assistência social se transforma em prova contra a própria trabalhadora. Nessa fala, o trabalho e o testemunho se constituíram como prova em relação ao exercício da profissão, sob a forte pressão do “cumpra-se”. Mas a fala vai além. Ela evidencia que, além da trabalhadora da assistência social constituir prova contra si própria ao trabalhar, ela exerce, sob a pressão do sistema de justiça, funções que não lhe dizem respeito.

Com indignação, outra trabalhadora diz: “O encaminhamento do MP refere o encaminhamento de um deles [um dos casos de abuso sexual de crianças] pelo conselho tutelar, mas isto não ocorreu. Então o MP pede investigação! [Com forte entonação sobre a palavra investigação]” (Fala de trabalhadora, comunicação pessoal, 2014, setembro). Nesta fala a trabalhadora quer evidenciar que uma investigação não é trabalho da alçada da assistência social e, sim da polícia. Como as trabalhadoras dizem, elas advêm “marionetes” do sistema de justiça ao terem que cumprir suas ordens sem refletir.

A forma de advir marionete é prestando serviços para o sistema de justiça, escrevendo laudos, relatórios, entre outros documentos, que deslocam as trabalhadoras do lugar de acompanhar as usuárias e as lança ao lugar de avaliar. Nesses momentos, as trabalhadoras da assistência social constituem provas não somente contra si mesmas, mas também contra as usuárias da assistência social.

Inúmeras são as situações em que isso ocorre, para além das já mencionadas. Em muitos momentos, o sistema de justiça determina que um adolescente das MSE, por exemplo, deve retornar à escola ou fazer uma avaliação psicológica, neurológica, psiquiátrica, entre outras. As trabalhadoras fazem ligações, estabelecem debates, conversas e encontros com as colegas trabalhadoras das políticas de educação e saúde, em um processo desgastante de buscar recursos onde, muitas vezes, não há. Processo desgastante também, muitas vezes, de convencimento da importância e da urgência, na tentativa de estabelecer uma parceria, pois sabem que um aceite de má vontade reverte contra o próprio trabalho e, consequentemente, contra a usuária9.

As trabalhadoras da assistência social se veem, então, entre o sistema de justiça, as outras políticas e as usuárias, no lugar de prestar contas para, o primeiro, do que foi realizado ou não. No caso de alguma demanda do sistema de justiça não ser cumprida, é a trabalhadora da assistência social que deve responder pelo que não foi possível realizar em uma dinâmica em que, na maioria das vezes, a justificativa de que a usuária não deseja algum tipo de serviço não é aceita. Com relação, por exemplo, a avaliações e tratamentos psicológicos e psiquiátricos, a situação é mais complexa, já que a adesão da pessoa é condição sine qua non para que o próprio tratamento venha a bom termo. Mas essa questão é desconsiderada pelo sistema de justiça, que responsabiliza as trabalhadoras da assistência social pela não adesão da usuária ao tratamento.

O que se evidencia, nessa tensa relação, é que o tempo do sistema de justiça é diferente do tempo das trabalhadoras da assistência social e do tempo das usuárias. O tempo do sistema de justiça é o da imediatez da “ordem”, do “cumpra-se”, é o tempo dos documentos e dos papéis. Como diz uma trabalhadora: “hoje se vive uma pauta de tensionamento, cinco dias para responder uma coisa, três para responder outra” (Fala de trabalhadora, comunicação pessoal, 2014, setembro). Já o tempo da trabalhadora da assistência social é o tempo das pessoas. É o tempo de encontrar locais para o atendimento necessário somado ao tempo do convencimento: o tempo de trabalhar, com a usuária, a percepção da necessidade de determinada avaliação e/ou atendimento e/ou serviço. O tempo da usuária, por sua vez, é o tempo de ser convencida, de abrir-se para perceber que sua condição pode melhorar a partir de um determinado atendimento ou serviço, do usufruto de um direito seu. E, mesmo diante de tanto investimento e tempo despendido, muitas vezes a usuária não quer o serviço a ela oferecido e requisitado pelo sistema de justiça.

Esse desencontro de tempos foi constatado também em outras situações. Por exemplo: o sistema de justiça ordena e a trabalhadora deve cumprir a demanda de que um adolescente, retorne à escola ou faça uma avaliação psicológica mesmo que ele não queira. Em que lugar a trabalhadora é instada a estar nessa situação, assim como na anteriormente relatada?

Como na torre panóptica de Benthan (Foucault, 1984/2009, 1996/2013), a trabalhadora da assistência social se vê imersa em um “jogo do olhar”, no lugar daquela que exerce a vigilância e pressiona a usuária a cumprir as determinações do sistema de justiça. São os olhos das trabalhadoras que veem o que é cumprido ou não. E é a trabalhadora que reporta o que é cumprido ou não. Em um desmembramento do par ver/ser visto, a trabalhadora opera o poder do sistema de justiça sobre a usuária que não vê de onde ele vem e que sobre ela incide.

