Militarização de agentes penitenciários no Brasil: segurança pública e processos de subjetivação

Militarization of correctional officers in Brazil: public security and subjectivation processes

  • Rafael Albuquerque Figueiró
  • Magda Dimenstein
O trabalho do agente penitenciário (AP) é uma realidade problemática, porém pouco pesquisada. Nesse sentido, esta pesquisa teve por objetivo cartografar os processos de subjetivação presentes no trabalho dos AP de um presídio do Rio Grande do Norte, Brasil. A partir da perspectiva da cartografia, foi feito o acompanhamento da rotina de trabalho das equipes de AP do referido presídio durante cinco meses, totalizando 160 horas de observação. Além disso, foram realizadas entrevistas com agentes penitenciários e funcionários responsáveis pela gestão do sistema prisional pesquisado. Os resultados apontam para um modelo de gestão militarizado do sistema prisional, disparando um processo de militarização das subjetividades desses trabalhadores, produzindo sujeitos enrijecidos, insensíveis e dispostos a práticas violentas e a violar direitos.
    Palavras chave:
  • Sistema prisional
  • Agente penitenciário
  • Subjetividade
  • Cartografia
The work of the penitentiary is a problematic but little-researched reality. However, little is known about their daily lives and ways of subjectivity that cross them. In this sense, this research aimed to map the processes of subjectivity present in the work of correctional officers from a prison in Rio Grande do Norte, Brazil. From the perspective of the cartography, monitoring the work routine of correctional officers teams of that prison was made for five months, totaling 160 hours of observation. Plus interviews with prison officials and officials responsible for managing the prison system were conducted. The results point to a militarized management model of the prison system triggering a process of militarization of the subjectivities of these workers, producing subjects who are stiff, numb, and willing to use violent practices and to violate rights.
    Keywords:
  • Prison system
  • Correctional officers
  • Subjectivity
  • Cartography

1 Introdução

No Brasil, os agentes penitenciários (AP) (em alguns estados denominados agentes de segurança penitenciária) são os funcionários responsáveis pela vigilância, custódia e disciplina dos detentos do sistema prisional. A categoria em questão pode ser classificada como uma ocupação arriscada e estressante, podendo levar a distúrbios físicos e psicológicos (Lourenço, 2010). Nesse sentido, o trabalho em instituições prisionais envolve questões como o risco para a própria vida, necessidade de permanente e intenso controle emocional, elevada responsabilidade com vidas humanas, realização de tarefas em situação de confinamento e de relações grupais tensas, controle e disciplina rigidamente hierarquizados, situações de ambiguidade (cuidar/tratar, em oposição a vigiar/punir) (Lourenço, 2010). Outro aspecto destacado na literatura é o fato dos trabalhadores do sistema prisional passarem pelo chamado processo de prisionização (geralmente atribuídos aos presos), que diz respeito a um tipo especial de socialização, a partir da assimilação de hábitos, comportamentos e valores do ambiente carcerário (Chies, Barros, Lopes, & Oliveira, 2005).

É sabido que o processo de trabalho dos AP está diretamente relacionado ao desenvolvimento de agravos em saúde, em particular aos transtornos mentais e uso abusivo de álcool e outras drogas. Tanto a literatura internacional (Ghaddar, Mateo & Sanchez, 2008; Kalinsky, 2008), quanto a nacional (Fernandes et al. 2002; Lopes, 2007; Lourenço, 2010; Rumin, 2006; Vasconcelos, 2000) indicam o alarmante índice de adoecimento psíquico (stress, alcoolismo e transtornos mentais) que marca o cotidiano laboral dessa categoria. Além disso, a precariedade das condições de trabalho tem sido apontada como produtora de sofrimento entre os trabalhadores (Tschiedel & Monteiro, 2013).

Apesar de inúmeros estudos contemporâneos apontarem reflexões sobre as prisões, ainda são poucos aqueles que versam sobre os agentes penitenciários (Lourenço, 2010). Autoras como Rosalice Lopes (1998) apontam, que “quase não se conhece o funcionário que a desempenha” (p. 6). Pouco se sabe, por exemplo, sobre o processo de subjetivação pelo qual passam esses trabalhadores. Como é tornar-se um agente penitenciário? Quais os efeitos do trabalho no cárcere nos modos de subjetivação dos AP? Como lidam com essa realidade?

A partir dessas questões disparadoras, realizamos uma pesquisa que teve por objetivo cartografar os processos de subjetivação presentes no trabalho dos AP de um presídio localizado em uma capital do nordeste brasileiro, mapeando os modos de ser e de habitar o espaço prisional.

2 Método

Essa pesquisa se ancora na cartografia enquanto proposta teórico-metodológica. Como o próprio nome indica, a cartografia busca dar conta de um espaço pensando as relações possíveis entre territórios, mapeando intensidades e atentando para o jogo de transformações desse espaço.

Diferente do método da ciência moderna, a cartografia não tem a pretensão de isolar seu objeto de suas articulações históricas, mas desenhar a rede de forças, de pertencimento ao qual o objeto em questão se encontra conectado (Barros & Kastrup, 2009). Ao contrário dos clássicos métodos de pesquisa, a cartografia não busca a representação fidedigna de um objeto, mas, sobretudo, acompanhar processos e, nesse sentido, se aproxima da pesquisa etnográfica e do método da observação participante visando habitar um determinado território existencial, afim de captar os processos de subjetivação em curso. Mais que buscar informações, trata-se de se permitir entrar em contato com outros territórios existenciais, atento aos afetos e efeitos que isso produz no pesquisador (Barros & Kastrup, 2009).

