Uso de drogas, famílias e práticas de cuidado: interpelações às políticas públicas

Use of drugs, families and care practices: public policy questions

  • Martha da Silva Figueiró
  • Magda Dimenstein
As concepções hegemônicas sobre drogas, os pertencimentos sociais das famílias e as diretrizes postas pelas políticas reverberam nas práticas de cuidados e na maneira de conceber os problemas relacionados ao uso de drogas no contexto familiar. O presente estudo se propõe a discutir o modo como as políticas públicas têm funcionado em relação à atenção às famílias que sofrem com os problemas decorrentes do uso de drogas e os efeitos nas práticas de cuidado das mesmas. Para tanto, realizou-se um estudo com duas famílias com características sócio econômicas distintas. Para construção dos dados foram feitas entrevistas abertas, observação e registro em diário de campo. Identificou-se que a ausência de suporte adequado na rede, sobretudo nos serviços substitutivos, reduz as possibilidades potencializadoras de autonomia e emancipação nas práticas de cuidado operadas pelos familiares.
    Palavras chave:
  • Famílias
  • Drogas
  • Políticas públicas
  • Práticas de cuidado
The hegemonic conceptions about drugs, the social belongings of the families and the guidelines put by the public policies reverberate in the way of conceiving the problems related to the use of drugs and in the practices of care in the familiar context. The present study, carried out through the monitoring of two families of distinct socioeconomic conditions and who suffer from problems arising from the use of drugs by one of its members, proposes to discuss how public policies have impacted care practices and handling these situations. An average of 25 meetings were held with each of them. The data analyzed were obtained through open interviews, observation and field diary. Differentiated modes of understanding and coping with the problem were identified based on the social belonging of the families and that the lack of adequate support in the network, especially for substitutive services, reduces the possibilities for empowering and emancipating family care practices.
    Keywords:
  • Families
  • Drugs
  • Public Policy
  • Care Practices

1 Introdução

Esse artigo tem como objetivo discutir o modo como as políticas públicas têm funcionado em relação à atenção às famílias que sofrem com os problemas decorrentes do uso de drogas e os efeitos nas práticas de cuidado das mesmas.

O consumo de substâncias psicoativas faz parte da história da humanidade para fins diversos: medicinais, religiosos e até mesmo recreativos (Escohotado 1996). No entanto, nas últimas décadas do século XX, o uso de algumas drogas começa a ser comumente associado a problemas de saúde, aumento da criminalidade e da violência. A lógica proibicionista, que surge com muita força na década de 1970, fortalece essa visão e fundamenta a ideia de que a droga deve ser, prioritariamente, uma questão de justiça e segurança pública, e as intervenções frente às problemáticas relacionadas ao seu uso devem ser de caráter repressor. Pesquisas recentes demonstram que o uso de drogas é um fenômeno complexo e que pode afetar a sociedade de várias maneiras, atingindo não só seus usuários, mas suas famílias e a sociedade de maneira geral. Destacam que a origem do problema não está na substância em si, mas, sobretudo, nas condições de vida dos sujeitos (Souza, 2016), deixando clara a necessidade de intervenções de caráter intersetorial, ou seja, que articulem saberes e experiências na elaboração, aplicação e avaliação de ações, objetivando atingir resultados integrados em situações ditas complexas.

Quanto ao cuidado ofertado no campo das políticas sociais, segundo Rita Lima (2012), existe uma pluralidade de situações que chegam às equipes de trabalho e que devem ser apreendidas de maneira transversal, pois, do mesmo modo que se relacionam com o uso prejudicial de drogas, tocam questões ligadas ao trabalho, tramas familiares, violência, relações conjugais, evidenciando a produção infinita de histórias singulares e coletivas inscritas nos contextos familiares e comunitários.

Nesse sentido, parte-se do pressuposto de que o uso de drogas é um fenômeno de abordagem intersetorial, que transversaliza com questões ligadas à rede de garantias de direitos, justiça, cidadania, trabalho, renda, raça e classe social, composto pelos entrelaçamentos de diversos setores da política pública como, saúde, assistência social, cultura habitação, lazer, dentre outros. Portanto, interessa conhecer as necessidades das famílias em termos de cuidados relacionados ao uso problemático de drogas e o que tem sido li>ofertado por tais políticas. Nosso intuito é destacar as interfaces entre as concepções hegemônicas sobre drogas, os pertencimentos sociais das famílias e as diretrizes postas pelas políticas que reverberam nas práticas de cuidados e na maneira de conceber os problemas relacionados ao uso de drogas no contexto familiar.li>

li>Parali> subsidiar a reflexão sobre a relação entre família e os modos de cuidados em relação aos problemas decorrentes do uso de drogas e suas interpelações com as políticas públicas, vamos tomar como referência o caso de duas famílias que foram acompa

nhadas durante o processo de trabalho de campo de uma pesquisa mais ampla que vem sendo desenvolvida em nível de doutorado.

Do ponto de vista teórico-metodológico, a análise institucional e a cartografia, esta última a partir de uma leitura esquizoanalítica, foram as referências utilizadas na construção, manejo e análise dos casos que serão apresentados. Portanto, iremos destacar alguns conceitos caros a essas perspectivas para nortear a discussão da problemática família, uso de drogas e práticas de cuidado e suas interpelações no campo das políticas sociais.

2 Uso de drogas, famílias e práticas de cuidado: articulações a partir da Análise Institucional e da Cartografia

A análise institucional é uma área de saber que emerge na década de 1960, na França, com o suporte da pedagogia institucional, da psicoterapia institucional e de referências advindas dos movimentos sociais, constituindo um período conhecido como “maio de 68”. Segundo Georges Lapassade e René Lourau (1972) “a análise institucional tende a designar um método de análise social com base em observação e documentos, centrada no conceito de instituição” (p. 148). Para esses autores a instituição é um conceito que pode ser entendido como “um conjunto de forças sociais em atuação numa situação aparentemente regida por normas universais em vista de uma função precisa (a produção, a educação, a saúde, as reivindicações econômicas, etc.)” (p. 145). A cartografia é um método de pesquisa-intervenção que afirma a indissociabilidade entre o objeto de pesquisa e o pesquisador, assim como entre conhecimento e transformação da realidade. Para Eduardo Passos e Regina Benevides (2009) toda pesquisa é intervenção, o que significa que pesquisar é dar um mergulho na experiência que agencia sujeito e objeto, teoria e prática. “A cartografia como método de pesquisa é o traçado desse plano da experiência, acompanhando os efeitos do próprio percurso de investigação” (p. 18). Nesse sentido, o processo de investigação não busca um saber pré-definido, mas sim um saber que se produz no próprio ato de pesquisar. O movimento institucionalista também indica essa direção ao propor que não se deve conhecer para transformar, mas a própria transformação produz o conhecimento.

