Este artigo parte de uma experiência de pesquisa com jovens em conflito com a lei no contexto de Campo Grande, no Brasil. Este texto objetiva discutir a posição de pesquisador como testemunha (Agamben, 1999/2008) da vida de jovens que conflitam com a lei em cumprimento de medida socioeducativa de internação. Para isso, buscamos acompanhar o caminho dos jovens desde a entrada pelo judiciário até o cumprimento da medida socioeducativa na unidade de internação, dentro da perspectiva da cartografia (Passos, Kastrup & Escóssia, 2009). Ao fazê-lo, fundamentamo-nos nos estudos de Michel Foucault (1992; 2012), Giorgio Agamben (1999/2008) e Walter Benjamin (1921/1986) para pensar os modos como as vidas da juventude em conflito com a lei são capturadas e as intervenções direcionadas às mesmas, construindo movimento de pesquisa, pelo qual buscamos traçar o percurso desses jovens ao mesmo tempo em que, ao percorrê-lo, afirmamos uma política de pesquisa que busca vislumbrar o lugar de testemunha de suas histórias.
Os movimentos aqui relatados são parte de uma pesquisa de mestrado desenvolvida no contexto de Campo Grande — MS/Brasil (Caetano, 2015) cujo objetivo foi o de traçar a trajetória do jovem que comete atos infracionais, sendo capturado pela polícia e encaminhado ao sistema de justiça, passando assim a conflitar com a lei e se fazendo presente nela, por meio de políticas de segurança. Para isso, traçamos o percurso do jovem às vias do judiciário, a partir do momento em que entra no sistema de justiça e segurança, quando seu processo se insere na Vara da Infância e da Juventude, e é encaminhado às unidades de internação para cumprir uma medida socioeducativa, conforme determina o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Lei 8.069 de 13 de junho de 1990).
A cartografia (Passos, Kastrup & Escóssia, 2009), foi a estratégia metodológica utilizada para o desenvolvimento do estudo, transcorrido nos anos de 2013 e 2014, cujos procedimentos envolveram leitura de processos judiciais, visitas a Unidades Educacionais de Internação — UNEI, conversa com profissionais que atendem diretamente a população jovem em conflito com a lei e assistência a audiências na Vara da Infância e Juventude. Nos caminhos que compuseram o processo da pesquisa, buscou-se seguir o caminho dos jovens no que diz respeito ao percurso na rede de atendimento socioeducativo, desde o cometimento do ato infracional até a internação. A pesquisa, para sua realização, passou pelos trâmites de praxe do Comitê de Ética da universidade obtendo aprovação.
Vale ressaltar que o acompanhamento do percurso não se deu diretamente junto ao jovem, mas, a partir do percurso na rede através de acesso a documentos, visitas e nas audiências que puderam ser assistidas, que era o alvo do estudo. Mais adiante nesta escrita, apresentar-se-á o caso de Zé pequeno, ao qual tivemos acesso através de uma das audiências. Esse caso foi escolhido com a finalidade de pensar o modo como para certas vidas são direcionadas práticas de violação de direitos e, como afirma Walter Benjamin (1940/2012), para alguns, o estado de exceção é a regra. Isto é, a violação de direitos não é uma exceção ou caso isolado, mas o cotidiano das intervenções para determinada parcela da população jovem. Neste caso, Zé Pequeno é tomado, portanto, como um dispositivo analítico do cotidiano da relação para com a juventude, entendida como em conflito com a lei, nos trâmites judiciais.
A cartografia, como ferramenta metodológica, possibilita não partir de “regras já prontas, nem com objetivos previamente estabelecidos” (Passos & Barros, 2009, p. 17) e que abre campo para certa maneira de analisar as relações que se estabelecem durante o processo de trabalho. Trata-se, então, não de um processo de trabalho que não tenha direção, mas de um processo que é construído em seu percurso. Assim, o acompanhamento do percurso do jovem possibilitou a compreensão da forma como os sistemas de justiça e de segurança pública se organizam, produzindo modos de condução na rede de atendimento socioeducativo.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, 1990) é frequentemente a marca de uma transformação no campo da atenção à infância e juventude, de modo que esse marco legal faz parte de todo um conjunto de práticas que emergiram em um contexto de luta pela garantia e acesso a direitos. Durante a pesquisa, contudo, pudemos visibilizar que diversas práticas direcionadas a jovens que cometem infrações ainda são tensionadas por lógicas presentes nos antigos Códigos de Menores (Decreto nº 17.943, 1927; Lei nº 6.697, 1979), especialmente no que diz respeito à manutenção de práticas de marginalização de uma juventude pobre (Scisleski, Checa, Bruno, Galeano, Santos & Vitta, 2017).
No que diz respeito à população jovem, percebemos com clareza uma distinção, evidenciada já no início do percurso da pesquisa, entre a parcela para a qual serão direcionadas estratégias protetivas e aquela para a qual será a punição — via medida socioeducativa de internação — a intervenção operacionalizada. Em nossa caminhada, tentando compreender o percurso, no sistema de justiça, do jovem que comete o ato infracional, num primeiro momento, para conseguir conversar com o juiz, agendamos via telefone uma conversa com um de seus assessores de gabinete. Assim, dirigimo-nos à porta de entrada do Fórum onde encontramos a recepcionista e perguntamos a ela sobre a localização da Vara da Infância e da Juventude: “Onde fica a Vara da Infância e da Juventude? ”. E ela responde: “Qual? A da Infância ou a do menor infrator? ” (Entrada de diário de campo, junho de 2013).
Após a informação dada pela recepcionista, seguimos em direção à Vara do “menor infrator” para iniciar a conversa com o assessor. De acordo com ele, os julgamentos dos jovens são baseados no Código de Processo Penal Brasileiro (Decreto-Lei nº 3.689, 1940) . Isso ocorre devido à falta de normativas do Estatuto da Criança e do Adolescente, do mesmo modo que a porta de entrada deles no sistema judiciário é via delegacia de polícia. Apesar de o ECA “garantir” que esses jovens sejam encaminhados a uma delegacia especializada para crianças e adolescentes, tal procedimento não ocorre, pois, a delegacia especializada em questão funciona apenas em horário comercial e não está disponível em muitos municípios, o que faz, portanto, com que os adolescentes sejam atendidos pelas delegacias comuns, exatamente como ocorre com adultos. Práticas como essa se configuram como exercício do Estado de Exceção, que, segundo Giorgio Agamben (2003/2004), é o dispositivo original do Estado de Direito, uma vez que, quando se contém a vida no ordenamento jurídico e se dá ao vivente a vida como um direito fundamental, essa vida, como qualquer outro direito, pode incluir-se pela própria suspensão: “[...] uma teoria do Estado de exceção é, então, condição preliminar para se definir a relação que liga e, ao mesmo tempo, abandona o vivente ao direito” (Agamben, 2003/2004, p. 12).