Dessa maneira, a ideia principal foi acompanhar os processos de subjetivação pelos quais passam os AP, no dia a dia da prisão, compreender o território existencial no qual habitam, seus vetores de subjetivação, as linhas de força presentes em seus cotidianos, etc. O termo subjetividade é entendido aqui como uma determinada maneira de viver, de sentir, de valorar, de habitar o mundo. Esse “modo de vida”, essa subjetividade transcende as clássicas concepções acerca de uma suposta natureza humana, inata, e é compreendida como algo “de natureza industrial, maquínica, ou seja, essencialmente fabricada, modelada, recebida, consumida” (Guattari & Rolnik, 1986, p. 25). Nesse sentido, o processo pelo qual se produz subjetividades é principalmente social: “a subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro do social” (Guattari & Rolnik, 1986, p. 31), ou seja, pelas relações sociais, pelo trabalho, pela cultura e valores de uma dada época, pela mídia, etc.: “Ela é essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares” (Guattari & Rolnik, 1986, p. 33). Desta feita, a prisão (e o trabalho nestes equipamentos) é tomada aqui como importante lócus de produção de subjetividades. A escolha da cartografia se justifica pela possibilidade que tal proposta permite de mapear territórios, através da escuta, olhares, palavras e sensibilidade do pesquisador (Barros & Kastrup, 2009). Mais que captar os processos de subjetivação, a cartografia se coloca enquanto possibilidade de intervenção/crianção de novos vetores de subjetivação. Assim, está interessada em experimentar movimentos/territórios, novos modos de existência, sempre a favor da vida, dos movimentos que venham a romper com o instituído (Kirst, 2003). Para tanto, é preciso estar atento aos discursos, gestos, funcionamento, o regime discursivo operante (Mairesse, 2003), elementos que compõem dispositivos de produção de subjetividades.

A pesquisa foi realizada durante os meses de abril de 2013 a agosto de 2014 (durante o processo de doutoramento do autor principal desse texto), no sistema prisional de um estado do nordeste do Brasil, que conta com trinta unidades prisionais, albergando mais de sete mil presos, sob custódia de aproximadamente 903 agentes penitenciários. A unidade prisional investigada possui aproximadamente 500 detentos, sendo custodiados por 21 agentes penitenciários, divididos em quatro equipes. Cada equipe possui de quatro a seis AP e funciona em regime de plantão (24hs de trabalho por 72hs de folga). Além disso, o presídio conta com AP exercendo a função de diretor, vice-diretor e auxiliar administrativo.

Assim, acompanhamos um pouco da rotina de cada uma das quatro equipes, totalizando doze horas de observação em cada uma delas. A partir disso, escolhemos uma equipe de AP para acompanhar de maneira mais intensa a rotina da unidade prisional, participando da escala de trabalho deles. A escolha da equipe se deu a partir a partir de critérios de proximidade e facilidade no acesso, já que a própria equipe convidou os pesquisadores a participarem de sua rotina laboral. A observação participante aqui se fez necessário por permitir a aproximação com o universo pesquisado, criando condições privilegiadas para a observação e análise do contexto em questão (Martins, 1996), o que permitiu uma melhor compreensão das práticas e do cotidiano da prisão. Dessa maneira, acompanhamos cinco plantões (de 24hs) da equipe Alpha1, totalizando 120 horas de observação, que se deu ao longo de todo o mês de agosto de 2013.

A observação do trabalho da equipe Alpha incluía todas as atividades realizadas regularmente pelos AP: abertura de celas para o banho de sol; condução de presos no interior da penitenciária para consultas com advogados; revista de celas e pavilhões em busca de drogas e demais itens proibidos; revista de alimentos trazidos pelas famílias em dia de visita; condução de presos para a enfermaria do presídio; fechamento de celas para encerramento do banho de sol; além do pernoite realizado com a equipe, na unidade prisional, em alojamentos destinados aos AP.

Por fim, foram feitas entrevistas semiestruturadas com agentes da referida unidade prisional (total de quatorze entrevistados). A entrevista semiestruturada tem por finalidade propor alguns questionamentos básicos sobre o tema em questão, com a capacidade de permitir certa liberdade para explorar outros caminhos e respostas de forma mais livre (Manzini, 2004). Assim, os roteiros de entrevistas partiam de questões centrais relacionadas ao trabalho, formação, hábitos e modos de trabalhar. Além disso, conversas informais com agentes penitenciários e funcionários da secretaria estadual responsável pela gestão do sistema prisional complementaram as estratégias de pesquisa. As análises foram feitas a partir de uma leitura cartográfica

3 Resultados e Discussão

Para esclarecermos melhor os resultados encontrados, propomos uma discussão a partir dos seguintes eixos de análise, surgidos a partir dos dados coletados: “Formação e gestão do sistema prisional” e “‘Aqui eu sou o Estado. E o Estado é violador’: subjetividades militarizadas no dia a dia da prisão”, o que fazemos a seguir.