Existem vários pontos de intersecção entre a análise institucional e a cartografia que tornam a aliança entre elas valorosa, segundo alguns autores brasileiros. li>A articulação entre a AI e a cartografia é uma invenção que se dá notadamente no Brasil. O método da cartografia se fundamenta em muitos conceitos da Análise Institucional, e sua gênese teórica foi bastante marcada pela vinda de Felix Guattari para o Brasil e sua obra com Suelly Rolnik em 1986, "Micropolitica: cartografias do desejo", assim como das produções de teóricos como Eduardo Passos e Regina Benevides de Barros.li> Ambas, além de entenderem o processo de produção de conhecimento como pesquisa-intervenção, estão atentas aos processos de subjetivação e não tomam o objeto de pesquisa a partir de algo dado e prefixado, mas sim como resultado de um movimento incessante entre forças instituídas e instituintes (Nascimento e Tedesco, 2013). Segundo esses mesmos autores,

Ambas propostas acreditam na indissociabilidade entre sujeito e objeto, seja pela análise das implicações (Análise Institucional), seja na perspectiva de indissociabilidade sujeito/mundo (Cartografia). Acompanhando o movimento do objeto a ser pesquisado, o pesquisador habita o plano de forças que aí se apresenta e, ao sofrer os efeitos dele, passa a ser produzido no próprio desenho a ser traçado e conhecido, desse modo, conhecer difere da atividade de obter e acumular informações, efetivada por um pesquisador neutro, apartado do objeto a ser estudado. (p. 600)

O que a cartografia busca, tendo como base uma leitura esquizoanalítica, é rastrear as linhas que compõem a realidade, mapear a exterioridade de forças que constituem os sujeitos. Essa exterioridade de forças que atua sobre os sujeitos, age rizomaticamente. O rizoma é definido pela biologia como uma raiz que cresce horizontalmente e polimorficamente, sem direção ou sentido definido. Guilles Deleuze e Felix Guattari (1995) “roubam” essa definição da botânica para aplicá-la à filosofia. O rizoma então ganha um sentido ético-estético-político, sendo assim um modelo de resistência no campo da construção do conhecimento. Ele se diferencia da imagem do conhecimento como árvore, dicotômico (certo e errado, bem e mal) que na modernidade foi utilizada para representar o modelo cartesiano de produção do conhecimento, mostrando assim a necessidade de ordenar hierarquicamente a realidade para poder conhecê-la. O rizoma não possui desenvolvimento linear, nem hierárquico. Um rizoma pode ser quebrado, rompido em qualquer parte e em boa proporção, sem que ele deixe de recriar-se.

O rizoma trata de linhas e não de formas concluídas. As linhas que constituem o rizoma são linhas de intensidade que podem se unir a outras e produzirem novos rizomas. Essas seriam as linhas de fuga, que fogem de um caminho prescrito para constituírem o novo. Essas conexões entre linhas rizomáticas constituem o que chamamos por agenciamentos. Para Gregório Baremblitt (1992/2012), agenciamento é uma montagem que atualiza virtualidades — processos inventivos, novas criações, passagem do atual para o que pode vir a ser - e que produz o novo a partir de uma leitura de imanência, na qual convivem lado a lado modelos e possibilidades de invenção.

Nesse sentido, pode-se dizer que no trabalho de campo, a relação com os participantes deve ser de agenciamento. É importante ressaltar também que o rizoma não é fechado em si. Ele é transversalizado por outras linhas e sempre busca outras conexões. Ele pode explodir em todas as direções. Os sujeitos seriam então afetados por essa exterioridade de forças que conectam a subjetividade ao coletivo, ao heterogêneo, de maneira processual (Romagnoli, 2009).

As linhas que compõe a subjetividade podem ser duras, flexíveis ou de fuga. As linhas duras classificam e sobrecodificam os sujeitos. As linhas flexíveis possibilitam afetações, estão ligadas a zonas de intermediação e podem gerar agenciamentos, e as linhas de fuga se relacionam com a conexão com o “fora”, com a produção de novas formas de vida.

No que diz respeito às linhas que compõem os processos de subjetivação em relação às drogas, as linhas duras e estanques seriam aquelas que estão ligadas a reprodução do medo com relação as drogas, à moral com relação aos significados sociais do seu uso, às fórmulas psiquiátricas e religiosas com relação ao seu cuidado e demais imposições sociais que cristalizam o problema em um círculo de sofrimento e exclusão social. As linhas flexíveis e maleáveis, ou até mesmo as de fuga, seriam conexas aos modos de cuidado que produzem uma saída da mortificação e de uma relação sofrida com a droga e distante de possibilidades de ressignificação mais potentes e produtoras de vida, capazes de produzir novos territórios existenciais.

A subjetividade é um sistema complexo e heterogêneo constituído pelo sujeito e pelas relações que ele estabelece. Essa exterioridade de forças que constitui os processos de subjetivação configura planos, superfícies, que podem ser chamadas de planos de organização e planos de consistência. No plano de organização estão as forças ligadas a reprodução das normas sociais, a estratificação da realidade onde estão presentes as linhas duras e estanques. No plano de consistências estão as forças ligadas a produção do novo através dos agenciamentos das linhas flexíveis e de fuga. Esses dois planos são simultâneos e coexistem sem hierarquia nem determinação (Romagnoli, 2010).

A leitura esquizoanalítica dos processos de subjetivação ajuda a entender a família como objeto de pesquisa, pois segundo Roberta Romagnoli (2006), “a esquizoanálise nos permite examinar a família não só através do modo como os indivíduos se organizam e se socializam, mas também como um coletivo com capacidade para transformar, para deixar irromper novos territórios existenciais” (p. 308). Portanto, o grupo familiar se constitui a partir das relações entre seus membros e o mundo externo, sendo transversalizado por forças de reprodução de normas e valores sociais, como também por forças que a partir dos afetos podem ser agenciadas para produção do novo, gerando formas de vida criativas e rupturas de sentido.

