Terra de São Paulo, lugar de santos e demônios, de amores e desamores, de vida e de morte. Lugar onde muitas Severinas, Diadorins, Miguilins de distintos lugares, resistiram e construíram suas histórias. Índios, negros, bandeirantes, migrantes fizeram dessa terra sua luta e seu lar.
Iglesias, Abati & Mesquita, 2016, p. 22
Esta é uma narrativa sobre pessoas, ações e relações, que tratará de como moradores da Zona Sul da Cidade de São Paulo se conhecem e se juntam, realizam ações coletivas e constroem redes que são, sobretudo, modos solidários de relacionamento social para resistir às pressões e ameaças presentes em suas vidas.
Moradoras de uma das tantas periferias de nosso mundo, essas pessoas produzem uma parcela importante da solidariedade social que mantém vivos e fortes os laços, os vínculos e tudo aquilo que dificulta ou impede a fragmentação da comunidade em indivíduos isolados, mais frágeis e disponíveis para a gestão da mídia, do Estado, das corporações, ou do crime.
São mulheres e homens pobres, a maioria jovens negros e negras, gente de terreiros, quilombos e aldeias, povos originários e tradicionais que, ao agirem juntos, alcançam uma potência transformadora cuja força tensiona da periferia para o centro, do lugar de invisível e inaudível para outro, o da força da produção e da expressão artística, cultural e intelectual. Seus grafites gritam por toda a cidade. Sua voz encontra escuta nos saraus, no hip-hop, no rap. O ressoar dos tambores do maracatu fortalece almas e corpos. O movimento da capoeira, a dança de rua e até o balé clássico tem lugar. O teatro comove e ensina a resistir à pressão e ao medo. E o pensamento crítico jorra abundante no jornalismo autônomo da periferia.
Mas como conhecer essa realidade, não pertencendo a ela e dispondo de pouco tempo?1 Como encontrar coletivos e empreendimentos solidários geralmente informais? Como identificar e descrever as atividades e ações públicas por eles realizadas? Como narrar e interpretar as relações ali vividas? Esses foram os principais desafios de nossa pesquisa.
Os levantamentos comumente realizados —que têm por base cadastros, questionários, inventários etc.— se mostraram insuficientes e foram incapazes de fornecer pistas relevantes, o que entendemos inicialmente como indício de uma realidade fugidia, fugaz, difícil de apreender. Para conhecer essa realidade social tivemos que inventar, adaptando e/ou desenvolvendo nossos próprios instrumentos de pesquisa. Para ver o que está ali foi necessário ajustar a percepção para algo diferente daquilo que ela estava acostumada a procurar. Foi preciso compreender que a realidade social que buscávamos apreender é constituída pelas ações coletivas, pelos relacionamentos sociais e pelas narrativas construídas no decorrer de tais processos. Deveríamos procurar, por
tanto, as interações cotidianas que vinculam pessoas, criam realidades e também interpretações originais da realidade, tal como nos ensinou a tradição interacionista de George Mead (1934/1973), Herbert Blummer (1969) e Haward Becker (1998/2009).
O território ao qual nos dedicamos abrange cinco distritos da Zona Sul do Município de São Paulo: Capão Redondo, Campo Limpo, Jardim Ângela, Jardim São Luís e Vila Andrade. Em comum, eles têm a história e a dinâmica socioeconômica: surgiram da reconfiguração de uma região anteriormente agrícola que se tornou opção de moradia popular entre os anos 1960 e 70. Ao acompanharem o ciclo de expansão industrial do distrito de Santo Amaro (também na Zona Sul do município), estes cinco distritos receberam uma forte onda migratória de trabalhadores e trabalhadoras advindos de outras regiões do estado e do país.
Segundo dados do Censo de 2010 (IBGE, 2010), os quatro distritos juntos são habitados por mais de 1,1 milhão de pessoas, o que corresponde a aproximadamente 10% da população do município de São Paulo, como pode ser observado na Tabela 1.
