O presente estudo examina um fenômeno sócio-histórico contemporâneo, cujas raízes remontam a uma das problemáticas mais urgentes de nossa realidade social. Diz respeito a uma parcela da população que, submetida a condições deploráveis de existência em razão de intensa pauperização, enfrenta diuturnamente o absoluto desamparo social, a ausência de políticas públicas e a violação de direitos constitucionais, o que contribui para desencadear processos de desumanização, sofrimento ético-político (Sawaia, 2009) e humilhação social (Gonçalves Filho, 1998).
Presente atualmente na sociedade brasileira, o referido fenômeno ganhou notoriedade em meados dos anos 19901, período em que a vulnerabilidade alcançou “visibilidade” (Argiles, 2012). O aumento expressivo da rualização tornou os grandes centros urbanos o lócus de uma realidade relegada às margens da vida na cidade: a situação de rua colocou em evidência as agudas disparidades econômicas e sociais que balizam a sociedade de classes.
Desde então, as pessoas em situação de rua converteram-se em uma questão pública relevante ou, como esclarece Daniel de Lucca (2007, p. 27), passaram a ser tratadas como “problema social e urbano”, que incomoda e se propaga, cabendo ao Estado contê-lo e monitorá-lo. Proliferaram-se investigações científicas que contribuíram para visibilizar as demandas desse segmento populacional, cujo propósito inicial consistiu em elucidar os condicionantes da rualização (Borin, 2005; Silva, 2006; Vieira, Bezerra & Rosa, 1992).
Se antes esta problemática era compreendida a partir dos postulados do determinismo – como um “modo de ser”, uma “rua sem saída” –, gradativamente as pesquisas começaram a ressaltar o caráter histórico-estrutural de produção e manutenção do fenômeno (Silva, 2006), ensejando discussões que colocaram em pauta a necessidade do delineamento de políticas públicas para o enfrentamento da realidade de exclusão e opressão (Amaral, 2010; Serafino & Luz, 2015). Passou-se, assim, a considerar as vivências resultantes do ingresso na rua e as possibilidades de superação dessa condição de vida (Mattos, 2006), entendendo os indivíduos não somente como sujeitos cujos direitos foram esfacelados, mas também como atores políticos (Argiles, 2012; Melo, 2011; Paula, 2012). Entretanto, a despeito das suas potencialidades humanas e políticas, as pessoas “depositadas” nas ruas das metrópoles permanecem obliteradas e marginalizadas – ou, como argumenta Bader Sawaia (1999/2001), incluídas de maneira perversa, destituídas do poder de decisão e transformação da própria existência.
Na cidade de São Paulo, o último censo contabilizou 15.905 indivíduos em situação de rua (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, 2015): 15.905 narrativas e fei
tos, memórias e histórias de vida que não encontram abrigo no mundo comum, sendo lançadas no silêncio, no esquecimento e no escamoteamento. São sujeitos que, embora vistos pelos olhos, são invisíveis socialmente; suas vozes – quando ouvidas – são entendidas como meros “ruídos”, manifestação de necessidades do corpo animal.
A situação de rua inscreve-se, portanto, no universo da invisibilidade pública. Para os cidadãos que se encontram nessa condição, os espaços citadinos e ambientes públicos, ao atualizar o conflito de classes, produzem uma espécie de desaparecimento social, que restringe as formas de resistência e reforça desigualdades estruturais (Gonçalves Filho, 1998). Além disso, ainda que consigam se esquivar da indiferença dos olhares são atingidos por representações sociais que os desqualificam, inferiorizam e ridicularizam, acusando-os pela vida de penúria (Mattos & Ferreira, 2004).
Haja vista a recorrente associação entre população de rua e prática de mendicância e a valorização excessiva do trabalho na sociedade capitalista, o indivíduo em situação de rua é tipificado como vagabundo, incapaz, “sujeito que não quer trabalhar” (Domingues Jr., 2003, p. 25). Com base no “discurso psiquiátrico” e, também, na correlação entre pobreza, delinquência e violência, essas pessoas são vistas como anormais, desviantes, transgressoras – por conseguinte, “socialmente ameaçadoras”. Em contrapartida, há o “discurso religioso” que concebe a experiência da rua como sofrimento, podendo proporcionar a salvação pessoal: sob este prisma, são coitados, dignos de pena por suas mazelas (Mattos & Ferreira, 2004). Cabe salientar, entretanto, que tais discursos repousam na mesma lógica de funcionamento: abrigam-se em um universo simbólico de caráter marcadamente ideológico.
Mas de que modo poderíamos representar o indivíduo em situação de rua, considerando que “suporta todos os ônus da sociedade, sem gozar das suas vantagens” (Marx & Engels, 1846/2007, p. 85)? Uma leitura atenta às narrativas tecidas pelas pessoas em situação de rua entrevistadas por Stoffels (1997 apud Mattos & Ferreira, 2004, p. 52), possibilita-nos perceber que estão impregnadas de ideias propagadas pelos setores socialmente favorecidos. Por trás da voz particular dos sujeitos, prevalecem os discursos que as culpabilizam pela própria existência de escassez e miséria: “o pobre é pobre porque não usou a cabeça”. São discursos fatalistas, que naturalizam a realidade estrutural da sociedade e solapam seu caráter histórico, tais como: “essa diferença não é culpa de ninguém. É assim”. Conforme indicam os depoimentos acima dos integrantes da população de rua, a percepção coletiva sobre a rualização – carregada de valores dominantes da sociedade –, interfere no modo como explicam e interpretam a realidade.
Faz-se necessário ponderar que a rualização configura-se não somente como uma condição de espoliação econômica e material, mas também de despojamento simbólico. Muitos são os entraves enfrentados em sua relação com a sociedade. O contato corriqueiro com a população de rua acarreta, no mais das vezes, uma espécie de dessensibilização em relação a esta condição social (Mattos & Ferreira, 2004). Não tarda para que haja a expansão da indiferença: estas pessoas são, então, despidas de sua condição humana; desconsideram-nas como iguais.
Ora, a desigualdade, na perspectiva assumida por José Moura Gonçalves Filho (2003), é uma experiência vivida na cena pública, sustentada pelos homens, nas interações sociais: manifesta-se no espaço público. A presença, contudo, não pode ser contada: tem-se uma vida reduzida à mera existência corpórea. A condição de ator político – usurpada pelo impedimento à participação – só é possível quando os homens, nas relações sociais, restituem o direito de agir e falar (Gonçalves Filho, 1998; 2003). Neste sentido, a memória oral, apoiada em testemunhos vivos, constitui-se como importante aliada: traz à tona para a esfera pública narrativas e feitos daqueles que estão às margens do mundo comum, impedidos de assumir a condição de ator político (Bosi, 2003; Frochtengarten, 2005).
Entretanto, nem sempre a memória “pronuncia-se” como força motriz de reivindicações históricas e luta por direitos, podendo figurar-se como uma construção ideológica (Ansara & Dantas, 2015). As ideologias, ao amalgamar-se à memória, impedem o sujeito de estabelecer uma relação com “o mais autêntico de seu passado, depurar o mais genuíno de seu presente e projetar tudo isso em um projeto pessoal e nacional” (Martín-Baró, 1997, p. 18), acarretando a alienação em relação à própria história de vida e aos determinantes sociais.
O presente artigo, que se originou de uma iniciação científica, tem como objetivo principal examinar a dimensão ideológica das memórias da experiência de rualização nas narrativas da população de rua. Em outras palavras, buscamos compreender, por meio dos depoimentos destes indivíduos, de que modo ideologia e memória se conjugam, criando um laço que colabora para sustentar e reforçar relações concretas de dominação.