3.1 Formação e gestão do sistema prisional

Neste primeiro eixo de análise, ressaltamos o passado militarizado das prisões do Rio Grande do Norte (RN) (o que também aconteceu em diversos outros estados brasileiros), onde a Polícia Militar era a responsável pela custódia dos presos e gestão das unidades prisionais, sendo também a responsável pelas primeiras instruções aos agentes penitenciários (que surgiram a partir de 2002). Segundo informações obtidas junto aos agentes que participaram da pesquisa, até 2002 todas as unidades prisionais do estado eram de responsabilidade da Polícia Militar (PM). Dessa forma, em geral, tinha-se um militar (da ativa ou da reserva) executando a função de direção, com o auxílio de outros militares (esses da ativa, em sua maioria) tanto em funções administrativas quanto na custódia dos presos (executando, portanto, a função hoje ocupada pelos agentes penitenciários). Ao fazer alusão ao termo “militarização”, portanto, estamos nos referindo ao “processo de adoção de modelos, conceitos, doutrinas, procedimentos e pessoal militares em atividades de natureza civil, dentre elas a segurança pública” (Cerqueira, 1998, citado por Zaverucha, 2008, pp. 178-179).

Nessa direção, o sistema penitenciário do estado passa a adotar práticas e doutrinas militares em seu funcionamento, sobretudo em seu período inicial quando os militares executavam todas as tarefas referentes ao sistema prisional (da gestão à custódia de presos). Tal herança ainda se faz presente, se analisarmos o fato de que as duas pessoas responsáveis pela gestão governamental dos presídios (lotados na secretaria estadual que coordena o sistema prisional) são oficiais da PM, o que constitui um importante dado para pensarmos o sistema prisional. Segundo um dos militares entrevistados:

Essa função que eu estou ela é considerada de natureza policial militar. Antes de existir hoje o sistema penitenciário quem fazia a gestão de tudo era a polícia militar, não existia agente penitenciário… Então eram policiais militares do cárcere à guarda e direção (Entrevistado n. 1, entrevista pessoal, agosto de 2013).

Na fala do gestor, fica evidente a defesa de que a gestão do sistema penitenciário é uma atividade de “natureza policial militar”, incluindo aqui a ideia de que a formação militar possui, inclusive, a capacidade de colaborar com as atividades exigidas pelo sistema prisional:

No sentido de tratar da questão da segurança das unidades, me ajuda bastante. Minha formação enquanto policial militar. Até porque quando eu me formei, como eu te falei, não existia o sistema penitenciário definido, era a polícia militar que fazia esse “know how”. De certa forma faz com que dê um pouco mais de, digamos assim, substrato para que a gente possa pelo menos gerenciar (Entrevistado n. 1, entrevista pessoal, agosto de 2013).

Há aqui, a clara defesa de que é a formação militar que dá consistência, “substrato” para a função de gestão do sistema prisional. Embora fuja aos objetivos deste trabalho, vale lembrar aqui que a gestão militar no campo da segurança pública, tende a trazer graves consequências no campo da democracia, já que são atores não eleitos (no caso, militares) que estão gerenciando e planejando órgãos civis (Nóbrega Júnior, 2010). O referido autor lembra ainda que as polícias militares estaduais possuem forte vínculo com o exército, “fragilizando o poder dos governadores dos estados” (Nóbrega Júnior, 2010, p. 128), produzindo, portanto, prejuízos no campo da gestão prisional.

Se avançarmos um pouco nessa reflexão, trazendo à tona a história do Estado brasileiro, será imprescindível refletir sobre os vinte anos de ditadura militar vividos pelo país entre as décadas de 1960 e 1980. De acordo com Clóvis Brigagão (1995), após os militares assumirem o poder, o Brasil passou por um processo de militarização no campo da política, da economia, e do próprio cotidiano. Para o autor, além da figura do general-presidente, aparecem em cena os generais-ministros, coronéis-diretores, “ocupando lugares estratégicos na formulação de políticas governamentais e na distribuição de recursos públicos, tradicionalmente qualificados como de competência civil” (p. 13). Só para termos uma ideia do impacto que isso pode ter, Brigagão lembra-nos que o campo do bem-estar de crianças e adolescentes foi palco de políticas e programas com intuito de controle social, através de práticas militarizadas, responsáveis por intensas violações dos direitos desses jovens (Brigagão, 1995).

Mesmo após o fim do regime militar, muitos militares seguiram ocupando funções de controle em órgãos públicos (Brigagão, 1995). Como efeito desse processo, o autor sinaliza para um modo de vida que cultua uma “maneira e costume militarizado em nossa vida cotidiana” (Brigagão, 1995, p. 77). Após militarizar as polícias (na década de 1960), o Brasil “belicizou” o processo de diferenciação social, eliminando a diferença entre criminoso e cidadão: “Passaram, no conceito da segurança nacional militar, a ser considerados, todos, inimigos” (Brigagão, 1995, p. 79).

Nessa direção, tocando mais diretamente nos objetivos deste artigo, a gestão militar do sistema prisional também produz efeitos nos modos de trabalho dos agentes penitenciários. Ao entrarem no sistema prisional, em 2002, a primeira turma de agentes penitenciários se deparou com um cenário “militarizado”. A militarização não dizia respeito apenas ao fato de termos postos de trabalho ocupado por miliares, mas, principalmente, por termos um modo de funcionamento pautado nos princípios militares de hierarquia e disciplina, princípios estes já bastante conhecidos nas forças armadas e polícia militar (Silva & Viera, 2008).