Nesse entremeio, a trabalhadora que vigia a usuária é também vigiada pelo sistema de justiça. Se a usuária se cega com a luz que é posta sobre si e não vê de onde ela vem, também a trabalhadora pode se cegar e perder o rumo de sua atuação na assistência social. Talvez a isso estivesse remetida a fala da trabalhadora, quando disse que o judiciário trabalha com o ego das pessoas, fazendo com que elas escrevam o que ele quer ler. Exercício de um poder que crê estar em si, mas não está: a marionete. Nessa condição, no anverso de seu papel de propiciar o desenvolvimento da autonomia das usuárias, propalado em inúmeros documentos da assistência social (MDS, 2004, 2005, 2006), a trabalhadora exerce a tutela e a obediência tanto nas usuárias como em si mesma, subjetivando a si mesma e aos outros.

No poder jurídico o importante é instalar a obediência não como uma maneira de reagir a uma ordem, não como uma resposta ao outro, mas como um estado permanente (Foucault, 1980/2011). E é em meio a esse poder difuso e marcante que as trabalhadoras se veem imersas e convocadas a atuar. Sendo jogadas para longe de seu papel de acompanhar e trabalhar a autonomia das usuárias, algumas trabalhadoras se veem tomadas de profunda angústia, como se pode compreender na seguinte fala:

Se tem uma coisa que me incomoda profundamente são as audiências, porque uma coisa é sentar com uma equipe de oito pessoas e outra são essas audiências que servem para a gente testemunhar. A gente tem que reafirmar este lugar de que avaliar e acompanhar ao mesmo tempo não é possível! (Fala de trabalhadora, comunicação pessoal, 2014, abril)

A fala da trabalhadora mostra o incômodo de estar imersa nessa malha fina em que as práticas jurídicas se colocam no cotidiano e que, ao mesmo tempo, visibiliza outro mecanismo do poder jurídico em que se vê enredada: a avaliação, o exame.

Foucault (1984/2009, p. 181) diz que “O exame faz também a individualidade entrar num campo documentário”, mostrando-nos que o exame coloca os indivíduos em um campo de vigilância ao inscrevê-lo nesse campo de anotações, documentos, transformando o indivíduo em um “caso”. Assim, o indivíduo transforma-se em efeito e objeto do saber, efeito e objeto do poder, sendo homogeneizado.

Cabe deixar claro que o exame não é prerrogativa exclusiva do sistema de justiça, muito pelo contrário, as ciências de modo geral e as ciências humanas em particular dele sempre souberam se utilizar no exercício do saber-poder. Mas o poder jurídico dele se serve, e muito intensamente, em seu enraizamento, coadunando-se com o que há de disciplinar e normalizador nas ciências em geral.

Para Kleber Prado (2012, p. 110), a judicialização da vida é correlativa “da patologização das condutas cotidianas e da medicalização da vida”, presentes “no jogo da norma”, que coloca “formas sutis de governo das condutas, modos finos de subjetivação e certa instrumentalização psicológica do exercício do poder”. Esses processos estão relacionados, para o autor, com os procedimentos da prova, do inquérito (e seu correlativo da confissão) e do exame, que foram se constituindo enquanto formas de saber-poder jurídicos na modernidade e se espalhando pelo corpo social. Esses procedimentos dão consistência, na visão do autor, a todo um conjunto de instrumentos da psicologia, tais como processos seletivos, psicodiagnósticos, laudos e perícias, tão presentes no dia a dia do trabalho da assistência social. Operacionalizando, então, o poder jurídico através de suas próprias técnicas e instrumentos de trabalho, é que as trabalhadoras advêm marionetes e se tornam instrumentos da judicialização das vidas das usuárias e de suas próprias vidas, infiltrando as práticas jurídicas e seus instrumentos no viver.

Nesse campo de tensões, o operar na direção da judicialização fica claro quando as próprias trabalhadoras utilizam o poder do sistema judiciário para fazer pressão perante as usuárias. Em situações em que não sabem mais como convencer as usuárias da necessidade de uma determinada atitude ou mudança de comportamento, invocam o nome do judiciário ou do MP como forma de convencimento, por meio do medo. O medo que elas próprias sentem, por vezes, é utilizado como tecnologia de intervenção para a modificação dos modos de viver das usuárias.

Nesse jogo de fluxos e contrafluxos, as marionetes por vezes fazem movimentos opostos aos indicados pelos fios que buscam tutelar seus corpos. Em outras palavras, também as contracondutas estão presentes. Mais uma vez a estratégia utilizada contra os poderes coercitivos, neste caso, do sistema de justiça, é a tentativa de coletivizar algumas formas de trabalho.