Tomando como exemplo a pesquisa de Romagnoli (2006) que procurou estudar os territórios existenciais e subjetivos das famílias de portadores de transtorno mental, as famílias aqui estudadas foram compreendidas a partir das linhas duras e estanques que as constituem, mas também pelas linhas flexíveis e maleáveis que compõem seus processos criativos e produção de novos modos de vida com relação ao uso de drogas por um dos seus familiares, e que escapam da reprodução do sofrimento gerada pela relação que se tem com a droga de maneira hegemônica. A seguir, procurar-se-á compreender como esse processo se dá a partir da relação entre as práticas de cuidados das famílias e as políticas sociais sobre drogas.

3 Método

Com o objetivo de subsidiar a reflexão sobre a relação entre as famílias e os modos de cuidados para os problemas decorrentes do uso de drogas e a relação com as políticas sociais, realizou-se uma pesquisa de cunho qualitativo. Participaram da pesquisa duas famílias. O número de duas famílias foi considerado suficiente para o estudo, devido ao rico universo que cada grupo familiar possui.

A escolha das famílias participantes da pesquisa foi feita a partir da minha experiência profissional como docente e pesquisadora da temática em questão. Uma delas, foi identificada a partir da demanda de ajuda de uma aluna acerca dos problemas relacionados ao uso de drogas por um dos seus irmãos. Esse irmão será aqui chamado de maneira fictícia por Pedro. A segunda família, surgiu a partir da experiência de atenção como orientadora de estágio na área e chamaremos de família de Joana. Na época, Joana, recebia acompanhamento psicoterápico individualizado no serviço escola do estabelecimento de ensino superior em que trabalho como docente. Joana, recebeu alguns atendimentos individuais que culminaram em um aconselhamento psicológico realizado por uma estagiária, e cujo caso foi supervisionado academicamente por mim. Tendo acesso às informações sobre o caso, em que a queixa inicial relacionava-se ao sofrimento psíquico vivenciado pela irmã mais velha devido ao uso de drogas (maconha e álcool) e pela irmã mais nova (Joana, de apenas 15 anos na época), achei pertinente convidar essa família para participar do estudo.

Em ambas famílias participantes, considerou-se como membros, parentes e pessoas que residem em outros domicílios, incluindo diferentes localidades de bairros, cidades e estados, fugindo de qualquer possibilidade de afirmar a definição de família composta apenas pelas pessoas que vivem na mesma casa. Esse momento de escolha das famílias e a seguinte contratação para o estudo, de ambos os casos, deve ser pensado cuidadosamente. É importante ressaltar que o processo de contratação foi atravessado por estabelecimento de uma relação de confiança. Essa ideia se respalda no que Christian Sade, Gustavo Ferraz e Jerusa Rocha (2014), afirmam ao falar da confiança na pesquisa: “o que se busca na pesquisa de campo é a constituição de um plano de experiência compartilhada, em que as singularidades dos encontros que se fazem presentes no campo concorram para multiplicar as possibilidades de conexões entre sujeitos e mundos” (p. 68). Nesse sentido, a confiança seria muito mais a abertura ao plano da experiência e o aumento da potência de agir, do que somente o resultado da formalização de um contrato ou da imposição de regras. Aspectos éticos e metodológicos estão intrinsecamente relacionados e fazem parte da processualidade do trabalho de pesquisa cartográfica.

O processo de entrada em campo transforma a realidade e produz um campo comum e heterogêneo que aqui se buscará relatar com o objetivo de iluminar as múltiplas linhas que compõe a realidade pesquisada. Portanto, para realizar o acompanhamento das famílias participantes foi escolhida a estratégia de visitas domiciliares, acompanhadas inicialmente pelo uso de entrevista semiestruturada, que continha perguntas sobre a organização do grupo familiar, as consequências do uso de drogas na família e as estratégias encontradas pelo grupo familiar para lidar com a questão. As entrevistas serviram de estratégia de contato e de aproximação inicial com seus membros e por isso foi utilizada apenas nos primeiros encontros da pesquisa. Tendo clareza das limitações da ferramenta, bem como a certeza da necessidade de imersão e aprofundamento relativos ao trabalho de campo, agregou-se ao processo de construção de dados o uso de mais duas ferramentas importantes no trabalho de campo em pesquisa qualitativa: a observação participante e o diário de campo (Lourau, 2004). Além disso, a análise de implicações (Paulon, 2005) deve acompanhar todo processo de pesquisa-intervenção, pois pensar sobre as condições que circunscrevem o ato de pesquisar é indispensável.

Foi acordado com as famílias a realização de visitas domiciliares com frequência quinzenal. Os encontros com as famílias tiveram início em outubro de 2015 e perduraram até maio de 2017. Os horários dos encontros eram combinados a cada visita e de acordo com a rotina familiar, de maneira que pudessem priorizar a presença do maior número de membros das famílias dispostos a participar diretamente do processo. Como acordado, para além da finalidade de produzir informações relevantes para a construção do estudo, o acompanhamento familiar estava aberto a sua possibilidade terapêutica, constituindo-se como um espaço de fala e problematização acerca dos problemas da família relacionados ao uso de drogas de um de seus membros. Portanto, a rotina de encontros poderia variar entre encontros grupais e individuais, a depender das demandas do grupo familiar, ao se sentirem mais ou menos a vontade em fornecerem informações, ou construírem relatos na presença, ou não, de outros membros da família.

Ao total realizou-se uma média de 25 encontros com cada uma das famílias, entre encontros grupais e individuais. A finalização dos encontros deu-se a partir do momento que foram construídas informações suficientes para possibilitar as análises planejadas. Apesar de ter sido um processo gradativo, foi agendado um último encontro com cada uma das famílias para explicar a finalização, ouvir feedback de seus membros a respeito do processo e dar encaminhamentos para que houvesse continuidade da problematização das questões familiares a respeito da droga e suas relações com as instâncias de suporte e acolhimento.