O auto de apreensão — procedimento que acontece por meio de práticas do Estado de Exceção — é realizado por força policial no momento em que o jovem é incluído no sistema de justiça. O Artigo 172 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, 1990) afirma que o jovem apreendido em situação de flagrante por cometer uma infração penal deve ser encaminhado a uma Delegacia Especializada de Atendimento à Infância e Juventude (DEAIJ), que assim é denominada na cidade de Campo Grande e funciona em horário comercial. Contudo, se a apreensão acontece fora do horário de funcionamento, os jovens são levados para a delegacia de polícia, junto dos presos comuns, maiores de 18 anos, e são liberados após a chegada dos pais ou responsáveis, ou encaminhados para a Unidade Educacional Provisória (UNEI - Novo Caminho), conforme a gravidade do delito.
Após os autos de apreensão, é iniciado, ainda na delegacia, o boletim de ocorrência. Nele são registrados os fatos e as versões sobre o ato infracional, com descrição detalhada e exaustiva da cena do crime, fornecendo os dados para a construção do inquérito. Michel Foucault (1973/2003), ao discorrer sobre as formas como o inquérito se tornará um procedimento importante nas formas jurídicas, afirma que, entre seus modos de constituição, o inquérito tem por função a substituição do flagrante, pois tem como efeito reunir os fatos extraídos das pessoas diante de juramento.
Depois do procedimento do inquérito policial, caberá ao promotor a representação da denúncia; nesse momento, marca-se a entrada do jovem no sistema judiciário e, posteriormente, a representação da promotoria. Esta, por sua vez, tem por função acusar o jovem. No caso de este não ter advogado (como ocorre com a esmagadora maioria, conforme será narrado a seguir), é-lhe designado um defensor público. Nesse cenário, realiza-se a primeira audiência de apresentação no Juizado.
Depois dessa primeira conversa com o assessor, tendo identificado os passos do jovem infrator, continuamos a percorrer o seu caminho, mas, diferentemente do jovem, o fizemos como pesquisadoras, recebendo, de certa forma, um tipo de tratamento que ao jovem não é destinado. As pessoas com quem conversamos recebem com curiosidade, satisfação, interesse ou desconfiança a informação de que somos pesquisadoras, mas não nos tratam como pessoas que devem ser evitadas ou temidas. Por isso, fizemos o caminho dos jovens na rede socioeducativa, especialmente no que concerne ao sistema de justiça, contudo, não na mesma situação que eles, mas acompanhando e testemunhando parte de sua trajetória.
Se recordarmos o primeiro contato realizado no Fórum, onde a separação em duas Varas (que tecnicamente são uma só, mas que operacionalmente são duas) que a parcela da infância e juventude que precisa de proteção e o menor infrator, apontam para uma distinção entre práticas de proteção e punição. Essa cisão não somente das Varas, mas da população infanto-juvenil apontam para todo um conjunto de estratégias de governo, entendido como modo de condução da conduta, criação de estratégias de investimento na vida e cálculo das possibilidades de ocorrência de um determinado acontecimento (Foucault, 1978/2008). A partir dessa reflexão, podemos entender que esse governo que incidirá sobre a vida do jovem em conflito com a lei é, assim, distinto daquele que tem como objetivo proteger a vida do jovem que não cometeu infrações.
Entendemos que estamos lidando com uma população que infringe a lei e se torna público alvo das políticas de internação e de segurança, bem como dos discursos que defendem a redução da idade penal, discursos e políticas que permitem as exceções e desqualificam vidas (Agamben, 1995/2010). Contudo, assumimos uma postura de defesa dessas vidas que aparece nas notícias, nas páginas policiais, nos inquéritos e processos como indesejáveis. Argumentamos que as vidas dos jovens em conflito com a lei são empurrados para a margem da história em razão de que somente a partir do ato infracional é que essas vidas recebem visibilidade e intervenções. Ou seja, é na condição de marginalidade que suas vidas são percebidas. Além disso, durante as audiências e leitura dos processos o elemento para o qual as atenções e arguições eram direcionados se tratava da infração à lei, não sendo incluídas nos autos, por exemplo, a situação de violações de direitos corriqueiramente vividas pelo jovem antes mesmo do cometimento da infração, apesar de nas audiências serem comentadas pelos jovens.
Esse modo como as intervenções incidiam sobre o jovem nos remeteu a uma ideia de infâmia discutida por Michel Foucault (1992) em seu texto A vida dos homens infames. Infame é a vida daquele que recebe visibilidade somente a partir do contato com o poder. No caso dos jovens a infração é esse momento do contato com o poder. Consideramos esses jovens infames devido ao fato de constituírem uma categoria para a qual a desproteção é algo presente em suas vidas e somente são tomados por saberes – sejam jurídicos, psicológicos ou sociais – como potenciais perigosos, desajustados, sujeitos que devem ser controlados e monitorados por um saber (Agamben, 1995/2010). Aqui tratamos de uma parcela específica da juventude pobre e da periferia da cidade, como podemos notar nos processos e mesmo nas conversas com os profissionais, por ela fazer parte de uma população infratora das normas sociais.
Vidas infames, vidas historicamente abandonadas, que não trazem seus próprios relatos de experiência por serem sempre narradas por terceiros (Agamben, 1995/2010; Foucault, 1992). E é justamente nessas lacunas e nesses pontos cegos dos relatos, processos e pareceres, que assumimos nossa posição de pesquisadoras e buscamos defender a vida em sua potência, como afirma Giorgio Agamben (1999/2008). A tentativa é aproximarmo-nos da história vivida por esses jovens infames que se fazem ausentes até mesmo nos processos de suas histórias. Processos que teoricamente falam de suas vidas e experiências, mas trazem a posição de outros, sejam juristas, psicólogos, assistentes sociais, promotores de justiça, vítimas, etc. Assim, o que buscamos, como pesquisadoras, é falar sobre o jovem que conflita com a lei, sobre uma lei que toma a vida do jovem por força, violação e violência (Agamben, 2003/2004; Benjamin, 1921/1986).