Distritos | Área | População | Densidade Demográfica |
---|---|---|---|
Jardim Ângela | 37,40 km² | 295.434 pessoas | 7.899 Hab/km² |
Jardim São Luís | 24,70 km² | 267.871 pessoas | 10.845 Hab/km² |
Campo Limpo | 12,80 km² | 211.361 pessoas | 16.513 Hab/km² |
Capão Redondo | 13,60 km² | 268.729 pessoas | 19.759 Hab/km² |
Vila Andrade | 10,30 km² | 127.015 pessoas | 12.332 Hab/km² |
Os 5 distritos juntos | 98,8 km² | 1.170.410 pessoas | 11.846 Hab/km² |
Município de São Paulo | 1.509 km² | 11.253.523 pessoas | 7.457 Hab/km² |
Tabela 1
Dados dos 5 distritos estudados, conforme IBGE (2010)
O processo de expansão e a dinâmica que se impôs a esse território acompanha a de outras periferias brasileiras, já que “a expansão das áreas periféricas está relacionada à procura por habitação em áreas com baixo preço da terra, provocando um aumento das ocupações precárias, como favelas e loteamentos irregulares, em áreas sem infraestrutura e expostas a risco e à degradação ambiental” (Borelli, 2012, p. 63).
Embora cada periferia tenha sua própria história e cultura, ao olhar distante elas aparecem submetidas às mesmas forças sociais e institucionais, como nos explica Elizabeth Borelli:
Os moradores das favelas e dos loteamentos clandestinos constituem a maioria da população paulistana (...), é a ilegalidade ou clandestinidade em face de um ordenamento jurídico-institucional que, desconhecendo a realidade social desta maioria, nega o acesso aos benefícios urbanos básicos. Configura, deste modo, um processo socioeconômico e político que gera uma concepção de ordem excludente, decretando, com isso, uma condição de subcidadania. (Borelli, 2012, p. 68)
Parece certo que as periferias são produto de uma ordem social excludente. Mas serão um mero produto ou um produto passivo? Ou a expansão das periferias poderia ser entendida, dialeticamente, também como forma de resistência à ordem social excludente? Como forma de criação de outras realidades, nas quais resistem e sobrevivem outras culturas?
Nesse pedaço da Zona Sul, como talvez em outras periferias, à margem do ordenamento jurídico e institucional, uma população dotada de recursos escassos construiu a sua São Paulo. A ocupação não trouxe pessoas abstratas, números transportados passivamente para um destino precário, ela trouxe pessoas reais com necessidades concretas, reivindicações e aspirações. E para sobreviver as pessoas agem, e suas ações adquirem caráter social e político, ou seja, produzem narrativas coletivas, produzem cultura.
Assim, o direito à moradia digna logo tornou-se a primeira grande luta social da região: exigiu regularização fundiária, saneamento básico, arruamento e calçamento das vias etc. Na sequência, ocorreram as reivindicações pela instalação dos equipamentos públicos, sobretudo escolas, creches e postos de saúde (Iglesias et al., 2016). Tais lutas continuam e somam-se hoje às demandas por melhorias na mobilidade urbana, por segurança pública, por trabalho etc.
Porém, antes da reivindicação pelo direito ao trabalho aparecer e trazer com ela a discussão sobre a Economia Solidária (Singer, 2002), houve ali desemprego, acompanhado do crime. A pior crise do emprego, a dos anos 1990, que afetou toda a América Latina (Matoso, 1999; Pochmann, 2000), foi vivida na periferia da Zona Sul com redobrada intensidade devido ao fechamento de muitas plantas industriais do distrito de Santo Amaro (Dedecca, 2004).
