As discussões que delinearemos ao longo deste artigo são derivadas da dissertação de mestrado em Psicologia e Sociedade, intitulada Imagens, sensações e afetos: as personagens gays nos curtas-metragens brasileiros exibidos no Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade.1 Essa investigação se deu a partir da análise de curtas-metragens brasileiros protagonizados por cis-homens gays, tendo como recorte de análise os curtas-metragens exibidos entre os anos de 2010 a 2013, configurando-se assim 31 curtas-metragens analisados2. Além disso, entrevistamos os organizadores do Festival Mix Brasil e, em 2014, assistimos presencialmente a diversos filmes exibidos na 22ª. edição do Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade – Cinema, Teatro, Música e Literatura, realizado na cidade de São Paulo-SP.
A partir disso, um novo campo de experimentação visual começou a criar novos territórios estéticos subjetivos3 para a população LGBTQI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Queer e Intersexos). Tratam-se de longas e curtas-metragens que trazem no seu enredo temas como o HIV/AIDS, as práticas sexuais, a LGBTfobia, o sair do armário, dentre outros, que de modo único e singular criam um campo de visibilidade e representatividade que beneficiam a afirmação das multiplicidades de manifestações das sexualidades. Isto é, o Festival exibe inúmeros filmes que tratam de diversas possibilidades de expressões de gêneros e sexualidades que não podem mais ser reduzidas às compreensões binárias e heteronormativas classicamente difundidas pela ciência. Nesse contexto, as diversas expressões das homossexualidades ganham não somente visibilidade, mas também voz que até então não era ouvida por se encontrar num suposto “segredo” social. Assim, as cinematografias, em todas as suas abrangências, produzem culturalmente encontros inusitados, efetivando desterritorializações, descontinuidades e desconstruções identitárias. Pode-se dizer que o enfoque temático destes filmes possibilita a abertura para processos de subjetivação de indivíduos queers4, ou seja, “aquele que se forma nos entre lugares, nas fronteiras, na itinerância, na mistura, no processo de ir e vir” (França, 2005, p. 37).
Esta evidência se configura por saber-se que as temáticas voltadas para as dissidências sexuais e de gêneros dentro de uma cinematografia nacional e internacional são ainda inquietantes e, por vezes, subversivas ao olhar não somente dxs5 espectadorxs, e também de produtorxs e diretorxs da sétima arte. De modo contundente, pondera Tostes e Dias (2008), as películas cinematográficas, por vezes, ainda são impregnadas de convenções binárias, hegemônicas e heteronormativas onde o cinema apresenta os corpos e os desejos homoeróticos de maneira maquiada, travestida a partir de personagens caricatas que acabam sendo “consumidas” pela sociedade, tornando-se sutilmente referências incorporadas por mulheres e homens ao longo dos anos.
É neste contexto que pensamos o cinema como formador e agenciador de opiniões, de sensibilidades, de estéticas, além de atrativo cultural-político-social para a produção e formação de subjetividades. O cinema nos remete à identificação com suas personagens retratadas nas mais variadas realidades, pois “a percepção humana é sempre informada e influenciada pelas novas tecnologias que a cercam” (Weissberg, 2013, p. 138). Por esta via, pensar o cinema como um campo de possíveis é também enfatizar sua importância desestabilizadora do contexto social no qual foi produzido, pois como afirma Ismail Xavier (2008), o cinema gera direta e indiretamente questionamentos e novos pensamentos em relação às várias realidades produzindo, por vezes, desestabilizações nas próprias convicções de verdade.
Assim, pensar o cinema e os modos de subjetivação que se materializam na transcontemporaneidade6 é um convite a perceber uma multiplicidade de discussões e questionamentos que emergem no campo social, sejam de cunho ético, moral, político e/ou estético. A questão do humano e sua complexidade ganham dimensões que ultrapassam os muros do campo científico, agenciando voz e visibilidades nos mais diferentes territórios de existência, tais como os meios de comunicação, as tecnologias transmodernas, os movimentos sociais, as artes e, principalmente, a partir dos rizomas que engendram as relações pessoais nesse momento histórico. Uma transição social e subjetiva de rupturas paradigmáticas, de novas possibilidades de vida, de invenções estéticas de corporeidades e desejos, frente aos dispositivos de controle e disciplinamento (Deleuze, 1992).
Deste modo, neste artigo, ousamos aventurarmo-nos pelos territórios dos desejos retratados em curtas-metragens protagonizados por cis-homens7 gays exibidos no Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade entre os anos de 2010 a 2013, tendo como foco as discussões empreendidas em torno do curta-metragem Eu não quero voltar sozinho, de Daniel Ribeiro, exibido no ano de 2010. Nestas análises buscamos mapear os modos como são produzidos os discursos, os desejos e as performances de gêneros das sexualidades dissidentes à heteronormatividade. Para tanto, nosso campo de análise se configurou em 21 curtas-metragens que se encontravam disponíveis para acesso (ver tabela 1).