4 Análise e Discussão dos Resultados

Apesar das duas famílias vivenciarem problemas decorrentes do uso de drogas por um de seus membros, elas apresentam elementos muito distintos uma da outra. A família de Pedro é de classe média que apresenta recursos financeiros suficientes para procurar suporte no setor privado. Ele vive com seus pais funcionários públicos e uma irmã mais nova estudante. Pedro tem uma filha, que na época da pesquisa tinha a idade de nove anos. Atualmente, sua filha vive com a mãe em outra cidade e o vínculo com o pai é bastante fragilizado devido aos problemas relacionados ao uso de drogas vivenciados pela mãe da criança na época do casamento com Pedro. Já a família de Joana tem dificuldades financeiras, vive em um bairro da periferia da cidade e depende dos serviços públicos da rede de políticas sociais. Joana, na época do estudo vivia com sua mãe, com a irmã mais nova adolescente, seu marido e sua filha de um casamento anterior. Joana e seu marido são os responsáveis pelo sustento do grupo familiar. Dentre as características a serem discutidas e analisadas nesse estudo serão elencados os seguintes eixos de análise: nível socioeconômico e acesso a rede de cuidados.

O nível socioeconômico é um fator chave para pensar a interface da problemática das drogas e os percursos das famílias na implementação de estratégias de cuidado aos problemas decorrentes do seu uso. As linhas duras são as responsáveis pelos grandes cortes duais, como ser rico ou ser pobre, por exemplo. Por serem duais não consideram nuances e variações e o seu princípio é de estancamento do desejo em determinadas formas de vida. Apesar de alguns estudos sinalizarem que não existe influência do nível socioeconômico e o consumo de drogas (Pratta e Santos, 2007), não se pode negar que a pobreza acaba sendo um fator que expõe o usuário de drogas a maiores riscos com relação ao seu consumo, afetando, por exemplo, as possibilidades de acesso ao cuidado relacionados a problemas decorrentes do uso de substâncias, dificultando processo inventivos que possam mudar a situação. Como afirmam (Paiva e Costa, 2017), grupos definidos por recortes como gênero, raça e classe social terão dificuldades maiores na luta pelo poder na sociedade e acabam tendo uma inclusão precária nos espaços sociais pautados pela conjuntura capitalista. Essa organização hegemônica do socius se dá pela oposição entre os eixos que organizam as diferenças e os iguais de maneira hierárquica e corporativa, respectivamente, de forma binarista e dicotômica, dificultando a abertura para processos inventivos que questionem as formas instituídas de vida.

A família de Pedro tem recursos suficientes para investir em modalidades terapêuticas diversas, como psicoterapia, e até mesmo internações em comunidades terapêuticas (principal estratégia adotada em períodos de crise), podendo ainda oferecer investimento em faculdades particulares, práticas de atividades físicas e lazer de diversas maneiras.

Embora a droga de abuso ter sido o crack e Pedro ter vivido situações de vulnerabilidade graves como uma prisão, envolvimento com crimes, e vivenciado rompimentos de vínculos afetivos com amigos, uma separação e até mesmo o afastamento da sua filha após crise conjugal, ele encontrava junto a seus pais, tios e irmãos, acolhida e suporte tanto para intervir em momentos mais graves de sua relação com a droga, quanto na tentativa de ajudar a não se envolver com problemas que agravassem seu quadro psicossocial em períodos de abstinência. Apesar de ter uma filha, Pedro nunca precisou trabalhar para garantir o sustento da mesma recebendo ajuda financeira da família, e além disso, a oferta de possibilidades de trabalho e estudo sempre eram oferecidas por seus familiares. Esses elementos são aqui apontados para mostrar que no caso de Pedro, as condições socioeconômicas se relacionam com as possibilidades de cuidado, apoio e suporte familiar traçadas, que podem ativar as linhas flexíveis e possibilitar a construção de um novo território com outras relações com o uso de drogas. Sua mãe e irmã relatam que nos períodos mais críticos do uso de crack, Pedro chegou a passar dias longe de casa sem dar notícias aparecendo apenas quando precisava de refúgio alimentação ou mesmo descanso.

Uma das consequências mais graves relacionadas ao uso de drogas foi seu envolvimento com atividades criminosas envolvendo, inclusive, uma prisão em outro estado. Observa-se aqui um exemplo muito claro do conceito de atravessamento, drogas e prisão se colocam como duas instituições que se interpenetram efetuando o controle sobre os corpos. Para Gregório Baremblitt (1992/2012), o atravessamento considera as dimensões socais que possibilitam a reprodução da sociedade e impedem a transformação. Mesmo nesses momentos, Pedro pode contar com o apoio integral da família, recebendo visitas no presídio e investimento com apoio judicial, que permitiu responder ao processo em liberdade depois de dois meses encarcerado. O apoio financeiro e afetivo da família é apontado por Pedro e demais membros do grupo familiar como fundamental na proteção à vida e viabilização de cuidados necessários na busca pela superação dos problemas relacionados ao uso de drogas. Depois de quase 20 anos usando drogas praticamente sem interrupção, Pedro passou um período de dois anos abstinente. Durante esse período Pedro contou com o apoio de seus pais, investindo em sua educação, sendo matriculado em um curso universitário de direito, — o qual havia sido interrompido anteriormente em momentos críticos do seu uso de drogas —, em atividades físicas e atendimentos psicoterápicos, na tentativa de operacionalizar o cuidado aos problemas decorrentes do uso de drogas.

Marina Garcia (2016) em um estudo sobre usuários de crack levou em consideração o nível sócio econômico dos participantes. A pesquisa constatou que usuários de crack de classe média tinham mais chances de retornarem ao convívio social produtivo mais facilmente do que usuários de crack pobres, em geral em situação de rua e com vínculos familiares extremamente fragilizados e até mesmo rompidos. Usuários dependentes de crack, pertencentes às classes médias, tinham chances de acessar diversas formas de cuidado no âmbito privado como psicólogos e psiquiatras, por exemplo. Além disso, o pertencimento social dos seus familiares garantia acesso a outras redes de convivência social como estudos e trabalho. Já os usuários de crack pertencentes às classes desfavorecidas, a maioria já em situação de vulnerabilidade, em situação de rua há alguns anos, não viam seus parentes há muito tempo, tinham com vínculos familiares fragilizados ou mesmo rompidos. Alegavam que não havia muito o que perder, agravando o sentimento e a condição de exclusão social. A possibilidade de se inserir em modos de vida que nunca pertenceram como no mercado e trabalho, estudos, convivência familiar, nesse caso, era praticamente nula. Fernando Paiva e Pedro Costa (2017) afirmam ainda que a realidade social do Brasil, pautada pela estrutural desigualdade afeta diretamente os usuários de drogas e que determinados recortes como gênero, raça e pobreza podem levar o indivíduo a desenvolver mais problemas relacionados às drogas.