Para pensar o lugar de pesquisa e testemunha da vida dos jovens infames, inspiramo-nos em Giorgio Agamben (1999/2008), que refere que no latim há dois termos para expressar a palavra testemunha: testis e superstes. O primeiro refere-se àquele que se coloca como um terceiro, narra os fatos e não necessariamente participa dos acontecimentos, mas que apenas assiste, no sentido da testemunha em termos jurídicos por excelência. O segundo refere-se à vivência de um evento ou acontecimento e à possibilidade de dizer desse viver, dar o testemunho da experiência vivida. Embora não sejamos o jovem e não tenhamos vivido suas vivências, tampouco situações de internação e violações de direito como ele, buscamos colocar-nos no lugar de superstes, no intuito de identificar e pôr em questão seus percursos de vida de puro abandono, seguindo a pista de suas trajetórias.
É importante assinalar de antemão que entendemos aqui abandono no sentido agambeniano, isto é, abandono implica os processos de naturalização e banalização de violações de direito. Isso significa que o sujeito é abandonado pelo direito, de modo que a lei, que em tese está em vigor, não se aplica em determinadas situações que envolvem sujeitos que não são considerados, na prática, cidadãos. Percebemos que os jovens em conflito com a lei, de que trata este estudo, se encontram nessa categoria, uma vez que só são capturados pelo ordenamento jurídico a partir de sua posição como violadores dos direitos de outrem e jamais como sujeitos que tiveram seus direitos violados anteriormente ao cometimento do ato infracional.
Aproximamos Michel Foucault (1992; 2012) e Walter Benjamin (1940/2012) para pensar a história daqueles que foram silenciados através de processos de marginalização. Para Foucault (1992; 2012) é o contato com o poder que possibilita visibilizar certas vidas que, do contrário, nunca teríamos conhecimento a respeito. No caso de Benjamin (1940/2012) são os efeitos do progresso que constituirão o campo no qual as vidas são impelidas à margem da história. O modo como a vida dos jovens em conflito com a lei tem visibilidade é através de prontuários, processos, pareceres, laudos e diversos outros documentos — documentos esses produzidos por diversos campos norteados pelo conhecimento científico — que expressam não somente os resquícios de vidas, mas os efeitos de um poder-saber que organiza as formas pelas quais essas existências serão tomadas. É por essa via que esta pesquisa busca ter acesso ao percurso realizados pelos jovens no sistema socioeducativo (Caetano, 2015): audiências, nas narrativas dos processos, nos laudos e pareceres psi, nos discursos das leis e dos manuais que norteiam as políticas públicas para jovens em conflito com a lei.
Dessa forma, entendemos que ser testemunha dos infames e colocarmo-nos como testemunhas dessas vidas faz com que enxerguemos sujeitos que são abandonados pelas políticas de proteção e se tornam infrator muitas vezes como efeito de uma perpetuação de violação de direitos. Sujeito esse que passa a ser vislumbrado como delinquente, esquecido, banido e, a partir da visibilidade proporcionada pela situação da pesquisa, passemos a assumir uma postura política em defesa da sua vida. Colocamo-nos em um lugar de oposição aos que reproduzem a “história dos vencedores”, àqueles que se mantêm com os pés fincados nos saberes que emitem verdades e reproduzem processos de extermínio da diferença; colocamo-nos, ainda, na crítica às afirmações de uma forma de saber que reduz a vida a diagnósticos, vereditos, medições e medicalizações dos sujeitos e produz na vida outra forma de subjetividade. Entendemos que o modo que se olha para uma situação é capaz de alterar a visão sobre os movimentos o lugar que o jovem ocupa na sociedade. Assim, olhamos para essas vidas em seu contexto social, econômico, entendemos sua realidade de exclusão e buscamos dar visibilidade não somente à vida que é capturada pelos dispositivos que a reduzem a fragmentos, mas especialmente aos próprios processos do saber que operam nessa redução. Buscamos aproximarmo-nos da vida jovem como uma testemunha superstes (Agamben, 1999/2008), mas não como uma real possibilidade, já que não passamos pela experiência do ato infracional; buscamos a posição de supertes com uma postura ética que baliza nossas intervenções nesse percurso. Essa posição de supertes como aposta ética da investigação implica desdobramentos no próprio ato de pesquisar e de escrever, tendo como um desses desdobramentos a transformação do pesquisador, não porque em contato com um objeto de pesquisa, mas com a fragilidade e com a potência de vidas que o estimulam a por em análise formas de capturas institucionalizadas pelos conhecimentos da ciência, subvertendo, ao mesmo tempo, o próprio espaço de produção conhecimento (como é o caso da elaboração de relatórios de pesquisa e de artigos, por exemplo) como documentos de denúncia.
Em prosseguimento do nosso itinerário, agendamos com o assessor uma nova data para assistir às audiências de alguns jovens. Retornamos ao fórum na data e hora marcada; ao chegarmos lá, entramos na sala de audiências um pouco antes que estas começassem. Ao entrarmos, apresentamo-nos aos que estavam presentes no momento (juiz, escrivã e uma estagiária). A escrivã dá uma pauta das audiências e explica como será o dia, ou seja, os procedimentos pelos quais todos os jovens e testemunhas testis serão ouvidos e os fatos serão relatados para a construção do inquérito. Entre as questões observadas nas primeiras audiências, percebemos que a grande maioria dos jovens tem sua defesa feita pela defensoria pública, pois eles não têm acesso a advogado particular, já que são provenientes de famílias bastante pobres em termos financeiros. Essa questão é importante de ser ressaltada, pois, por mais que a defesa dada pela defensoria pública seja uma garantia do ECA, percebemos uma fala corriqueira do defensor quando questionado pelo juiz sobre o que ocorreu com os jovens: “nada a declarar”. Ao proferir essas palavras, o defensor abstém-se de defender aqueles jovens.