Ano de Exibição | Título | Duração | Diretores (as) |
---|---|---|---|
2010 | Aviário | 15 min. | Daniel Favaretto |
2010 | Bailão | 16 min. | Marcelo Caetano |
2010 | Eu não quero voltar sozinho | 17 min. | Daniel Ribeiro |
2010 | Eu e o cara da piscina | 8 min. | William Mayer |
2010 | Luz | 13 min. | Bruna Capozzoli |
2011 | Assunto de Família | 12 min. | Caru Alves de Souza |
2011 | Desconhecido íntimo | 20 min. | Alexandre Ingrevallo |
2011 | Diálogo | 18 min. | Dannon Lacerda |
2011 | Na sua companhia | 21 min. | Marcelo Caetano |
2012 | Gaydar | 12 min. | Felipe Cabral |
2012 | Indícios - Dois | 11 min. | Dannon Lacerda |
2012 | Leve-me pra sair | 20 min. | Zé Agripino |
2012 | Quando a noite acaba em silêncio | 12 min. | Hebert Bianchi |
2012 | Um diálogo de ballet | 7 min. | Filipe Matzembacher |
2012 | 30 segundos | 12 min. | Wagner Pina |
2013 | Alguns dias antes e outros depois | 7 min. | Nicolas Thomé Zetune |
2013 | Laio | 16 min. | Daniel Grinspum |
2013 | Linda, uma história horrível | 21 min. | Bruno Gularte Barreto |
2013 | Maremoto | 8 min. | Daniel Aratangy |
2013 | O melhor amigo | 17 min. | Allan Deberton |
2013 | Rótulo | 12 min. | Felipe Cabral |
Tabela 1
Relação dos Curtas-Metragens que foram assistidos e analisados
Contudo, ressaltamos que nossa decisão em escolher o curta-metragem Eu não quero voltar sozinho para análise neste artigo deu-se por ter este curta-metragem, dentre todos os outros, atingido repercussão nacional e tendo sido exibido em vários cinemas brasileiros; sendo posteriormente transformado em longa-metragem que foi exibido em cadeia nacional pela TV Globo. E, também, por ter este curta-metragem interseccionado em seu eixo narrativo, a questão da deficiência visual com a da orientação sexual, desmistificando e desnaturalizando os paradigmas relacionadas aos desejos, às sexualidades e aos gêneros, principalmente relacionadas à ideia das homossexualidades como algo inato a uma identidade e a um sujeito.
Neste caminho teórico-metodológico, as inquietações e questionamentos sobre/para as sexualidades, gêneros e desejos no campo cinematográfico nos instigou a desbravar territórios de diálogos entre a ciência e o cinema, onde vislumbramos as possíveis conexões entre a Psicologia e outras áreas que estavam sendo criadas mediante bricolagens de saberes, experimentações e diálogos. Assim, tornava-se claro que certa Psicologia se fazia emergir para questionar a si mesma diante dos embates que concomitantemente aconteciam em fóruns, congressos, simpósios, dentro do próprio Conselho Federal de Psicologia (CFP) e suas sub-regiões. As discussões relativas aos engendramentos que agenciam os processos de subjetivação tornaram-se mais e mais enfáticas, tentando fazer com que a ciência psicológica começasse a revisitar e revisar seus próprios postulados ‘psi’ (Melo & Barreto, 2014).
Assim, a aproximação com outras ciências e as trocas de conhecimentos entre as diferentes áreas do saber têm possibilitado repensar estas cis-mulheres e estes cis-homens do século XXI, que não se encaixam mais em padrões de gênero e sexualidade heterossexuais e que demandam outras estratégias de autonomia e emancipação. Todavia, questões como raça/etnia, religiosidade/credos, normativas de sexualidades, gêneros e práticas sexuais ainda são campos de calorosas batalhas argumentativas, nas quais a Psicologia, a partir das suas matrizes curriculares, tenta, de maneira ainda não tão contundente, ir além dos fundamentos do século XIX, abrindo outros campos possíveis. Tarefa nada fácil, ao contrário, árdua e de resistência, onde muitxs psicólogxs têm adentrado com afinco em estudos, pesquisas e debates em relação a que tipo de Psicologia que queremos.
A relação entre academia e movimento social demandou da Psicologia, a partir da sua própria formação acadêmica “ampliar seu arcabouço teórico, revisar conceitos e, principalmente, romper com a noção de sujeito enquanto uma entidade liberal, autônoma, imanente, independente da cultura” (Moura, 1999, p. 14). Fato este que traz, não somente para a ciência psicológica, mas também para outras esferas científicas, maior engajamento político do que aprendemos, fazemos e dizemos, minando, de certo modo, a suposta “neutralidade” em nossos estudos e pesquisas.
Em decorrência disto, pode-se dizer que, de forma geral, o âmbito científico e a própria Psicologia se mostram carentes de estudos e pesquisas que abarquem as interseccionalidades8 nos processos subjetivos, pelos quais se poderiam mapear as linhas de forças que agenciam as subjetividades. Com isto, novas estratégias de atuação e de metodologias de pesquisa seriam engendradas na busca de equidades de direitos e de respeito às singularidades, a partir de postulados psi emancipatórios de corporeidades tidas como abjetas.
As questões das sexualidades e das experimentações do desejo são instâncias estratificadas e normatizadas ao longo da história, sendo que em cada tempo específico os dispositivos utilizados tinham fins determinados e objetivos, como problematiza Michel Foucault nos seus volumes sobre a História da Sexualidade, especialmente em História da Sexualidade I: a vontade de saber (1988), no qual o filósofo afirma que com o advento do capitalismo há uma proliferação de discursos sobre/para o sexo onde este não é obrigado a esconder-se ou calar-se como muitxs pensam, pelo contrário, ele é incitado a se mostrar e ser confessado.