Analisando o caso de Joana, pertencente a uma família cujas condições financeiras são bem inferiores à família de Pedro, a relação com problemas decorrentes do uso de drogas apresenta uma configuração social diferenciada. Apesar de fazer uso de drogas lícitas, mais especificamente psicotrópicos receitados por psiquiatra como método de tratamento para um diagnóstico de depressão e síndrome do pânico, a família de Joana apresenta algumas dificuldades concretas em poder garantir um tratamento adequado e possibilitar o seu próprio sustento financeiro, o que configura uma reprodução da desigualdade social, que impossibilita outras composições, devido a precarização da vida. Ao contrário de Pedro, Joana é a principal mantenedora financeira da família, cuja renda se soma a do marido que trabalha como entregador de gás. Joana tem uma filha do primeiro casamento, e vive com sua mãe, uma senhora idosa que não possui nenhum tipo de renda. O uso dos psicotrópicos gera problemas na relação de Joana com seu trabalho e na vida cotidiana de modo geral, impossibilitando a realização de tarefas diárias básicas como cuidar da casa e de sua filha, na época com apenas seis anos, chegando até a ter perdido um emprego por conta dos efeitos da droga (relatados por ela como muita sonolência e pouca capacidade de concentração). A relação de Joana com o uso de psicotrópicos nesse caso, atua anestesiando suas linhas flexíveis, impossibilitando processos criativos de vida, cristalizando-se em formas de vida já interpostas e sobretudo geradoras do seu sofrimento. Essa condição sobrecarrega sua mãe, já idosa, com tarefas domésticas e preocupações ligadas ao estado de saúde de Joana.

Marina Garcia (2016) afirma que, de modo geral, as famílias de classe média que possuem membros que sofrem com problemas decorrentes do uso de drogas, emprestam crédito social a esses indivíduos, possibilitando a eles um uso estratégico da sua condição familiar para acessarem o mundo de uma maneira mais protegida: possuem casa, um lugar para dormir, comida, até mesmo dinheiro para comprar uma droga de melhor qualidade.

Observa-se que o pertencimento social de uma família vai influenciar diretamente no manejo dos agravos que o uso de drogas. Ressalta-se aqui que o foco não são as drogas e seus efeitos, mas como a exclusão social e a dificuldade de acesso aos direitos piora as consequências do uso de substâncias psicoativas. No que diz respeito ao acesso aos direitos, é importante pensar como o nível socioeconômico dessas famílias produz relações com as políticas sociais existentes, pois famílias mais pobres precisam contar com os serviços prestados rede de cuidados das políticas públicas, portanto, a oferta e qualidade desses serviços afeta diretamente as práticas de cuidado das famílias com relação aos problemas decorrentes do uso de drogas.

No caso da família de Joana, a estratégia de cuidado vinculada à rede de atenção às pessoas que usam drogas adotada pela família é o acompanhamento psiquiátrico via um ambulatório de saúde mental de um hospital universitário da cidade, onde Joana pode se consultar periodicamente (média de três em três meses) com um psiquiatra e ter renovação da sua receita médica. O psiquiatra que a acompanha constatou e apontou para a necessidade de acompanhamento psicoterápico, no entanto restringe as consultas a orientações sobre o uso de medicamentos e renovações da receita. Por não ter recursos para pagar uma consulta particular, Joana buscou atendimento psicoterápico individual realizado por estagiários de psicologia numa clínica escola de um curso de psicologia de uma instituição de ensino superior privada da cidade. Em ambas estratégias (acompanhamento psiquiátrico e psicoterápico) por se tratar de atendimentos vinculados à instituição de ensino superior, é comum que os atendimentos sejam suspensos durante as férias e recesso estudantil, ficando Joana nesses períodos sem essa alternativa de acompanhamento.

Além de se preocupar e sofrer com sua situação de saúde mental, Joana se queixa dos efeitos das medicações utilizadas, solicitando várias vezes do psiquiatra que a acompanha a redução ou mesmo a interrupção do tratamento medicamentoso alegando não perceber efeitos positivos do seu uso, mas apenas prejuízos ligados aos seus efeitos colaterais. Porém, segundo o depoimento da família, essa proposta é recebida com ameaças de internação. A dificuldade de encontrar suporte na rede pública faz com que a situação do acompanhamento fique estagnada por falta de opções. Joana e seu marido já buscaram suporte em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), no entanto, segundo eles, a equipe do serviço não a considerou apta ao tratamento no CAPS por trabalhar e, portanto, não poder frequentar o serviço diariamente.

Sua situação de saúde mental não melhora e depois do uso de medicamentos Joana já se sente dependente dos mesmos, sentindo tremores e forte ansiedade quando não toma os remédios. Apesar das dificuldades alegadas não pode parar de trabalhar, pois isso afetaria negativamente o sustento da família. Sua mãe e seu marido afirmam se sentirem muito preocupados com Joana, porém alegam não saber o que fazer para ajudar. Tanto nas atitudes relatadas acerca da relação com o ambulatório e o CAPS observam-se falhas no que diz respeito ao funcionamento das políticas e seus impactos nas famílias. No que diz respeito a atitude coercitiva do psiquiatra ao fazer ameaças de internação, ressalta-se o aspecto punitivo no atendimento prestado.

Punir os pobres, seja com a prisão ou a internação é uma característica segundo, Loïc Wacquant (2003) marcante das políticas sociais do início do século XXI. Além disso, a orientação do CAPS no caso de Joana nos leva a questionar o papel do projeto terapêutico singular (PTS) no funcionamento desses serviços. Para Andréia Boccardo, Fabiana Zane, Sureia Rodrigues & Elisabete Mangia (2011), os projetos terapêuticos singulares têm o potencial de provocar mudanças na organização de serviços e equipes de saúde mental afetando as práticas de cuidado ao mudarem o foco da doença e da remissão dos sintomas para a centralidade das necessidades das pessoas em seu contexto social. Porém, o CAPS em questão não se mostrou um espaço aberto para oferta do cuidado para Joana e sua família ao impor um modelo generalizado de atendimento não condizente com a realidade social do Joana e sua família.