Situações de violência que operam enquanto disciplinamento podem ser visibilizados desde a ação da polícia quando em casos de apreensão de drogas e de objetos furtados, a mesma usa de violência para conter os jovens, justificando as ações pela necessidade de manutenção da ordem e promoção da segurança. Esse tipo disciplinamento pode ser visibilizado, ainda, nas visitas realizadas em Unidades Educacionais de Internação — UNEI, onde os jovens passam a maior parte do dia dentro de seus alojamentos, inclusive no momento de realizar suas refeições. Há, para aqueles que apresentam “mau comportamento” um centro de reflexão, cujo objetivo é o isolamento do jovem para que ele pense a respeito de suas ações. (Mato Grosso do Sul, 2014). Além disso, utiliza como técnica ações punitivas e coercitivas direcionadas para essa vida com o simples intuito de punir e humilhar. Por exemplo, o próprio promotor desenvolve nas escolas de Campo Grande, com o intuito de “adestrar” os jovens indisciplinados na escola, um projeto de “reparação de danos”, “para aprenderem o que não aprendem em casa” (Entrada de diário de campo, agosto de 2013). Nesse projeto, como ele diz, os jovens que já estão “quase para cometer um delito” ou que “perturbam” ou mesmo que cometem algum ato infracional na escola são punidos com a obrigação de realizar as tarefas de limpeza de pátios ou da sala de aula, para que a eles sejam “impostos os limites da disciplina” (Entrada de diário de campo, agosto de 2013). Nesse caso, concordamos com as pesquisas de Andrea Scisleski, Giovana Barbieri Galeano, Jhon Lenin Caldeira Silva e Suyanne Nayara Santos (2014), que indicam que o uso da força não se justifica enquanto, mas como forma de exposição e violação dos direitos do jovem em cumprimento de medida de internação.
A posição assumida para a escrita deste artigo e no percurso de nossas pesquisas enquanto autoras/pesquisadoras/testemunhas é uma aposta para dar visibilidade a esse vazio que se repete ao longo da história de vida do jovem em conflito com a lei; sobretudo, são uma tentativa de escancarar a racionalidade que barbariza sua existência e reduz suas possibilidades de vida, como afirma Walter Benjamin (1940/2012). Propomo-nos, como na imagem benjaminiana do catador de dejetos, a catar possibilidades de vida potente do jovem que é tido como expurgo pela lógica neoliberal da nossa sociedade e a desconstruir esse aniquilamento da potência de vida, tal como é relatado nos documentos que dizem dos e sobre os jovens, escritos na posição de testis, como explicado anteriormente. A crítica que se faz aqui é também ao saber tradicional que ocupa o lugar de testemunha testis — quando o conhecimento e a informação são dados por um terceiro —, (auto) vislumbrado como um “detentor” do saber e do poder sobre essa vida, sendo capaz, inclusive, de decidir sobre as suas possibilidades de circulação ou de incluí-la em mecanismos de exclusão que fomentam a redução da própria experiência do sujeito a algo menos valioso que um humano (Agamben, 2003/2004).
Tomar essa posição é andar na contracorrente e colocarmo-nos, como Walter Benjamin (1930/1986) na posição de um catador do próprio presente, daquilo que é expurgado da sociedade, daquilo que é entendido como seu lixo. Buscamos, como o catador, encontrar o que é esquecido da vida, resgatar a possibilidade de justiça à vida vencida e esquecida à margem da história (Benjamin, 1933/1986). E, procurando ocupar a posição de superstes, discutimos o que excede o fato e entra na dimensão da experiência. Assim, buscamos os restos, as lacunas, aquilo que não é contado nos livros oficiais de história, mas que pode ser encontrado em fragmentos de relatos policiais, de prontuários psiquiátricos, de laudos psicológicos (Benjamin, 1933/1986; Foucault, 1992).
Nesse aspecto, Giorgio Agamben (2003/2004), ao retomar o pensamento foucaultiano, refere-se aos homens infames para pensar nessa vida omissa que está sempre à sombra da história e à mercê dos mecanismos de saber, a não ser quando é tomada por meios de dessubjetivação (Agamben, 2009), que rejeitam e excluem essa vida, colocando-a na sombra do esquecimento e do desinvestimento político e jurídico (Agamben, 1999/2008). Trata-se de vidas com histórias e experiências não visibilizadas como vidas humanas propriamente, interpeladas pelo discurso da barbárie, sob a égide da ciência e do senso comum, que as apontam como seres desumanos, perigosos, ameaçadores. Tais saberes produzem a própria barbárie que funda nossa sociedade dicotômica — “marginais x cidadãos de bem” —, produzindo vidas que vivem na exceção (Benjamin, 1933/1986; Agamben, 1995/2010).
Walter Benjamin (1940/2012) afirma que o Estado de Exceção é permanente aos oprimidos. Entendemos que ele é regra para muitos jovens no Brasil que nascem de uma “procriação irresponsável”, como afirma o promotor de justiça em conversa conosco sobre os jovens. Esses jovens são entendidos como infratores e delinquentes, fadados à existência marginal, pois suas vidas já nascem “abortadas” na exceção jurídica (Agamben, 2003/2004). Porém, eles aparecem com veemência no ordenamento jurídico no momento em que cometem atos infracionais. Sua “integração social” se dá por meio do crime: são vistos pela sociedade quando delinquem; antes, não existem, conforme se pode ver na situação relatada a seguir, oriunda de um processo de cuja audiência pudemos participar.
“O Ministério Público oferece representação em face do adolescente, vulgo Zé Pequeno, e seus comparsas, presos em flagrante, que, com arma de fogo, cometeram grave ameaça a outrem, subtração de pertences, seguido de sequestro e roubo” (Trecho de processo judicial, entrada de diário de campo, março de 2014). Nesse tom, segue uma narrativa da apuração dos acontecimentos, escritos por terceiros no processo, e seguem-se os relatos dos autos de apreensão em todos os detalhes, em decorrência de ato ilícito penal, bem como a identificação nominal dos infratores e suas assinaturas. Após, é dado o despacho, com descrição de todos os bens subtraídos. Em nosso entender da situação, chama-nos atenção a ausência da fala dos infratores no momento da audiência. Não falam por quê? Resignados com o destino?