No percurso da investigação das possíveis articulações entre os conceitos de “memória” e “ideologia”, uma questão inicial se coloca a nós: de que falamos quando aludimos ao fenômeno da memória? Embora seja comumente descrita como mecanismo de “registro” e “depósito” de informação, conhecimento e experiência, eis o que postula Elisabeth Jelin (2002): a memória refere-se a lembranças e esquecimentos, narrativas e atos, silêncios e gestos. Ainda envolve um jogo de saberes e emoções; fraturas e vazios.
A resposta a essa primeira pergunta nos instiga a formular outra indagação: “de quem é a memória?”. Maurice Halbwachs (1950/2004) – para quem as lembranças procedem da reconstrução do vivido – sublinha o caráter coletivo da memória. Sempre construída nos espaços de interação intragrupal e nas relações de pertencimento, a memória não deve ser compreendida como estrita e exclusivamente individual: as lembranças dependem do contexto social e resultam de um “processo de negociação” (Halbwachs, 1950/2004). A rememoração pessoal, ainda que seja uma atividade singular, é determinada pelas contingências histórico-culturais. Segundo Félix Vázquez (2001), a memória corresponde a uma construção social, um produto cultural e uma ação política, simbolicamente constituída, estruturada a partir da linguagem e carregada de significados compartilhados. A recordação está, pois, enraizada em alicerces externos e se dá associada aos sistemas de ideias, valores, imagens, símbolos, afetos e pensamentos coletivos.
Como postula Paul Ricoeur (1913/2007), o ser humano é dotado de potencialidades mnemônicas, que lhe possibilitam “fazer memória” (Ricoeur, 1913/2007). A palavra – matéria-prima basilar da realização humana – garante que se construa, de forma artesanal, uma interpretação e se outorgue um sentido ao passado: estamos, nos termos de Jelin (2002), diante de uma “memória narrativa”, a saber, que comunica o vivido. De acordo com Isabel Piper-Shafir, Roberto Fernández-Droguett e Lupicinio Íñiguez-Rueda (2013), toda produção mnemônica é uma forma de interpretar as vivências e eventos que passaram. As versões interpretativas do passado não decorrem dos acontecimentos recordados nem da factualidade pura, mas dos lugares sociais que os indivíduos ocupam no mundo e de sua localização nas tradições culturais e políticas. É possível, pois, elaborar múltiplas interpretações do passado, que se modificam conforme as experiências do presente (Bosi, 1979/2004). A memória é plástica, flexível e mutável, sujeita aos condicionamentos históricos, aos vínculos sociais, aos signos da cultura e aos sistemas linguísticos.
A elaboração de memórias pode ser uma forma de resistência à imposição do esquecimento como dispositivo institucional que apaga a experiência (Gagnebin, 2010). Embora a memória não seja plenamente confiável nem permanentemente autêntica e, em alguns casos, se apresente como uma disfunção das atividades mnésicas, uma espécie de “dano, fraqueza, lacuna”, o esquecimento pode ser resultado de um mecanismo de coerção, que estabelece uma única forma de lembrar, inibindo outras possibilidades de recordação (Ricoeur, 1913/2007, p. 424). O esquecimento, no entanto, é uma das condições do fenômeno mnemônico e não sua negação como se costuma argumentar. Em conformidade com essa tese, Pierre Nora (1984/1993, p. 9) afirma que a memória é “aberta à dialética da lembrança e do esquecimento”.
A condição para que a lembrança seja reconhecida como tal é sua articulação com o passado e sua atualização e reconstrução no tempo presente (Ricoeur, 1913/2007). Segundo Nora (1984/1993, p. 9), a memória “é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente”. Jelin (2002), por sua vez, assinala que o passado rememorado se dá no aqui e agora, em função de um futuro que se anuncia. Assim, podemos compreender o ato de recordar não somente como evocação e reconhecimento da lembrança, mas como um processo de ressignificação do passado que se configura a partir do momento atual e, ainda, do porvir. Eis, pois, o caráter aberto e provisório da memória.
Os exercícios da lembrança e do esquecimento derivam da ação da memória. Contudo, nem sempre o fenômeno mnemônico se realiza como uma “potencialidade” da condição humana. A realização da memória e o poder da narração podem sofrer a interpelação dos “usos” e “abusos” do dever de lembrar, o que desencadeia o esquecimento e a memória manipulada (Ricoeur, 1913/2007).
Pautando-se nas reflexões de Bosi (1979/2004) e Jelin (2002), podemos afirmar que a memória envolve reflexão e busca de sentido. O “compromisso afetivo” com o acontecimento o transforma em uma experiência memorável e nos impele a expressá-lo narrativamente e a arquitetar um sentido para o passado. Contudo, a interrogação sobre o passado é um processo que se dá em diálogo e interação: a memória incorporada narrativamente é, pois, aquilo que compartilhamos com um ouvinte.
Walter Benjamin (1936/2010) estabelece um forte vínculo entre memória, narrativa e experiência. O narrador tece sua narrativa com os elementos vivos da experiência e, para contá-la, dispõe de um acervo de toda uma vida, o qual engloba não somente suas próprias vivências, mas também aquelas relacionadas à coletividade. Capacidade de intercambiar experiências, a narração é a voz daquele que narra e também a voz dos diversos atores sociais.
Conforme Benjamin (1936/2010), a memória oral é o fundamento da narrativa, uma vez que permite ao narrador contar suas experiências ao ouvinte, cuja função consiste em transmitir as histórias ouvidas para conservá-las. Não há sentido na arte de narrar experiências se as narrativas não forem preservadas, se os ouvintes não se dispuserem a recontar as histórias ouvidas pela ação da memória. A narrativa não fica presa ao presente, desloca-se no tempo e no espaço, conservando sua força, expandindo-se e desdobrando-se em novas interpretações a depender do ouvinte. A arte de narrar experiências, em vias de se extinguir, não impõe nenhuma explicação, cabendo a quem ouve a incumbência de construir interpretações possíveis.
Resultado de um recorte realizado pelo próprio narrador, a narrativa não é um reflexo exato do fato vivido, não comunica o “puro em-si da coisa narrada”. Utiliza a experiência como matéria-prima de suas produções e imprime “a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso” (Benjamin, 1936/2010, p. 205). A narrativa consiste em um trabalho artesanal, como um ofício manual, ao qual quem narra dedica tempo suficiente para compor as histórias com a devida atenção.
Conforme Piper-Shafir, Fernández-Droguett e Íñiguez-Rueda (2013), a recordação da experiência implica em sua narração àqueles que demonstram interesse em ouvir e, depois, recontar. A narrativa corresponde à criação de relatos sobre o passado que configuram relações sociais, favorecem a produção cultural e ressignificam sistemas simbólicos. Ao compartilhar uma história com a comunidade de ouvintes, o narrador reconstrói suas lembranças dos acontecimentos que passaram e altera os sentidos das experiências vividas a partir das vivências do presente (Meneghel & Íñiguez-Rueda, 2007).
