Reseña de De Masi (2017) Alfabeto da sociedade desorientada

Review of De Masi (2017) Alfabeto da sociedade desorientada

  • Adilson Cristiano Habowski
  • Elaine Conte
Portada libro

Domenico De Masi (2017).
Alfabeto da sociedade desorientada: para entender o nosso tempo. Objetiva.
ISBN: 9788547000271



Na tentativa de desvelar o sentido de um tempo marcado pela emergência da cultura digital, pela desorientação global e pela falta de referenciais válidos para dar conta dos desafiados e complexidades à interlocução contemporânea, Domenico De Masi (2017) recorre às experiências, conceitos e contradições recentes para compreender tal fenômeno social. De Masi configura e organiza a obra Alfabeto da Sociedade Desorientada: para entender o nosso tempo, a partir de 26 verbetes ordenados alfabeticamente. Tal publicação aborda os discursos atuais, como beleza, gênio, trabalho, desorganização, e também as cidades de Roma e Nápoles, cujo alfabeto se inicia com a palavra aforismo e termina com a letra grega zeta. Assim, na introdução o alfabeto é apresentado e organizado por títulos, com base no seguinte ordenamento: aforismo, beleza, criatividade, desorientação, ecossistema, Fausto, gênio, hobby, interpretação, jobless, Kelvin, lugares, mídia, Nápoles, ócio, partidos, Quixote, Roma, slow, trabalho, universidade, Václav, web, xénos, Ying e Yang, e zeta.

Segundo De Masi, a proposta é de realizar um detalhamento do seu último livro publicado em 2013, intitulado O futuro chegou: modelos de vida para uma sociedade desorientada, em que analisa quinze modelos diferentes de sociedade que seriam capazes de nos inspirar para os desafios da contemporaneidade. Trata-se de uma análise pragmática, para dar visibilidade, sob diferentes linguagens e percepções do mundo, os sofrimentos e as imoralidades que redefiniram nossas relações com o mundo do trabalho, com o espaço e com o tempo, permitindo-nos compreender as categorias e questões recorrentes na obra, abrindo mão das notas de rodapé e das referências bibliográficas. Sob esse prisma, a sequência dos capítulos obedece a ordem alfabética, mas explica que cabe ao leitor lançar diferentes estratégias de leitura, escolhendo o próprio caminho, que passa pelas referências das práticas coletivas e contextos em que a palavra ou conceito é explorado, com base nos anseios, ações e curiosidades do leitor.

O autor tenta responder às questões e às necessidades atuais, igualmente transformadas pelos contextos fragmentários e esquizofrênicos, expondo de forma simples os conceitos mais complexos, sem empobrecê-los ou banalizá-los, facilitando a comunicação, descobrindo os nexos e o entendimento deles em meio às mudanças sistemáticas da nossa sociedade. Sob esse ponto de vista, De Masi recorre às ciências humanas, abordando também interessantes quadros sociais com um teor humorístico, ao descrever, por exemplo, a história da decadência de Nápoles e sobre a pizza que na sua origem era o alimento de pedreiros.

Cada questão é evocada por uma palavra-chave. Algumas palavras (Ecossistema, Fausto) referem-se à saúde precária do planeta e ao progresso ameaçador da tecnologia, isto é, ao hardware da nossa existência. Outras (Aforismo, Web) referem-se às nossas modalidades, velhas e novas, de comunicar-nos com os outros, isto é, ao software da nossa convivência. Outras (Jobless, Trabalho, Ócio, Hobby) referem-se às nossas modalidades de ser e de expressar-nos através de algumas práticas como a fadiga, o repouso, o tempo livre e o jogo. Outras (Interpretação, Kelvin, Universidade) referem-se aos nossos modos de explorar o mundo do mais ou menos, de medir o universo da precisão e de transmitir esses conhecimentos através da instituição escolar. Outras (Lugares, Nápoles, Roma) referem-se a três modos diferentes de organizar os lugares e os não lugares criados pelo homem. Outras (Beleza, Criatividade, Gênio) referem-se aos fatores que mais se encarregam da nossa felicidade, tais como a estética, a descoberta e a invenção. Outras (Mídia, Partidos, Václav, Yin/Yang, Zeta) referem-se à dialética do poder em suas formas democráticas e em suas formas opressivas. Outras (Desorientação, Slow, Quixote, Xénos) referem-se a algumas abordagens à vida, da serenidade à confusão, da estranheza à loucura. (De Masi, 2017, p. 13).

