Experiência e produção de si em perfis do aplicativo Grindr

Experience and production of oneself on Grindr profiles

  • João Gabriel Maracci
  • Vanessa Soares Maurente
  • Adolfo Pizzinato
Discutimos a ideia de produção de si através de conteúdos presentes em perfis do Grindr - aplicativo móvel e geolocalizado de busca de parceiros entre homens, comumente utilizado no contexto brasileiro. O Grindr foi a primeira ferramenta a conjugar a busca por sexo via internet ao mecanismo de geolocalização, acarretando mudanças significativas na vivência da sexualidade e do espaço público para homens que fazem sexo com homens. Realizamos uma cartografia no aplicativo, tendo como foco inicial as descrições de perfis encontrados em diferentes regiões da cidade de Porto Alegre, Brasil. Percebemos a recorrência de ideais de masculinidade, desvalorização de atributos entendidos como femininos, referências à lógica do aplicativo e negociação do sigilo na formulação dos perfis. Discutimos o Grindr como espaço de reorganizações discursivas, que se inserem no interior do aplicativo através dos modos como sujeitos produzem sentidos sobre “quem são” e “o que buscam” na ferramenta.
    Palavras chave:
  • Masculinidades
  • Gênero
  • Homossexualidade
  • Tecnologia
We discuss the idea of “production of oneself” through content present in Grindr - mobile application for finding sexual partners among men. Grindr was the first tool to combine the search for sex via Internet with the mechanism of satellite geolocation, leading to significant changes in the experience of sexuality and public space for men who have sex with men. We developed a cartography in the application, having as initial focus the profile descriptions found in different regions of the city of Porto Alegre, Brazil. The recurrence of masculinity ideals, devaluation of attributes understood as feminine, references to the logic of the application and negotiation of confidentiality was perceived in the formulation of profiles. We discuss Grindr as a space for discursive reorganizations, which are inserted within the app through the ways in which subjects produce meaning about “who they are” and “what they look for” by using the tool.
    Keywords:
  • Masculinities
  • Gender
  • Homosexuality
  • Technology

1 Introdução

A expansão do uso de aplicativos móveis geolocalizados de busca por parceiros indica importantes caminhos de análise, tanto dos processos de virtualização e atualização dos discursos hegemônicos acerca da sexualidade, quanto das formas como os sujeitos se experienciam em relação a estes mesmos discursos, através da tecnologia. Tais aplicativos foram criados, inicialmente, para a busca de relações sexuais entre homens (Miskolci, 2014), mas hoje se expandem em tecnologias específicas para diversos públicos-alvo. Os aplicativos Tinder e Happn, por exemplo, destacam-se pela amplitude de público, podendo ser usados na busca por parceiros entre homens, mulheres ou homens e mulheres. No caso de procura específica entre mulheres, há uma variedade de aplicativos disponíveis, como o Datch, Wapa e Her. Sabe-se, no entanto, que estes são pouco utilizados no contexto brasileiro de mulheres que buscam relações com outras mulheres.

Para o público de homens que buscam relações sexuais e afetivas com homens, entretanto, o número de aplicativos disponíveis é maior, e estes são utilizados em larga escala no Brasil, destacando-se, entre outros, o Bender, Hornet, Scruff e Grindr. Este último foi lançado em 2009, sendo o primeiro de muitos a conjugar a busca de parceiros com o mecanismo de geolocalização. O usuário pode visualizar as 99 pessoas que estão mais próximas de si, trocar mensagens privadas, fotos e mapas. Este mecanismo, segundo Richard Miskolci (2014), alterou as dinâmicas do sexo entre homens e a relação estabelecida entre esta sexualidade e o espaço público.

Considerando a expansão da utilização dos inúmeros canais de mediação virtual do sexo, entende-se que o estudo destas plataformas e das suas apropriações pode ser um profícuo caminho para a compreensão das construções de gênero e das relações entre sujeito e tecnologias na contemporaneidade. Desta forma, o presente trabalho busca analisar como sujeitos se experienciam através da construção de seus perfis no Grindr. Partimos de uma noção de tecnologia enquanto causa e efeito de processos culturais e, consequentemente, com um importante efeito nas formas de produção de subjetividade. Gilbert Simondon (2001) aponta para o complexo campo de existência dos objetos técnicos ao afirmar a fragilidade do pensamento que opõe cultura e técnica. Para este autor, compreender as máquinas somente a partir de sua utilidade ou, ao contrário, enquanto "robôs" com atitudes hostis, seria reduzi-las. O desenvolvimento tecnológico, de acordo com Simondon, não teria nada a ver com o automatismo, mas sim com certa margem de indeterminação, ou seja, com a criação de “máquinas abertas”, mais sensíveis às informações exteriores. Neste sentido, o sujeito seria como um organizador, um maestro das máquinas, capaz de interagir com elas de maneiras cada vez mais sofisticadas e de pensar na sua própria forma de existência a partir delas.

Os aplicativos de busca de parceiros são um exemplo destes processos, por possuírem certos graus de abertura, permitindo que os usuários reinventem suas possibilidades de uso, como será mencionado mais adiante. Da mesma forma, atualizam importantes processos sociais contemporâneos como a liquidez das relações, a busca incessante pela expansão do tempo presente e aproximações entre modos de consumir e relacionar-se.

Além disso, para Walter Couto, Fábio Morelli, Dolores Galindo e Leonardo Lemos Souza (2016), os dispositivos móveis de busca por parceiros entre homens “inauguram outras modalidades de sexo, suscitam outras afetações aos corpos e ressignificam práticas normatizadas” (p. 170). Assim, os discursos que delimitam e regulam o gênero e a sexualidade continuam presentes no aplicativo, de modo que estes elementos também se apresentem em disputas e controvérsias entre os usuários. Deste modo, pode-se entender o Grindr como um espaço possível de re-produção de normas e expressão de resistências acerca das vivências contemporâneas de homens que buscam relações afetivas e sexuais com outros homens (Couto et al., 2016).