Com o desemprego veio o crime e a violência urbana num patamar que, em 1994, tornou o Capão Redondo conhecido como o bairro mais violento de uma das cidades mais violentas do mundo (Feiguin & Lima, 1995). O medo e a insegurança instauraram-se e perduraram. Contudo, embora atribua-se geralmente a responsabilidade por estes sentimentos ao crime:
Ele somente os potencializa, pois outros fenômenos típicos da vida na metrópole —incerteza quanto ao futuro, crescimento desordenado das cidades, má distribuição dos equipamentos urbanos e de recursos de infraestrutura— colaboram para incuti-lo entre as populações das principais cidades do país e do mundo. (Feiguin & Lima, 1995, p. 73)
Houve medo, mas houve também reações a ele. Surgiram diversas iniciativas para atrair a juventude para a arte, o lazer, o esporte etc. A ação cultural contra a violência se fortaleceu, tornou-se permanente e hoje atua contra o genocídio da juventude preta, pobre e indígena da periferia. Genocídio cometido, diga-se, pelas forças de segurança do Estado (Borges, 2015; Iglesias & Mesquita, 2016).
Essas iniciativas conseguiram, em cerca de 20 anos, tornar a região um celeiro de produção cultural, atrelando a necessária geração de trabalho e renda com os valores e propósitos da Economia Solidária, aqui entendida como um movimento social de resistência ao avanço das formas heterogeridas de produção (Esteves, 2014; Singer, 2002; Souza, 2003).
Há ali coletivos atuantes em todo o espectro da cultura, e também expandindo as fronteiras tradicionais deste campo. Como exemplo, o “Festival Percurso: juventude periférica gerando renda, trabalho e desenvolvimento local” reúne anualmente dezenas de coletivos culturais e grupos de economia solidária que, juntos, realizam uma grande festa popular, recuperando a cultura ancestral, de matriz africana e indígena, reinventando a cultura popular e, por consequência, valorizando a imagem que a periferia tem de si própria.
Gabriela Iglesias e Rafael Mesquita (2016), militantes da cultura popular periférica, afirmam que a arte, a culinária, a música, a moda, o artesanato, a poesia, a literatura “são manifestações simbólicas e concretas que compõem a identidade de um povo” (p. 90). Essa concepção entende o trabalho como manifestação da cultura e, ao mesmo tempo, a cultura como trabalho e vida, a possibilitar a produção de novos mundos e a reprodução da vida.
O poder de criar sobre absolutamente tudo ao nosso redor é o que nos move, e assim mudamos, criamos e recriamos nossa cultura. No fazer é que se diz o que se pensa e o que se pode fazer com o que se diz. Assim, se trava uma luta de forças, que tem como ferramenta o fazer cultural (...). Nesta perspectiva estamos para além de uma visão materialista de cultura, a entendemos como uma produção identitária do ser humano, como um modo de vida que valorizamos. Somos consumidores e produtores de cultura em distintos âmbitos da vida, todos os dias. (Iglesias & Mesquita, 2016, p. 92)
Nessa conjunção entre cultura, solidariedade e trabalho, surgem e ressurgem todos os dias diferentes coletivos que são entendidos ali como empreendimentos culturais solidários.
Atrelar cultura, solidariedade, trabalho e renda significa realizar, coletivamente, atividades econômicas a partir da valorização da própria cultura e, com isso, conseguir viver a cultura no cotidiano. Assim, por exemplo, um grupo de cabelereiros(as) que atua conjuntamente e valoriza a estética afro-brasileira vive dessa cultura e a recria cotidianamente. O mesmo ocorre com a alimentação, o vestuário etc. ampliando a noção de empreendimento cultural.