Dado que se apoia em testemunhos vivos, a memória oral consiste em um precioso instrumento para a construção da “crônica do cotidiano” (Bosi, 2003). Justamente por não produzir uma versão unívoca – por trazer em si o paradoxo e os conflitos do real –, a narrativa alicerçada na memória possibilita a desideologização: a emergência do discurso crítico, o antidiscurso que, elaborado no interior do discurso ideológico, coloca-o em movimento e o desconstrói (Chaui, 2005/2007). Para Ignacio Martín-Baró (1998), a memória consiste em um primeiro e importante elemento para a desideologização da realidade cotidiana. O resgate da memória histórica das camadas marginalizadas é, pois, um meio para a formação de consciência crítica e um indispensável instrumento de luta popular, uma vez que propicia o desvelamento da realidade objetiva e a desconstrução das ideologias. Entretanto, nem sempre a memória oral tem esse “caráter libertador”: pode tanto possibilitar a elaboração do contradiscurso ideológico quanto a propagação de ideologias.
Com base no materialismo histórico e dialético, compreendemos a ideologia como um corpus de ideias e representações que nos apresenta o mundo concreto de cabeça para baixo e que, portanto, é responsável por distorcer a realidade dos fatos: a aparência é captada como a essência do real (Marx & Engels, 1846/2007).
Como defendem Karl Marx e Friedrich Engels (1846/2007), os grupos hegemônicos no âmbito da vida material prevalecem na produção e distribuição das ideias de seu tempo. Isto quer dizer que – sob a égide da ideologia – os interesses concretos de grupos específicos circunscrevem-se na esfera da universalidade e generalizam-se: o discurso ideológico se apresenta como porta-voz dos interesses de toda a sociedade. Outra característica fundamental desse sistema de representações consiste na aliança e no compromisso com as demandas e interesses das classes dominantes.
Segundo Marilena Chaui (2005/2007), a ideologia “não pode permitir qualquer hiato entre a ‘verdade’ que profere e a ‘realidade’ social” (p. 42). Para garantir sua legitimidade, não se mostra inserida em um período histórico específico, contexto social ou grupo particular. As ideias aparecem descontextualizadas das contingências históricas e materiais em que foram produzidas, como se fossem autônomas e possuíssem vida própria. Apresentam-se como independentes do homem e dissolvem o vínculo existente entre o sistema de ideias e o autor de sua produção – a saber, aqueles que atuam no poder.
É, pois, trabalho específico da ideologia a naturalização do sistema social: “passa-se da história ao destino” (Chaui, 2005/2007, p. 40). Em vista das funções que desempenha e de sua roupagem de neutralidade, o discurso ideológico é utilizado por grupos hegemônicos com o intuito de propalar ideias que camuflem e justifiquem as injustiças sociais. As disparidades aparecem, então, como mera diversidade das condições de vida dos sujeitos (Chaui, 2005/2007). Assim sendo, embora a realidade constitua-se como uma pluralidade conflituosa, a ideologia outorga-lhe o que primordialmente lhe falta – a saber, a máscara da unidade, homogeneidade e harmonia.
Chaui (2005/2007) adverte-nos ainda de que o fenômeno da ideologia – apesar de sua gênese histórica e material – busca solapar seu caráter histórico. Nesta acepção, poder-se-ia dizer que, tendo em vista que a história é movimento, negá-la torna possível a atribuição de sentidos fixos e reificados aos fatos, inibindo “a compreensão de que o social e o político não cessam de instituir-se a cada passo” (p. 40).
Como pudemos verificar, são múltiplos os mecanismos da ideologia e seus préstimos aos grupos hegemônicos na cena social. Mas em que consiste a coerência desse conjunto de representações e normas? Eis o que afirma Chaui (2005/2007): o poder do discurso ideológico se localiza precisamente em seus silêncios e omissões. A lógica dos espaços em branco, das lacunas e dos não ditos confere coerência e plausibilidade à ideologia, garantindo, assim, seu poder de propagação e permanência. Se a ideologia preenchesse essas lacunas e dissesse tudo poria fim à sua própria existência. São justamente esses vazios que permitem a generalização: o discurso cabe em toda e qualquer situação, se encaixa em todos os casos.
Em sendo um importante instrumento das classes dominantes, a ideologia é hábil para conceber a visão de mundo e reger a percepção dos sujeitos. Isto significa que os setores socialmente oprimidos podem se apropriar dos sistemas explicativos que justificam sua própria condição de dominação e opressão (Martín-Baró, 1998). Conforme Soraia Ansara e Bruna Dantas (2015), ao ser internalizada, a ideologia – que se constitui como fenômeno externo e objetivo – converte-se em componente do psiquismo dos sujeitos, afetando os processos psicológicos da memória.
A ideologização da memória, segundo Ecléa Bosi (1979/2004), implica na sedimentação de interpretações hegemônicas do passado, elaboradas por grupos dominantes, com alto poder de propagação, os quais utilizam os esquecimentos, as omissões, os desvios e as distorções para alterar as narrativas biográficas, comprometendo a autenticidade das lembranças, esvaziando as experiências e impedindo o narrador de contar suas histórias a partir do vivido. As versões do passado justificam as relações de poder, tornando a memória oral mera reprodução da memória oficial (Ansara & Dantas, 2015). A memória instituída impregna as narrativas cotidianas, negando aos indivíduos a livre representação das vivências passadas, dada a supremacia dos discursos ideológicos que constituem verdades inabaláveis, transformando-as em convenções sociais mediante o silenciamento de outras vozes e o apagamento de outros enunciados (Ansara & Dantas, 2015).
Michael Pollak (1989) destaca o caráter uniformizador, generalizante e manipulador da memória oficializada e institucionalizada que, sob o poder das ideologias, cristaliza significados, neutraliza a crítica, distancia-se do real, prestigia crenças e atos de fé, legitima a normalidade da vida cotidiana, preza pela tradição e defende o princípio de autoridade. Em oposição à memória oficial, se estabelecem as memórias subterrâneas, clandestinas, proibidas, de natureza contraideológica, que subsistem ao silêncio e à invisibilidade, manifestando-se em situações de crise para subverter a ordem. Inaudíveis e indizíveis, as memórias marginalizadas das minorias políticas, em disputa sigilosa com a memória do establishment, impedidas de circular na esfera pública, resistem ao desaparecimento por meio de sua transmissão oral às gerações subsequentes, pressionando para romper com as “zonas de sombra, os silêncios e os não-ditos” (Pollak, 1989, p. 08).
O trabalho de enquadramento da memória, como salienta Pollak (1989), visa definir as interpretações do passado segundo critérios estabelecidos pelo poder constituído com vistas a cristalizar os enunciados dominantes e impedir o surgimento de outras formas de lembrar, mantendo no esquecimento, no silenciamento e na clandestinidade outras vozes. Uma memória enquadrada é uma memória ideologizada, também denominada por Ricoeur (1913/2007) de memória manipulada. Como propõem Maria José Reyes, Juan Muñoz e Félix Vázquez (2013), políticas de memória devem ser formuladas de baixo para cima como resultado de um compromisso ético-político com todos aqueles cujas vozes foram bloqueadas de modo que os sem voz se sintam livres para pronunciar a palavra negada, favorecendo a expressão das memórias subjugadas, a desconstrução das ideologias consolidadas e a manifestação dos antagonismos em relação à memória institucional.
Adotamos como recurso metodológico a realização de entrevistas com base nas premissas da história oral. A despeito da pluralidade de concepções que atravessam o campo e fomentam intensas discussões, há uma convergência em relação à dinâmica do referido trabalho: debruça-se sobre a memória para apreender a versão e visão que emana da experiência dos atores sociais; atem-se à narrativa em suas nuances, ênfases, imprecisões e deslocamentos (Meihy & Holanda, 2007/2013; Thompson, 1935/2002; Thomson, Frisch & Hamilton, 1998/2006).