A hierarquia estava relacionada, principalmente, ao modo de trabalho desses sujeitos, ou seja, divisões hierárquicas e de funções entre os funcionários (a direção geralmente era ocupada por um oficial, enquanto as funções ligadas à custódia de presos ficavam a cargo de sargentos, cabos e soldados). Já a disciplina dizia respeito ao modo de funcionamento da prisão: regras e horários rígidos para as diversas atividades executadas pelos presos; estabelecimento de castigos e recompensas para aqueles que infringissem ou cumprissem de maneira satisfatória as normas estabelecidas; além de um modo de tratamento para com os presos (por parte dos militares) geralmente cercado de procedimentos típicos de ambientes militares (gritos ou tom de voz mais alto, ordens, rispidez e agressões, etc.).

É nesse contexto, portanto, que ingressa a nova figura do sistema penitenciário: o agente penitenciário. Já no primeiro curso de formação de agentes penitenciários diversos professores pertenciam à PM, o que se constitui importante linha de força desse cenário. Mas o principal legado da PM, no processo de formação do AP, se deu, sobretudo, durante o início do trabalho dos agentes nas prisões locais, já que eram os policiais militares os principais trabalhadores nesses espaços, ficando assim encarregados de transmitir o modus operandi dentro das prisões: “Quem ensinava o ‘bê-á-bá’ mesmo eram os que já estavam lá, que eram os PMs” (Entrevistado n. 2, entrevista pessoal, março de 2014).

Segundo o coordenador da escola de administração penitenciária do estado (que é AP), a presença da PM nos presídios e a instrução que os policiais deram aos agentes novatos foram de fundamental importância para a construção dos modos de trabalho no interior do cárcere:

Mas vendo por um lado, a instituição militar foi quem primeiro trabalhou no sistema penitenciário, foi quem teve a experiência, nós, profissionais, a gente entrou no sistema penitenciário sem saber o que era o presídio, eu mesmo quando entrei, entrei vendo um monte de barbaridades. Mas a instituição militar é quem conhece, né? (Entrevistado n. 2, entrevista pessoal, março de 2014).

Outros atributos presentes nas instituições militares, em particular a PM, também se constituem enquanto argumentos que justificam a manutenção desta corporação dentro do sistema prisional. Ainda segundo o diretor da escola de administração penitenciária é importante que os agentes adquiram conhecimentos técnicos relacionados a táticas de resolução de conflito, manejo de armas de fogo, etc.: “Mas a parte militar ainda tem que existir porque a polícia militar é a instituição mais antiga do estado, né? Quem trabalha com o tático, o tiro são eles, então a gente tem que puxar deles, né?” (Entrevistado n. 2, entrevista pessoal, março de 2014).

Assim, os agentes foram tendo como primeiros professores os policiais militares e como primeiros ensinamentos um certo modo de trabalhar, marcadamente militarizado. Nesse sentido, o processo de militarização pelo qual passaram os AP se caracteriza também pela identificação com o modo militar de agir, particularmente no que diz respeito às funções mais policiais da profissão, e o poder que isso representa: “É poder… eu sou policia, eu ando armado… quer fazer o que polícia faz. Eles se acham polícia. Isso é fato” (Entrevistado n. 2, entrevista pessoal, março de 2014).

Uma clara demonstração desse processo pode ser vista no modo com os AP vão se constituindo enquanto categoria profissional em meados de 2002. Dentre os processos identitários desse momento, a escolha do uniforme revela quão longe vai esse processo de identificação com os militares. De acordo com um dos AP entrevistados:

A categoria por si só viu que havia necessidade de se criar um fardamento, eu não sei por que razão, mas resolveram criar esse fardamento e se identificaram como tal, como polícia militar com todos os assessórios que muitas vezes o policial militar nem tem, nem possui. Então há esse desejo de ser polícia (Entrevistado n. 2, entrevista pessoal, março de 2014).

Embora saibamos que o uso de uniforme não é uma exclusividade da polícia militar (a exemplo da Polícia Federal), os agentes em questão faziam referência ao uniforme da polícia militar, como demonstrado em algumas entrevistas: “Muitos aqui tem o sonho de serem policiais militares” (Entrevistado n. 2, entrevista pessoal, março de 2014). Assim, nesse processo de início da carreira de AP em nosso estado, o fardamento escolhido pelos AP tinha cor preta, com insígnias e detalhes que lembram o fardamento da Polícia Militar (em especial do Batalhão de Operações Especiais-BOPE), além do uso de coturnos por muitos agentes. Segundo um dos entrevistados: “Nós escolhemos a farda, essa cor preta, agora nós temos uma identidade” (Entrevistado n. 3, entrevista pessoal, abril de 2014).

Dessa forma, vai se desenhando um processo de militarização das subjetividades, marcando os modos de habitar o espaço prisional (e também fora dele), o que discorremos a seguir.

3.2 “Aqui eu sou o Estado. E o Estado é violador”: subjetividades militarizadas no dia a dia da prisão

A partir do que apresentamos no item anterior, foi possível mapear entre os agentes um processo de identificação com a cultura militar, assim como com as funções desempenhadas por policiais, com importantes efeitos nos seus modos de subjetivação. Em um de nossos primeiros diálogos com os agentes, uma fala em particular nos chamou bastante atenção, ilustrando um pouco desse processo de identificação mencionado: “Quando você pega numa arma dessas você não quer mais largar” (Entrevistado n. 4, entrevista pessoal, abril de 2014).