Em entrevista para Iglesias & Mesquita (2016), Cleberson Pereira, agente e gestor do Banco Comunitário União Sampaio, relaciona a origem de tais empreendimentos aos jovens formados no movimento cultural:
Ultimamente a gente vem trabalhando com os jovens, aqueles jovens que na época de 97 falavam que o Jardim Ângela, São Luís, o Capão Redondo eram o triângulo da morte, sem perspectiva para os jovens. Esses jovens se organizaram em movimentos culturais e agora eles não querem trabalhar dentro do sistema capitalista, o sistema em que eles se sentem oprimidos, que não podem criar, eles agora, com o conhecimento que têm da sua própria cultura, entendendo a cultura como um modo de vida... (Iglesias & Mesquita, 2016, p. 110)
Como veremos adiante, há atualmente na região coletivos e empreendimentos atuantes em diversos segmentos e, em alguns casos, há também redes de cooperação. Como exemplo, há coletivos que prestam consultoria em agricultura urbana para aquelas organizações sociais que possuem espaço para implantação de hortas comunitárias. Tais hortas, por sua vez, fornecem produtos para empreendimentos da alimentação que valorizam os sabores da cultura caipira ou de matriz africana. De outro lado, as hortas demandam a construção e instalação de cisternas, o que é realizado por outros empreendimentos da região.
Há exemplos parecidos em outras atividades, como na produção musical, no qual há empreendimentos que possuem e alugam estúdios, outros que produzem as artes e materiais gráficos, outros que lançam e divulgam artistas e bandas, promovem espetáculos etc. Quanto ao financiamento da cadeia cultural, esta cabe aos bancos comunitários.
O mesmo tipo de união ocorre entre os setores da reciclagem e da construção: empreendimentos de coleta fornecem entulho para a fabricação de tijolos que são comercializados por grupos que fazem, a preços populares, reformas financiadas pelo “crédito puxadinho” dos bancos comunitários.
As ações desses coletivos demandam serviços de artes visuais, comunicação, informatização, contabilidade etc., abrindo espaço para outros coletivos que vão surgindo e se estruturando. Ao mesmo tempo em que aumenta a complexidade das relações econômicas entre empreendimentos solidários, ampliam-se os potenciais de desenvolvimento local, pois trata-se de moradores trabalhando, produzindo, vivendo e consumindo na região.
Parece bastante natural que o mapa esteja no centro das abordagens territoriais participativas. Mas, que tipos de mapas utilizamos realmente nessas experiências para comunicar os dados, as informações e os conhecimentos? E com que objetivos?
Joliveau, 2008, p. 45
A escolha de um marco metodológico implica em um determinado fazer científico. Assumiu-se aqui que as pesquisas em ciências sociais são elas mesmas também relações e práticas sociais (Spink, 2008; Taylor & Bogdan, 1984/1987) estabelecidas entre pesquisadores e grupos de pessoas sobre os quais recaem seus interesses e, portanto, também sua responsabilidade ética (Schmidt, 2008). Partindo dessa concepção realizou-se um compromisso ético e político em prol dos protagonistas da economia solidária da região e elegeu-se, somente então, a pesquisa participante como marco metodológico.
A adoção de um método participativo, em que a construção do conhecimento acontece desde a perspectiva dos atores sociais envolvidos e em parceria com eles (Brandão, 1981/1999; Fals-Borda, 1985; Freire, 1981/1999), implicou tanto no reconhecimento do conhecimento prático (autóctone e tácito) dos protagonistas locais sobre a sua própria realidade sócio-laboral, quanto na legitimação da capacidade que têm para pesquisarem sua própria realidade, sozinhos ou em parceria com pesquisadores profissionais.
Sob o marco participativo, os integrantes de empreendimentos e organizações sociais locais se engajaram não somente como informantes ou interlocutores, mas como pesquisadores locais, parceiros do pesquisador acadêmico, não apenas partilhando seu conhecimento sobre a região, mas sobretudo produzindo novos conhecimentos sobre os atores sociais e as relações solidárias ali presentes. Pudemos então, provocados pelos objetivos da pesquisa, conhecer a economia solidária local desde a perspectiva de seus protagonistas e contando com seu apoio voluntário e intencional.
A pesquisa caracterizou-se como uma Pesquisa Ação Participante, com um desenho participativo da relação sujeito-objeto (fomos todos pesquisadores do mesmo objeto ou questão), e um desenho ativo da relação entre pesquisa, intervenção e produção de conhecimento. Tal atividade significa que o conhecimento sobre o objeto (a questão da pesquisa) foi produzido na interação social devida à intervenção realizada.