Ao recorrer à história oral, devemos ter em vista que se trata, para além de um trabalho científico de cunho analítico, de um “trabalho social” (Le Ven, Faria & Motta, 1996). Há uma preocupação em conceber um espaço em que o indivíduo possa se perceber como ator social e “criador de história”. Ao estabelecer um “laço de presença” entre o narrador e o ouvinte, criamos condições para que o sujeito discurse, seja visto e ouvido; torne-se conhecido e re-conhecido por sua história de vida. Portanto, o momento da entrevista não deve ser entendido apenas como fonte para material de análise e produto final da pesquisa. Como assinalam Le vem et al. (1996, p. 66), temos “um momento fundante no qual não só se recolhe a história, mas se vive a memória e se cria um acontecimento que também faz história”.
Concernente à coleta de dados, as entrevistas foram realizadas no período de março a junho de 2016, em um Núcleo de Convivência para Adultos em Situação de Rua da cidade de São Paulo. Por ser um espaço em que transitam cotidianamente pessoas em situação de rua, a referida instituição favoreceu o contato com os indivíduos. No total, participaram da pesquisa sete homens e uma mulher, cujo tempo de permanência nas ruas variou entre 03 e 24 anos, como informou os próprios sujeitos nas entrevistas.
Nos encontros, solicitamos aos participantes um trabalho de memória sobre as experiências na rua. Em nossa concepção, o campo compartilhado pelo narrador e o ouvinte-pesquisador deveria assegurar condições para que as experiências surgissem com autonomia, no ritmo do memorialista (Bosi, 2003). Em contrapartida, uma entrevista sem roteiro arriscaria precipitar-se em associações arbitrárias, desembocando em narrativas que pouco, ou em nenhum grau, acessariam a memória da experiência e o enfrentamento do problema de pesquisa (Gonçalves Filho, 2003). Com vistas a possibilitar uma confluência entre a construção de um depoimento livre e os objetivos do estudo, definimos, então, alguns temas que seriam apresentados aos sujeitos.
Todavia, ao longo de algumas entrevistas, percebemos que os temas não evitavam o afastamento do problema de pesquisa. As experiências transmitidas oralmente eram selecionadas de sorte que a “situação de rua” jazia, no mais das vezes, à margem dos discursos. Quando brotavam, eram narradas amiúde na terceira pessoa do singular e/ou plural. Na construção narrativa da história de vida, um passado mais longínquo (anterior à rualização) foi privilegiado pelos memorialistas. Diante disso, passamos a solicitar apenas que compartilhassem suas histórias pessoais e experiências de vida, sem fazer menção à trajetória na rua. A mudança de estratégia consistiu em observar se os sujeitos traziam à tona a memória da experiência de rualização de maneira espontânea em seus depoimentos.
No tocante à análise do material coletado, valemo-nos dos pressupostos metodológicos da “Hermenêutica de Profundidade”, propostos por John Thompson (1995/2000), que se dá em três dimensões, a saber: análise sócio-histórica, análise formal ou discursiva e interpretação/reinterpretação. Inicialmente, identificamos as ideologias presentes nos depoimentos e o contexto histórico-social em que elas são recebidas e transmitidas. Esta etapa nos possibilitou a apreensão dos atravessamentos históricos e sociais na constituição da memória e produção discursiva dos sujeitos. No segundo momento, realizamos a análise formal, a qual visou examinar e elucidar a estrutura e os padrões dos discursos. A terceira e última fase, que ocorreu por meio da conjugação das que a precederam, correspondeu à interpretação/reinterpretação das formas simbólicas. No movimento de síntese criativa, buscamos a construção de sentidos que permitissem explanar as possíveis relações entre “memória” e “ideologia”. No processo analítico, algumas categorias ganharam destaque, sendo incorporadas à discussão do problema de pesquisa, quais sejam: “esquecimento”, “trabalho”, “meritocracia”, “identidade” e “presentismo”.
Ressalta-se, por fim, que em virtude da complexidade do fenômeno, não foi possível ater-se apenas aos depoimentos. Atentamo-nos ainda à relação que se estabeleceu entre a pesquisadora e os participantes, tanto no instante da entrevista – o elo narrador-ouvinte – como nos momentos que a antecederam – circulação no espaço e abordagem dos sujeitos. A análise não incidiu somente sobre os conteúdos das narrativas, mas também em como os fios compõem a tecedura das histórias de vida e trazem à baila – ou não – a memória das experiências de rua.
Como matéria-prima da presente discussão, recorreu-se aos depoimentos dos memorialistas. De modo a permitir elucidar as articulações possíveis entre a memória e a ideologia, nos ateremos às lembranças e aos esquecimentos; mas também ao aspecto entonacional da fala, em suas ênfases e sutilezas; aos lapsos, pausas e silêncios narrativos. Entretanto, o fio condutor da análise será a experiência de interlocução com os sujeitos.
Em um trabalho científico de caráter teórico-empírico, aquilo que se designa comumente de “campo de pesquisa” não é um “espaço blindado”, alheio às relações de dominação; ao contrário, nele materializam-se, de forma singular, os antagonismos de classe (Gonçalves Filho, 2003). Por essa razão, não obstante os parágrafos seguintes façam referência ao método, entendemos que a relação entre a pesquisadora e os participantes é uma variável relevante, dada sua interferência na produção das narrativas, não devendo ser banida do processo analítico e da discussão dos discursos. A análise aqui realizada não considerou apenas “o quê” os indivíduos relataram, mas também “em que contexto” e “sob quais condições”.
Como ponto de partida, faz-se necessário destacar alguns entraves que, à primeira vista, parecem comuns ao trabalho de campo, mas que têm suas raízes em problemáticas de ordem estrutural. Antes da realização das entrevistas, visitei por vezes o espaço com o intuito de conhecê-lo e, na medida do possível, aproximar-me dos conviventes. Não tardou para que um interposto se colocasse entre mim e as pessoas que ali se faziam presentes. Notei que minha presença, por vezes, era encarada como potencialmente opressora: comparecia – ainda que não quisesse – como representante dos segmentos sociais favorecidos.
Enfrentei dificuldades para encontrar participantes. Em certo sentido, foi possível depreender que os entraves a participar da pesquisa eram mais uma ressonância do impedimento à participação igualitária (Gonçalves Filho, 2003). A palavra minguou, a iniciativa se retraiu: “não tenho nada pra contar não, moça” (Ana, entrevista pessoal, maio de 2016). Ainda, deparei-me com obstáculos para encontrar narradores. Em vista da abundância de discursos despejados nesses sujeitos, como romper com as amarras da reificação que os impedem de tomar a palavra? “Eu quero participar, mas não tem história nenhuma pra contar”, disse-me Lúcio2, 56 anos e 4 em situação de rua (entrevista pessoal, março de 2016).
No início dessa empreitada, dei-me conta de que a pesquisa com pessoas em condição de vulnerabilidade social pode traduzir-se em uma forma de violência, ainda que o pesquisador realize a tão aclamada “abordagem humanizada” e se dedique a estabelecer uma “relação horizontal” com o outro. Inevitavelmente, as ressonâncias das contingências sociais e econômicas atravessaram a relação pesquisador-participantes (Gonçalves Filho, 2003). Não foi possível erradicar a assimetria: o esforço para amortecê-la visou, sem êxito, superar posições sociais opostas, que produzem o desnivelamento da realidade objetiva e intersubjetiva. Porém, desigualdade é desigualdade. Embora nos reconhecêssemos mutuamente como humanos, as relações de poder evidenciaram-se nos vínculos.