De modo geral, questiona-se também se os profissionais desses equipamentos têm a qualificação e formação necessárias para atuarem em prol do cuidado de pessoas e famílias que sofrem com problemas decorrentes do uso de drogas. Observa-se assim a lacuna no que diz respeito à atenção a família na oferta de cuidados. Centra-se a atenção no sujeito, porém, não se leva em consideração a atenção aos seus familiares e os impactos dos problemas do uso de drogas no grupo familiar como um todo.

Pedro e sua família só buscaram apoio de um CAPS AD apenas uma vez no Rio de Janeiro durante o período em que morou lá. No entanto, ele alegou que não chegou nem a descer do carro, pois ao ver o movimento de usuários na entrada do CAPS disse não ter se identificado com aquele público, por se tratar principalmente de pessoas mais pobres. Nas palavras dele, “naquele dia estava com meu tio, num e. Meu tio é delegado Federal, as pessoas iam perceber a nossa diferença e não me senti bem em estar ali. Aquele lugar não era pra mim e pedi para r embora, sem nem entrar” (Pedro, entrevista individual, Novembro de 2015). A busca de suporte para além do grupo familiar foi sempre procurada em comunidades terapêuticas em outro estado. Durante toda trajetória de problemas com o crack, Pedro chegou a ser internado compulsoriamente uma vez, e outras duas vezes foi convencido de que solução para o seu caso se daria apenas através da internação.

Entre as duas famílias a relação com as políticas públicas se dá de maneiras bem distintas. Para a família de Joana a assistência pública é fundamental para operar o cuidado e consequentemente apoiar as dificuldades vivenciadas por toda família, já que não possui recursos financeiros para investir em um acompanhamento privado. Já para Pedro, o suporte das políticas públicas foi dispensado, investindo em atendimentos particulares em uma modalidade de oferta de cuidado que se distancia dos princípios das políticas públicas de garantia de direitos. No entanto, em ambos os casos se questiona o funcionamento dos serviços públicos para cuidado de pessoas que usam drogas. Seja pela baixa qualidade do atendimento, ou mesmo pela visão estereotipada que se tem dos usuários de drogas e da sua relação com esses serviços.

Essa crítica se faz presente, pois considera-se que as políticas públicas brasileiras foram pensadas tendo como alvo as famílias e devem ser articuladas de maneira intersetorial, com foco na garantia de direitos. Segundo Maria Carvalho (2012), a família está no centro das políticas de proteção social e nos últimos anos se apresentam como responsabilidade partilhada entre o estado e a sociedade. Sendo assim, a proteção social proporcionada pelos equipamentos da rede, principalmente de saúde e assistência social, pode não só operar um cuidado mais adequado para as pessoas e famílias que sofrem com problemas decorrentes do uso de drogas, como também podem prevenir o seu uso problemático.

No entanto, trata-se de um grande desafio, pois essa discussão é atravessada por aspectos estruturais das políticas sociais, e mais especificamente da política nacional sobre drogas. Alguns elementos podem ser elencados. O primeiro dele diz respeito ao momento político nacional e o retrocesso no investimento em políticas públicas. De modo geral, muitos dos equipamentos públicos funcionam de forma precária, dificultando o acesso da população com qualidade. O segundo ponto diz respeito ao desafio da intersetorialidade. Tradicionalmente, a formação profissional se dá de maneira muito fragmentada em que cada profissão se foca tecnicamente nas suas atribuições conversando muito pouco entre si. Serviços de saúde, assistencial social, têm muitas dificuldades de articulação, quando na verdade o acesso qualificado aos serviços disponíveis em um território depende fundamentalmente do diálogo intersetorial para conseguir abarcar minimamente a complexidade das questões familiares relacionadas aos problemas decorrentes do uso de drogas.

Um terceiro ponto a ser destacado nessa discussão está relacionado à lógica proibicionista que produz a imagem do usuário de drogas como criminoso, sobretudo, o usuário de drogas ilícitas. Os tabus e preconceitos ligados ao consumo de drogas dificulta o funcionamento dos equipamentos da rede de cuidados para operarem a redução de danos (RD). Ao verem o usuário como “marginal” dificultam o seu acesso aos serviços ficando esse fora da rede de garantia de direitos, expondo-se ainda mais às situações de vulnerabilidade e exclusão social. As famílias também são atingidas por esses estigmas. Muitas vezes por medo ou vergonha podem demorar a pedir ajuda, ou mesmo preferem silenciar. Apesar dessa situação afetar diretamente as famílias mais pobres que são usuárias dos serviços públicos da rede de atenção às pessoas que usam drogas, pode-se refletir sobre como essa questão afeta também as famílias de classe média, que por medo ou vergonha acabam optando por internações involuntárias em Comunidades Terapêuticas, isolando seu familiar do convívio social cotidiano e escondendo, assim, seus problemas relacionados ao uso de drogas. A lógica proibicionista dificulta a quebra dos tabus relacionado ao uso de drogas, produzindo uma relação de obscuridade e dificultando a produção de estratégias de cuidado mais singulares e contextualizadas.

No caso da família de Joana, cuja droga de abuso é lícita, seus efeitos não são percebidos como o principal problema, mas sim relacionados ao diagnóstico psiquiátrico. No entanto, Joana chegou a perder um emprego e ter dificuldades no atual, devido aos efeitos da medicação: sonolência, distração e até mesmo desmaios. Apesar de todos os efeitos colaterais, o uso da droga não é interrompido devido a orientação psiquiátrica. Quando se trata de drogas ilícitas a ideia de interromper o uso é quase sempre aceita ou mesmo recomendada. Segundo Joana, os medicamentos não fazem nenhum efeito no que diz respeito às questões psicológicas que levaram a utilizá-los, alegando inclusive sentir-se pior do que antes. A sua família também não entende que o uso de psicotrópicos acarreta problemas para Joana. Consideram apenas o fato de que a sua irmã mais nova namorou um suposto traficante e fez um uso esporádico de maconha. Para eles esse fato desencadeou questões emocionais em Joana que estão sendo tratadas com o uso de psicotrópicos. Aos poucos Joana se habituou ao uso de psicotrópicos e conseguiu estabelecer uma rotina de vida mais ativa, apesar das dificuldades com sono e letargia, segundo ela ligadas a medicação. Adaptou-se e criou estratégias para lidar com os sintomas e assim conseguia levar uma vida que considera relativamente normal, o que não foi suficiente para ser compreendido como uma linha de fuga, pois o processo de adaptação não consistiu numa ruptura com processos estagnadores de vida, mas sim como uma resignação ao sofrimento e as dificuldades para lidar com os problemas.