A fala em questão demonstra um apego/afinidade para com determinadas funções policialescas. O ato de andar armado (e fardado), tal como um policial militar o faz, soa como algo prazeroso, produtor de uma identidade subjetiva entre os agentes. Tal processo de identificação com a polícia militar já havia sido percebido na pesquisa conduzida por Romeu Gomes e Edinilsa Souza (2013), sobre a identidade de policiais civis. Os autores afirmam que

A imagem que os policiais civis têm de sua identidade profissional se constitui reflexivamente a partir da imagem que têm da polícia militar. Essas imagens, em geral, se diferenciam, sem – no entanto – descartar a possibilidade de haver uma superposição entre elas (Gomes & Souza, 2013, p. 606)

Um de nossos entrevistados relata os embates iniciais, particularmente quando houve a tentativa de dar um “nome de guerra” aos agentes:

Quando nós entramos a primeira coisa que eles fizeram foi colocar um “nome de guerra” para os agentes penitenciários. Foi o primeiro impacto do pessoal. Pra que isso (Sic)? O que é um nome de guerra? Um nome de guerra é um nome de fantasia que o soldado tem. Quer dizer, nós não somos soldados, nós somos agentes penitenciários… (Entrevistado n. 5, entrevista pessoal, abril de 2014)

Embora não seja exclusividade de organizações militares, o nome de guerra figura entre as características de funcionamento das forças armadas. Nesse sentido, o nome de guerra seria um nome escolhido (entre o nome e o sobrenome) com intuito de não haverem dois nomes iguais. Dessa forma, em uma situação de guerra, por exemplo, ao ser pronunciado determinado nome, todos saberiam com exatidão a quem se referia. Apesar dos conflitos entre uma parcela do grupo de agentes e direção da unidade prisional, boa parte dos agentes aceitou a proposta, “achou bacana porque ele já tinha na mente aquele negócio de ser fiscal, de ser operacional…” (Entrevistado n. 5, entrevista pessoal, abril de 2014). Aos poucos, o grupo foi aceitando esse funcionamento, e embarcando no processo de tornar-se agente, descobrindo o policial que habitava em cada um deles, num processo que estamos denominando de militarização das subjetividades.

Os agentes também tinham momentos de “instrução” com os policiais militares, ocasião em que ficavam geralmente no pátio, em formação militar, recebendo avisos e instruções diversas sobre o funcionamento da prisão. Segundo um dos entrevistados: “a gente ficava em posição de ‘descansar’, sempre respondendo ‘sim senhor’ ou ‘não senhor’” (Entrevistado n. 6, entrevista pessoal, abril de 2014). A introdução da cultura militar encontrava eco em muitos dos trabalhadores que se diziam satisfeitos com a rotina de disciplina e hierarquia: “era um tempo bom, tudo organizado… tem que ter muita disciplina pra um presídio funcionar” (Entrevistado n. 6, entrevista pessoal, abril de 2014). Além da disciplina, os militares instruíam os agentes sobre como andar pelo presídio (postura ereta, sempre atento a movimentação de presos), manejo de armas de fogo, dentre outras coisas.

Dessa forma, além de questões técnicas, os agentes aprenderam com os militares, principalmente, um determinado modo de habitar aquele espaço, de ser um agente penitenciário. Em um de nossos diálogos com os AP, um deles nos relatou seus primeiros dias como agente, e as orientações que recebeu do diretor da unidade prisional (na época, um oficial da PM):

Quando comecei a trabalhar, o diretor disse: “—Olhem, vocês deixem seus corações lá fora. Daqui pra dentro é outra história…”. Eu vi morte, duas decapitações, em uma delas os presos botaram a pomba2 na boca do que morreu… (Entrevistado n. 7, entrevista pessoal, abril de 2014)

Dessa forma, os agentes vão se habituando às inúmeras violências que marcam o cotidiano prisional, moldando seus modos de ser, fazendo com que suas subjetividades adquiram contornos mais rígidos. Os relatos seguem corroborando a ideia de uma transformação subjetiva por parte dos agentes em decorrência do trabalho no sistema prisional: “Depois que eu passei a ser agente, com o passar do tempo eu fiquei mais ignorante… Eu era uma pessoa totalmente diferente… Eu era mais maleável com as coisas, aí depois você fica duro, não sei como é…” (Entrevistado n. 7, entrevista pessoal, abril de 2014).

A prisão age tão intensamente que não é difícil ouvir relatos desse processo de militarização invadindo o espaço doméstico. A disciplina e hierarquia muitas vezes adentram nos lares dos AP, acionando um modo de funcionamento mais rígido, embrutecido, no contexto familiar. Segundo um dos entrevistados, além do estresse ocasionado pelo trabalho prejudicar as relações familiares, o modo de trabalhar na prisão muitas vezes ressurge no espaço doméstico: “Nervosismo demais, você se estressa com a esposa, você não sabe separar o tratamento, às vezes aqui você pensa que tá tratando com um interno, e às vezes quer tratar de uma forma semelhante um filho, uma esposa”. Ou ainda:

A minha esposa, ela diz que eu mudei meu comportamento, eu era um cara muito calmo, sabe? Eu ainda sou calmo, mas ela diz que depois do sistema eu fiquei assim, um cara meio duro… Quando eu via uma coisa assim eu dizia: “—Oh rapaz, se fosse direitinho…”. Hoje não, quando passo do lado de bandido eu digo que é pra matar essa praga logo e enterrar de cabeça para baixo, principalmente quando é menor [risos], ela diz que eu fiquei duro demais… (Entrevistado n. 8, entrevista pessoal, abril de 2014)

A dureza a qual se refere nosso interlocutor é característica do modo de funcionamento das instituições militares, sobretudo na Polícia Militar. Segundo Elizabete Albernaz (2010), é comum o embrutecimento dos sujeitos no decorrer do exercício de funções policiais, “tornando-os cínicos, insensíveis, exaurindo-lhes progressivamente a capacidade de demonstrar empatia pelos dramas humanos e sociais com que se deparam” (p. 534).