No entanto, há que se considerar que deixar estas pessoas à margem das pesquisas acadêmicas implica, em alguma instância, em reproduzir e reforçar a lógica do silêncio e a condição de invisibilidade: as narrativas do sujeito são, por conseguinte, substituídas pelo discurso competente – impessoal e anônimo, “sem autor” e “sem produtor” (Chaui, 2005/2007). Neste sentido, a investigação em Psicologia Social pode propiciar a visibilização e a vocalização, trazendo para o âmbito público demandas, histórias e memórias daqueles cuja aparição é negada.
Durante as entrevistas, respeitei a decisão dos memorialistas de construir um discurso livre, compartilhando histórias da rua e emitindo opiniões sobre as condições psicossociais do processo de rualização. Constatamos, contudo, que as narrativas não eram espontâneas: o ouvinte interfere, ainda que esteja em silêncio e queira propiciar “liberdade plena” àquele que narra (Benjamin, 1936/2010). Na conversa com os sujeitos, ficou evidente que as agudas assimetrias que demarcam os diferentes lugares sociais – tanto daquele que narra quanto daquele que ouve – são condições que interferem no trabalho de memória e seleção narrativa. “Olha, eu não gosto de contar. Mas… [pausa]. Como a senhora é uma doutora, uma psicóloga… Eu tenho que falar” (Lúcio, entrevista pessoal, março de 2016), disse-me o entrevistado, quando lhe solicitei que compartilhasse suas histórias da rua. Reportando-nos a Chaui (2005/2007), percebemos que se trata dos ecos do discurso competente – aquele que, sob o status de verdade, é autorizado a falar, aceito socialmente e ouvido com atenção.
O ato de narrar não se realiza, pois, sem a implicação do ponto de vista psicossocial. Considerando que a “interrogação do passado” é um processo que se passa em diálogo e interação (Jelin, 2002), faz-se necessário indagar: “quem” é o sujeito que narra e a “quem” se destina a narrativa?
Hannah Arendt (1958/2014) assevera que subjacente ao discurso está a resposta à pergunta “quem és?”. “Eis o que sou”: a narrativa – tal como a ação – revela o “quem”, possibilitando o aparecimento do indivíduo no mundo humano. Disso depreende-se que o caráter seletivo da memória oral está intrinsecamente relacionado à problemática da identidade: compareço frente a outrem como representante-de-mim-mesmo (Ciampa, 1987). Ao apresentar-me e representar-me, “quem fala é o representado, por meio do representante” (Ciampa, 1987, p. 173):
A diferença entre morador de rua pra mim é diferente. Eu não me misturo com essa raça aí! Eu sou único! A hora que eu sinto sono, eu procuro um lugarzinho tranquilo, sossegado e descanso. Amanheceu o dia, eu levanto e vou embora. Eu não sou igual eles… Que enche o… de pinga ou droga e sai por aí zoando. Não. Eu não me misturo com eles. Eu não faço parte dessa gangue. Eu sou uma pessoa… sofrendo. Necessitado. Mas eu nunca vou me entregar a esse povão aí. Só pensa em droga, em porcaria, em sacanagem, em roubar. Eu não. […] Eu não me comparo com eles. Então, tem diferença: morador de rua pra mim… Eu não sou morador, eu sou necessitado… De casa. (César, entrevista pessoal, junho de 2016).
Articulação entre igualdade e diferença: a um só tempo, diferenciamo-nos dos grupos sociais aos quais não pertencemos e nos igualamos àqueles dos quais fazemos parte (Ciampa, 1987). Assim sendo, a mobilização da memória favorece a formação identitária: “lembrar-se de algo é lembrar-se de si” (Ricoeur, 1913/2007, p. 136). Entretanto, o que fica à margem do discurso também revela um “quem” – “quem não sou”.
Em certo sentido, a dialética lembrança/esquecimento participa ativamente do processo de produção da identidade: manifestamos (lembramos) e obliteramos (não-lembramos) partes da totalidade de nossa história. Nesta acepção, as lembranças são o sustentáculo da identidade ao longo do tempo. “Não tem lembrança de rua! Você não entendeu ainda? Eu não sou morador de rua!” (César, entrevista pessoal, junho de 2016) – exclamou-me o participante, quando mencionei a trajetória na rua. Consoante ao exposto, Bosi (2003, p. 17) escreve: “não há memória para aqueles a quem nada pertence”. O despojamento material, o sentido de urgência da vida e a “perpetuação” do presente representam um impedimento à sedimentação da lembrança da experiência de rualização e, consequentemente, à construção da memória.
Na análise da narrativa do sujeito entrevistado, identifica-se a presença de “enunciações negativas”, associadas ao “eu”, que revelam a recusa da identidade que lhe foi atribuída socialmente, relacionada à situação de rua. O narrador rejeita quaisquer recordações que sejam edificadas sobre a experiência de vida na rua. Portanto, para negar a “lembrança da rua” precisou esquecer-se do passado recente, demonstrando identificação com um passado mais longínquo, anterior à rualização:
Eu tenho herança na Bahia. Eu sou herdeiro de pai e mãe. Eu tenho 20 por cento de uma casa. Mas eu só vou pra lá quando eu entrar em acordo com meus irmãos. […]. Mas eu sou digno. Não me misturo com essa raça aí. É diferente. […] Eu sou formado, diplomado! Então, eu não sou porcaria, não. Eu sei fazer tudo dentro de uma casa. […] Só falta uma coisa pra mim: dinheiro pra comprar uma casa… (César, entrevista pessoal, junho de 2016).
Quando César afirma “não tem lembrança de rua”, a que se refere, à inexistência da memória ou ao esquecimento da experiência de rualização? A identificação do sujeito com sua história pregressa, precedente à trajetória na rua, é uma evidência de que os processos grupais são indispensáveis à constituição da memória: temos o hábito de lembrar enquanto membros de grupos específicos. César foi perdendo o contato com as pessoas e passou a viver em condição de isolamento, sem pertencer a lugar nenhum e sem acionar a memória do sofrimento na rua: “Sou sozinho, um lobo solitário. [...] Pra mim... Normal. É triste, é cruel” [sic] (César, entrevista pessoal, junho de 2016). O pertencimento grupal favorece a recordação pessoal, ou seja, a evocação e a reconstrução do passado vivido, situando-a em um quadro espaço-temporal.
A tensão entre o passado que se rememora e aquele que se esquece, presente no depoimento de César, é mediada pelo conflito entre os significados engendrados pelos grupos hegemônicos – constituintes da “memória coletiva organizada” (Pollak, 1989) – e os sentidos da rualização para o sujeito, oriundos de sua história de vida e experiências singulares. Nesse caso, o não-lembrar, resultado de um processo ativo e passivo, não se traduz como inexistência de uma memória da experiência de rualização, mas como ausência e impedimento da lembrança. O esquecimento, como esclarece Bosi (2003, p. 17), decorre da “força da memória coletiva, trabalhada pela ideologia, sobre a memória individual do recordador”.
No decorrer das entrevistas, por diversas vezes, emergia a seguinte inquietação: “onde” está a memória da experiência de rualização? Quando lhes solicitava que compartilhassem as lembranças concernentes à trajetória na rua, os memorialistas respondiam-me ora com silêncio, ora com esquecimento. Este foi o caso de Giovani, 39 anos de idade – 25 em situação de rua –, cuja resposta se manifestou com silêncios: “Ah… [silêncio]. Nada pra Deus é difícil. Quem está em situação de rua tem que aprender a apanhar e bater pra sobreviver [silêncio]” (Giovani, entrevista pessoal, abril de 2016).