Uma importante contraconduta que se fez presente no CREAS, observada pela pesquisadora, foi a estratégia de convidar a juíza da vara da infância e da juventude para, no movimento oposto de ir ao judiciário, fazer a juíza vir ao CREAS. Com essa atitude, a coordenadora pretendia que a juíza, além de conhecer o espaço físico de um CREAS, suas condições de trabalho e sua equipe, também pudesse ver as usuárias para além de um número de processo. Sua intenção era mostrar alguns casos e todo o trabalho que eles implicavam, corporificando aquelas usuárias, dando-lhes nome, contexto de vida, as razões para viverem de determinada forma, transformando uma pilha de papel em alguém. Em relação às trabalhadoras, a visita visibilizaria o montante de trabalho, as formas de aproximação e abordagem em relação às usuárias e um pouco das dificuldades envolvidas.

A intenção de retirar a juíza de seu lugar habitual, de trazê-la para o contexto do trabalho na assistência social, refletia também uma vontade de mexer com as relações de poder, de fazer com que a juíza se deslocasse, saísse de seu gabinete e viesse até o CREAS; que “circulasse pela vida comum das pessoas comuns!” (Fala de trabalhadora, comunicação pessoal, 2014, julho), como disse uma trabalhadora.

Obviamente o convite não se tratou de uma provocação à figura da juíza que, sensível à demanda das trabalhadoras do CREAS e diferentemente de tantas outras colegas do sistema de justiça, prontamente o aceitou. Tratava-se, na verdade, de uma provocação aos poderes instituídos e às formas de relação judicializadas que subjetivam as trabalhadoras da assistência social como aquelas que obedecem cegamente ao sistema de justiça e colocam seus instrumentos no cumprimento de seus interesses. Interesses estes que nem sempre coadunam com os interesses das trabalhadoras ou da própria população.

Nesse contrafluxo há um reconhecimento dos movimentos de aproximação que também a juíza fazia na direção do trabalho da assistência social e da sociedade em geral, demonstrando que no campo jurídico também existem diferenças: trata-se de um campo tenso e contraditório e não um campo apaziguado, de um sistema que congrega diferenças, apesar de sua aparente homogeneidade assente em lugares de saber-poder e discursos de verdade.

Estudo realizado pelo IPEA (2015) demonstra que, se por um lado as trabalhadoras da assistência social reclamam da postura do sistema de justiça, as trabalhadoras do sistema de justiça também têm suas críticas às trabalhadoras da assistência social, apontando a falta de formação adequada, por parte destas últimas, para conhecer as competências do sistema de justiça e responder a ele. Além disto, o sistema de justiça possui suas próprias dificuldades, como a falta de pessoal necessário para desempenhar o trabalho a contento, o que faz com que pressionem a assistência social no cumprimento de demandas (IPEA, 2015).

Nas relações entre assistência social e sistema de justiça, as trabalhadoras do CREAS reconheceram a disponibilidade da juíza de buscar realizar discussões conjuntas com as redes municipal e estadual de assistência social. A disponibilidade da juíza e o encontro com a mesma foi visto como uma possibilidade de atenuar as durezas vindas do judiciário, pois o encaminhamento compulsório de um adolescente, por exemplo, para uma escola em que tinha que tomar dois ônibus para chegar, em uma conjuntura em que a família não podia arcar com esse custo, não caminhava na direção de seus direitos. Na disponibilidade da juíza em estar no CREAS, as trabalhadoras viram como fundamental a possibilidade de ela conhecer o espaço físico, além de ver que os inúmeros processos; que “aquela pilha de papel”, na verdade, referia-se a pessoas com histórias complexas e difíceis cuja resolução dos problemas demandava muito mais que as ações de trabalhadoras da assistência social.

Outra contraconduta significativa evidenciada com a pesquisa caracterizou-se como contrafluxo não só aos poderes instituídos como também ao processo de individualização. As trabalhadoras do CREAS decidiram que passariam a assinar coletivamente aquilo que fosse construído coletivamente. Uma grande, intensa e duradoura discussão sobre a relação das trabalhadoras com o sistema de justiça gerou a ideia de que todo documento produzido pela equipe deveria ser assinado pela equipe, com a presença das técnicas e educadoras envolvidas no acompanhamento da usuária cuja situação estivesse em foco.