Anteriormente à invenção do aplicativo, a mediação virtual do sexo entre homens estava associada a salas de bate-papo e comunidades on-line, mas estas não utilizavam o mecanismo de localização por satélite, permitindo que as salas pudessem ser acessadas a partir de qualquer lugar (Miskolci, 2014). Assim, uma sala destinada à busca por encontros em Belo Horizonte, por exemplo, poderia ter a participação de alguém localizado em Porto Alegre ou qualquer outro local com acesso à internet. O Grindr e os sucessores aplicativos com tal finalidade alteraram a lógica da busca por parceiros, sobrepondo as realidades on-line e off-line e rompendo assim com distinções anteriormente utilizadas para entender o “mundo virtual” em oposição ao “mundo real”.

É claro que estes dois momentos não se colocam simplesmente em uma linha cronológica, na qual os aplicativos teriam superado e substituído as salas de bate papo. Pelo contrário, sabe-se que ainda hoje essas ferramentas continuam sendo utilizadas, sobretudo por sua articulação a uma rede tecnológica de mediação da sexualidade, que conjuga aplicativos e websites de ordens diferentes, sejam os específicos para busca de parceiros quanto outras redes sociais, tais quais o Facebook e o Instagram. Nota-se, porém, que a sofisticação das tecnologias, sobretudo pelo seu contexto móvel e geolocalizado, produziu novas circunstâncias para a busca por parceiros a partir da possibilidade de deslocamento e interconexão ao trânsito nas cidades, inserindo a questão da localidade como aspecto indissociável da mediação tecnológica do gênero, do sexo e dos desejos (Pizzinato, Hamman & Maracci-Cardoso, 2017).

Por essa via de entendimento, os smartphones e outros dispositivos móveis permitem uma conexão contínua com a internet, de modo a tornar o acesso à rede transversal à vivência do espaço público. Esta conjugação proporciona uma nova experiência da cidade, que passa a ser vivida conjuntamente à realidade on-line. Referindo-se especificamente ao Grindr, esta dinâmica apresenta alterações significativas nos sentidos estabelecidos acerca do sexo entre homens e da homossexualidade. É possível, por exemplo, em grandes cidades, associar a experiência urbana à busca por sexo entre homens sem que essa prática perpasse locais reconhecidos pela socialização homossexual devido ao caráter privado do aplicativo. Segundo Miskolci (2014), esta “facilidade” pode acarretar em uma higienização e normalização do sexo entre homens devido ao possível distanciamento desta prática do espaço público a partir do sigilo e discrição que ela permite.

No entanto, as demandas de busca dos usuários, sua procura ou não por discrição e sigilo e a maneira como se definem são heterogêneas. O perfil, dessa forma, é a maneira posta pelo aplicativo para enunciar tais requisitos e identificações, com campos disponíveis para preenchimento voluntário. Pode-se escolher uma foto, um nome e um about me (usando caracteres e emojis); a idade, altura, peso, etnicidade, tipo de corpo, o que se procura, status de relação (solteiro, casado, relacionamento aberto...); tribos (como malhadinho, barbie e papai, sendo que na versão gratuita só se pode escolher uma dessas categorias); posição sexual de preferência; condição sorológica; e associar no perfil um link para Instagram, Facebook ou Twitter. Todas essas opções têm preenchimento voluntário.

Como dito anteriormente, o Grindr difere-se das salas de bate-papo pelo critério exclusivo de proximidade. Se, neste modo de sociabilidade e busca por parceiros na internet, pode-se escolher uma sala através de uma temática comum (fetiches específicos, idades, cidades etc.), o Grindr expõe apenas aquelas pessoas que estão próximas ao usuário. Há um mecanismo de seleção, que permite a visualização somente das pessoas que correspondem com as “tribos”, “idade” ou outras categorias escolhidas pelo sujeito; no entanto, como esta opção é dificultada para os não pagantes do serviço, não é um dispositivo usado corriqueiramente, ao menos no Brasil. Desta forma, as informações expostas no perfil configuram-se pela função de expor ou não a maneira como os usuários se relacionam com o aplicativo, indicada a partir de códigos textuais e imagéticos em uma rede semântica compartilhada em maior ou menor nível pelos outros. Esta rede envolve emojis, estilos de fotos, números, palavras e frases que se articulam em sentidos específicos usados para dizer quem se é e o que se busca através do aplicativo.

2 Subjetividade e tecnologias

Michel Foucault (1995) apresenta a noção de discurso como um conjunto de enunciados que se materializa através de práticas articuladas de forma a responder às exigências de determinado contexto histórico. Neste âmbito, as formações discursivas seriam os conjuntos de regras, enunciados e objetos que responderiam a um regime próprio e autônomo de formação, efetuando-se mediante condições de possibilidade de surgimento, existência e transformação. A noção de formação discursiva nos permitiria falar em um discurso heteronormativo, relacionado à heterossexualidade compulsória (Butler, 1990), que pressupõe a ideia de normalidade à experiência heterossexual e cisgênera, materializando-se em práticas que constrangem, restringem direitos e, por vezes, desconsideram a vida de gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis. O discurso heteronormativo se sustenta e reproduz através de outros discursos - religioso, psiquiátrico, psicológico, neuroquímico, etc.

No início dos anos setenta, Foucault irá deslocar, de certa forma, o eixo de seus estudos, afirmando que todo conhecimento representa, antes de tudo, um ato de violência em relação às coisas e que a verdade, compreendida como a riqueza do pensamento, é uma “prodigiosa maquinaria destinada a excluir” (Foucault, 1996, p. 22). A partir de então, o autor irá centralizar suas análises nas formas como a interdição que atinge o discurso revela sua ligação íntima com o poder, de modo que, por trás de todo o saber, de todo o conhecimento, o que está em jogo é uma luta de poder (Foucault, 1996).