Para sua realização, combinamos alguns procedimentos de pesquisa —observação participante, mapeamento participativo, redação online (blog), análise de redes sociais e oficina de problematização— de modo a alcançar o objetivo de mapear e caracterizar os atores e as relações sociais que configuram a Economia Solidária na Zona Sul de São Paulo.
O primeiro ato da pesquisa foi a inserção dos pesquisadores na estação de pesquisa urbana de M’Boi2, onde foi feito o primeiro desenho ou esboço coletivo da pesquisa, em parceria com outros pesquisadores, leigos ou profissionais, atuantes na região. Seus trabalhos, contudo, efetivamente começaram com a prospecção de parceiros na Zona Sul. A princípio consultamos integrantes do Núcleo de Economia Solidária da Universidade de São Paulo (NESOL) e da Incubadora de Projetos da Prefeitura do Município de São Paulo que, unanimemente, recomendaram procurar a União Popular de Mulheres do Campo Limpo e seu Banco Comunitário União Sampaio. Foi o que fizemos.
Nas muitas reuniões que ocorreram na UPM houve a apresentação da proposta da pesquisa e das intenções do pesquisador, a reflexão sobre as possibilidades de atuação conjunta e também o desenho coletivo dos procedimentos e instrumentos de pesquisa, inclusive com a definição de que a técnica de mapeamento participativo, a ser desenvolvido conjuntamente, seria posteriormente utilizada pela UPM em seus projetos. Esse período de apresentação mútua, negociação e desenho coletivo da pesquisa durou 3 meses (setembro a novembro de 2015) e concretizou a parceria que viabilizou a pesquisa e que assina este trabalho.
Para a pesquisa de campo elaboramos um roteiro das “oficinas de mapeamento”, incluindo uma conversa (entrevista coletiva) e a própria atividade de mapeamento. O roteiro contemplou os seguintes aspectos: informações de identificação e caracterização do coletivo ou empreendimento3; perguntas sobre sua história, motivações, perspectivas e desafios e; finalmente, a rememoração dos parceiros e inclusão deles no mapa. Como critério de inclusão dos parceiros, definimos que seriam incluídos apenas aqueles necessários para a realização cotidiana das atividades do coletivo visitado.
Considerando que existem diversos procedimentos de mapeamento ou cartografia participativa, tais como o desenho coletivo de croquis ou “mapas mentais”, o mapeamento participativo com bases cartográficas e/ou de sensoriamento remoto, o mapeamento eletrônico utilizando sistemas de informações geográficas (SIG ou GIS, em inglês) etc., elegemos o mapeamento com base cartográfica (Silva & Verbicaro, 2016) e utilizamos um mapa de ruas da cidade de São Paulo.
Para as oficinas carregamos um canudo com um mapa não muito grande (tamanho A2), cerca de 30 pinos de várias cores (utilizados para representar o empreendimento visitado e seus parceiros), linhas de cartolina colorida (para representar as conexões) e algum material gráfico. Ou seja, utilizamos um suporte barato e leve o suficiente para ser transportado, assim como complexo apenas o suficiente para alcançar os objetivos da pesquisa.
Entre novembro de 2015 e abril de 2016 realizamos treze oficinas de mapeamento participativo. Iniciamos o trabalho pela listagem dos coletivos locais (com atuação na economia solidária) mais lembrados pelos integrantes da UPM, e depois continuamos por aqueles que foram, posteriormente, citados nas oficinas de mapeamento.
Conforme o roteiro, começamos cada entrevista pela conversa sobre o local visitado, seguida da rememoração e listagem de seus parceiros; continuamos pela confecção coletiva do mapa da rede de relações e finalizamos com uma breve conversa sobre a rede revelada no mapa, suas características, potenciais, significados e desafios.