Segundo relatos dos agentes, a rotina laboral na época em que tinham os PMs como instrutores era marcada por gritos, xingamentos e um modo ríspido de se dirigir aos subordinados: “Mocorongo, burro, merda.. Era xingamento de todo tipo. Eles diziam que era pra gente se acostumar, fortalecer o psicológico e aprender a cumprir ordens” (Entrevistado n. 9, entrevista pessoal, maio de 2014).

Um modo de funcionamento, portanto, que produz subjetividades duras para que lidem com as intempéries da profissão, com os subordinados, com os inimigos, com os presos… Às vezes também com os familiares. Segundo relato de um AP, é comum ouvir reclamações de seus familiares: “Justamente quando eu estava mais agressivo, eles falaram que depois que comecei a ser agente penitenciário comecei a falar muito alto com todo mundo, queria ser mandão, essas coisas assim, que estava muito agressivo” (Entrevistado n. 10, entrevista pessoal, maio de 2014).

A produção de agentes penitenciários, capacitados a lidar com detentos, de maneira firme e severa, ensina a esses trabalhadores não apenas procedimentos, mas uma maneira de habitar o mundo. Trata-se aqui de uma transformação de suas subjetividades, uma disciplinarização do corpo, na direção de uma “dureza”, de um modo militar de agir, intensificando Relembrando o diálogo com o AP que relata seus primeiros dias de trabalho, quando foi orientado a deixar seu coração do “lado de fora” da cadeia, a sensação é de que o conselho foi seguido à risca: “Eu era mais compreensivo, mais amável, e hoje em dia a mulher diz que eu não tenho mais coração” (Entrevistado n. 7, entrevista pessoal, abril de 2014).

Dessa forma, os contornos que vão se desenhando nas subjetividades dos agentes dizem respeito a um certo embrutecimento da sensibilidade, onde a violência se apresenta como algo comum, tolerável, um fato a mais na rotina laboral. É sob essas linhas de força que os agentes penitenciários do RN iniciam sua trajetória profissional. Dentre os aprendizados iniciais, o tratamento violento para com os presos era fato recorrente entre as primeiras experiências. Segundo relato dos AP era prática comum entre os militares o uso da violência (não apenas física, mas verbal e psicológica) no trato com os detentos:

Às vezes você não queria nem dar, mas já que ele estava apanhando, eu vou dar pelo menos um chute, aí dava também… A gente passou um período de dois, três anos batendo mesmo… Então a gente foi aprendendo também que tinha que bater [no preso]. (Entrevistado n. 11, entrevista pessoal, maio de 2014)

Esse modo de funcionamento violento, aliás, faz parte dos processos de trabalho das polícias militares no Brasil seja em sua prática cotidiana, ou em sua formação (Albuquerque & Machado, 2001; Fraga, 2006). De acordo com os agentes entrevistados, a violência para com os detentos era considerado um “procedimento disciplinar”. Sempre que havia quebra de regras por parte do preso, os agentes eram instruídos a aplicar castigos físicos que iam desde tapas, socos, até choques elétricos. Assim, tinha-se a institucionalização da violência, contrariando tudo o que é previsto legalmente, construindo uma maneira particular (e ilegal) de funcionamento: “De certa forma, a gente foi se acostumando aquilo, passamos a achar normal” (Entrevistado n. 11, entrevista pessoal, maio de 2014).

A violência, a qual fazemos alusão nas linhas supracitadas, diz respeito especificamente a seu caráter instrumental, para se chegar a um determinado fim (de dominação), tal como postulou Hannah Arendt (2014). O conceito de violência, para a autora, difere do de poder: “corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas também para agir em concerto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência apenas enquanto o grupo se conserva unido” (Arendt, 2014, pp. 60-61). Dessa forma a autora conceitua “violência”, entendendo que esta distingue-se por seu caráter instrumental, depende da orientação e da justificação para determinado fim. A autora afirma ainda que a violência precisa de justificação para ser efetuada, tolerada (Arendt, 2014). No caso do ambiente prisional, a centralidade do castigo é o pano de fundo para a emergência de práticas violentas. É a ideia de que o “castigo educa”, “pelo castigo que se aprende”, que serve de racionalidade para a violência. As análises de Arendt fazem sentido no contexto investigado, sobretudo, se pensarmos na ideia defendida pela autora de que “poder e violência são opostos; onde um domina absolutamente, o outro está ausente. A violência aparece quando o poder está em risco, mas, deixada a seu próprio curso, conduz à desaparição do poder” (Arendt, 2014, p. 73).

Assim, a violência e a tortura, comuns ao ambiente prisional, dizem respeito à falência de determinados discursos, que outrora sustentavam a engrenagem carcerária. Como bem pontuou Teresa Nobre (2004), “a violência irrompe quando o discurso está falido” (p. 159), o que atesta para o fracasso de nossa política penal contemporânea. Ademais, é preciso lembrar dos efeitos colaterais dessa violência institucional, operacionalizada pelos agentes penitenciários (e no campo da segurança pública, de uma maneira mais ampla). Além de ineficaz, produz o aumento da violência por parte de pessoas/grupos considerados divergentes (Nobre, 2004).