Desde meados do século XVI a sociedade capitalista, como mostra Michel Foucault, nos convida a enunciarmos nossa sexualidade e nossos “segredos” mediante as instituições (Igreja, família, escola, consultório médico, etc.), que associadas a campos de saberes (pedagogia, moral, psicologia, medicina, biologia, etc.) objetivam até os dias atuais o controle da população, tanto no seu caráter público quanto no privado, a partir do biopoder e das regulações da biopolítica (Foucault, 1988). É pertinente ressaltar que nessa perspectiva, o filósofo apresenta o biopoder como poder sobre a vida em uma ampla dimensão que passa pelas estatísticas populacionais, pela regulação dos corpos e até mesmo pelos estudos demográficos. Estratégias inauguradas na modernidade com o objetivo da normatização a partir da junção de dois pólos: o anatômico e o biológico; envolvendo políticas de higienização, alimentação, cuidado de si, além do controle das taxas de natalidade e mortalidade. No entanto, nesta “regulação da vida”, Foucault aponta outro fator preponderante que, em meados do século XVIII, começa a ganhar forma e força no campo social desdobrando-se sobre/para as questões relativas às subjetividades que é a prática confessional enunciativa.
Tal prática é proveniente do cristianismo, onde mulheres e homens exercitam e proferem um discurso sobre si mesmo a partir de uma interpelação confessional com o intuito de “revelar” todos os segredos por meio do conhecimento de si mesmos. Contudo, a confissão se torna uma tecnologia incorporada por inúmeros saberes e de vários modos, como por exemplo a partir de documentos, interrogatórios, análises, narrativas, etc. (Prado Filho, 2006). Com efeito, para que tais estratégias de poder sobre a vida alcançassem seus propósitos de controle foram necessários mecanismos que os efetivassem em todo âmbito social, assim denominada por Michel Foucault de biopolíticas.
Em um primeiro momento, as biopolíticas estariam associadas diretamente à norma composta por mecanismos contínuos, corretivos e reguladores, estabelecendo, então, um elo entre o elemento regulador da multiplicidade biológica (biopoder) e o elemento disciplinar do corpo individual (disciplina). Porém, com a publicação de Nascimento da Biopolítica (1978-1979), Michel Foucault amplia os estudos sobre as biopolíticas impulsionado pelo neo-liberalismo econômico pós-guerra, onde abarca em seus estudos a influência da economia de mercado na produção de novas biopolíticas de controle e regulamentação da vida. Indubitavelmente, as biopolíticas são práticas de poderes locais, situados em um determinado tempo e espaço como mecanismos de regulação do coletivo, que na aliança com o biopoder participa na produção de corpos dóceis, controlados e úteis para os modos de produção vigentes.
Todavia, é nessa zona de turbulências e intempestivos furacões que circulam a pluralidade de forças, as curvaturas que borram o plano do Poder e do Saber, produzindo subjetividades emancipatórias. Isso é, singularidades de resistência em um nível de pré-individualidade e pré-pessoalidade em uma nascente contínua e metamorfa de afetos e sensações. Assim, segundo Michel Foucault (1988), as resistências residem justamente no choque entre a intensidade da vida e o poder, sendo que esse confronto acontece na linha do ‘Fora’, pois este ‘Fora’ é o ‘Fora’ do próprio poder. Ou seja, o poder suscita uma existência que resiste a ele mesmo, derrubando e subvertendo constantemente os seus diagramas saber-poder-prazer. Assim, tais posicionamentos convocam a Psicologia atual:
A responder e a ajudar a formular questões, justamente porque o Movimento Social de Luta por Direitos instituídos pelas chamadas minorias sociais está inserido em um regime de discursividade pelo qual só se garante direitos, desde que se assuma uma identidade. (Teixeira-Filho, 2013, p. 20)
Nessa perspectiva, os diálogos e discussões possibilitaram interlocuções entre diversas áreas de saberes que aos poucos foram ganhando materialidade como ferramentas de questionamentos da própria realidade, pois como diz a filósofa Donna Haraway em seu Manifesto Ciborgue: “o limite é uma ilusão de ótica” (2000, p. 40). Deste modo, os limites foram colocados à prova gerando uma crise generalizada, onde os pilares morais, religiosos e políticos são continuamente bombardeados por novos pensamentos e discussões a partir de teorias e experimentações que, encarnadas no próprio corpo, encaram a preço de suor e sangue, essa guerra fria de resistência à molaridade. Neste sentido, recriar a realidade nas suas mais diferentes nuances acabou ganhando o foco de luzes e câmeras que, experimentando novas performatividades de gênero e orientação sexual, possibilitou a visibilidade e a voz de expressões de outras existências dissidentes aos padrões heterossexuais. Deste modo, é no corpo que a marca de possíveis singularidades e diferenças se materializa.