Rosângela, 30 anos de idade, desde os 13 em situação de rua, escolheu compartilhar comigo as lembranças que não teve: “A lembrança que eu queria ter, é ter conhecido minha mãe. Eu nunca conheci minha mãe. Eu não sei o nome dela”. Porém, quando mencionei a palavra lembrança acompanhada da palavra rua, o silêncio interceptou a entrevista – melhor dizendo, a recordação: “Lembranças? Filhos. [Silêncio]. Posso ir?” (Rosângela, entrevista pessoal, março de 2016).
Silêncio: omissão, esquecimento ou impedimento? Apoiados em Ricoeur (1913/2007) e Jelin (2002), podemos entendê-lo como uma manifestação do esquecimento. Sob esse aspecto, o silêncio pode revelar uma memória impedida – uma memória esquecida –, a saber, aquela que, em decorrência do trauma, não pôde ser incorporada narrativamente: faltam palavras para expressar e outorgar sentido à experiência; as lembranças escapam, então, à voz. Por outro lado, existem silêncios impostos socialmente: a condição de silenciamento, oriunda do impedimento à participação. O cidadão impedido é também o cidadão despojado do direito à palavra.
Há, ainda, a “vontade de silêncio” (Jelin, 2002): de não contar, não transmitir; de guardar em espaços impenetráveis a lembrança. Neste sentido, Giovani afirmou: “Porque se eu for contar minha vida aqui, até boiadeiro chora [silêncio]. Então eu quero, assim, que converse umas coisas que esqueça o passado, claro” (Giovani, entrevista pessoal, abril de 2016). É, pois, um silêncio que vai ao encontro do esforço de apagamento do passado.
Lúcio, no decorrer de nossa conversa, alegou diversas vezes: “tô com esquecimento, esquecimento, esquecimento”. Em razão disso, pedia-me com frequência um “encaminhamento”. Assim, o esquecimento foi sentido como “lacuna”, aproximando-se da noção de prejuízo, fraqueza, disfunção dos processos mnêmicos. A memória se manifestou, então, como uma “súplica” a não esquecer: “Eu tô esquecido. A senhora me desculpa. A senhora precisa me encaminhar. Eu preciso… Às vezes, eu saio daí pra lá e pá: esqueço tudo” (Lúcio, entrevista pessoal, março de 2016).
Ao longo de nossa conversa, a verdadeira razão do seu esquecimento foi se revelando: “tô tomando barrigudinha pra esquecer do passado [sic]”. Não tardou para que ficasse evidente que o passado ao qual fazia menção remetia a um período mais recente e específico de sua trajetória – a rua. “O senhor poderia compartilhar comigo algumas lembranças da trajetória na rua?”, perguntei-lhe. Eis a resposta: “Eu tenho [lembranças] da minha vida. É Cristo. Passado é passado, não falo pra ninguém” (Lúcio, entrevista pessoal, março de 2016).
Como pudemos observar, as narrativas dos atores sociais penderam para um ponto comum em relação à memória da experiência de rua: o esquecimento que, aqui, se revelou como “verbo”: “ato ou efeito de esquecer”. Em outras palavras, como exercício, é um desdobramento do trabalho de memória (Jelin, 2002; Ricoeur, 1913/2007). Não é possível lembrar-se de tudo. Assim como não é possível narrar tudo. Ao buscar na memória a matéria-prima da narrativa, há uma seleção ativa daquilo que será elevado à condição de lembrança ou será relegado à condição de esquecimento.
A elaboração da narrativa envolve a capacidade de esquecer? Hiato entre a experiência e a memória, o esquecimento pode ser traduzido como uma operação de distanciamento. Neste momento, abro parênteses para lembrar o leitor-ouvinte de que as representações sobre população em situação de rua são pejorativas, marcadamente ideológicas. Em função dessa forte estigmatização social, intenta-se apagar e esquecer uma parte da história vivida: a situação de rua. Nas narrativas dos sujeitos com os quais conversei, o “trabalho de esquecimento” se manifestou por intermédio do silêncio e da palavra.
No caso da memória ideológica, verifica-se que, no lugar da experiência do sujeito, surgem as mediações de um discurso que apresenta lacunas e espaços em branco, favorecendo generalizações e distorções (Chaui, 2005/2007). O sujeito deixa, então, de ser autor de sua própria história: onde o esquecimento impera, a ideologia protagoniza. “Está em ação aqui uma forma ardilosa de esquecimento, resultante do desapossamento dos atores sociais de seu poder originário de narrarem a si mesmos” (Ricoeur, 1913/2007, p. 455). O discurso “sem autor”, “sem produtor”, “sem história” – característico da operação ideológica – deriva do despojamento do ator político.
Se, por um lado, o esquecimento revela a necessidade de lançar luz à existência de uma história de vida que transcende a condição de rua, afirmando a existência de um sujeito em sua totalidade múltipla; por outro, oferece-se como um importante aliado da operação ideológica. Além da dimensão ideológica, outra importante função do esquecimento ganhou destaque nas narrativas. Como indicam os depoimentos, acionar a memória da experiência de rua implica em trazer à tona a vivência de intenso sofrimento e humilhação social. Nesse sentido, o ato de esquecer é uma tentativa de evitar, embora sem êxito, o contato direto com a dura realidade de exclusão e opressão: “É muito sofrimento. [...] Você não viu no livro. Você viveu. Vida real. Pau a pau. Pele, sangue. Desculpa se de repente... É porque é muita coisa na mente... Não dá pra lembrar de tudo” [sic] – denuncia Carlos, 44 anos de idade e 10 enfrentando a rualização (entrevista pessoal, maio de 2016).
O sofrimento ético-político (Sawaia, 2009) articula-se ao sofrimento indizível (Gagnebin, 2006/2009). Em razão dos processos de desumanização, da condição de silenciamento e invisibilidade pública, o esquecimento revelou-se, nas entrelinhas das narrativas, uma expressão daquilo que “ainda não teve direito nem à lembrança nem às palavras” (Gagnebin, 2006/2009, p. 55). O ato de esquecer tem uma dimensão que é da ordem da irrepresentabilidade social. Vale lembrar: a memória da experiência de rua refere-se à memória de sujeitos “esquecidos”. É de se notar que o impedimento da lembrança é também um impedimento vivido nas relações sociais cotidianas, por sujeitos que ora são alvo de repúdio, ora de indiferença.
Nos encontros com os sujeitos, ora solicitei um trabalho de memória sobre a experiência na rua, ora pedi que narrassem suas histórias pessoais, sem fazer qualquer menção à trajetória na rua. Em ambos os casos, os memorialistas – no mais das vezes – optaram por compartilhar suas experiências de vida, que caracterizaram o período anterior à rualização. É pertinente ressaltar que, conforme Bosi (2003), a memória oral não segue marcações cronológicas rígidas e tampouco é linear. Não obstante, há marcos, que adensam sentidos pessoais e significados compartilhados, em torno dos quais gravita o processo de recordação: “um desejo de explicação atua sobre o presente e sobre o passado, integrando suas experiências nos esquemas pelos quais a pessoa norteia sua vida” (p. 419). Nesse sentido, tornou-se notório que a temática “trabalho” foi o principal critério de construção dos discursos, o “fio de ouro” das narrativas dos sujeitos.
Se eu chegar numa empresa, agora, para fichar… Aí o patrão, tudo bem… passou na entrevista… Falou que tá em situação de rua… Infelizmente, não sei… [silêncio]. Isso daí machuca a gente. Sabe o que é machucar? Uma facada dentro do coração. Poxa! Ninguém é malandro, ninguém é bandido, ninguém não é nada, cara! Nós é trabalhador! Minha mente fica ruminante. Poxa… Nunca fui pelo crime, nunca! [sic] (Lúcio, entrevista pessoal, março de 2016).