Seguindo na narração do processo, é comunicado pelo oficial avaliador que a gravidade do ato e dos depoimentos coletados justifica a internação provisória para maior apuração dos fatos e para que Zé Pequeno não possa voltar a delinquir e prejudicar a “ordem social”; por isso, ele deve aguardar julgamento em regime de internação provisória até a determinação da medida definitiva ou do julgamento de sua sentença. Mais tarde, já na Unidade de Internação, o adolescente é ouvido e confirma os fatos. Então, a promotora, que no momento atua como substituta, afirma categoricamente:
A conduta do adolescente, sem dúvida é censurável, valendo ressaltar que não demonstra arrependimento por sua atitude e não se mostra integrado perfeitamente no seio familiar e social, bem como, verifica-se pelas informações do SIGO, que o jovem tem várias passagens pela polícia. Assim de acordo com as informações trazidas pelo auto de apreensão em flagrante e declarações do adolescente esse órgão Ministerial requer sua INTERNAÇÃO PROVISÓRIA (Trecho de processo judicial, entrada de diário de campo, março de 2014).
Constrói-se o inquérito para conhecer e desvelar os fatos. Michel Foucault (1973/2003), em sua primeira conferência proferida no Brasil, em 1973, publicada em forma de livro, A Verdade e as Formas Jurídicas, refere-se ao conhecimento como uma forma de poder capaz de produzir discursos e sujeitos. Estes são produzidos por meio de discursos de verdade, ou seja, a produção do discurso sobre um sujeito é capaz de lançar um efeito de saber e verdade sobre ele, inclusive, conferindo-lhe certa subjetividade. O saber, nesse sentido, funciona como mais um dispositivo de normalização e, por conseguinte, de patologização, exclusão e abandono. Formas de saber pautadas na ciência positivista, com força de verdade, conferem aos sujeitos identidades e diagnósticos em nome do saber e da classificação. Formas de saber que culpabilizam “estas sementes mal plantadas” e fazem com que já nasçam com a culpa de todo um fardo histórico ou espacial por viverem em territórios de pobreza, por pertencerem a raças “desfavorecidas” ou, ainda, por serem frutos de uma “procriação irresponsável” (Entrada de diário de campo, março de 2014).
Para discutir a racionalidade divisora da vida e produtora da barbárie, que também embasa a lógica neoliberal, capaz de fabricar significações que conferem ao sujeito seu valor de mercado, se faz necessário pensar com Michel Foucault (1976/1988, 1978/2008, 2010) e Giorgio Agamben (1995/2010) a respeito da formação e manutenção das relações de poder.
Segundo Michel Foucault (2010), relações de poder são complexas e não possuem uma ferramenta de estudo objetiva e única; tais relações podem ser pensadas em modelos legais, que se concretizam em certos dispositivos, como é o caso do Estado, do direito e do saber. Cabe enfatizar que as relações de poder, no entanto, não se restringem a esses elementos, uma vez que o poder é um exercício que se dá em espaços e momentos cotidianos, permeando todos os tipos de relações e nelas se perpetuando — referindo-se, portanto, a um exercício, e não a uma propriedade. O poder, para Michel Foucault (1976/1988), é permeável, e seu exercício acontece sempre em relações, que devem possuir o mínimo de flexibilidade; do contrário, tornam-se dominação ou soberania. Relações de poder implicam tensionamento, construção de condições de possibilidade que devem ser móveis, abertas, para assim produzirem potencialidades e resistências (Foucault, 1976/1988).
Contudo, existem formas ainda mais rígidas de captura da vida que travam seu fluxo por meio de dispositivos, formas de exercício que podemos chamar de soberano (Agamben, 2003/2004) que impedem o fluxo da vida em sua potência e diversidade. Sobre dispositivos, Giorgio Agamben (2009) afirma que é um termo técnico importante de Michel Foucault, uma vez que possibilita o entendimento do uso das estratégias de governamentalidade, ou seja, técnicas de governo da vida (Foucault, 1978/2008). O dispositivo, na lógica agambeniana, constitui-se como uma rede que engloba instituições, discursos, relações; tem uma função estratégica concreta, que é a de tomar a vida a título de governá-la, inscrevendo-se nas relações de poder, cruzando-se nas relações de saber que se objetivam na concretização das tecnologias da verdade e de subjetivação, efetivando-se nas formas de governamentalidade. Nesse vaivém de forças, constroem-se prós, contras e posições diferenciadas sobre o governo da vida em geral.
Nossa aposta na posição de pesquisador enquanto testemunha é a de pensar outras possibilidades de produção de conhecimento, especialmente quando se trata de populações alvo de inúmeras intervenções, contudo, sem o objetivo de estabelecer verdades universais. Desse modo, o saber que fundamenta a racionalidade dos mecanismos de regulação é diferente do saber com que buscamos fomentar nossa discussão, pois não temos o intuito de postular e defender regulações à vida, no sentido de estabelecer normas de conduta, mas sim de pensá-las naquilo que escapa, para que seja possível perceber sua potência, a qual, na sua singularidade, produz diferença. Percebemos, racionalidades que tomam a vida por meio de fundamentos éticos, estéticos, políticos e epistemológicos constituídos por pensamentos distintos e, por vezes, opostos aos nossos.
Frente à possibilidade de construir uma posição epistemológica, ética e política desta pesquisa e para definir nossa posição de testemunha mais próxima do superstes (Agamben, 1999/2008), colocamo-nos em defesa da vida em sua pura potência e em oposição aos mecanismos de poder/saber que a aprisionam e a reduzem a experimentos, formas de saber que reduzem os jovens a pareceres constituídos pelo conhecimento técnico científico e expropriam a experiência do sujeito, não possibilitando a existência da diferença e aniquilando existências (Agamben, 1999/2008; Benjamin, 1933/1986). Buscamos, dessa maneira, denunciar aqui como essa racionalidade, contra a qual nos posicionamos, produz práticas de marginalização e violação dos direitos dos jovens capturados pela via da infração. Buscamos, assim, criar estratégias para pensar a produção de conhecimento que não incida sobre uma determinada população reduzindo-a a sujeito/objeto de estudo, mas que se constitua enquanto um dispositivo de problematização.