Esta proposta foucaultiana “mais do que analisar o poder do ponto de vista da sua racionalidade interna, consiste em analisar as relações de poder através do antagonismo das estratégias” (Foucault, 1995). Neste sentido, falar de poder é falar de relações de poder, onde as possibilidades de resistência se colocam como uma espécie de pré-requisito para que estas relações se efetuem. As relações de poder, por sua vez, implicam a noção de jogos de verdade, entendidos como os jogos do verdadeiro e do falso, nos quais o sujeito se constitui historicamente como experiência (Foucault, 2001). Neste âmbito, a noção de experiência de si remete às formas como os sujeitos se reconhecem nos jogos de verdade que o constituem e são, ao mesmo tempo, aquilo contra o que eles resistem.

Os jogos de verdade que definem o que é normal e valorizado e o que não é em termos de sexualidade se materializam em práticas, como, por exemplo, a desvalorização do que é considerado feminino dentro de um contexto de dominação masculina, o que, segundo Daniel Welzer Lang (2001), culmina em uma configuração social homofóbica e sexista. As condições de possibilidade de resistência se produzem nos mais inusitados campos, dentre os quais podemos citar as novas tecnologias da informação e comunicação ou, mais especificamente, no caso deste artigo, os aplicativos de busca de parceiros.

O espaço disponível para o "perfil" no Grindr, deste modo, funciona como interpelador de respostas performativas, pelos quais os usuários dizem quem são e o que procuram através da ferramenta, atualizando discursos que os produzem através de verdades sobre o gênero e a sexualidade no contemporâneo. Estas descrições podem ser entendidas como produções de si, que se configuram no uso ou na hesitação daqueles atributos disponíveis para a manifestação de um “eu” no aplicativo. Cabe ressaltar que este "eu" não remete a uma individualidade, essência ou interioridade, mas a modos de ser sujeito que se alternam e sobrepõem. Falamos, assim, no lastro do pensamento foucaultiano, na experiência de si dos sujeitos em relação aos discursos que os constituem e são, ao mesmo tempo, aquilo contra o que devem lutar.

No caso do Grindr, este "eu" que se atualiza na descrição do perfil pode indicar caminhos para o entendimento da forma como os sujeitos se experimentam em relação aos discursos que definem práticas sexuais e de gênero através da tecnologia. Isto não significa que o "eu" produzido no perfil do Grindr fique restrito ao aplicativo, mas que ele pode ser uma forma de produção de si: a forma como afirmo uma posição. A referência a um “eu” desenvolvido no aplicativo não está, sequer, relacionada a uma só pessoa, posto que há usuários que usam o perfil de forma dupla, como casais que buscam um terceiro para a relação sexual. A produção de si, neste sentido, diz respeito à maneira como os usuários se colocam – e assim se produzem – através da ferramenta em questão.

As formulações de Judith Butler (1990) acerca da performatividade apontam para esta concepção de sujeito mediada por práticas de si. Opondo-se a dualismos presentes em concepções clássicas de sujeito (privilegiando a sociedade em detrimento do indivíduo ou vice e versa), a autora propõe uma noção de sujeito baseada no próprio fazer. Sujeitos constroem-se através de suas práticas, sempre circunscritas em uma discursividade vigente, ou seja, a partir de ações performativas baseadas em códigos disponíveis na cultura, reorganizados nas manifestações de si (Butler, 2005/2015).

A norma não produz o sujeito como seu efeito necessário, tampouco o sujeito é totalmente livre para desprezar a norma que inaugura sua subjetividade; o sujeito luta invariavelmente com condições de vida que não poderia ter escolhido. (Butler, 2005/2015, p. 31)

A concepção da performatividade pressupõe a ausência de um “eu” anterior à ação; pelo contrário, é a própria ação que constitui a existência do “eu”. Deste modo, entende-se a ideia de sujeito como práticas de si relativas a um regime discursivo, relacionando-se a este por meio de reiterações, tensionamentos ou subversões, mas sempre interiores ao mesmo (Butler, 1990). O sujeito funda-se, assim, na resposta que dá aos discursos que o interpelam, reorganizando-os através de sua ação performativa, sua agência. O “eu”, para Butler, excede a narração do próprio sujeito, posto que sua origem jamais será plenamente explicada; o “eu” não se origina em um indivíduo por si, mas sim nas relações de interpelação e resposta que este estabelece com o outro (Butler, 2005/2015).

No livro “Relatar a si mesmo: Crítica da violência ética” (Butler, 2005/2015), a autora questiona as condições narrativas instauradas nas cenas em que sujeitos fazem relatos de si, concluindo a interpelatividade de tais momentos. Sujeitos dizem quem são quando são convocados a o fazer, e é nessa resposta que se instaura a própria ideia de um “eu”. Em relação ao Grindr, pode-se entender a construção de um perfil como uma ação performativa, que se constitui através do responder às perguntas instituídas para a construção deste, mesmo quando se escolhe não responder às perguntas solicitadas. Esta ação relaciona-se com a lógica própria do aplicativo, a partir do conhecimento ou não dos códigos nele utilizados, e também ao contexto social no qual ele se insere, onde circulam verdades acerca do gênero, da sexualidade e do desejo, que são negociadas através de uma ação descritiva de si. Descrição esta que não apenas relata uma realidade, mas também a produz no re-organizar performativo de seus símbolos e códigos. Esta possibilidade de re-configuração é entendida como agência, ou seja, a capacidade de, na resposta a um discurso, posicionar-se frente ao mesmo e, assim, subvertê-lo.