Hecceidades9 que possibilitam não somente pensar o impensado, mas também territórios de corporalidades diferentes e diversos, plásticos, metamorfos que atravessam molecularmente o universo do humano. Corpos nômades se lançando às fronteiras das experimentações, dos encontros, das potências de vida, engendradas pelas linhas de fuga de individuações que se materializam nos deslocamentos e multiplicidades de arranjos dos desejos (Braidotti, 2009). Performances que recriavam na pele, nos poros, nas moléculas, estilísticas de vida emancipatória, subversiva aos regimes de enunciados e discursos demarcatórios, identitários e normativos. Campos de forças que atravessam e articulam macropolíticas (políticas molares) que, por vezes, moldam as singularidades em subjetividades assujeitadas, fixas e duras. Contudo, depara-se com o acaso, com o impensado, com o impossível do possível, que em meio às turbulências dos fluxos, vazam, escoam pelas rachaduras germinando outros territórios subjetivos.
Neste sentido, um dos caminhos que se abre para este horizonte singular são os curtas e longas-metragens, pois os mesmos fornecem espaços para os agenciamentos de novas modalidades subjetivas de experimentações e estéticas de si. Tais evidências podem ser observadas se olharmos os estudos fílmicos norte-americanos e europeus que, tomando os Estudos Queer como ferramentas de análise, propõem a discussão e difusão de películas cinematográficas voltadas para sexualidades, gêneros, prazeres e desejos possibilitando o surgimento do conceito de um “New Queer Cinema” 10, com o objetivo de “conceituar a efervescente produção cinematográfica com temáticas gays bastante difundidas nos circuitos e festivais de cinema independentes ou nos festivais de cinema exclusivamente GLBT” (Nepomuceno, 1999, p. 2). Isso possibilitou portas e janelas abertas para vozes e corpos até então abjetos às telas, propiciando novas conexões da realidade/ficção.
O New Queer Cinema abriu fissuras dentro de um padrão rígido de papéis e performances de gêneros e sexualidades que, a partir de uma bricolagem de saberes, engendraram outros possíveis, onde podemos destacar alguns cineastas declaradamente gays que contribuíram para este percurso de um “New Queer Cinema”: o americano Gus Van Sant, diretor de filmes emblemáticos tais como Mala Noche (1985), Garotos de Programa (1991), até o mais recente Milk - A voz da Igualdade (2008). Do mesmo modo, o britânico Derek Jarman com produções marcantes como Eduardo II (1992), Caravaggio (1986), além de Todd Haynes com uma cinematografia de peso marcada pelos filmes Veneno (1990), Velvet Goldmine (1998), Não Estou Aí (2008) e o aclamado Tão Longe do Paraíso (2002).
Por esta via, tendo em vista que o campo cinematográfico se tornou, aos poucos, palco de territórios possíveis de devires, especificamente no tocante às multiplicidades das expressões de gêneros, sexualidades e desejos a partir de uma perspectiva queer, é relevante pensarmos que “novas sensibilidades e subjetividades contrastam-se com as pioneiras cenas fílmicas de cunho militante-identitário, colocando questões sobre corpo, sexualidade e gênero” (Bessa, 2007, p. 257).
Esse movimento que aos poucos vem acontecendo no mundo e no Brasil, em se tratando de festivais voltados para as múltiplas expressões de sexualidades, gêneros, desejos e práticas sexuais, parte de inquietações de cineastas e da própria comunidade LGBTQI, em perceber no cinema tradicional e nas personagens que caracterizavam suas supostas vivencias, figuras essencializadas e rotuladas dentro dos discursos imagéticos trazidas por curtas e longas-metragens. Acontecia, então, uma legitimação das políticas identitárias binárias, que pouco contribuíam para as discussões e desconstruções de estereótipos das identidades LGBTQI.
Conforme pondera Aline Ariana Alcântara Anacleto e Fernando Silva Teixeira-Filho (2012, p. 6):
O cinema, portanto, por meio destes elementos, possui importante papel no que se refere a forma como a sociedade encara determinadas imagens, atitudes, comportamentos, ações, representações. As produções cinematográficas, como integrantes da sociedade do espetáculo, podem denunciar papéis e construir conceitos. Nesta perspectiva, o conceito de mulher e seus desdobramentos são construídos também pela influência da sétima arte e suas produções de imagens, na vida cotidiana dos sujeitos.
Assim, percebe-se que o cinema pode ser considerado uma tecnologia de gênero, na qual os discursos e imagens demarcam territórios, posições e papéis sociais que impõem estrategicamente referencias identitárias no imaginário social. Deste modo, pode-se afirmar que o cinema é produtor de gênero mediante a produção e reprodução de significados (De Lauretis, 1978), e, mais além, de sexualidades, desejos e prazeres. Na leitura deleuzeana sobre cinema, a imagem está para além do visto, ela é potente em todas as sinuosidades que a compõem (Deleuze, 1992). Em refutação e posicionamento contrário a tais tecnologias de produção binária de gênero, nasce como resposta social e artística um cinema que não somente viabiliza as diferentes formas de expressão da vida, mas que difere em si de uma política identitária por não visar,
Defender imagens positivas, nem negativas, ambas igualmente transformadas com facilidade em clichês pela repetição simplificada da realidade. Sua importância foi a de buscar imagens plurais que representa uma democracia real de sujeitos e corpos diversos. Criar polêmica e levar assuntos desconfortáveis ou que se consideravam já passados com a militância tradicional para o centro do combate. Por que os viados, bichas, sapatões, queer e outros termos considerados pejorativos devem ser lidos assim? Através do cinema, tentou se mostrar, na realidade, um orgulho de suas próprias imagens desviantes de uma norma majoritária e justamente por isso, particular, original e bela (Lopes & Nagime, 2015, p. 14).