No posicionamento que assumimos, apostamos em um enfrentamento às lógicas que sustentam as propostas de redução da maioridade penal e dos saberes que justificam e fundamentam intervenções na vida pela normalização que, justificadas pela doutrina da (des)proteção integral, produz dessubjetivação. Aqui jogamos com o termo proteção integral, em razão de que as práticas operacionalizadas aos jovens em conflito com a lei apontam mais para uma desproteção e violência do que para a garantia de direitos, muito embora a Doutrina da Proteção Integral (Lei 8.069, 1990) seja um ponto bastante importante no campo da atenção à infância e juventude. Nesse momento, é pertinente uma maior explicação: dessubjetivação, em Giorgio Agamben (2009), refere-se aos mecanismos que expõem a vida, que a corroem, que buscam desprotegê-la e reduzi-la, ao passo que a subjetivação seria, no entendimento desse autor, o movimento inverso, que investe na vida, agregando-a de sentidos e significados em prol de um fomento e de uma direção de governamentalidade. Nessa lógica, Giorgio Agamben (1995/2010) refere-se à vida nua, um conceito concernente a uma vida desqualificada, que não merece viver nem ser investida.
Para Michel Foucault (1979/2008) o poder que incide sobre a vida, isto é, a biopolítica, se dá na ordem do investimento. Melhor explicando: organiza-se todo um conjunto de conhecimentos acerca de uma determinada população, conjunto de variáveis que interagem diretamente com a vida dessa população, tais como, índices de natalidade, mortalidade, endemias, epidemias, condições de vida em geral e se traçam estratégias para fazer com que se fortaleça essa vida. Esse investimento na vida, para o autor citado, corresponde a emergência do Estado Nação (século XVIII) onde as técnicas de intervenção se direcionaram a esse novo elemento: a população. Nesses termos, duas formas de investimento foram elaboradas: primeiramente um investimento no corpo individual ao qual Foucault (1976/1988) denominou anatomopolítica, ou tecnologia disciplinar, cujo objetivo era o fortalecimento e adestramento do corpo individual e, posteriormente, as tecnologias de regulação da população, centradas no corpo espécie. Ambas não devem ser compreendidas como uma excludente a outra, mas tecnologias que passam a operar em conjunto. Com dois objetivos: num primeiro momento, devido ao fato da formação dos Estados Nação, foi preciso que a população fosse fortalecida para que o Estado se constituísse. Toda a produção de saber se deu, portanto, sobre o Estado e seus elementos para o fortalecimento e crescimento do próprio Estado. Essa forma de organização e de incidência de intervenções se fundamentava na Razão de Estado (Foucault, 1978/2008). Em um segundo momento o objetivo se deslocou do fortalecimento do Estado para o fortalecimento da economia de mercado, pautado na lógica neoliberal (Foucault, 1979/2008).
Giorgio Agamben (1995/2010), contudo, argumenta que essa biopolítica pode reverter-se em tanatopolítica, ou seja, uma política que produz morte e, sobretudo, visa à morte e ao abandono político de determinadas categorias da população. Quando recorremos ao pensamento de Giorgio Agamben e afirmamos uma política de morte, não nos prendemos a formas de extermínio concretas e objetivas, embora seja imponente o número de jovens mortos em favelas na periferia do Brasil (Waiselfisz, 2011), mas entendemos a morte no sentido das práticas sociais que, de algum modo, interditam a vida e a sua potência.
Vemos, nessas práticas dos defensores da normalização, discursos que sustentam o extermínio da diferença, produzem exclusão e perpetuam o abandono de uma população que já se encontra fora da vida qualificável; uma população de jovens pobres, negros, oriundos da periferia das cidades, que são visualizados no ordenamento jurídico não como cidadãos, mas como aqueles que devem ser combatidos por meio de políticas de segurança; uma população jovem que é abandonada pelas políticas de proteção, mas é superinvestida nas políticas de governo da população, sendo incluída para exclusão (Agamben, 1995/2010). Nesse ponto, residem a barbárie e o seu saber.
Encontramos, neste percurso de pesquisa, um promotor de justiça que defende a redução da maioridade penal e culpa os jovens individualmente por suas trajetórias de vida, defendendo a meritocracia e desconsiderando todas as questões sociais, como acesso à escola, saúde, família, etc.; um defensor público que simplesmente abandona a defesa dos jovens e se esconde atrás de uma frase jargão: “Nada a declarar, senhor!”; profissionais da psicologia, da psiquiatria e da assistência social sustentando formas de saber que produzem pareceres de verdade sobre a vida, que passa, a partir de suas falas, a ser tomada como patológica e/ou delinquente. São figuras do cenário de um arranjo político-social do Estado neoliberal, onde o Estado funciona na mesma lógica do mercado e as formas de investimento permitem a desqualificação da vida, em uma guerra de forças na qual os saberes não só individualizam e culpabilizam aqueles que não entram na lógica imposta pelo mercado, como também perpetuam formas de abandono que desinvestem a vida. Estratégias governamentais de um Estado/Mercado que superinveste no abandono, seja pelo não-investimento na proteção, seja reforçando a lógica de guerra e combate aos que não entram em sua lógica de mercado (Foucault, 1979/2008, Agamben, 1995/2010). Enfim, uma orquestra do próprio Estado que abandona o jovem em suas políticas de proteção, mas que o recoloca em cena quando o toma nas políticas de segurança.
Quais são os espaços da justiça na nossa sociedade ocidental democrática? O que implica a ideia de “sujeitos de direitos” colocada em nossa Constituição Federal? E mais: como essa ideia de justiça recai sobre essa vida jovem, quando Estatuto da Criança e do Adolescente à toma como “sujeitos de direitos”? Para Michel Foucault (1976/1988), o direito da vida e da morte concentrava-se na decisão do Rei, naquilo que poderíamos chamar de “Estado Absolutista”, pois, nessa forma de organização social e política, o soberano é detentor do poder de decisão sobre a vida de seus filhos e súditos. Tal forma de organização possibilitava ao Rei deixar viver ou fazer morrer. O poder, nesse tipo de sociedade, era representado pelo gládio e ligado à apreensão dos corpos, das coisas e da vida, poder que permitia ao soberano “se apoderar da vida para suprimi-la” (Foucault, 1976/1988, p. 148). Com o surgimento do Estado Moderno, Michel Foucault (1976/1988) afirma que o antigo direito de fazer morrer foi substituído pelo fazer viver e deixar morrer.