Importa destacar que, assim como foi discutido no livro O Futuro Chegou: modelos de vida para uma sociedade desorientada, raras vezes, na história da humanidade, o trabalho, as oportunidades, o poder, a riqueza, o saber e a proteção social modificaram sincronicamente, e quando isso ocorreu ficamos estagnados diante de uma descontinuidade de época. Sobre essa tese, aponta que com a transição da sociedade industrial, meados do séc. XVIII a XX, para a pós-industrial, as produções de bens e serviços passaram por modificações e processos turbulentos, na difícil tarefa de conviver juntas. Afinal de contas, a transição de um processo para outro não ocorre pela simples transferência, mas pelo choque e estranhamento dos processos. Contudo, De Masi (2017, p. 96) reforça que as sociedades do passado surgiram tendo por alicerce um forte modelo teórico precedente, cujas lições transmitidas ganhavam sentido e significação pelas práticas de socialização da tradição cultural. Aqui surge a tese norteadora do livro assentada na discussão de que a sociedade atual, pela falta de um modelo a seguir, vive uma desorientação e a sensação de crise de relações na democracia, que envolve as esferas da vida humana, como a economia, família, política, educação e cultura.

De Masi explica que a desorientação causa uma crise entediante em relação ao próprio projetar-se futuro, visto que o sujeito não é capaz de criar a partir do cotidiano, o que reflete uma posição de consumidor de interesses alheios por imposição do exterior, incrustando algo estranho e hostil. A crise de referenciais baseados em um conhecimento profundo origina um vazio intelectual que abrange todos os governos do planeta. Para De Masi, os únicos líderes mundiais que possuem algum referencial são o Papa Francisco, que se assegura no modelo cristão bimilenar, e o presidente da China, Xi Jinping, que adere ao modelo marxista de 150 anos atrás. Ainda que se possa criticar ou relativizar essa posição, trata-se de uma constatação importante no quadro argumentativo do livro. O autor se revela um realista esperançoso ao explicar que embora o mundo atual “não seja o melhor dos mundos possíveis, ainda assim é o melhor dos mundos existidos até agora” (De Masi, 2017, p. 9). Em suma, traz as lições do passado vivido na Atenas de Péricles, na Roma de Adriano, na Florença de Lourenço, o Magnífico, na Paris de Voltaire, e afirma em tom irônico: “ninguém me garante que seria justamente eu no lugar desses personagens, desfrutando de seus privilégios. [...] a expectativa de vida era bem mais breve do que a atual, e em caso de dor de dente não havia analgésicos para aliviá-la” (De Masi, 2017, p. 9).

Ao falar sobre o Brasil, De Masi (2017, p. 10) indica que “vinte anos atrás, [quando] eu ia de Roma para o Rio, partia de um país eufórico e aterrissava num país deprimido. Dez anos atrás, voltando ao Brasil, deixava uma Itália deprimida e chegava a um país eufórico” - de humanismo corporal e de sensualidade cordial. Contudo, examina que recentemente, em ambos os países, “prevalece uma deprimente crise econômica, vivida como crise total. Mas até em países como Luxemburgo ou o Principado de Mônaco, onde o pib per capita é escancaradamente exorbitante, os rostos ansiosos ou ausentes são em maior número do que os serenos” (De Masi, 2017, p. 10).