No entanto, essa subversão performativa não deve ser tomada como volátil ou meramente intencional. Pelo contrário, compreendemos a subversão e a agência a partir da condição falível da linguagem, que não produz efeito retilíneo e totalizante naquilo que descreve e produz. Deste modo, é a impossibilidade de completude que permite instaurar algo novo no mundo a partir da prática de si, e não a mera repetição idêntica de um anterior inalcançável - como pressuporia um entendimento diretivo da ação discursiva sobre um sujeito. Tal concepção de linguagem aponta para um sujeito incompleto, cuja prática performativa não resulta em uma integração daquilo que se é em torno da identidade, mas parte, sim, de um “desejo de unidade”, como propõe Adriana Cavarero (2000): ou seja, a unidade de si pertence sempre ao campo do desejo. Assim, a performatividade não está centrada em um “eu” racional, mas nas relações de contingência pelas quais a identidade é endereçada sempre a um outro.

Por essa razão, enfocamos aqui o modo como as construções de perfil retomam discursividades vigentes acerca do gênero, das sexualidades e masculinidades, mas também as desorganizam na formação de um “eu” contingente à ferramenta e dirigida a um outro. De formas mais ou menos explícitas, as construções de si se relacionam com o campo discursivo, referindo-se ao contexto onde o aplicativo é utilizado e também ao processo comunicativo singular ao seu uso. Deste modo, o presente artigo analisa a construção de perfis do Grindr na cidade de Porto Alegre, enfocando os elementos discursivos presentes nestas enunciações, a fim de compreender como se organizam as narrativas, encadeamentos do desejo e produções de si a partir da ferramenta.

3 Heteronormatividade e disputas

Daniel Welzer-Lang (2001) aponta que as relações de gênero estão baseadas em uma hierarquia, na qual a dominação masculina coloca os homens em posição de privilégio social frente a mulheres. Segundo este autor, a relação de dominação opera não apenas nas dinâmicas da heterossexualidde, mas pode também se estender a relações homossexuais. Deste modo, no caso de homens que se relacionam com homens, pode-se perceber a presença de homofobia à medida que há discriminação contra aqueles que apresentam ou a quem se atribui características do outro gênero, no caso o feminino. Cria-se também uma hierarquia dentro das próprias vivências não heterossexuais entre homens, evocando a lógica binária da dominação masculina, sob a qual são inferiorizados aqueles que aproximam seu modo de ser do que é entendido ou socialmente esperado como feminino (Welzer-Lang, 2001).

Os ideais do “homem dominante”, estendidos às vivências de homens que se relacionam afetiva e sexualmente com homens, podem constituir categorias valorativas dentro destas dinâmicas, como, por exemplo, a associação da posição sexual de penetrar (ou ser ativo, como comumente é referida no Brasil) à dominação daquele que é penetrado (passivo). Deste modo, produz-se nestas relações entre homens uma outra norma política heterocentrada, na qual o homossexual “dominante” acaba por cumprir sua função de homem “normal” na sociedade, baseada na dominação daquele que simbolicamente representa o feminino (Welzer-Lang, 2001).

Estes discursos, que se articulam nas dinâmicas sexuais entre homens, também estão presentes na linguagem utilizada em aplicativos de busca por sexo. Não raro encontra-se nestas plataformas descrições de si e exigências de busca que perpassam as noções de dominação masculina propostas por este autor. “Não curto afeminados”, “Busco macho”, “Macho no sigilo” etc. são exemplos de frases comumente encontradas em perfis do Grindr, que, dada a sua recorrente repetição, estabelecem uma hierarquia entre os usuários, delimitando os tipos de corpos que são mais ou menos suscetíveis ao desejo a partir da ferramenta.

No entanto, como aponta Foucault (1995), as possibilidades de resistência configuram-se como condição para as relações de poder. Deste modo, se o aplicativo possibilita a veiculação de discursos que reiteram a norma heterossexual, nele também se é possível traçar tensionamentos a este modelo, que se esboçam em frases como “Se tu não parece gay, o problema é todo teu!”, também retirada de um perfil do Grindr. Estas, ainda que menos comuns que as primeiras, indicam uma disputa travada no interior do aplicativo sobre os sentidos possíveis para o sexo, o gênero e o desejo, e que se estende a outros âmbitos da realidade on-line ou off-line.

Neste sentido, o perfil é o primeiro local de exercício destas divergências, que podem ou não se estender à comunicação via chat, mas que marcam um registro na vivência do aplicativo, posto que está disponível aos 99 usuários que estiverem mais próximos no momento do uso. Desta forma, faz-se importante analisar os conteúdos presentes nos perfis, como os usuários estabelecem através deles construções narrativas sobre si mesmos e sobre seus desejos, quais discursos estão sendo atualizados nestes espaços e se articulam as possibilidades de resistência sobre gênero, sexualidade e masculinidades através da ferramenta.

4 Cartografia como modo de pesquisar

O método cartográfico foi proposto por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995) e busca romper com o modelo de ciência moderna, cuja centralidade se encontra nas noções de verdade, neutralidade e estabilidade dos objetos. Na cartografia, o objetivo do pesquisador é acompanhar a virtualidade dos processos sociais, dado que não se pode ter domínio sobre o devir inerente a eles. Ao mesmo tempo, o trabalho do cartógrafo não é desprovido de orientação, existe uma intenção de trajetória, mas não um único sentido pré-concebido. O pesquisador que trabalha com cartografia acompanha processos e constrói conhecimento acerca de campos em movimento. Virgínia Kastrup e Eduardo Passos (2013) apontam a importância de uma atenção sensível e do acionamento dos afetos durante as pesquisas, fatores que foram silenciados pela ciência moderna.