Nessa nova lógica de Estado, surge uma preocupação de gerir e de investir na vida do povo como população e corpo político, alvo de intervenções e passível de controle da gestão do Estado. Vê-se que a vida deve ser investida no seu detalhe mais ínfimo e sutil para tornar-se passível de gerenciamento pelos mecanismos de governamentalidade da razão de Estado (Foucault, 1978/2008) – e pelos saberes que o assessoram, em um primeiro momento – e, mais tarde, pela razão de mercado (Foucault,1979/2008). Como é possível identificar no curso Nascimento da Biopolítica (Foucault, 1979/2008), destinado a discutir as condições de emergência de uma outra razão de governar a vida, assegurando-se na lógica de fomentá-la, tendo em vista o fortalecimento do mercado, e não mais apenas do Estado.
Diante dessas questões relativas à biopolítica foucaultiana, Giorgio Agamben (1995/2010) propõe-se a dar continuidade aos estudos de Michel Foucault a partir de seu projeto de pesquisa intitulado Homo Sacer, no qual inicia uma série de estudos sobre biopoder, biopolítica, política e vida no Ocidente. Segundo Giorgio Agamben (1995/2010), a inserção da vida na polis, como alvo de uma ação política, não acontece na transformação do Estado territorial para o Estado moderno, em que, para Michel Foucault (1978/2008), os mecanismos de poder se deslocam do território para a disciplina e para a regulação da população. Cabe destacar que, no pensamento foucaultiano, a entrada das “vidas infames” a partir de ações formais que a tomam na política, que poderíamos indicar a partir das criações das clássicas instituições da modernidade, tais como hospitais, asilos, orfanatos, prisões, etc., se relaciona já a uma lógica biopolítica. A ideia de Giorgio Agamben (1995/2010), contudo, é que a biopolítica é bem mais antiga e se inicia com o advento da inclusão do homo sacer no direito romano arcaico, uma vez que já há uma inclusão da vida no ordenamento jurídico, ainda que seja incluída para ser abandonada, como é o caso da tese deste autor. Isto é, o homo sacer aparece como a inserção da vida desqualificada no campo da política, como parte de seu alvo, porém, não para receber investimento, mas abandono. O aspecto biopolítico agambeniano implica destacar a entrada que afirma a vida como alvo da política, mas na sua total desproteção. A discussão que Giorgio Agamben (1995/2010) salienta é pertinente a este estudo, pois, de acordo com o autor, “pode-se dizer, aliás, que a produção de um corpo biopolítico seja a contribuição original do poder soberano” (Agamben, 1995/2010, p. 14). Ou seja, a biopolítica — essa entrada da vida na política — não ocorre a partir da lógica moderna, mas é efeito de uma lógica soberana, muito mais antiga, porém presente na racionalidade política ocidental que encontramos nos dias atuais.
Além disso, o que Giorgio Agamben (1995/2010) destaca é que Michel Foucault, em seus estudos, abriu a possibilidade de pontos cegos, limiares onde nem o poder jurídico-institucional, nem as tecnologias de subjetivação, capturam o sujeito, em que ele atribui a si a tarefa de trabalhar em uma zona de indistinção: “precisamente este oculto ponto de intersecção entre o modelo jurídico-institucional e o modelo biopolítico do poder” (Agamben, 1995/2010, p. 14). Nesse sentido, a vida biológica está no centro do cálculo do Estado. Então, Giorgio Agamben (1995/2010) entende que a biopolítica, que, segundo Michel Foucault (1978/2008), se introduz com o Estado moderno, é tão antiga quanto a exceção soberana — exceção entendida aqui como o dispositivo decisório que permite a exclusão e a desproteção de certas categorias de vida.
É importante destacar que a tese principal de Giorgio Agamben (1995/2010) quanto a essa questão reside no entendimento de que o conceito de vida com o qual operamos ainda hoje na atualidade é o mesmo da Grécia Antiga, nessa divisão entre zoé e bios, entre uma vida qualificada e outra que é desqualificada. Dessa forma, ainda que clamemos por “direitos humanos”, por exemplo, a vida sobre a qual reivindicamos é sempre problemática porque habita essa cisão, esse desnível, a partir de uma concepção de política que não se implica com a ética, mas que remete ao campo do direito — campo esse que se vincula a aspectos relativos à culpabilidade, à aplicação de sentença e de normativas, à adaptação dos comportamentos e ao julgamento (Agamben, 1999/2008,; 1995/2010).
Giorgio Agamben (2003/2004) aponta também a inexistência de uma teoria do Estado de Exceção no direito, justamente porque o Estado de Exceção se constitui a partir da suspensão das normas da lei, mas fazendo vigorar outros elementos não-jurídicos, produzindo uma interseção entre o jurídico e o político, ao mesmo tempo em que a questão dos limites entre esses campos se torna emergente: “as medidas excepcionais encontram-se na situação paradoxal de medidas jurídicas que não podem ser compreendidas no plano de direito, e o Estado de exceção apresenta-se como forma legal daquilo que não pode ter forma legal” (Agamben, 2003/2004, p. 12). Nessa zona de indistinção entre o direito e o político, as medidas de exceção tornam-se as regras. Com essas afirmações de Giorgio Agamben (1995/2010), percebem-se os espaços onde o Estado democrático ocidental opera suspensões na lei e efetiva práticas de diferenciação a populações distintas, não no sentido da governamentalidade (Foucault, 1978/2008) que busca investir na população, mas em uma diferenciação que produz exatamente uma redução de algumas vidas à zoé; isto é, na desqualificação da vida para que não recebam investimento na lógica de um fazer viver, mas justamente para serem abandonadas e configuradas como vida nua; ou seja, trata-se de um fazer morrer (Agamben, 1995/2010).
Com esse pensamento de que existe uma população que é diferenciada da outra, consequentemente, é possível pensar e perceber que existem mecanismos governamentais que tomam a vida de diferentes formas, ou seja, uma vida é mais qualificável do que outra, sendo a criança “abandonada” alvo das políticas de proteção, e o jovem “menor”, alvo das políticas de segurança. Jovens sacer, alvo das políticas de segurança, formas de desinvestimentos pautados em práticas de exceção permeadas por técnicas de abandono, voltadas para uma vida nua, uma vida que não merece viver. Vida colocada nessa condição de sacer e reduzida a zoé, produzindo uma condição política que se impõe ao jovem e que o toma única e exclusivamente para o abandono, configurando não uma biopolítica, mas uma “zoopolítica”, ou seja, uma política para reduzir a vida à zoé, para produzir vida nua, para os desqualificados (Agamben, 1995/2010).