Dito de outra maneira, De Masi (2017, p. 10) compreende as causas dessa depressão que se expande até nos países mais alegres, “uma inquietação dividida entre passividade e angústia”, tendo em vista que “a riqueza total do planeta cresce três ou quatro pontos ao ano; o número de Estados democráticos quase ultrapassou o dos regimes autoritários; a média de vida se alongou em toda parte, e em toda parte a medicina tornou um pouco mais suportáveis as enfermidades e a velhice”. De Masi (2017, p. 10) identifica que a raiz sociológica da depressão mundial de desorientação é gerada pela crescente dificuldade de distinguir, em meio às tecnologias digitais, “o verdadeiro e o falso, o bem e o mal, o bonito e o feio, o público e o privado, o que é de direita e o que é de esquerda...”. Isso porque tais instrumentos culturais, cada vez mais eficazes em termos de memórias culturais, conexões, propagações de informação, dificultam também o ato de “julgar, educar, decidir; nos lança em um estado de impotência justamente quando a ciência solicita nosso delírio de onipotência, [...] para não esquecermos, não nos isolarmos, não nos perdermos, não ignorarmos, não nos entediarmos, não nos descuidarmos” (De Masi, 2017, p. 10). Tudo isso faz sentido no terreno da comunicação planetária, cuja tendência é o consumo colonizado por uma cultura hegemônica, ou seja, todos os países consomem as mesmas coisas de forma globalizada. Nesse ponto, o autor aponta para a necessidade de repensar também as ciências, as técnicas, as artes e a cultura nos alicerces do mundo do trabalho, que se caracteriza pela redução da carga horária e o trabalho online.

Na sequência, De Masi (2017, p. 14) evoca Bartolomeu de San Concordio (1305), ao reafirmar que Os homens no tempo de hoje são desejosos de brevidade, à época de “setecentos anos, e a tecnologia tratou de contentá-lo. A informática conspira a favor da brevidade expressiva e obriga seus adeptos a falar por aforismos, dos quais o Twitter representa a versão triunfante” (De Masi, 2017, p. 14). Desde então, triunfa uma “simetria entre o aforismo e suas épocas”, pois o aforismo no mundo elitista e clássico “era pensado por poucos sábios para poucos eruditos, passado ao mundo medieval, em que era pensado por poucos teólogos e moralistas para muitos crentes” (De Masi, 2017, p. 14-15). Ao colocar em xeque a eficácia do aforismo como ponto de referência seguro, criou-se “um curto-circuito repentino entre o mundo e a presunção de poder conhecê-lo sabiamente, comunicá-lo sucintamente, fustigá-lo severamente e corrigi-lo salvificamente”, abandonando a rigorosidade das fontes, rejeitando as questões éticas e sociais, aventurando-se na confusão e preferindo “o efeito, a surpresa, o brilhantismo, o esnobismo, em vez da solidez de um pensamento compacto, coerente, sistemático” (De Masi, 2017, p. 15).

Outros exemplos trazidos pelo pensador na contemporaneidade registram que “o aforismo paira sobre tablets e celulares, nos quais é postado por todos e recebido por todos. Nesse murmurinho planetário, que vale dezenas de bilhões de dólares, todos são followers, todos estão following” (De Masi, 2017, p. 15). Mas isso não representa uma fresta para a visão e reflexão sobre a realidade cuja tradição é geradora de sentido que se compreende na conversação histórica com o presente. Contudo, os tuítes possibilitam que qualquer sujeito tenha a possibilidade da técnica para aventurar-se “em uma circum-navegação do homem e em uma exploração da sociedade sem ter um mapa, uma meta e, talvez, sem que continuem existindo tanto o homem quanto a sociedade” (De Masi, 2017, p. 15).

A sociedade atual nasce sobre si mesma e com uma linguagem fragmentada, oferecendo “a ilusão de fundamentar uma moral justamente enquanto contribui para despedaçá-la com sua retórica, sua erudição, sua contraditoriedade, seu cinismo, sua ironia, sua presumida brevidade” (De Masi, 2017, p. 16). A aplicabilidade das ciências nas organizações do trabalho e o rompimento radical entre o espaço que se vive e o lugar de trabalho afetou a escolarização das classes trabalhadoras. Dessa forma, na sociedade pós-industrial, os resultados dos trabalhos são oriundos das tecnologias, das artes e das ciências, apresentando características de maior rentabilidade pelo domínio das relações de trabalho e não pela supremacia criativa. Por isso, a importância “de fundar uma economia pós-industrial da criatividade e do ócio, indissociavelmente ligados entre si [...] pelos níveis de tecnologia e escolaridade geral” (De Masi, 2017, p. 367).