Ao aprender o ofício de carcereiro, esses trabalhadores acabavam por aprender um determinado modo de habitar aquele espaço, conforme sinalizamos nas linhas acima. Atravessados por essas linhas de subjetivação, a formação de agentes penitenciários em nosso estado é marcada por esse processo de militarização e produção de sujeitos violentos, violadores. Mais do que uma decisão individual, a violência aqui é tomada como característica do próprio processo de subjetivação pelo qual esses trabalhadores passam, seja durante a formação, seja no decorrer do exercício profissional. São subjetividades violentas que vão sendo produzidas pelo sistema prisional. Determinados valores vão sendo introduzidos, uma maneira de ver o mundo, de habitar aquele espaço e de ser um trabalhador do sistema prisional. Quando falamos de processos de subjetivação estamos nos referindo a isso, ao processo de construção de modos de vida, sentimentos, emoções, que acabam por moldar nossa existência (Guattari & Rolnik, 1986). Portanto, mais que uma aquisição de hábitos ou comportamentos (Chies et al., 2005), acreditamos que o trabalho em prisões põe em curso um processo de subjetivação, alterando não apenas hábitos, mas introduzindo valores, pensamentos, afetos, modos de se relacionar consigo e com o outro.

Dessa forma, a identificação com esse modo de operar, além das consequências já sinalizadas no que diz respeito aos processos de trabalho e produção de subjetividades, traz à tona um grave problema que acompanha a história do sistema prisional brasileiro: a violência. A identificação com um modo militarizado de trabalho vem acompanhada de uma determinada maneira (violenta) de lidar com os presos.

Segundo um dos agentes com quem tivemos a oportunidade de dialogar sobre o assunto, na época em que ingressou no sistema penitenciário foi recebido pelos policiais militares no presídio onde trabalhava, que lhe ensinaram dois modos principais de se relacionar com os presos: o primeiro era a “porrada”, bater sempre que fosse possível nos presos. Bater como forma de educação, disciplinarização; a outra, era ganhar dinheiro com os presos, já que alguns presos pagavam por determinado tipo de serviço (acesso a suas próprias roupas e matérias trazidos pela família, mais privacidade nas visitas, etc.), e com isso se podia ter uma renda extra. O AP em questão mesclou esses dois modelos tornando-se um agente violento e rígido na disciplina. Segundo ele, alguns AP batiam nos presos pelo simples fato de estarem olhando para eles ou por um motivo qualquer: “A primeira paulada ele ainda estava dormindo… depois o preso passava por um corredor polonês” (Entrevistado n. 12, entrevista pessoal, maio de 2014).

Primeiro os agentes penitenciários adquirem um nome de guerra, preparam-se, portanto, para algo que se assemelhe talvez a uma batalha. Aprendem também algumas noções de hierarquia, disciplina. Assim, internalizam um modo de trabalho pautado na obediência aos superiores e às ordens proferidas. Por fim, recebem a orientação de deixar seus “corações” do lado de fora. Imersos em um contexto de violência, aprendendo práticas violentas, está montado o cenário para que mais violências ocorram, violando direitos com a mesma naturalidade com que se realiza qualquer outro procedimento. Funcionários do Estado, mas não de qualquer Estado, um Estado violador. Reproduz-se assim, aquilo que se espera dos carcereiros. Conforme nos disse certa vez um AP: “Aqui eu sou o Estado. E o Estado é violador” (Entrevistado n. 13, entrevista pessoal, maio de 2014).

A prisão se constitui, portanto, enquanto um dispositivo de militarização das subjetividades, que além de produzir um modo de trabalho caracterizado pela hierarquia, disciplina e demais procedimentos militares, produz subjetividades punitivo-policiais, onde a violação dos direitos do preso e a violência fazem parte do modus operandi, tornando os trabalhadores que agem sob tais linhas de força mais propensos às violações dos direitos humanos.

Mister destacar aqui que tais transformações subjetivas não são uma exclusividade de instituições militares (a exemplo do clássico experimento de Philip Zimbardo (2004)3. Porém no contexto brasileiro o contato com militares adquire significado específico dando uma pitada a mais no que diz respeito ao enrijecimento, violência e violações de direitos. Vale lembrar também o fato de que as forças armadas governaram nosso país por mais de duas décadas (1964-1985), período no qual as polícias militares se tornaram um braço armado do governo, regulando condutas, fiscalizando o espaço público, em geral com práticas violentas. Segundo Marcos Bretas e André Rosemberg (2013), a polícia militar, ao longo de sua existência, desenvolveu uma certa “cultura policial”, geralmente alheia às normas e políticas oficiais no campo da segurança pública, o que também é realidade quando analisamos o sistema prisional. Assim, tendo os PMs como professores, nomes de guerra, farda, hierarquia, disciplina, humilhações, e porque não violência, se misturam no dia a dia desses trabalhadores, materializando um funcionamento muito comum em ambientes militares.

Tais reflexões nos fazem lembrar, mais uma vez, das contribuições de Arendt, mais especificamente aquelas contidas na obra “Eichmann em Jerusalém” (1999). A autora analisa o julgamento do militar nazista Adolf Eichmann, acusado de ser o responsável pela execução de milhares de judeus durante o regime nazista na Alemanha. A constatação da autora é, de certa forma, impactante: Eichmann não era um monstro, um psicopata, ou algo do gênero. O militar alemão era um sujeito que se assemelhava a muitos outros funcionários públicos: um homem de família, bom cidadão, responsável e, principalmente, obediente. Isso o fazia obedecer à risca as ordens recebidas. Foi a partir disso que a autora afirma a tese acerca da “banalidade do mal” (Arendt, 1999, p. 123). Para a autora, trata-se de uma das características dos governos totalitários transformar pessoas em meras engrenagens, burocratas executando tarefas (que poderiam ser executadas por qualquer outro burocrata), desumanizando-as (Arendt, 1999), e fazendo a máquina funcionar.