No caso de Pedro e sua família, a gravidade de sua situação é centralizada na droga, pois trata-se de um usuário de crack, fazendo com que a família acredite que a solução dos problemas vivenciados se dará apenas pela abstinência. No entanto, durante o período da pesquisa, Pedro que estava sem usar crack há pouco mais de um ano, voltou a fazer uso da droga subitamente, sendo internado por sua família em uma comunidade terapêutica em outro estado logo em seguida, o que para família foi fonte de grande angústia, como pode ser registrado através da fala de sua irmã e um dos encontros: “eu perco a esperança, pois até quando teremos que conviver com isso? Ele passa um período bem, mas acaba recaindo. Não sabemos mais o que fazer” (Amanda, entrevista individual, Agosto de 2016).

Temos então duas situações muito distintas sobre a relação família e as políticas sociais AD. Por um lado, uma família acolhida por um serviço de saúde pública, mais especificamente um ambulatório de saúde mental, onde a droga em nenhum aspecto não é vista pela equipe de saúde ou mesmo pelos familiares como a principal causadora de problemas, mas sim como a solução para o sofrimento psíquico. Por outro, uma família para quem a droga é considerada a vilã, negligenciando totalmente condições psicossociais do uso, que não crê na eficácia dos serviços públicos para a solução dos seus problemas, priorizando assim a intervenções pautadas na abstinência e no isolamento social.

Observa-se uma perspectiva de cuidado sobre o uso de substância psicoativas dicotomizada: o apoio ao uso de psicotrópicos e a condenação do uso de álcool e drogas (ilícitas). Como afirma Gilberta Acserald (2017) independente dos problemas relacionados ao uso de drogas serem vistos como uma questão de saúde pública, e haver um reconhecimento de que substância psicoativa não é só a droga ilícita, mas também, o álcool, o tabaco e os medicamentos psicotrópicos, o foco das intervenções acaba sendo sobre as drogas proibidas por lei. Esse isso é reforçado pelo antagonismo atual no modo como a política sobre drogas se estrutura no Brasil: proibicionismo e redução de danos coexistem dentre de uma mesma política. Por um lado, entende-se que as drogas fazem mal e, portanto, devem ser proibidas, o que acaba tornando-as maléficas por serem proibidas. Por outro lado, as práticas de cuidado para os problemas relacionados ao uso de drogas são respaldas pela política de redução de danos. Isso gera uma dificuldade de clareza no discurso com relação às práticas de cuidado para os usuários de drogas, o que pode aumentar a sensação de desamparo nas famílias que ainda não sabem como lidar com a questão e buscam ajuda dos serviços que podem ofertar esse cuidado.

Observa-se com isso a necessidade de aproximar cada vez mais o debate sobre o uso de drogas com a temática dos Direitos Humanos, desde a formação dos profissionais, à implementação das políticas de prevenção e cuidado. O respeito à liberdade, a autonomia dos sujeitos leva a compreensão de que são infinitas as possibilidades de relação das pessoas com o uso de drogas, perspectiva essa já prevista pela política de redução de danos, mas ainda ausente nos discursos sobre a temática de maneira mais ampla, o que leva ao investimento em práticas cada vez mais repressoras como as internações compulsórias ou mesmo a crença na abstinência como meta generalizante.

O cenário repressor e distante da discussão de direitos humanos na política sobre drogas brasileira pode ser compreendido historicamente. Em 1964 com o golpe militar, a repressão ao uso e circulação de drogas no país se torna ainda mais forte, período em que “maconheiros” eram considerados vagabundos e aqueles que fossem pegos portando ou usando maconha eram condenados à prisão. Os serviços especializados na época eram restritos e funcionavam de acordo com a lógica manicomial nos mesmos moldes em que se prestavam atendimento às pessoas com transtornos mentais. Para o usuário de drogas, o tratamento previsto era apenas o da abstinência, reclusão social e medicalização. Em termos de estruturação política, apenas em 1998 é criada uma secretaria nacional sobre drogas, na época chamada de Secretaria Nacional Antidrogas. No mesmo ano foi criado o Conselho Nacional Antidrogas (CONAD) que antes era chamado de Conselho Nacional de Entorpecentes (CONEN).

Em 2003 foi criada uma política nacional com foco na temática das drogas, incialmente chamada de política antidrogas, alterada em decreto em 2006 para Política Nacional Sobre Drogas, e apenas nesse período trouxe à tona o eixo cuidado permeado pela lógica da redução de danos e não mais a exclusividade de pensar a abstinência como via de promoção de saúde aos usuários de drogas e seus familiares. A partir disso, foram criados vários serviços substitutivos no país, pautados na lógica do cuidado em liberdade e na redução de danos como prática legítima dos serviços de saúde especializados na atenção aos usuários álcool e outras drogas.

Atualmente, os avanços intencionados vão na direção de perceber as lacunas existentes entre a saúde, assistência social, bem como com outros setores no que diz respeito à oferta do cuidado ao usuário de drogas e seus familiares. Sabemos que, historicamente, a comunicação entre essas pautas tem sido incipiente, e que a ausência de diálogo é notória nas lacunas encontradas na rede intersetorial, situação que contribui para a produção de modos de subjetivação que circunscrevem a droga de maneira restritiva e desconsideram os impactos nas práticas de cuidado das famílias.

As diversas cristalizações e linhas duras que contornam o tema das drogas dificultam que os serviços da rede de garantia de direitos acessem a temática de maneira adequada. A tendência é ver o usuário como um problema de saúde, empurrando os sujeitos para serviços especializados, cuja ausência de compreensão acerca da estratégia de redução de danos, ou mesmo da necessidade de oferta de suporte psicossocial, para além do usuário de drogas, provoque intervenções inadequadas. Vive-se um momento em que essas questões vêm à tona através de intervenções malsucedidas e violentas a usuários de drogas em situação de vulnerabilidade, assim como fortalecimento e crescimento vertiginoso de comunidades terapêuticas, pautando o tratamento de usuários de drogas com base na abstinência e reclusão social. Isso interfere diretamente no modo como as famílias organizam suas práticas de cuidado, pois ao ser pautado com o isolamento, o sujeito é afastado do seu convivo familiar e comunitário. O foco é dado para o usuário de drogas, deixando a desejar assim estratégias potencializadoras da relação familiar no que diz respeito ao cuidado, reproduzindo assim a forma dominante usada pelos profissionais do campo da psicologia: o atendimento individual em detrimento de intervenções no grupo familiar.