Há novas compreensões sobre o trabalho que recobre as formas de organização do conhecimento social, reorganizado para que as pessoas tenham mais tempo livre e possibilidades para as (re)criações diante da tecnicidade dos afazeres ilimitados? Aqui De Masi (2017, p. 286) diz que “os gregos ligavam a felicidade e não à posse crescente de bens [...], mas à doação de sentido. [...] enfim, atribuíam mais importância à atividade criativa (Platão), ao tempo livre (Sócrates) e à festa do que ao trabalho”. No entanto, “os responsáveis pela organização global, cegados pela euforia mercantil, em vez de explorar as inovações tecnológicas para reduzir o tempo de trabalho em proporção à crescente produtividade das máquinas [...]”, preferiram prolongar o trabalho escravo ao valor de utilidade, como um convite ao modelo consumista (De Masi, 2017, p. 431). De acordo com a obra resenhada, isso significa insistir que as “máquinas, por mais sofisticadas e inteligentes que sejam, não conseguem produzir ideias: portanto, resta ao homem o monopólio da criatividade, que até agora nenhum progresso tecnológico conseguiu lhe subtrair” (De Masi, 2017, p. 456).

De Masi (2017, p. 493) cita Platão ao mencionar que a educação é “o mais importante dos esplêndidos bens que os melhores homens recebem, [...] para a virtude, suscitando o amor e o desejo de se realizar como cidadãos, de maneira a saber governar e ser governado segundo a justiça”. Aliás, “Platão diferenciava a educação negativa, voltada para o lucro, e a educação positiva, orientada para a virtude; Aristóteles, ao contrário, distingue entre a educação voltada para a atividade e aquela, ainda mais importante, voltada para o ócio” (De Masi, 2017, p. 493). A tese do autor reconhece que “o objetivo da vida não é o domínio sobre os outros, mas a felicidade de viver. [...] Assim como a atividade requer coragem e força, o ócio requer amor pelo conhecimento, e ambos exigem temperança e justiça” (De Masi, 2017, p. 493). Na prática docente, as ideias do autor convergem para o fato de que a qualificação profissional não será obtida por nota, desempenho ou pela realização de cursos, mas sim pelo comprometimento com os saberes profundos da tradição e que fazem sentido com a participação social. É preciso mencionar que “a escola prepara para a vida no sentido de que o estresse laboral dos adultos é antecipado pelo estresse educacional dos jovens, numa contínua competição feita de notas, créditos, recompensas, provas e exames” (De Masi, 2017, p. 496).

Nesse sentido, as instituições de ensino precisam reconsiderar suas metas e práticas educacionais, de modo a atender às demandas sociais, para desenvolver a criatividade, vivendo a ambiguidade entre as regras burocráticas de liberdade coercitiva e o fato de que para aguçar a criatividade “precisa de vínculos, de desafios, não de barreiras burocráticas” (De Masi, 2017, p. 144). Uma educação comprometida com a formação cultural necessita de sujeitos que refletem, imaginam e recriam com interdependência comunicativa, criando desafios e inquietações para exercitar o jogo do saber e aprender com os problemas cotidianos, de forma autocrítica e criativa.

A educação é um processo complexo e de potencialização de diálogos sensíveis à vida e à conquista da liberdade, mas vivemos a sensação de uma educação voltada para a eficácia, inovação e ameaça baseada em um individualismo desprovido de originalidade dos comportamentos. Dito de outro modo, “os ritmos são obsessivos, o horário é estressante, a competitividade sem trégua, porque tudo está em função da máxima eficiência profissional, da carreira à qual é preciso sacrificar afetos familiares, liberdade de pensamento, amizades e vida” (De Masi, 2017, p. 496). O colega passa a ser um adversário cerebral e não um companheiro de crescimento na vida profissional. O resultado desse sistema desumanizador das relações interpessoais “acaba premiando os mais ricos e os mais ousados, numa concorrência desleal que visa unicamente ao sucesso na carreira pessoal e à hegemonia na competição planetária” (De Masi, 2017, p. 496).