A ideia de “banalidade do mal” não diz respeito à isenção de responsabilidade do réu em questão, mas ao fato de que não há uma motivação específica para que ele aconteça, como bem lembrou Marcelo Andrade (2010). Não era um determinado sujeito mau, com motivações demoníacas que acordava e decidia executar judeus. Antes, a ideia de banalidade diz respeito ao fato de tratarmos como comum, normal, algo que não o é. Nas palavras de Andrade: “Um ato mau torna-se banal não por ser comum, mas por ser vivenciado como se fosse algo comum” (Andrade, 2010, p. 112). Tratava-se assim de alguém que cumpria ordens: “As ordens superiores, mesmo quando sua ilicitude é manifesta, afetam gravemente o funcionamento normal da consciência humana” (Arendt, 1999, p. 180). Eichmann era, portanto, um funcionário “padrão”, burocrata e, como todo bom militar, um cumpridor de ordens.

Tal como Eichmann, muitos AP ao ingressarem na carreira traçam o caminho do funcionário “padrão”, do agente “operacional” e, atravessados pelo processo de militarização já descrito, aprendem também a cumprir ordens e a funcionar sob o registro militar, onde predominam práticas violentas e violações dos direitos humanos.

Ao trazer para o debate as ideias expostas por Arendt não pretendemos dizer que as análises feitas pela autora podem ser transpostas para o contexto por nós pesquisado, mas que podem sim, ampliar o modo de compreensão do fenômeno em questão. Diferente do que trouxe Arendt (1999), os agentes penitenciários nem sempre estão cumprindo ordens. Não há uma clara determinação superior na maioria dos fatos violentos narrados nesse artigo. Acreditamos sim, que o que está em jogo na rotina dos agentes é muito mais uma determinada cultura que se vai absorvendo, ou, para ser mais preciso, um processo de subjetivação, que produz determinados sujeitos capazes de operar as engrenagens do sistema. Ao dizer que “Aqui eu sou o Estado. Estado é violador”, o AP reconhece a trajetória de violação dos direitos humanos do Estado brasileiro, e, o que pior, enquanto funcionário público acaba por se identificar, por assumir essa identidade de violador de direitos. Fazem, portanto, a engrenagem funcionar.

Essa breve história, contada nas linhas supracitadas, aliado aos processos de subjetivação e as linhas de força presentes em nosso sistema prisional, ajudam a compreender porque, ainda hoje, temos tantos “Eichmanns” em nossos cotidianos, em particular em nossos sistemas jurídico-penais.

4 Considerações finais

Este artigo teve como objetivo cartografar os processos de subjetivação presentes no trabalho de agentes penitenciários. Os resultados trazem à tona um sistema penitenciário marcado por uma gestão militarizada, o que reverbera no processo de formação dos agentes penitenciários, fortalecendo modos de trabalho pautado nos princípios militares de hierarquia e disciplina. Além disso, o aprendizado inicial da profissão no sistema prisional pesquisado (em meados de 2002) foi marcado pela presença de policiais militares que, mais do que procedimentos e modos de trabalho, foram responsáveis pela transmissão de determinado modo de existir, colaborando para a constituição de um território existencial a ser habitado pelos agentes penitenciários em formação. Assim, um certo embrutecimento, ou, como denominamos, uma militarização da subjetividade marca o processo de subjetivação pelo qual passam os agentes penitenciários (não apenas no RN mas em todo Brasil). O resultado é a produção de sujeitos duros, dispostos a práticas violentas no dia a dia da prisão, além da alteração de seus modos de vida também no espaço doméstico. Cabe pontuar aqui, no entanto, que tal processo de transformação das subjetividades, em direção ao endurecimento/brutalidade, não é uma especificidade de instituições militares (ou com passo militarizado), mas essa linha de força ganha importância e dá contornos particulares ao processo em curso no sistema prisional brasileiro.

Ao pensar os processos de trabalho dos agentes penitenciários atravessados por processos de subjetivação, queremos lançar luzes sobre o papel da formação, cultura institucional, valores e demais forças presentes no cotidiano dessa categoria, que produzem a afirmação de determinadas maneiras de habitar o mundo, capazes de produzir agentes violadores. Trata-se, sobretudo, de pensar sobre os efeitos deletérios da prisão em nossos dias, produzindo subjetividades específicas.

Para produzirmos uma realidade diferente, mais do que focar nas ações dos sujeitos em questão (torturas e demais violações cometidas por agentes penitenciários) é preciso atentar para os processos de subjetivação que estão em jogo, o tipo de formação que recebem, assim como os valores e linhas de força presentes no cotidiano das prisões, forjando assim esses, e não outros trabalhadores do sistema penitenciário.

Ademais, ressaltamos a necessidade de se repensar todo nosso sistema jurídico penal, que há séculos produz violência, dor, mortificações, sem que de fato avancemos em direção a uma sociabilidade mais potente. Não se trata de repensar apenas a prisão (e seu cotidiano militarizado), mas toda a lógica que põe essa engrenagem em funcionamento, valores, regras e cultura do castigo, da qual partilhamos cotidianamente, sofrendo também seus efeitos danosos.

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