Em se tratando da produção cinematográfica brasileira, os filmes de curtas-metragens, aos poucos, conquistaram seu lugar ao sol. Trata-se de um percurso árduo enfrentado ao longo dos anos. Neste percurso, um dos entraves para a sua legitimação e dos seus respectivos festivais no Brasil foi a falta de apoio e financiamento para as produções amadoras. Aos poucos os curtas-metragens acabaram sendo não mais considerados protótipos dos filmes de longas-metragens, mas como produções independentes, com uma linguagem rápida, que facilitava o processo comunicativo com o público.
Portanto, “o curta-metragem, apesar de ter sido “superado” como padrão de produção, permaneceu na história do cinema como uma forma alternativa para alguns gêneros de filmes” (Reis, 2009, p. 71). Contudo, apesar de todas as dificuldades encontradas em nível nacional para a produção de curtas-metragens, o avanço tecnológico propiciou, a partir do uso de câmeras digitais, tablets e softwares de edição, um barateamento da produção fílmica, pois basta ter uma ideia na cabeça, criatividade e uma câmera na mão para que outras telas possíveis comecem a se colocar em cena, conquistando, aos poucos, o cenário nacional e internacional de cinema e de festivais. Tratam-se de produções que transgridem com suas inovações de tempo, espaço, lugares e técnicas, as cinematografias de alto custo, os esquemas cinemáticos e narrativos dos famosos estúdios de cinema trazendo visibilidades mais próximas do contexto social, cultural e político.
Pensando nos aspectos intuitivos/criativos/inventivos que tanto a produção amadora quanto profissional das películas de curtas-metragens podem oferecer, além da diversificação de produção/divulgação do cinema digital, por meio das linguagens da cultura audiovisual, outro fator preponderante para adentrar este campo de estudo foi o crescimento das formas de compartilhamento desses trabalhos via redes sociais nos mais variados formatos, chegando ao grande público por meio das enormes telas de cinema ou aos menores grupos de espectadorxs a partir de pequenas telas de celulares, tablets, etc..
É importante assinalar que, neste processo de conquista de espaço e efetivação dos curtas-metragens no mercado, uma das temáticas abordadas nas películas eram as questões voltadas às manifestações sexuais, suas expressões e práticas a respeito dos desejos, identidades e práticas sexuais da população LGBTQI (Tostes & Dias, 2008).
Para autores como Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari, a sociedade nas suas interfaces, encontra-se num processo de transição de estratégias dominantes de estratificação e manutenção normativa da vida, da subjetividade humana. O corpo que até então era supostamente considerado dócil por estar disciplinado até meados do século XIX, não se deixa mais capturar assim tão fácil na atualidade (Mansano, 2009). São nômades sem lugares fixos, determinados e pré-estabelecidos, mas em encontros múltiplos e intempestivos de devires. Diferenças múltiplas que transitam o deserto do vivido não experimentado, da pele na pele, do corpo no corpo, rompendo com a lógica heteronormativa e falocêntrica da suposta normalidade. Portanto, é a partir da ruptura destes pilares morais hegemônicos que certos corpos se inscrevem como uma dissidência subjetiva de afetações, ou seja, como queers.
É neste contexto que a estética artística em todas as suas sinuosidades tem se colocado como lugar/território para o nomadismo performático de indivíduos que, em suas fronteiras subjetivas, buscam subverter, em seus próprios corpos a lógica heteronormativa, tendo como um dos seus dispositivos subversivos o cinema, sendo este campo/território de reinvenção, recriação de espaços para múltiplas “experimentações de forças (do tempo, do espaço, do corpo)” (Furtado, 2013, p. 15).
Contudo, ao abordarmos as questões relevantes às sexualidades, gêneros, desejos e identidades no contexto dos curtas-metragens nacionais, não podemos negligenciar, mesmo dentro de uma proposição queer, as dimensões e os dilemas fortemente presentes no tocante às especificidades nacionais de raça e de classes sociais que interseccionam os processos de subjetivação, não dando brecha a uma possível universalização da teoria e da própria produção cinematográfica. Como dirá Pedro Paulo Gomes Pereira (2008 p. 509):
O cinema não é um discurso ideológico entre outros; tampouco, apenas um documento histórico-social. Não se trata, portanto, de apreendê-lo com um discurso à parte, mas de percebê-lo em sua particularidade, de maneira que o objetivo principal não se centre exclusivamente no estudo dos temas tratados, mas no estilo, nas relações intrínsecas entre forma e conteúdo.
Consideramos, portanto, esse diálogo entre Psicologia, sexualidades, gêneros, desejos e cinema um campo a ser desvendado e construído não apenas a partir dos temas, mas também das técnicas de filmagem, edição, de sonorização, dentre outras.