Em relação à circulação de conteúdos nas mídias sociais, De Masi (2017, p. 328) refere que “a intoxicação midiática é o que melhor consegue condicionar as massas nas grandes e nas pequenas coisas”, são capazes de distorcer e comercializar “valores, incutindo desejos, criando necessidades artificiais, induzindo medos e paixões, condicionando as escolhas políticas, econômicas, financeiras, estéticas”. O autor explica que o ócio carrega uma significância pejorativa e depreciativa, pois o sujeito que pratica o ócio é visto como irresponsável, encontrando-se à margem do que a indústria e o progresso tecnológico privilegiam, as velhas tarefas executivas, alienantes, vazias e burocráticas, “atentado contra a economia” (De Masi, 2017, p. 366). Acrescenta ainda que “na prática, não apenas a economia superará a política, não apenas as finanças superarão a economia, mas a política servirá de bode expiatório para ambas” (MASI, 2017, p. 532).

O ócio criativo1 faz com que as pessoas se manifestem pela perspectiva da arte, da criatividade, da liberdade, da emoção e da fantasia, cuja gênese reside na imaginação humana, nas artes de fazer, na qualidade de vida e no trabalho prazeroso, propiciando a experiência sensível da vida para a geração de novas ideias e projetos. O conceito de ociosidade, que é distinto de ócio, remete à incapacidade de organização do sujeito para trabalhar com seus projetos de vida, sentindo-se aborrecido por não saber dar os encaminhamentos nos tempos reivindicados. Já o ócio possui outras conotações, no sentido de dedicar mais tempo para os momentos da invenção do cotidiano, conversação e atuação. A arte de educar como dimensão criadora antecipa o trabalho e escapa à conformação dos produtos impostos, porque realiza a transformação, reapropriação do tempo e espaço ou táticas de resistência numa ampla liberdade do pensar e do conviver melhor na experiência sensível da vida. Por meio do trabalho, os sujeitos planejam uma nova ação, enquanto espaço propício para qualificação através das experiências estéticas, éticas e políticas, pois sem a presença do ócio não há possibilidade para arquitetar soluções e reinvenções para as problemáticas e desafios vigentes.

É preciso modificar profundamente a avaliação social do ócio, não mais como pai de todos os vícios; é preciso saber conciliar sabiamente o nomadismo físico com o nomadismo virtual, permitido pelas novas tecnologias capazes de trazer todo o mundo para nossa casa e de nos levar para todo o mundo. A viagem virtual encontra um obstáculo na exclusão digital que, ao menos por enquanto, afeta sobretudo a faixa dos idosos: aquela que mais que qualquer outra emprega seu enorme tempo livre em viagens organizadas. Mas é apenas uma questão de tempo e de aproximação das gerações para que, em um curto período, sejamos todos digitais. (De Masi, 2017, p. 557).

O ócio criativo abre o caminho para o sujeito congregar o trabalho, o lazer, a diversão e o aprendizado, com o objetivo de viver de forma mais feliz e articulada com os outros no mundo, depositando sentidos no que faz. As análises do autor revelam que a criatividade é uma das expressões próprias dos homens livres e recebe grande destaque nas esferas sociais e educacionais, pela dimensão da imaginação criadora e dos novos (re)conhecimentos e diferenciações das questões postas pela sociedade.

Para apoiar a criatividade, o trabalho propriamente dito, o estudo e o lazer devem estar solidamente ligados uns aos outros naquele estado feliz da mente e do corpo que eu provocativamente denomino ócio criativo. Em decorrência disso, também os lugares onde se desenvolve a atividade humana devem ser capazes de facilitar simultaneamente quer a atividade laboral com que produzimos riqueza, quer a atividade reflexiva com que produzimos conhecimento, arte, saberes, patentes, quer a atividade lúdica com que produzimos alegria e sensação de bem-estar. (De Masi, 2017, p. 457).