O momento nacional atual é crítico para as políticas públicas de modo geral, em destaque para as políticas de drogas. A crise política nacional é caracterizada por uma forte retomada conservadora, resgatando perspectivas manicomiais e repressoras no que diz respeito ao uso de drogas, como por exemplo internações compulsórias em comunidades terapêuticas de caráter religioso, que acabam sendo muitas vezes a única estratégia possível para as famílias que não encontram nos serviços públicos ofertas de cuidado condizentes com a sua realidade, ou mesmo que demonstrem eficácia.

Na cidade onde se realizou a pesquisa, os serviços substitutivos passam por problemas que vão desde a estrutura física inadequada, às precárias condições de trabalho, e mesmo a ausência de qualificação de grande parte de seus trabalhadores. O sucateamento da política pública de saúde mental que contempla a problemática das drogas faz com que as necessidades das pessoas e suas famílias, com relação ao cuidado aos problemas relacionados ao uso de drogas não sejam detectadas, nem atendidas. Esse cenário de desamparo faz com que as famílias não consigam ofertar o cuidado adequado aos seus membros que sofrem com problemas decorrentes de drogas, aumentando ainda os riscos envolvidos com a questão e produzindo ainda mais sofrimento. Atitudes desesperadas são comuns, como a internação involuntária, por exemplo, e reclusão em comunidades terapêuticas.

Apesar das duas famílias e dos seus problemas relacionados às drogas possuírem características bastante distintas em muitos aspectos, suas realidades permitem elucidar fatores problemáticos relacionados ao modo como a oferta de cuidado aos problemas de correntes do uso de drogas está estruturada socialmente. As práticas de cuidado da família são afetadas principalmente, pelo sentimento de impotência e de desapropriação do saber acerca dos problemas e suas possíveis soluções. Seja por equipamento públicos que funcionam de maneira muito hierarquizada não incluindo os sujeitos e suas famílias nas propostas terapêuticas de seus usuários, seja pela relação com as comunidades terapêuticas e seu modelo de cuidado repressor e excludente, que percebe muitas vezes a família como um problema do qual o sujeito que usa drogas deve se afastar.

Essa dificuldade em entender a família como parte dos processos de subjetivação ligados ao uso de drogas, dificulta o entendimento do sujeito na sua integralidade, ou seja, como produto e produtor de seu contexto social e comunitário, portanto, impedindo de se buscar respostas eficazes para os problemas enfrentados com relação ao uso de drogas, que não dizem respeito apenas aos efeitos das substâncias, mas sim a toda gama de relações sociais, econômicas e afetivas envolvidas com ela. Cabe então pensar a família e suas práticas de cuidado como elemento fundamental na promoção e produção de relações mais inventivas entre os sujeitos e as drogas. As práticas de cuidado devem ser favoráveis para permitir a atualização do virtual, estabelecendo novas formas de se relacionar com o uso de drogas, mais potentes e criativas.

5 Considerações finais

A ausência de suporte adequado na rede, sobretudo pelos serviços substitutivos, que não são vistos como opção para famílias que sofrem com problemas decorrentes do uso de drogas, reduzem as possibilidades potencializadoras de autonomia e emancipação: tratamentos pautados pelo modelo médico psiquiátrico tradicional, internações em comunidades terapêuticas, ou mesmo a exclusão das famílias da rede de cuidados e consequentemente a exposição do usuário de drogas e seus familiares às situações de vulnerabilidade social e de enfraquecimento de vínculos.

Pensar o cuidado às pessoas que usam drogas e suas famílias requer um esforço em romper com muitos tabus e preconceitos ligados ao uso de substâncias psicoativas. A política nacional sobre drogas, conforme dito acima, tem como norte a perspectiva da redução de danos. A RD afirma a ideia do cuidado em liberdade e carrega ao centro o debate ético da valorização das pessoas e defesa dos direitos humanos na política de drogas. No entanto, muitos desafios ainda precisam ser superados para que a RD se estabeleça como prática presente e eficaz nos serviços públicos de saúde. Na contramão dessa perspectiva, vem se fortalecendo um discurso manicomial com relação ao cuidado do usuário de drogas, pautado na internação de longo período e total abstinência do uso de substâncias, em comunidades terapêuticas.

Nesse cenário, a família é vista como peça fundamental e assume um papel importante no que diz respeito ao cuidado dos seu membros e proteção às situações de vulnerabilidade diversas. Mas, a família sofre com os problemas ligados ao uso de drogas por um de seus membros. Assim, os serviços substitutivos como CAPS e CAPS AD precisam ofertar na sua rotina atividades voltadas para os familiares. Estudos como o de Roberta Romagnoli (2015) apontam a importância da escuta dos familiares e do fortalecimento dos vínculos entre os sujeitos com transtorno mental e suas famílias para avançar nas propostas de cuidado dos seus projetos terapêuticos singulares.

As práticas retrógradas que marcam a sociedade atualmente no que diz respeito ao cuidado com a saúde mental e a questão do álcool e outras drogas no país (por exemplo da internação compulsória e práticas de cuidado pautadas no viés religioso), sinalizam a fragilidade do cuidado oferecido ao usuário de drogas e, de maneira indissociável, à sua família e demais laços comunitários. A imaturidade das soluções propostas para lidar com o tema, acionam medo e dúvidas que podem culminar numa vivência de sofrimento daqueles que através da proximidade dos laços buscam ajudar pessoas que usam drogas e que têm problemas relacionados a esse uso.

É preciso fortalecer as estratégias de diálogo entre as políticas públicas e as famílias que sofrem com problemas decorrentes do uso de drogas para definir as estratégias de cuidado. Apostar em práticas pautadas pela política de redução de danos, e ferramentas como a construção de projetos terapêuticos singulares mostram-se como elementos fundamentais. Além disso, faz-se necessário estimular o debate entre o estado e sociedade sobre drogas e direitos humanos na tentativa de desmistificar o assunto e possibilitar a construção de estratégias de cuidado singulares e contextualizadas de acordo com a realidade dos sujeitos, sua família e comunidade.

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