A apresentação detalhada de cada um dos treze coletivos que acolheu e realizou uma oficina de mapeamento pode ser consultada no blog da pesquisa, disponível on-line. De modo geral, trata-se de empreendimentos solidários de educação e cultura popular, assistência social, produção artística, jornalística e cultural, reciclagem de resíduos urbanos, construção, agricultura urbana, comércio e finanças solidárias. Em termos formais, a maioria deles é constituída como associação ou existe como projeto de alguma associação, vários são coletivos formados por Microempreendedores Individuais (MEI), um é um equipamento público municipal e um é uma cooperativa.
As oficinas foram fotografadas, mas não gravadas, e ao fim de cada uma fotografávamos o mapa da rede de relações ali criado, como demonstra a Figura 1.
Figura 1
Fotos da oficina de mapeamento realizada na UPM em 27/03/2016
Sobre o processo de rememorar os parceiros e localizá-los no mapa para, assim, tecer a rede de relações do coletivo visitado, vale dizer que esta não foi uma atividade mecânica, pois
Intervir no mapa significa ‘certificar’ fatos e tomar decisões. Ao mesmo tempo, o mapa é a realização no papel e na tela desta outra realidade abstrata que é esse território comum, que se constrói na negociação. Este mapa não é, portanto, jamais fechado; é um processo, um mapa in progress. (Joliveau, 2008, p. 46)
O mapeamento foi produtor de significação. No momento de colocar o pino sobre o papel foram evocados os atributos de cada parceiro, houve tomada de consciência sobre a qualidade atual de cada relação e, mesmo dentro dos critérios de inclusão, foram tomadas decisões sobre quem e porque incluir. Além disso, os mapas das redes de relações foram explicados pelos seus artífices, o que atribuiu características e significados a cada rede de relações. Isto se justifica, pois
Se um mapa, por vezes, vale mais que um longo discurso, ele, como assinala Cambrézy (1995), não apenas não pode substituir qualquer discurso, mas, além disso, ele jamais se basta, devendo ser sempre acompanhado por um comentário. O mapa que fala por si mesmo, o mapa puro e acabado para ser lido, não existe. (...) O mapa enquanto representação espacial é indissociável do discurso de seu produtor. (Joliveau, 2008, p. 49)
A figura 2 apresenta os treze mapas das redes de relações dos empreendimentos visitados.
Figura 2
Fotos dos treze mapas das Redes de Relações
Embora todas as redes de relações mapeadas tenham por base o mesmo território, pode-se observar que cada rede tem suas características em termos de número, posicionamento, concentração ou dispersão dos parceiros no território.
Para cada oficina foi produzido um relatório (cuja informação corresponde aos itens do roteiro), o mapa da rede de relações (cujo registro foi fotográfico), fotos e um post no blog da pesquisa. Tais produtos foram tratados como fontes primárias da pesquisa e estão disponíveis no blog “Conexões da Zona Sul”. O conjunto das oficinas compõe uma espécie de atlas ou portfólio das experiências de economia solidária na região no período da pesquisa.
Embora o blog (figura 3) não estivesse previsto inicialmente, ele foi criado logo após a primeira oficina (novembro de 2015) para incentivar e facilitar a continuidade do diálogo com os empreendimentos onde foram realizadas as “oficinas de mapeamento”. O blog hospeda e disponibiliza online todas as informações da pesquisa, nas seguintes abas: Oficinas de mapeamento; Informações do projeto; Análise das Redes Sociais; Equipe; Referências e Links.
Figura 3
Capa e abas do blog “Conexões da Zona Sul”
Conforme as oficinas foram realizadas, seus respectivos relatórios foram postados no blog na aba Oficinas, sempre com a mesma estrutura: o que é? O que faz? Como surgiu? Até onde querem chegar? Foto da Rede. O que a rede representa? Informações de contato.