O ócio criativo engloba três dimensões importantes da reinvenção pessoal para o agir social, a saber: trabalhar com a ideia de produzir riquezas e de aprender com o outro; estudar para criar novos conhecimentos e relações solidárias; e brincar para produzir o bem-estar coletivo. Uma questão lançada no livro é: “Quantas horas trabalham os criativos? O criativo nunca se separa de seus meios de produção – o cérebro -, e portanto, se expressa sem horário nem local de trabalho, por toda a vida” (De Masi, 2017, p. 456). De Masi (2017, p. 456) nos lembra que a arte do fazer criativo não obedece às horas ou à intensidade do trabalho de um sujeito, ou seja, “mesmo quando não está a trabalho, sua mente vaga, absorve, metaboliza, elabora estímulos, ideias, temas, materiais, onde quer que esteja”. A educação precisa promover a experiência do ócio, reapropriando-se das metamorfoses do aprender e do formar-se no tempo livre com as artes do fazer, que implica reinventar as relações pedagógicas na convergência de trabalho e ócio, para superar as burocracias e os hiperativos alienantes do ensino.

Atualmente, um jovem de vinte anos tem diante de si uma perspectiva de vida de aproximadamente sessenta-setenta anos, durante os quais, descontados o estudo e o trabalho, poderá dispor de cerca de 300 mil horas de tempo livre. [...] Não obstante, todas as instituições – a família, a escola, a empresa, - preocupam-se em preparar os jovens para o trabalho, ou seja, para um oitavo de sua futura existência, ao passo que ninguém se preocupa em prepará-lo para a vida como um todo, que, além do trabalho, compreende descanso, reflexão, amores, família, amigos, viagens, brincadeira, diversões, convívio: todos aqueles aspectos da vida que Aristóteles, no tratado sobre as Leis, coloca no centro da atenção educativa. (De Masi, 2017, p. 488).

A questão do ócio criativo na sua abordagem pedagógica do tempo livre para a manifestação da criatividade, segundo o autor, revitaliza o agir humano, permitindo alcançar as próprias conquistas e experiências em jogo cooperativo e dinâmico de dizer a palavra e (re)reconstruir com os outros os conhecimentos de mundo. Em suma, “a mente humana caracteriza-se pela criatividade, e a formação universitária deve ser acima de tudo formação para a criatividade, que consiste na síntese mágica de imaginação e concretude”, ou ainda, “a imaginação impele a voar alto; a concretude fornece as técnicas para calcular o voo e a rota, alcançando a meta sem se espatifar no chão” (De Masi, 2017, p. 488). Aliás, como questiona De Masi (2017, p. 489), “não seria tarefa da universidade fornecer aos jovens os instrumentos para viver e melhorar a vida na sua totalidade, para criticar os aspectos competitivos da sociedade e substituí-los pela emulação solidária?”. Em meio ao universo de expectativas de ingressar em uma universidade será que são criadas ocasiões para que os estudantes possam exercer a própria criatividade? Em certo sentido, argumenta De Masi (2017, p. 489),

O caos em que a experiência universitária se arrasta, com todo o acúmulo de iniciativas extravagantes, de ideias raras, de tentativas anarcoides e desvairadas, de fato pode estimular a iniciativa e a construção de um projeto de vida, antecipando as dificuldades que acompanham aquelas profissões criativas em que a inspiração, a rapidez das decisões, a flexibilidade, a capacidade de socializar, a tendência para a revolução científica e estética contam pelo menos tanto quanto os conhecimentos técnicos e a habilidade prática.