Neste trabalho, realizamos uma cartografia tendo como foco inicial as descrições dos perfis no Grindr. A única forma de ter acesso ao aplicativo é criando um cadastro, o que foi realizado, mediante a elaboração de um perfil muito básico, através do qual não foram realizados diálogos com os demais usuários. Nossa experimentação do aplicativo se deu ao longo de 6 meses, com observações dos perfis disponíveis e por meio da ferramenta de captura de tela daqueles que forneciam informações relevantes para a composição deste estudo. Nestes, gerenciamos as ferramentas de localização, a fim de acessarmos os perfis de usuários em 8 diferentes regiões de Porto Alegre, referentes às 8 microrregiões de planejamento urbano propostas pelo Observatório da Cidade de Porto Alegre (1: Centro; 2: Humaitá, Navegantes, Ilhas e Noroeste; 3: Norte e Eixo Baltazar; 4: Leste e Nordeste; 5: Glória, Cruzeiro e Cristal; 6: Centro-Sul e Sul; 7: Lomba do Pinheiro e Partenon; 8: Restinga e Extremo Sul). Para acessar estas oito regiões, foi utilizado o aplicativo Fake Location, que altera o local de mapeamento do GPS do celular, de modo que os perfis pudessem ser coletados em um horário próximo do mesmo dia. Ao todo, foram analisados cerca de 180 perfis.

Cabe salientar que nosso objetivo com esta pesquisa não foi encontrar regularidades nos modos como os sujeitos se relacionam com práticas normativas, mas analisar as distintas formas destas relações, detendo-nos naquelas que aparecem com frequência ou uma única vez. A cartografia não busca o domínio dos objetos de conhecimento, mas o acompanhamento dos processos que os fazem dinâmicos. Sendo assim, a exceção pode nos indicar possíveis caminhos de análise para o tensionamento de discursos e práticas instituídas.

5 A construção dos perfis no Grindr

Em um primeiro contato com o aplicativo, antes de nos tornarmos mais atentos às descrições de si dos usuários, o que encontramos foram muitas fotografias de perfil enfatizando a estética do corpo másculo, nas quais aparecem, principalmente o abdômen, os braços, pernas e pés. Foram encontradas muitas imagens nas quais o rosto não é colocado de forma completa, mas apresentado por meio de recortes, como a boca, os olhos e o queixo. Também se destacaram fotos com roupas de esporte, íntimas, cuecas e meias, numa espécie de mimetismo com comerciais de peças masculinas, indicando uma lógica de consumo e publicidade nas formas de apresentar e produzir a si mesmo. Foram encontrados alguns perfis que exibiam outras imagens, como paisagens, referências à internet (como memes e prints do jogo Pokémon Go) e palavras que denominam suas preferências sexuais. Foram poucos os perfis sem nenhuma foto.

Em relação aos nomes escolhidos pelos sujeitos para compor o perfil, observamos que a maioria não utilizava um nome próprio, mas apelidos ou menções a posições sexuais, signos do zodíaco, profissões, localização e hobbies. Destacaram-se os usuários que utilizavam referências à dinâmica do aplicativo para compor suas nomeações, em frases como “Sem local” (relacionada a uma pergunta comumente realizada durante as conversas no chat do Grindr) e “Leia o perfil” (indicando que, na descrição, haveria informações importantes para sua apresentação). Também apareceram nomes que indicavam um perfil duplo, ou em referência à conjugalidade do dono do perfil, denotando a busca por outras pessoas para realizarem sexo a 3. Alguns usuários também utilizaram o espaço do nome para apresentarem sua condição de sigilo ou especificar que mantinham relacionamento heterossexual em outros âmbitos de suas vidas. Houve, por fim, um número expressivo de perfis sem nome.

Entre as descrições, destacaram-se, principalmente, aquelas com referência ao modo de funcionamento do aplicativo, que enunciavam “o que buscavam” no Grindr. Essa frase retoma um diálogo recorrente na rede social, sobretudo em conversas iniciais, quando a pergunta “o que busca?” é comumente utilizada para saber se o outro usuário intenciona somente ter relações sexuais, ou procura também envolvimento afetivo, amizade, entre outros. Dentre estes perfis, muitos buscavam homens discretos, masculinos, não afeminados. Observamos, assim, que muitos perfis no Grindr tentavam afirmar padrões de masculinidade hegemônicos através de auto-descrições como: "sou masculino", "sou macho" e "procuro machos". Foram encontrados, inclusive, perfis de homens que se afirmavam heterossexuais buscando "trocar uma ideia", ou, dizendo: "e aí meu, beleza? Não sou gay. Busco tomar uma ceva, conversar e quem sabe pode rolar alguma coisa". Além disso, grande parte dos usuários afirma estar buscando parceiros "não-afeminados". Entretanto, alguns poucos perfis buscam justamente o contrário, produzindo algum deslocamento em relação às descrições hegemônicas. Dois exemplos seriam as afirmações: "se você não é afeminado o problema é seu" e "gosto de afeminados".

Foram encontrados perfis que se descreviam através de posições sexuais (ativo, passivo ou versátil). Alguns indicavam busca por idades específicas e outros se definiam pelo uso de maconha com o código 420. Também apareceram nas descrições os perfis duplos ou com indicação de conjugalidade, muitas vezes especificando que a busca de parceiros estava relacionada à inserção de um terceiro na relação sexual. A conjugalidade também foi apresentada em perfis que buscavam sigilo, indicando que seus donos estariam utilizando o aplicativo em segredo. Ainda em relação à dinâmica do aplicativo, alguns sujeitos descreviam-se a partir do modo como usam o Grindr, direcionando o contato para pessoas compatíveis com seus requisitos, em frases como “Apenas com foto de perfil”, “Manda foto antes”, “Não mande foto nu” etc.