Criado em novembro de 2015, o Blog contava em 31/03/2017 com um total de 3.244 visualizações realizadas por 1.116 visitantes individuais advindas de 11 países, sendo 2.856 visualizações advindas do Brasil, 307 dos EUA, 57 de Portugal, 8 da Bélgica, 4 da Espanha, 2 da Rússia, 1 da África do Sul, 1 da Suíça, 1 de Angola, 1 de Cabo Verde e 1 de Moçambique. O número de visualizações demonstra o potencial comunicativo do uso desse tipo de mídia para a comunicação social e para a difusão científica, mesmo considerando que o blog está disponível apenas em português.
Realizada a décima oficina, iniciamos a etapa de análise de redes sociais, transpondo as informações dos mapas para diagramas de redes sociais, por intermédio de planilhas eletrônicas e do software online Lynks. A figura 4 mostra os treze diagramas criados, um para cada rede de relações.
Figura 4
Diagramas das treze redes de relações sociais
Já a figura 5 apresenta o diagrama da Rede das Redes, nomeada de “Conexões da Zona Sul”, que foi criado com o agrupamento dos dados de todas redes singulares.
A análise dessa grande rede social possibilitou visualizar em conjunto os 150 coletivos incluídos como parceiros, identificar um total de vinte conectores sociais territoriais (coletivos com pelo menos 3 conexões no território) e um total de 229 conexões estabelecidas entre eles. É interessante notar que houve a identificação de sete conectores sociais que não foram citados na listagem inicial da pesquisa (realizada em conjunto com a UPM) e, portanto, não foram contatados para a realização das oficinas de mapeamento.
Figura 5
Diagrama da Rede das Redes, intitulado de “Conexões da Zona Sul”
Como etapa final, em junho de 2016 foi realizada uma “oficina de problematização”. Essa atividade teve o intuito de analisar e atribuir, coletivamente, significados aos resultados da pesquisa. Estiveram presentes 14 pessoas, sendo sete representantes de empreendimentos visitados, quatro de universidades, duas do local que cedeu espaço para o evento e uma de uma organização não governamental externa, mas que atua na região.
Na atividade, primeiramente foram apresentados os objetivos e a metodologia do projeto. Em seguida, representantes de cada local visitado apresentaram seus empreendimentos utilizando o blog e falaram sobre a experiência de participação nas oficinas de mapeamento e também sobre o mapa da rede das relações de seus empreendimentos.
Sobre as oficinas de mapeamento, os participantes ressaltaram: (a) a importância do método participativo, que envolveu os participantes em uma tarefa significativa e útil para eles; (b) a relevância do produto de cada oficina, pois cada coletivo ficou imediatamente com a foto do mapa de suas relações; (c) a importância da construção do blog da pesquisa (assim como da rápida postagem do relatório de cada oficina), o que deu visibilidade para a rede de relações de cada local mapeado, possibilitando o conhecimento recíproco das redes uns dos outros; (d) a possibilidade, tendo o mapa e o blog, de cada empreendimento aprimorar o conhecimento de sua posição e situação na região.
Para a análise das redes sociais de cada coletivo, como também do conjunto deles, foram apresentados os mapas produzidos em cada oficina, seguidos da apresentação dos correspondentes diagramas das redes sociais. O último diagrama apresentado, nomeado como “Conexões da Zona Sul” (Figura 5), representa o conjunto da “rede de relações solidárias” da Zona Sul, contendo os 150 locais mapeados nas oficinas.
Em seguida foi proposto ao grupo que conversasse sobre os significados da rede, seus potenciais, e os desafios que ela precisa enfrentar e superar para alcançá-los. Algumas “respostas” emergiram da conversa, produzindo significados sobre a rede: (a) a rede demonstra que há diversidade na Zona Sul e que, portanto, é possível contratar na região quase tudo aquilo que é contratado fora, seja por hábito, comodidade ou economia; (b) a rede já possibilita que aconteçam atividades coletivas e, quando ativada pelos parceiros, fortalece a economia local; (c) o conhecimento da rede pelos elos (atores locais) possibilita a sua ampliação e o fortalecimento de cada elo; (d) o conhecimento da rede pelos atores locais pode, inclusive, facilitar a construção de “projetos setoriais”. Algumas possibilidades de projetos setoriais foram citados ainda na oficina: Cultura e educação popular; Reciclagem de resíduos urbanos; Agricultura urbana e cultura alimentar; e Construção sustentável.