Sobre esse tema, apesar das demandas criativas no mundo tecnológico, por exemplo, ainda não há um contraponto expressivo para desenvolver e repensar de modo mais criativo, reconstrutivo e transformador os instrumentos culturais e produtos impostos em pacotes mercadológicos à educação. De Masi (2017, p. 490), aliás, dá visibilidade no livro a contraposição entre digitais e analógicos gerando problemas nas universidades, sendo que, predominantemente, os professores ainda são analógicos e os estudantes são digitais. Nesses termos, “pela primeira vez na história, os alunos possuem saberes (informática, línguas, experiências de viagens) que os professores ignoram”, assim como, “pela primeira vez os adultos propõem aos jovens algumas metas que estes repelem, [...] alguns valores que estes consideram obsoletos” (De Masi, 2017, p. 490). Sem sombra de dúvidas,

Quem não vive o espírito do seu tempo do seu tempo colhe apenas os males, dizia Voltaire, inconscientemente profetizando o estado de ânimo de muitos professores que chegaram à universidade quando ela ainda aparecia como um tempo austero e prestigioso onde se forjavam belas almas e mentes selecionadas, mas hoje afligidos por salários ridículos, ambiente inculto, estruturas obsoletas e condições mortificantes. (MASI, 2017, p. 491).

Na sociedade profundamente transitória, hiperativa e hiperneurótica do trabalho, o sujeito individualiza-se a ponto de quase dilacerar-se no isolamento, nervosismo e sofrimento físico e emocional, na perspectiva do trabalho incessante, superficial e patológico, menos educativo e fundamentado na lógica do rebanho. Enfim, o alfabeto da sociedade desorientada nos proporciona compreender a falta de cultura que gera uma desorientação geral da sociedade hiperconectada e perplexa com as obviedades da reprodução e consumo, que tutela e absolutiza os modismos inovadores de desempenho, sem uma preocupação com a cultura de análise para pensar juntos.

Tudo indica que as mudanças evidenciadas por De Masi contribuem para pensar os processos educativos diante da geração digital que solicita sujeitos flexíveis, criativos, dotados de sensibilidade comunicativa e de capacidade de orientar e colaborar com novos referencias de mundo, para além das conformações, das ações conservadoras, repressões autoritárias, desprezo, rejeição da cultura digital. A obra serve de base para as pesquisas sobre a questão de trabalho no cenário tecnológico, a questão do tempo livre, do consumo, do ócio entre outros horizontes de práticas inventivas. Para o campo da educação, a obra promove a experiência criativa e inventiva no cotidiano escolar, no sentido de educar-se e de formar-se para o tempo livre, como forma de recriação do agir pedagógico na escola ou universidade.

Em nosso país, o sistema educacional continua a negligenciar as potencialidades criativas dos estudantes, disseminando um conhecimento que precisa ser assertivo, abstrato e técnico, restringindo o ócio criativo às capacidades lúdicas espontâneas e desinteressadas, oferecendo pouca oportunidade para a expressão cultural. No que tange ao ócio criativo enquanto potencialidade para a expressão sensível e à renovação pedagógica ressaltamos sua interdependência nas formas de ensino, de lazer, da pluralidade de ideias, da fantasia, como implicações à curiosidade aprendente e ousada, para questionar e mobilizar as transformações dos conhecimentos (De Masi, 2017). Frente a essa conclusão, um dos grandes desafios suscitados pelo trabalho está na questão do tempo livre que reivindica o desenvolvimento do ócio criativo na educação com potencial para inúmeros aprimoramentos nos métodos e valores emergentes, a serem promovidos pelas tecnologias de interação e valorizados com mais diálogo, investigação, solidariedade e criatividade das novas gerações, que revelam dimensões multifacetadas e heterogêneas na constituição do próprio campo educacional. Sobre essa resenha, importa destacar que ela renova a leitura e nos permite falar sobre De Masi, um pensador com ideias profundas e inspiradoras sobre tecnologia, educação, arte, comunicação e cultura digital, cuja obra é extremamente útil para dar sentido e criar canais de comunicação às mudanças socioculturais e educacionais que assolam a vida contemporânea.

Referencias

De Masi, Domenico (2017). Alfabeto da sociedade desorientada: para entender o nosso tempo. Trad. Silvana Cobucci, Federico Carroti. 1. ed. São Paulo: Objetiva.

De Masi, Domenico (2014). O futuro chegou: modelos de vida para uma sociedade desorientada. Rio de Janeiro: Casa da Palavra.

De Masi, Domenico (2000). O Ócio Criativo. Entrevista a Maria Serena Palieri. 3. ed. Trad. Léa Manzi. Rio de Janeiro: Sexante.