A leitura atenta às narrativas possibilitou-nos perceber que estão impregnadas de uma ideia propagada pela classe dominante no âmbito da vida material: “o trabalho dignifica o homem”. Por trás da voz particular do sujeito, prevalece o discurso que universaliza o trabalho como única possibilidade de alcançar a dignidade. A “quem” o trabalho dignifica? Ora, as condições concretas revelam que, no sistema capitalista de produção, o trabalho – alienado – converteu-se em um instrumento de opressão e, até mesmo, de desumanização do homem.
Eu já tive outras vezes empregado […] mas eu tô pretendendo voltar a trabalhar de novo. O trabalho pra mim é bom. Ter seu dinheiro, pagar aluguel, pagar as contas. […] E agora eu tô catando uma latinha. Aí, a renda é pouca. Dez reais por juntada de lata. Aí eu pego das seis às dez da noite […] e vou dormir (Antônio, entrevista pessoal, abril de 2016).
De um lado, tem-se a tríade meritocrática (posição, qualificação e desempenho) como um aspecto elementar desse discurso e, nos termos de Souza (2006), o “cidadão completo”; de outro, a “censura” dos sujeitos alijados do mercado ou incluídos perversamente na estrutura do trabalho – considerados improdutivos, inúteis e vagabundos –, os subcidadãos. Embora as pessoas em situação de rua sejam testemunhas vivas da falácia de que “as oportunidades são equânimes para todos”, há ainda uma profusão de narrativas constituídas de ideologias meritocráticas.
O fato não é você querer, o fato é você conquistar o seu objetivo. Quando tem um objetivo, você batalha e conquista esse objetivo. Você venceu, caramba! Mas venceu pelo quê? Pelos seus méritos. Pela sua insistência, pela sua batalha… Ou não foi? Ou você acha que alguém vai vir te ajudar? Não. Quem te ajudou foi você mesmo. Tua força interior (César, entrevista pessoal, junho de 2016).
Olha, eu já fiz umas entrevistas. Eu tô com uns currículos aqui pra trabalhar… Pra trabalhar. Porque eu tenho certeza, certeza que a força de vontade da gente ajuda. (Lúcio, entrevista pessoal, março de 2016).
Na atual conjuntura, a meritocracia figura como uma das principais ideologias, sendo a força motriz da hierarquização social. O discurso do mérito pessoal reforça a concepção de que as pessoas em situação de rua “não se esforçam” ou não são “qualificadas” e, portanto, “merecem” a condição em que se encontram. Ora, a ideologia não diz tudo (Chaui, 2005/2007) e oculta as determinações sociais e históricas das condições materiais de existência e da desigualdade objetiva, o que contribui para naturalizar e justificar as assimetrias:
Você nunca vai ter tudo. [pausa]. Você vai ter uma coisa e falta outra. Mas a culpa não é de Deus, a culpa é sua. Ou você vai por a culpa em Deus? É, mas a maioria das pessoas põe a culpa nele. Ele não deu o livre arbítrio? Que é livre arbítrio? […]. Você escolher o seu caminho… Agora siga a sua estrada (César, entrevista pessoal, junho de 2016).
Por consequência, é um discurso que transfere ao indivíduo a responsabilidade pelas condições da própria vida, desconsiderando o funcionamento da ordem social e os processos econômicos. Como é possível perceber no depoimento de Antônio, o discurso do mérito pessoal postula que é possível a superação dos dilemas e dificuldades do cotidiano por meio dos esforços pessoais: “aí é um motivo que tem que sair da rua… Você pode olhar pra frente e… Tem uma meta, né? Pouca coisa vai te impedir” (Antônio, entrevista pessoal, abril de 2016).
Os discursos sobre o trabalho e o mérito pessoal, sustentados pela lógica neoliberal, dizem respeito ao tempo presente e à particularidade histórica da nossa época. Entretanto, não é porque os depoimentos estão situados no presente que se pode afirmar que não representam a memória e são meras ideologias. A memória não se enraíza exclusivamente no passado. Ansara e Dantas (2015) afirmam que o processo de recordação não se reduz apenas à evocação da lembrança, reconstituição anacrônica da coisa lembrada; mas realiza-se como constante construção e reatualização da memória, a partir não somente das experiências, mas também dos significados do presente.
Vê-se, a partir dos depoimentos, que o jogo de forças entre lembranças e esquecimentos se realiza em função das relações reais que os sujeitos estabelecem na vivência concreta da rualização. Tendo em vista a forte estigmatização, banalização e invisibilidade, a única forma de se “recuperar” a dignidade – conforme apregoam as ideologias vigentes – é por meio do trabalho (venda da força de trabalho) e dos esforços pessoais. Neste sentido, nota-se que os discursos ideológicos intervêm fortemente no trabalho da memória, atuando junto à seleção, evocação e reconstrução daquilo que se lembra e esquece.
Como se dá, então, a ideologização da memória por intermédio da lembrança? A função seletiva e mediadora da narrativa pode tornar a memória uma construção ideológica. O narrador se debruça sobre a memória – “musa da narrativa” – para buscar sua matéria-prima – a experiência – e se constituir (Benjamin, 1936/2010). Porém, aquele que narra não recorre apenas à experiência “vivida na carne” para tecê-la, mas também se apoia nas representações que circulam no imaginário social.
Neste sentido, Halbwachs (1950/2004) defende que os indivíduos pensam e recordam sob uma base comum, ainda que tenham seu próprio ponto de vista. Há, portanto, pontos de referência que fornecem os alicerces de nossa memória. Aqui, entram diversos mecanismos em jogo, como por exemplo, as ideologias. Sabemos que os discursos sobre a população em situação de rua enquadram-se na categoria da ideologia, haja vista que justificam, legitimam e cristalizam relações de dominação, colaborando para a manutenção da estrutura social estabelecida.
As narrativas socialmente compartilhadas, ao operarem como instrumento mediador da memória e contribuírem com sua configuração, interferem na imagem lembrada pelo indivíduo. A recordação do passado vivido pode, pois, sofrer a interferência das narrativas oficiais que circulam na malha social (Ansara & Dantas, 2015). Além do discurso do mérito, que se revelou nos sentidos particulares como possibilidade de superação da vida nas ruas mediante esforços pessoais, identificamos nos relatos dos sujeitos a ideologia fatalista: sentimentos de desesperança e impotência, comportamentos de passividade e resignação, bem como ideias que apregoam a inevitabilidade do destino e a impossibilidade de modificar o horizonte da existência (Dantas, 2015). Como relata Carlos: “Voltando pra rua, eu tô com… Seis meses. Mas, até então, eu tava há 10 anos ou mais, envolvendo albergue, rua e favela… […] Então, quer dizer, eu fico desnorteado aguentando sofrer tudo calado, entende? Não podendo fazer nada, me sentindo impotente” (entrevista pessoal, maio de 2016). E continua:
Nessa altura do campeonato, eu tô lançado à sorte. O que Deus preparar pra mim lá na frente é lucro. […] O que eu posso pensar do futuro nessa questão? Se é que eu posso pensar em alguma coisa relacionada ao futuro. (Carlos, entrevista pessoal, maio de 2016).