Em se tratando especificamente de curtas-metragens protagonizados por cis-homens gays exibidos no Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade – Cinema, Teatro, Música e Literatura é pertinente salientar que, este Festival Mix Brasil tornou-se, ao longo dos anos, um dos maiores fomentadores nacionais na produção de filmes dedicados às diversidades sexuais e de gêneros tendo como eixo central a exibição de curtas-metragens brasileiros com a chamada ‘Mostra Competitiva’. Tal Mostra é dedicada aos principais prêmios do Festival, expandindo a cada edição seus trabalhos dentro do contexto da diversidade sexual.
A Associação Cultural Mix Brasil, entidade sem fins lucrativos responsável pelo Festival Mix Brasil de Cinema e Vídeo da Diversidade Sexual, continua realizando anualmente sua mostra itinerante de cinema e vídeo com temas relacionados à sexualidade humana, em suas diversas formas de expressão. A programação do Festival é adaptada para cada cidade e os diferentes registros produzidos por ele, como resenhas dos filmes, cartazes, sites, matérias de jornais e vinhetas dos festivais, não servem apenas como representação de atividades artísticas e culturais ligadas à homossexualidade, mas também, como forma de dar maior visibilidade para as batalhas travadas em favor dos direitos homossexuais, além de alimentar e instigar novas pesquisas (Reis, 2009, p. 85).
Neste sentido, fica cada vez mais perceptível que a importância dessa discussão e investigação se dá por acreditarmos que ao descrever e analisar as performances de gêneros das sexualidades dissidentes à heteronormatividade nos curtas-metragens protagonizados por cis-homens gays, apresentados no referido Festival, enunciar-se-ão, ao longo do processo, o dispositivo político/ético/estético do cinema, podendo este criar e recriar o desejo como máquina subjetiva de indivíduos em constante transitoriedade. Sendo que, ao pensarmos longas e curtas-metragens para/sobre a população LGBTQI, bem como os festivais específicos para películas cinematográficas que se referem às diversidades sexuais e de gêneros, devemos levar em consideração que,
Ao incluir outras marcas de diferenciação – classe, raça e nacionalidade – e ao adentrar em práticas eróticas e de estilização corporal – sadomasoquismo, fist-fucking, cross-dressing, usos de tatuagem e piercing –, os festivais ganharam um contorno abrangente que instigaram a produção e difusão de toda uma gama de “novas subjetividades” e, de certa maneira, atuaram (e continuam atuando) não apenas na constituição de performances de gênero, mas também na configuração de novas formas de expressões de prazer, desejo e sexualidade (Bessa, 2007, p. 263).
Abre-se, então, um leque de possibilidades de produções tanto profissionais quanto amadoras, que vão, aos poucos, desbravando e criando um espaço de uma política não representacional das sexualidades, dos gêneros e do desejo em uma base epistemológica identitária e fechada em si. De uma política que, portanto, pretende trazer em cena as imagens plurais de corpos diversos e de existências múltiplas que escapem das figurações repetitivas de expressões de vidas de bichas, sapatões, travestis, etc.
Desta maneira, a partir de discussões trazidas por uma cinematografia influenciada por uma perspectiva queer, voltada às desnaturalizações e críticas às sexualidades, gêneros e desejos, pautadas em uma lógica heteronormativa, tem-se uma nova lógica de reflexão e posicionamento político/ético/estético que emergiu a partir de meados dos anos 1990. Nesta nova lógica, a diferença foi “codificada a partir de um ponto afirmativo do desejo” (Nepomuceno, 1999, p. 8), e, por isso, torna-se importante refletir quais discursos estão sendo agenciados e performados a partir da positivação das diferenças. Porém, os fluxos de potência não são produzidos e agenciados de forma simétrica e/ou sistemática. Eles acontecem de forma múltipla e intempestiva que podem ou não ser considerados ou vislumbrados como vontades de resistências. Isto porque, independentemente do modo, da forma, dos lugares, uma coisa é certa, a vida pede passagem pelos corpos e pela sua expressão. Assim, as linhas de fuga dos gêneros, das sexualidades e dos desejos binários percorrem as fronteiras de estéticas que possibilitam o inventivo, o novo, o impensado.
Embasados em Richard Parker (2002), podemos dizer que a complexidade e diversidade da cultura brasileira, onde há um entrelaçamento de culturas e subculturas que se encontram em fluxos contínuos de relação, encontram-se visivelmente no contexto das realidades sexuais em nosso país, especialmente “no caso da homossexualidade masculina, que, pelo menos no Brasil, deve ser caracterizada menos como um fenômeno unitário do que como fundamentalmente diverso – um caso, no mínimo, de uma variedade de homossexualidade única e unificada” (Parker, 2002, p. 52).