Ao explorar as possibilidades do aplicativo, outros pontos, que não se restringiam ao nosso primeiro objetivo - analisar as formas como os usuários do Grindr se experimentam em relação aos discursos sobre gênero e sexualidade através da criação dos perfis - foram chamando nossa atenção e permitindo análises para além da trajetória inicialmente traçada. Um exemplo são as categorias pré-definidas para criação do perfil: além do nome e do "sobre mim", encontramos idade, peso, altura, etnia, posição sexual preferida e condição sorológica de HIV. Os dois últimos foram criados recentemente e encontrados somente nos meses finais de experimentação no aplicativo, ou seja, foram uma “novidade” introduzida pela ferramenta. Em relação à posição sexual, acreditamos que tenha sido uma alteração influenciada pelas práticas dos usuários, dado que muitos explicitavam a posição preferida no item "sobre mim" do perfil. Quanto ao HIV, ainda que pareça ser uma forma do aplicativo "proteger" os usuários e de se proteger - na medida em que fomentam relações sexuais entre desconhecidos - acreditamos que seja um ponto que mereça atenção, dado que em aplicativos heterossexuais de busca por parceiros esta categoria está ausente.

Além destes pontos, observamos a ampliação das possibilidades do aplicativo pelos usuários para fins de prostituição, compra e venda de drogas e o que parece ser a codificação de uma linguagem através de emojis. Há emojis corriqueiramente utilizados e repetidos nas auto-descrições, que podem ser compreendidos através da sua correlação com a linguagem textual também presente nos perfis. Alguns usuários, por exemplo, utilizam um emoji em formato de folha ao lado do número 420, indicando que fazem uso de maconha. Outros, no entanto, não utilizam o recurso escrito, mas indicam o mesmo significado somente pelo uso do emoji. Outro emoji bastante utilizado consiste em uma mamadeira, associada em muitos perfis com a palavra “mamo” ou “chupo”, indicando que se trata de um código para sexo oral. Emojis como as setas apontando para cima ou para baixo, da mesma forma, apresentam-se como códigos para a preferência sexual de passivo ou ativo. Deste modo, entende-se que este recurso ganha sentidos específicos dentro da ferramenta, compartilhados em maior ou menor nível por aqueles sujeitos inseridos nesta forma de linguagem.

6 Discussão

As experimentações em campo apontam para a heterogeneidade dos conteúdos apresentados nos perfis, demonstrando que, muito embora usem a mesma ferramenta – destinada a uma finalidade específica – os usuários formulam suas narrativas de modos singulares e experienciam-se de diferentes formas em relação aos discursos sobre gênero e sexualidade.

Num primeiro momento, nossas análises se debruçaram sobre as formas de expressão da sexualidade nos perfis e, em especial, aos valores que circundam as masculinidades, enunciados no aplicativo tanto como um referencial de si, quanto como um critério na busca por parceiros. A masculinidade, no seu sentido heteronormativo, parece ser tomada para muitos usuários como um distintivo de valor e relevância. Esta temática não se encerra em uma questão de “preferência”, posto que, dadas as suas intensas repetições em nomes e descrições – visualizáveis por todos os usuários do Grindr – cria-se uma hierarquia no aplicativo, daqueles que são mais ou menos desejáveis conforme os critérios que apresentam, dentre os quais o de “ser masculino” ou “macho” prevalece. Esta hierarquia retoma inúmeros discursos socialmente compartilhados acerca do gênero e da sexualidade, privilegiam algumas formas de existência em relação a outras.

Bem como aponta Foucault (2001), é a partir dos jogos de verdades travados no campo discursivo que se pode desenvolver experiências de si - experiências essas que se relacionam, ainda que pela via da resistência, a uma normatividade, que opera nos mecanismos de reconhecimento para o verdadeiro e o falso, o normal e o patológico etc. Assim, podemos considerar a “dominação masculina”, tal qual propõe Welzer Lang (2001), como uma normatividade transversal à experiência nesta rede de circulação de afetos, corpos e desejos. Uma normatividade que não é necessariamente assimilada de forma passiva, mas que também se presentifica nas práticas dos sujeitos, seja em forma de adequação ou tensionamento.

Nesta perspectiva, as fotografias expostas nos perfis demonstram que as questões enunciadas de forma escrita também podem ser apresentadas de modo visual, na composição de imagens que denotam discursos hegemônicos. A importante presença de fotografias de músculos definidos indicam os enunciados reproduzidos no aplicativo, apontando para a erotização deste referencial estético. Tal referencial opera tanto na busca por sujeitos que correspondam a este padrão quanto a uma configuração da própria imagem de si. Sob essa perspectiva, a construção de um perfil, sobretudo pelas enunciações imagéticas, indica uma lógica de consumo e publicidade de si, no qual o “eu on-line” opera como a mercadoria exposta em uma vitrine.

Neste sentido, Miskolci (2012) refere a centralidade do corpo no processo de visibilização de si, tornando a aparência física um dos principais elementos das produções fotográficas presentes nestes sites ou aplicativos - entendimento que corrobora com nossa assunção de que as fotos analisadas no aplicativo remetem a elementos de propaganda e venda de produtos. Além disso, autores como Sharif Mowlabocus (2007) e Fábio Morelli e Bruno Pereira (2018) propõem que a publicização da imagem em redes de busca por parceiros retoma elementos da pornografia voltada ao público homossexual, presente também nas categorias de autodescrição e produção de si no aplicativo, como nas categorias “twink” e “daddy”, utilizadas também como descritores de vídeos pornográficos. Por essa via, apontam para uma “pornificação da vida cotidiana” nas experiências de sexualidade traçadas em tais ferramentas.