Nessa pesquisa, o presentismo também se evidenciou como elemento de confluência entre memória e ideologia (Martín-Baró, 1998). Conforme indicam os depoimentos, os sujeitos parecem viver, de alguma forma, uma fixação no presente. O tempo, para César, parece que se congelou na imediaticidade da vida cotidiana: “O dia a dia pra mim é um dia igual o outro. […] Então, não tem o que contar. Um dia pra mim é igual o outro. […] Eu fico esperando o dia passar. Eu vejo o dia amanhecer, o dia se por, o dia nascer, o dia se por”. O pensamento orienta-se meramente à realização das atividades que garantem a manutenção da sobrevivência: “Filha, eu não penso, não. Se pensar fico doido. Isso aí é psicologia. Você não deve pensar muito nas coisas. Isso aí é o dia a dia, faz parte” (Antônio, entrevista pessoal, abril de 2016).
O “presente psicológico” (Martín-Baró, 1998), embora não seja uma característica exclusiva das pessoas que enfrentam a rualização, é intensificado pela depauperação e humilhação social, que favorecem a cristalização do sofrimento ético-político, cerceiam o poder de decisão e impedem os sujeitos de modificar suas condições de existência, reduzindo, desse modo, as potencialidades humanas ao “sobrevivencialismo negador da vida” (Sawaia, 2009, p. 370). Segundo Agnes Heller (1970/2004), não é possível pensar o humano deslocado da vida cotidiana, marcada pela reprodução por um lado e, por outro, em virtude de sua estrutura dialética, aberta à possibilidade de transformação. Situada no cerne da própria cotidianidade, a ruptura com a lógica do cotidiano (Heller, 1970/2004) impele o sujeito à reflexão e à busca de sentido, transformando momentos em experiências memoráveis (Jelin, 2002). Como contraponto da “memória-repetição” – memória acrítica, peculiar à vida cotidiana – tem-se, então, uma memória que participa ativamente do processo de constituição da identidade e do “enredo” da história de vida: o acontecimento memorável será incorporado narrativamente, convertendo-se no modo como o sujeito constrói o passado e outorga-lhe novos sentidos.
Como denuncia César, a vida reduz-se às exigências imediatas da realidade objetiva, a saber, a sobrevivência nas ruas. Assim, não há horizonte vital, o presente perpetua-se – “um dia igual ao outro” – e a realidade naturaliza-se – “pra mim… normal”. Se a vida é a uma contínua reprodução, “não tem o que contar” (entrevista pessoal, junho de 2016).
Recorrendo a Chaui (2005/2007), compreendemos que uma das peculiaridades da operação ideológica consiste em conservar-se na “região daquilo que é idêntico” (p. 40), imputando sentidos reificados aos fatos. Ora, “presentismo” – além de obstruir os caminhos da “lembrança de rua” e romper os elos que suturam a memória ao porvir –, atravanca a interrogação e obstaculiza as possibilidades de reflexão e reconstrução do passado vivido. “Petrifica” a história de vida, uma vez que – ao ser incorporada narrativamente – ouvimos uma narrativa em voz própria, mas que ecoa a versão e a visão que as ideologias dominantes contam.
Entretanto, ao elevar a experiência à condição de lembrança e incorporá-la narrativamente, o indivíduo tem a oportunidade de confrontar as narrativas socialmente legitimadas com suas experiências singulares: tem-se a elaboração do antidiscurso que, construído no universo da ideologia, a desconstrói (Chaui, 2005/2007).
No presente trabalho, realizamos a análise da articulação entre memória e ideologia, recorrendo às lembranças dos entrevistados. Nos fios das narrativas, buscamos apreender os aspectos ideológicos presentes na construção da memória da experiência na rua. Ao longo do processo analítico, uma categoria em particular ganhou destaque, revelando-nos outra artimanha da operação ideológica – o esquecimento.
O esquecimento é uma condição sem a qual a memória não se realiza (Ricoeur, 1913/2007), pois torna possível o caráter seletivo dos processos mnemônicos. Em contrapartida, é preciso ter em vista que a seleção do passado que se rememora e esquece se dá não somente em função da vivência do presente, mas também passa pelo “crivo” das ideologias vigentes, revelando-nos uma forma astuciosa e sutil de imposição social do esquecimento. Os depoimentos revelaram sua participação ativa no processo de ideologização da memória: um hiato entre a memória e as experiências dos sujeitos.
Longe de traduzir-se como resistência à lógica neoliberal e capitalista, o esquecimento revelou-se uma expressão da dimensão ideológica da memória porquanto favorece a naturalização dos fenômenos históricos. Embora seja o sujeito singular que esqueça, os depoimentos dos entrevistados demonstraram que o esquecimento não é tão somente um fenômeno individual e interno, resultado de forças repressivas imanentes ao psiquismo. A ruptura dos nexos entre o presente, o passado e o porvir assim como o congelamento do tempo histórico são vividos pelos sujeitos em suas experiências diárias como impossibilidade real de modificar o horizonte de sua existência (Martín-Baró, 1998).
Nessa direção, o presentismo, fixação no presente e rejeição ao passado e ao futuro, destacou-se como uma categoria assaz relevante na análise das possíveis articulações entre memória e ideologia. Não obstante cumpra uma função nos processos mnemônicos – “sob o poder da ideologia e aliado ao cotidiano miserável” (Dantas, 2015, p. 94) –, o esquecimento traduziu-se, pois, como um mecanismo ideológico de conformação dos sujeitos e justificação da ordem social opressiva, visto que obstaculiza não somente o resgate do passado vivido, mas da memória histórica.
O esquecimento, no entanto, possui outras dimensões, não se reduzindo a um mecanismo ideológico. Os depoimentos evidenciaram que a ausência e impedimento das “lembranças de rua” possui uma forte relação com a situação de intenso sofrimento psicossocial produzida pela experiência de rualização – a dor de ser tratado como apêndice do “corpo social” e de ter suas potencialidades humanas cerceadas pelas condições materiais e relacionais de existência (Sawaia, 2009).
Como notamos, a situação de rua interfere de maneira significativa na construção da memória. Se por um lado a memória possui um “caráter libertador” (Martín-Baró, 1998), por outro, pode reforçar e manter relações de dominação. As representações da realidade, concebidas e difundidas pelos grupos hegemônicos, impactam não somente sobre a consciência dos indivíduos – reificando-a (Lane, 1989) –, mas igualmente sobre suas memórias.
Cabe destacar também uma importante variável a ser considerada nas reflexões propostas por este estudo: o ouvinte interfere significativamente na seleção narrativa e no trabalho de memória, sobretudo quando se trata de um encontro entre sujeitos que ocupam lugares sociais distintos em uma sociedade profundamente estratificada.
A presente pesquisa valeu-se da história oral como estratégia metodológica. Uma das vertentes desse trabalho, ancorado no testemunho oral, constituiu-se atrelada às memórias dos grupos sociais marginalizados (Thompson, 2002). Neste sentido, traz à tona para o espaço público histórias de vida encobertas e vozes não pronunciadas e/ou emudecidas. Entretanto, é preciso considerar em que instância os sujeitos tomam a palavra. Na investigação aqui apresentada, evidenciou-se que, não raro, por trás da voz que narra suas experiências e histórias, ecoa a voz das minorias dominantes. A interferência da ideologia na memória nos revela que nem sempre a produção discursiva eleva o sujeito à condição de ator político.
Aqui, mais uma vez, salientou-se a complexidade das possíveis articulações entre a memória e a ideologia (Ansara & Dantas, 2015). Não temos a pretensão, evidentemente, de esgotar as possibilidades de discussão de uma temática tão importante e controversa. Assinalamos a necessidade de novos estudos que possibilitem a reflexão sobre os mecanismos que originam a ideologização da memória.
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