Sobre os desafios da rede, os presentes disseram que: (a) para que a rede se dinamize, é necessário o conhecimento, reconhecimento e legitimação dela pelos próprios atores locais, além de uma estratégia de comunicação entre os integrantes da rede; (b) para que ela se amplie e se fortaleça, é preciso dar visibilidade a seus integrantes, tanto para a própria região quanto externamente.
Estamos cientes de que, se por um lado a rede aglutina os empreendimentos, por outro ela apresenta um conjunto de situações complexas sobre as quais os atores sociais locais possuem limitada governabilidade. A complexidade de muitas dinâmicas do território associada à instabilidade do comportamento do poder público, assim como à vulnerabilidade dos coletivos informais da Economia Solidária (SENAES, 2013) resulta, muitas vezes, em que as relações mantidas entre tais atores não são suficientemente estáveis e fortes para garantir a durabilidade das conexões ou a sustentabilidade das redes no território.
Este trabalho combinou vários métodos qualitativos de pesquisa social (observação participante, mapeamento ou cartografia participativa e análise de redes sociais) no desenvolvimento de um método de mapeamento participativo capaz de encontrar e situar coletivos e relações sociais no âmbito da economia solidária. Por meio da memória socialmente evocada, o método demandou dos participantes das oficinas de mapeamento a rememoração, caracterização e localização no mapa tanto de empreendimentos e organizações formais, quanto de coletivos e empreendimentos informais, pequenos grupos e até microempreendedores individuais atuantes na zona sul da cidade de São Paulo.
A transposição das informações da plataforma cartográfica (mapas) para a de Análise de Redes Sociais — ARS, utilizando um software específico para tal finalidade (Lynks), possibilitou verificar a existência de um grande número de relações, assim como demonstrou a presença de coletivos que atuam como importantes conectores sociais no território, fundamentalmente devido à legitimidade social e à reputação deles, o que, por sua vez, parece decorrer da capacidade que eles possuem para propor e realizar projetos, articular parcerias, angariar recursos etc., o que pode ser atestado pelo currículo das realizações deles, disponível no blog da pesquisa.
A ideia de que alguns coletivos atuam como conectores sociais territoriais poderá contribuir para o entendimento de como se articula a formação política e cidadã da juventude nos temas relevantes para a região, ajudando a demonstrar como ocorre a disseminação pelo território tanto dos temas quanto das práticas de economia solidária entre os jovens da região, sobretudo na área da cultura. Embora demande novas pesquisas, é notável que tais práticas são compartilhadas pela juventude local na luta cotidiana por sua autonomia (política e social) e sobrevivência (econômica e cultural), constituindo importantes marcas identitárias do território, como demonstra o conteúdo da produção artística e cultural de diversos grupos (maracatu, samba, capoeira, dança de rua, hip-hop, rap etc.).
Por fim, relembrando que o objetivo geral da pesquisa foi identificar, mapear e caracterizar as relações solidárias mantidas entre pessoas, coletivos, organizações sociais e empreendimentos que compõem a Economia Solidária da Zona Sul da cidade de São Paulo, e considerando que, nas oficinas de mapeamento participativo os parceiros identificaram e localizaram no mapa da região um total de 150 organizações e empreendimentos (vinte deles posteriormente caracterizados como conectores sociais territoriais), além de um total de 229 relações solidárias, podemos afirmar que, juntos, esses empreendimentos, organizações e relações compõem a “rede de relações solidárias” que, a um só tempo, abriga, apoia e realiza a Economia Solidária dessa parte da cidade.
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