Luiz Felipe Zago (2013) relaciona a proliferação de imagens do corpo musculoso de homossexuais no século XXI a um imperativo de parecer saudável, contraposto ao corpo esteticamente adoecido, relacionado tanto à gordura quanto à magreza. Este imperativo do corpo saudável contrapõe-se às inúmeras imagens propagadas em décadas anteriores dos corpos de homossexuais vítimas da AIDS. A magreza, vulnerabilidade e fraqueza destes corpos, que configuraram um caráter estético à epidemia nas décadas de 1980 e 1990, seria contraposta, contemporaneamente, por ideais de saúde e força imprimidos nos corpos de homossexuais contemporâneos, desvencilhando-os, assim, do estigma referentes ao HIV.

Neste sentido, cabe refletir sobre a mudança nas possibilidades de nomeação do aplicativo, nas quais o filtro em relação ao status sorológico passa a figurar nos últimos meses. O usuário pode informar se é ou não soropositivo, ou referir que não sabe ou que não quer informar. Também é possível relacionar esta resposta à data em que teria sido feito o último teste para o HIV e se faz uso de PREp1. Como nas outras perguntas interpelativas do aplicativo, os usuários podem responder o que quiserem, sem que haja qualquer comprovação da veracidade de tais informações. No entanto, a inserção desta categoria indica significados que esta doença adquire em um contexto de busca por sexo entre homens. A ausência da categoria em aplicativos de busca por parceiros heterossexuais permite a compreensão de que a extinta perspectiva epidemiológica do “grupo de risco” - que relaciona a contração do HIV a homens homossexuais, em um processo de estigmatização dentro do discurso biomédico - permanece ativa em um plano discursivo.

Em relação aos modos de visualização do corpo – ou de partes específicas do corpo -, as fotografias podem ser compreendidas como uma negociação do sigilo, de modo que os elementos presentes nas imagens também indiquem a forma como sujeitos buscam se expor através da ferramenta. Por esta razão, os rostos, muitas vezes, não são exibidos nos perfis, ou são mostrados parcialmente, dificultando ou impossibilitando o reconhecimento dos sujeitos em sua vida off-line. Esta negociação do sigilo opera no intercruzamento entre texto e imagem, no exibir e, simultaneamente, esconder elementos que os identifiquem para além do aplicativo. Assim, informações são apresentadas de modo parcial, mantendo, ainda, uma parcela de segredo, como, por exemplo, na nomeação por apenas uma letra, na anunciação de uma profissão, hobbie ou local onde vivem, na escolha de fotos que exibem e escondem elementos que apresentam “quem são” os usuários na vida off-line.

A negociação do sigilo está relacionada às vidas dos usuários para além do aplicativo, de modo que esta plataforma também reproduza uma lógica de “armário” – metáfora utilizada para o assumir-se publicamente homossexual. Deste modo, deve-se levar em consideração a gama de usuários que assume uma vida publicamente heterossexual, mas que mantêm, em segredo, relações íntimas com outros homens. Esse movimento foi mapeado por Miskolci (2012) sob a ideia de uma “gramática do armário” - ou seja, a delimitação de signos que atualiza o regime de visibilidade do “armário” em processos de negociação para performances da sexualidade em âmbitos privados ou públicos.

Essa perspectiva corrobora com nossa cartografia no aplicativo, tendo encontrado, por exemplo, perfis que se apresentavam como “casados”, evidenciando que mantinham um relacionamento heterossexual na vida off-line. Entretanto, aquilo que, “fora” do aplicativo, pode ser avaliado em termos binários - como a homossexualidade, que se define pelo positivo ou pelo negativo -, reconfigura-se nos modos de uso do Grindr. “Dentro” do aplicativo, homens que percebem a si mesmos como heterossexuais encontram modos de experimentação e relação com outros homens, para além das categorizações instituídas. Sendo assim, poderíamos pensar no aplicativo também como um espaço de resistência e de novas experimentações de si.

Walter Couto et al. (2016) analisam o Grindr e outros aplicativos similares a partir da noção de prótese. Esta perspectiva, proposta por Paul Preciado (2002), fundamenta-se na compreensão do dildo como um órgão sexual que se acopla ao corpo, compondo assim uma nova configuração de encadeamentos para o desejo, o prazer, o sexo etc. Em relação ao Grindr, entende-se que sua possibilidade de conexão contínua produz um similar acoplamento, a partir do qual a conexão técnica do uso da ferramenta produz uma nova formulação para os sujeitos usuários, seja na busca por parceiros, na relação com outros usuários e também nos modos de nomeação e produção de si mesmo através da ferramenta.

Deste modo, reitera-se que o Grindr, além de ser um aplicativo de busca por sexo, opera também como um dispositivo de produção de si para seus usuários, que performatizam suas respostas às interpelações propostas pela ferramenta na composição de textos e imagens. Estas produções de si retomam discursos socialmente vigentes pelos usuários, que os organizam em uma nova configuração a partir do dispositivo, encenando delineamentos e resistências acerca dos discursos que constituem as verdades socialmente compartilhadas acerca da masculinidade, da homossexualidade e outras instituições. Deve-se considerar que essas circunstâncias de normatividade, como aponta Foucault (2001), não são apenas elementos com os quais sujeitos podem se relacionar ou não em suas práticas, mas sim as próprias condições de possibilidade para a emergência de um sujeito para a experiência de si, produzida também a partir de narrativas sobre si.

Mas deveríamos assumir que essa produção narrativa relaciona-se com os códigos discursivamente disponíveis em movimentos autônomos e voluntários, reiterando o entendimento clássico de sujeito soberano sobre o mundo? Com Butler (2005/2015), renunciamos um ideal de soberania para o “eu” à medida que as condições para a subversão performativa são, justamente, a incompletude do do sujeito, que se estabiliza apenas no âmbito do desejo, em um endereçamento de si para o outro. Neste sentido, pode-se afirmar que a construção de um perfil também pode ser um ato de liberdade. Porém tomando essa liberdade a partir da condição falível da linguagem, que nunca totaliza aquilo que pretende enquadrar. Sempre há um excesso à enunciação, e é esse excesso que permite lapsos na cadeia de repetições.