Essa estratégia tinha a intenção de, em primeiro lugar, mostrar que o trabalho da assistência social não é desempenhado apenas por uma pessoa, mas sempre por uma equipe interdisciplinar que decide e executa conjuntamente as atividades. Em segundo lugar, essa atitude procurou diluir o peso das consequências do não cumprimento das demandas do sistema de justiça, exatamente da forma que ele crê ser a melhor. Com essa estratégia, um modo de resistência à individualização e responsabilização que recaia sobre as trabalhadoras, o medo arrefecia e elas conseguiam expor seus contra-argumentos de uma maneira mais clara e tranquila.

O sistema de justiça sempre demandava, nos documentos encaminhados ao CREAS, a assinatura de uma pessoa considerada “responsável” pelo caso. Mas as responsáveis pelo trabalho produzido eram as trabalhadoras enquanto equipe, as decisões sobre encaminhamentos de cada caso resultavam de discussões e deliberações conjuntas.

A assinatura conjunta, por conseguinte, consistia em contraconduta por parte das trabalhadoras da assistência social não somente porque estavam juntas ali naquele documento, mas porque a construção da estratégia de intervenção foi construída em um espaço-tempo do “entre” que foi resultado de discussões que colocaram em análise e provocaram as individualizações nos processos de trabalho. Uma construção produzida sem desconsiderar as inúmeras diferenças de profissões, funções, salários, cargas horárias e poderes entre as trabalhadoras, mas que foi possível na medida em que se unificaram como coletivo.

Sendo assim, essa contraconduta se constituiu como um movimento na direção de uma possível coletivização. Como diz Liliana Escóssia (2009, p. 693), “uma política do coletivo não é uma política de soluções duradouras dos problemas, mas uma experiência coletiva permanente de problematizações, identificação dos perigos e escolhas ético-políticas”. E foi a partir de um perigo que a equipe do CREAS se deslocou da demanda individualizante de uma assinatura única. As assinaturas conjuntas contrapuseram os pedidos do sistema de justiça para, naquele momento da história das trabalhadoras do CREAS, visibilizar um trabalho realizado por todas e procurar contrapor os poderes judicializantes. Da mesma forma, a visita da juíza propiciou deslocamentos de uma forma corriqueira de trabalho, também operando um deslocamento nos lugares das trabalhadoras em relação a ela, pois uma juíza que não faz uso de seu lugar de saber-poder para subjugar as profissionais da assistência social é algo estranho, assim como trabalhadoras sem medo do poder judiciário é estranho também. E esses estranhamentos podem vir a produzir outras posturas, dizeres, pensares entre o sistema de justiça e trabalhadoras da assistência social.

Assim é que, entre movimentos de condutas e contracondutas, de atendimento e de resistência às demandas do sistema de justiça, as trabalhadoras vão produzindo seu trabalho, ora se angustiando ao se verem imersas e coparticipes dos processos de judicialização, ora procurando enfrentar seus medos, refletindo e construindo contracondutas aos poderes jurídicos. Nesses jogos, as trabalhadoras procuram arrebentar alguns dos fios que as conduzem como marionetes, rompendo com os movimentos previstos e orquestrados pelo sistema de justiça, tecendo movimentos que partem de suas necessidades e da teia de relações complexas nas quais estão imersas.

5 Considerações finais

A pesquisa junto ao CREAS mostra o quanto a relação entre o sistema de justiça e a assistência social é tensa e por vezes fortemente autoritária. Entretanto, a pesquisa mostra também que frestas podem ser abertas nessa relação na direção de um arejamento e de uma produção conjunta que coloque em questão ambos os trabalhos, na direção do objetivo dos dois sistemas, que é a garantia dos direitos das usuárias. Se por um lado, por vezes, o sistema de justiça exerce forte pressão na direção da judicialização do trabalho e da vida, as trabalhadoras da assistência social lançam mão de estratégias inventivas na tentativa de fazer contracondutas a essa pressão, de resistir ao que se lhes é imposto.

O estudo mostra ainda que deslocamentos na direção de um trabalho conjunto e não abusivo existem dentro do próprio sistema judiciário e que as práticas judicializantes encontram-se enraizadas em todo corpo social, não sendo a reflexão sobre as mesmas, prerrogativa de uma ou outra profissão ou campo. Nesse enraizamento, os mecanismos do medo, da prova, do exame, do testemunho e do advir criminosa atuam intensamente e devem ser analisados pelas trabalhadoras de forma circunstanciada.

A prática de uma pesquisa-intervenção, como a que foi realizada junto ao CREAS, faz ver o quanto estudos pautados por princípios éticos, políticos e estéticos podem contribuir para as análises dos processos de trabalho em um determinado campo, o quanto alguns acontecimentos advindos no próprio campo de pesquisa durante seu processo de construção podem ser potentes para tais análises e para a construção coletiva de alternativas a problemas em tal processo pelas próprias trabalhadoras. Outros estudos, por conseguinte, se fazem necessários para que essa construção se intensifique em prol de direitos.

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