Segundo Walter Benjamin (1921/1986), é a violência que funda o direito, isto é, quando dizemos que temos direito à vida, não temos escolha, o direito nos capta. A lei “veste” essa vida e a toma como um dos seus objetos. Para o autor, a violência é o que alimenta a máquina jurídica. Quando nos remetemos ao campo do direito – entendendo que campo, para Walter Benjamin (1921/1986), é sempre um campo político —, saímos da ética. A violência, no pensamento benjaminiano, não diz respeito somente a atos cometidos para violar alguém ou os seus bens, mas também implica omissão. No que se refere à polícia, Walter Benjamin salienta:
O ‘direito’ da polícia é o ponto em que o Estado (...) não pode mais garantir, através da ordem jurídica, seus fins empíricos, que deseja atingir a qualquer preço. Por isso, ‘por questões de segurança’, a polícia intervém em inúmeros casos, em que não existe situação jurídica definida, sem falar dos casos em que a polícia acompanha ou simplesmente controla o cidadão, sem qualquer referência a fins jurídicos, como um aborrecimento brutal, ao longo de uma vida regulamentada por decretos. (Benjamin, 1921/1986, p. 166)
No entendimento de Walter Benjamin (1921/1986), a própria existência da polícia remete à ideia de vivermos em um Estado de Exceção, já que há uma instituição criada para operar e agir com a força, não agindo dessa forma com todos, mas com aqueles que vivem vidas infames. A violência, dessa forma, está presente em toda a máquina jurídica e tem na polícia seu maior ícone.
Nesse aspecto, a lei possui um caráter violento, e o seu exercício implica violência, o que não significa que haja justiça; a violência só existe na ação, no exercício da lei. Na esfera dessas relações entre direito e justiça, o direito interfere na ordem das relações jurídicas de meios e fins; já a violência só se apresenta na direção dos fins e muitas vezes é aclamada como se fosse uma aliada da justiça (Benjamin, 1921/1986). Dessa maneira é que é percebida na fala do promotor para o jovem sobre a necessidade de internação em comunidades terapêuticas como penalidade por uso de drogas, ou ainda em uma intervenção em que o promotor, ao terminar a audiência, chama o jovem e diz, sobre uma pulseira nas cores “rasta” que este usa: “Tira isso, pois isso te identifica como membro de uma gangue” (Entrada de diário de campo, agosto de 2013). O promotor, em nome da lei, acusa o jovem por suas trajetórias marginais e de infração e, por meio de depoimentos de testis, constrói o inquérito não para oferecer outros caminhos e possibilidades ao jovem, mas para consolidar sua “identidade” como marginal e perigoso. Ressaltamos que, para constituir dados que culpabilizam o jovem por atos infracionais e justificar ações punitivas, esse profissional, na promoção do acusar, se utiliza da lei por força de violência (Agamben, 2003/2004).
Por outro lado, a frase mais pronunciada pelo defensor público, “nada a declarar! ”, implica a suspensão da própria defesa do jovem. Nesse caso, a violência que a lei impõe é a omissão de um defensor que permite que a vida desse jovem não seja defendida, que conflite com a lei, sem que a justiça o defenda e somente o puna. Essa lei, que por vezes também se esvai nas mãos do defensor que não defende esse jovem e o abandona, produz aqui uma vida sacer, uma vida que não merece ser investida, vida banida e bandida que não é de ninguém, uma vida que vive no limiar do ordenamento e é tomada por força-de-lei para o abandono e a desqualificação (Benjamin, 1921/1986; Agamben, 2003/2004, 1995/2010).
As práticas direcionadas à juventude em conflito com a lei no sistema socioeducativo apontam para um cenário no qual o que se impõe é a violência em nome da segurança. Nesse cenário da vida, em que a soberania opera um exercício biopolítico (ou melhor, “zoopolítico”) como um dos meios de inserção no direito — mas não para proteção, e sim para abando da vida. As forças que constituem esse cenário tencionam proteção e punição, não de um modo binário, mas formando o espaço em que um jogo político econômico incide na cisão daqueles aos quais o investimento se dará na ordem da proteção e acesos a direitos, enquanto para outra parcela serão destinadas intervenções de caráter punitivo. Esse cenário dá visibilidade para a seletividade da lei, que operacionaliza processos de criminalização de marginalização. Nesse processo de seleção, há aqueles que, pelo contato com o poder, serão visibilizados pela infração, não pelas violações de direito anteriores ao ato infracional.
Nesta escrita buscamos problematizar o governo da população jovem que é inserida no sistema de justiça a partir do cometimento de ato infracional. Apesar de nossa ênfase ser em relação ao jovem em conflito com a lei, é possível identificar a realização de uma cisão nessa população, evidenciada desde o inicio do percurso do jovem na rede de atendimento, entre aqueles aos quais serão direcionadas estratégias protetivas e aqueles para os quais a punição — via medida socioeducativa de internação — tem sido a intervenção operacionalizada.
Salientamos, a partir das discussões realizadas pela pesquisa, que a juventude em conflito com a lei somente recebe visibilidade através do ato infracional, muito embora as situações prévias ao ato, tais como violações de direitos e processos de marginalização social, se constituam como a condição na qual essa juventude é forjada.
Na situação de pesquisa, através do acompanhamento das trajetórias dessa juventude pelo sistema judiciário, percebemos que as estratégias direcionadas a essa população operam com o objetivo de defender a sociedade dos possíveis danos que o/a jovem que comete ato infracional venha a oferecer. O contrário, contudo, não é visibilizado, isto é: os danos que a sociedade produz em relação ao jovem. Esse modo de produzir intervenções se baseia em diversos campos do conhecimento científico através da elaboração de discursos sobre uma juventude que passa a ser criminalizada pela sua própria existência.
Diante de todo esse contexto de práticas socioeducativas que perpetuam a violação dos direitos da juventude e da produção de conhecimento que subsidia tais práticas, apostamos na posição potente do pesquisador. Essa posição vale-se do conceito de testemunha como dispositivo ético e como possibilidade de subversão dentro do próprio campo de conhecimento, ao dar visibilidade ao funcionamento das barbáries institucionais e a uma política de escrita que pretende denunciar uma forma de lidar com essa população destinando-lhe uma moratória social que lhe é imposta.
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