Assim, as enunciações do Grindr só podem ser tomadas em relação a aspectos da vida off-line dos sujeitos, os discursos socialmente compartilhados e também à própria lógica interna do aplicativo. Por esta razão, não foram poucas as referências aos construtos sociais acerca do lugar que a homossexualidade ocupa no contexto brasileiro. A necessidade de sigilo, a estética comercial com a qual se publiciza o corpo, a valorização exacerbada da masculinidade e da virilidade – tanto textual quanto imagética e a negação de aspectos femininos – definida por muitos usuários como excludente para a canalização de seu desejo – indicam-nos o ideário pejorativo pelo qual são entendidas as performatividades “desviantes” de homens, em especial sua relação com aquilo que é entendido como feminino. Deste modo, percebe-se que a categoria homossexual (que, cabe dizer, não é contemplada por todos os usuários) também está inserida em relações de poder e hierarquias, relacionadas a uma sociedade heteronormativa e machista.

A esse movimento, retomamos a perspectiva butleriana da abjeção, referida sobretudo a performatividades de gênero ininteligíveis, que desafiam as compreensões que fundamentam o ideal binário que separa homens de mulheres, desestabilizando as expectativas que recaem sobre um ou outro. Segundo a autora, tais performatividades “descontínuas” em relação ao esquema sexo-gênero-desejo indicam o caráter ficcional e contingente de qualquer identidade sexual, desorganizando o próprio entendimento do “humano”. No entanto, a posição de abjeção a que são relegadas é constitutiva da norma, posto que expõe o seu limite, servindo assim como espaço necessário para que o domínio do sujeito seja circunscrito. O sujeito, desse modo, constitui-se na força contrária a essa abjeção, situando-a em um exterior a si mesmo, que “está, afinal, ‘dentro’ do sujeito, como seu próprio e fundante repúdio” (Butler, 2000, p. 112)

Por fim, afirma-se a dificuldade em estabelecer padrões e agrupar características em comum relacionadas aos lugares de uso do aplicativo. A análise a partir dos mecanismos de geolocalização, ao contrário de fornecer informações territorializadas sobre os sujeitos usuários relacionadas ao local onde vivem na cidade, fomentam uma compreensão de habitação da cidade através do trânsito. Deste modo, mesmo tendo sido analisadas 8 regiões da cidade de Porto Alegre, pouco pode ser referido como diferenciador entre estas mesmas, visto que este é utilizado sempre em movimento, dada amplitude de seu uso, que se atravessa na vivência urbana. Isso não significa negar as especificidades da urbanidade, que segregam a cidade através de marcadores sociais como classe e raça, mas sim afirmar a dificuldade em mapear tais aspectos em um mecanismo desterritorializado de trânsito pela urbe.

Estas verdades compartilhadas socialmente estão presentes no aplicativo, que se configura também como espaço de disputa, onde os discursos são reproduzidos e também contestados pelos usuários. Reproduções e resistências, assim, transitam, não sem conflitos, no interior do aplicativo, operando como marcadores de si e de orientação do próprio desejo (Couto et al., 2016). O Grindr, deste modo, possibilita a veiculação discursiva de inúmeras questões, bem como sua reapropriação e deslocamentos de sentido, configurando-se como um novo agenciador de antigas questões, mas que também incide sobre estas promovendo novos conflitos e novas formas de resistência (Miskolci, 2014).

7 Referências

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Couto, Walter; Morelli, Fábio; Galindo, Dolores & Souza, Leonardo Lemos (2016). Práticas sexuais em geolocalização entre homens: corpos, prazeres, tecnologias. Athenea Digital, 16(2), 169-193. http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00020119

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Miskolci, Richard (2012). A gramática do Armário: notas sobre segredos e mentiras em relações homoeróticas masculinas mediadas digitalmente. In: Larissa Pelúcio, Luis Antonio Francisco de Souza, Bóris Ribeiro de Magalhães & Thiago Teixeira Sabatine (Orgs.), Olhares plurais para o cotidiano: gênero, sexualidade e mídia (v. 1, 1 ed., pp. 35-55). São Paulo: Cultura Acadêmica.

Miskolci, Richard (2014). San Francisco e a nova economia do desejo. Revista Lua Nova, 91, 269-295. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64452014000100010

Morelli, Fábio & Pereira, Bruno (2018). A pornificação do corpo masculino: Notas sobre o imperativo das imagens na busca entre homens por parceiros on-line. Civitas, 18(1), 187-203. http://dx.doi.org/10.15448/1984-7289.2018.1.28450

Mowlabocus, Sharif (2007). Gaydar: gay men and the pornification of everyday life. In: Kaarina Nikunen, Laura Saarenmaa & Susanna Paasonen (Eds.), Pornification: sex and sexuality in media culture (pp. 61-72). Berg: Oxford.

Pizzinato, Adolfo; Hamman, Cristiano & Maracci-Cardoso, João Gabriel (2017). Dinâmicas atuais na busca de sexo entre homens: O uso do Grindr como ferramenta de gestão de práticas sexuais. In Fabrício Machado, Fabiano Barnart & Renan de Mattos (Orgs.), A diversidade e a Livre Expressão Sexual entre as Ruas, as Redes e as Políticas Públicas (v. 1, pp. 179-194). Porto Alegre: Editora Nuances.

Preciado, Paul (2002). Manifiesto Contrasexual. Madrid: Opera Prima.

Simondon, Gilbert (2001). Du mode d’existence des objets techniques. Paris: Editions Aubier.

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Zago, Luis Felipe (2013). Os meninos: corpo, gênero e sexualidade em e através de um site de relacionamentos na internet. Tese de Doutorado inédita. Universidade Federal do Rio Grande do Sul.