Deste modo, existe uma organização cultural e social da homossexualidade masculina brasileira, sendo transformada constantemente tanto no contexto de experiência individual, mas também em nível social, criando territórios singulares de suas expressões, cada um com suas particularidades e especificidades. Assim, ao adentrar o campo de imagens, sons, discursos e enunciados sobre/para as dissidências sexuais e de gêneros, especificamente em se tratando de performances de gêneros e sexualidades protagonizados por cis-homens gays, temos em mente que a película a ser projetada nas telas nos levará a um território de corpos masculinos imersos em cenários de sexo, gozos, promiscuidades, vícios, etc. Marcas sociais que foram epistemologicamente cravadas nas expressões de vidas gays, onde estas são, na maioria das vezes, vistas a partir de olhares sexualizadores e estigmatizantes das multidões que habitam estes corpos. Multidões performáticas, agenciadas por linhas molares e moleculares de forças e fluxos que segmentarizam as subjetividades, mas que encontram em suas fissuras espaços para se reinventarem. Essa conceituação e percepção de multiplicidades a partir da sexopolítica dos corpos se dão, como afirma Beatriz (Paul) Preciado, baseados na crença de que:
O corpo não é um dado passivo sobre o qual age o biopoder, mas antes a potência mesma que torna possível a incorporação prostética dos gêneros. A sexopolítica torna-se não somente um lugar de poder, mas, sobretudo, o espaço de uma criação na qual se sucedem e se justapõem os movimentos feministas, homossexuais, transexuais, intersexuais, transgêneros, chicanas, pós-coloniais… As minorias sexuais tornam-se multidões (Preciado, 2011, s/p).
Portanto, esse lugar fluido de expressões de vidas e possibilidades de experimentações de desejos que se materializam nos corpos a partir de aberturas aos devires, ou de buscas de autonomia para consigo mesmo, agencia produções de novos referenciais e retratações sobre as homossexualidades. É um encontro com o cinema (curtas-metragens) que força a pensar, a refletir, que produz sensações e convida a vislumbrar outros lugares ou os mesmos lugares pelo viés da sensação (Furtado, 2013).
São esses os territórios que transitamos e rastreamos em uma mescla de sons, imagens, palavras, olhares, silêncios e afetos que aos poucos vão construindo o cenário em um convite sutil, ou não, para adentrarmos sonhos, fantasias, desejos e realidades que por vezes nos passam despercebidas. Como afirma o sociólogo e filósofo italiano Maurizio Lazzarato em seu livro Signos, máquinas e subjetividades ao se referir aos processos de subjetivação e suas articulações com as tecnologias de informação e comunicação, como a televisão, as redes sociais, o cinema comercial e o ciberespaço:
O cinema é assim capaz, ainda que por um instante, de nos fazer ‘órfãos, solteiros, amnésicos, inconscientes e eternos’ e nos arrancar das divisões sociais do trabalho que nos atribuem um papel, uma função e um sentido (Lazzarato, 2014, p. 97).
Assim, por acreditarmos que as existências nas suas multiplicidades se dão nos acasos dos acontecimentos, nas forças que ali emergem e se materializam num tempo/espaço, a pretensão do nosso estudo foi descrever e analisar os discursos/imagens que compõem os curtas-metragens brasileiros protagonizados por cis-homens gays, por meio do método genealógico e da técnica da análise do discurso11, em uma interlocução com os estudos queers e o pensamento deleuze-guattariano sobre a produção dos desejos explicitando, ao longo do percurso, como estes se tornam ferramentas imprescindíveis nessa cartografia das sexualidades, gêneros e desejos em produções cinematográficas. Nessa perspectiva, uma vez que não obtivemos nenhuma informação sobre os curtas-metragens exibidos nas edições de 2008 a 2009, foram mapeados 31 curtas-metragens nacionais protagonizadas por homens gays, sendo: 07 películas em 2010, 06 em 2011, 06 em 2012 e 12 películas em 2013.
Diante do material cinematográfico encontrado e analisado na referida pesquisa de mestrado, trazemos aqui a análise de uma das películas exibidas na 18ª edição do Festival Mix Brasil no ano de 2010, o curta-metragem produzido e dirigido por Daniel Ribeiro, intitulado Eu não quero voltar sozinho que na sua narrativa imagética nos dá elementos singulares para problematizarmos a produção de desejos e os entre-lugares das homossexualidades.
Quando trazemos à mente a palavra desejo, logo pensamos em desejo com conotação sexual, de atração, de libido, de tesão por alguém, ou, então, remetemos a palavra desejo a algo que ainda não possuímos e ansiamos ter. Se formos buscar formalmente o que significa a palavra desejo, ao consultarmos um dicionário, por exemplo, encontraremos vários significados como: aspiração veemente, impulso, apetite carnal e intenção, etc. (Weiszflog, 2004) Deste modo, percebe-se que há uma vasta definição informal/formal sobre a conceituação e percepção do que se pode definir como desejo e de qual lugar ele emerge. Contudo, existem outras proposições que nos seus interstícios borram os contornos representacionais, conceituais e imaginários sobre desejo. Proposições que trazem não apenas contribuições teóricas de desconstrução paradigmática, mas também posicionamentos políticos/éticos/estéticos que favorecem a ampliação perceptiva das realidades, dx outrx e de si mesmo.
Referimo-nos a posicionamentos mais inventivos a partir de vias de negociações e renegociações das partes envolvidas, da criação de territórios e linhas de potencialização da vida e, por fim, da não reprodução de referenciais moralmente considerados como certo/errado, normal/anormal. Onde o ético implica “o reconhecimento da alteridade, não enquanto tolerância ou intolerância, mas como coexistência de diferenças” (Stubs, Teixeira-Filho & Peres, 2014, p. 786), o Estético pelo “convite à criação de novos processos de existência” (Stubs, Teixeira-Filho & Peres, 2014, p. 786) e o Político nos “compromissos e riscos que se conjugam nas ações e posições assumidas” (Stubs, Teixeira-Filho & Peres, 2014, p. 786).
Nesta perspectiva política/ética/estética, nos posicionamos em conformidade com os filósofos pós-estruturalistas Gilles Deleuze e Félix Guattari que em seus estudos sobre a produção do desejo, divergem da concepção psicanalítica freudolacaniana que o concebe a partir da falta. Trata-se de uma falta que para a analítica freudiana tradicional acontece no processo edípico centrado na castração, onde o Édipo “não se confunde com um triângulo, mas que opera todas as triangulações possíveis ao distribuir, num determinado domínio o desejo, seu objeto e a lei” (Dosse, 2010, p. 73-74). Isto posto, há, então, uma edipianização do desejo “deslocando-o” do campo social para um complexo interior ao sujeito, em um recalcamento do desejo em relação às representações das personagens parentais, fazendo destas, mediação universal de toda produção de desejo.
Porém, nas percepções de Deleuze & Guattari (2010), o desejo não pode ser concebido como falta, pois o mesmo não se encontra e nem se produz no campo individual, mas na ordem do coletivo. São produções maquínicas que produzem realidades, ou seja, não há nada anterior ao desejo; ele é força motriz que impulsiona as subjetividades à criação, reinvenção de outros modos de existência em múltiplas direções. Tal lógica é pautada nas concepções deleuze-guattarianas de que as realidades se encontram em constantes conexões e re-conexões, em acoplamentos entre máquinas de produção que produzem outras produções em um ciclo de consumo e registro e vice-versa. Sendo assim, todas as realidades são ficcionais, produtos de uma determinada produção, isto é, toda realidade é pura produção, inclusive o desejo. Por isso, de acordo com Teixeira-Filho (1993, p. 20) “não se deve pensar que o desejo esteja dentro do corpo ou personalizado dentro do limite deste”.
Neste sentido, o desejo não é um movimento de dentro para fora e nem é dado previamente, ele acontece e se agencia em planos indissociáveis e inteligíveis que, apesar de terem seus modos próprios de funcionamento, atravessam-se constantemente. Modos que recortam as realidades em duas políticas de multiplicidades: a molar e a molecular; sendo estas linhas de forças que trabalham uma sobre a outra, variando suas intensidades em um plano rizomático12 de macropolíticas (política molar) e micropolíticas (política molecular). A política molar é aquela que se encontra no campo da ordem, da estrutura, da segmentaridade, da essência, das estratificações que delimitam sujeitos, sistemas referenciais, objetos e representações, definida de linha dura, fixa e codificada. Por sua vez, a política molecular se configura por aquela que se dá no campo das multiplicidades, dos fluxos, das desordens, das intensidades, das sensações e das transições, denominada como linha decodificada, móvel, desterritorializada.
Para estes filósofos é na coexistência destas linhas/políticas molares e moleculares como forças de produção e expressão da natureza dos agenciamentos, que o desejo acontece não como espontaneidade, mas sempre como construção de agenciamentos maquínicos. De maneira que, os agenciamentos se configuram por complexos de linhas que se entrelaçam traçando um plano, ganhando assim consistência, sua imanência, sem recorrer a transcendências. Ou seja, a noção de agenciamento na perspectiva aqui apresentada engloba:
1°) movimentos de fluxos de todo a natureza e que não são da ordem de um ato (fluxos demográficos, fluxos de sangue, de leite, de hormônio, de eletricidade, de ou sabe-se lá que); 2°) dimensões territoriais, que até são um certo tipo de ato, mas um ato de proteção, de circunscrição, de subjetivação que busca se situar enquanto tal; 3°) dimensões processuais, dimensões maquínicas, que, estas sim, seriam, efetivamente, do registro de um ato; 4°) dimensões de universos que, ao contrário, não são absolutamente da natureza de uma vontade, seja ela qual for - vontade processual ou vontade de territorialização -, mas que são uma espécie de encontro com outras dimensões de existência (Guattari & Rolnik, 1996, p. 227).
Formula-se, então, a proposta do desejo como rizomático, onde os fluxos/processos, as dimensões e as linhas que o atravessam e agenciam em movimentos de penetrações, choques e cortes pedem passagem para pulsar, vibrar e movimentar a vida não a partir dos grilhões da lei, da moral e da conduta, mas por meiode uma ética de afirmação e ampliação da existência em suas múltiplas direções e possibilidades. Assim, desaparece a separação entre o corpo dx homem/mulher e o cosmo, dando lugar à ordem dos acontecimentos onde se dá a processualidade desejante com seus fluxos, rupturas, continuidades, descontinuidades e deslizamentos. Contudo, ao esboçar a concepção de acontecimentos, Gilles Deleuze (2009) desafia a lógica do sentido, questionando as realidades dadas em uma a priori, determinada e equacionada em categorias entrincheiradas de uma matriz identitária onde tudo já está definido, inclusive o próprio desejo. Para o filósofo os acontecimentos seriam mundos de encontros, de corpos e/ou forças que afetam ou deixam-se afetar, não como essências e substâncias que se desenvolvem paulatinamente, ao contrário, como potências que se chocam sucedendo acontecimentos incorporais.
É a partir dessas proposições que trazemos para análise o curta-metragem Eu não quero voltar sozinho exibido na 18ª edição do Festival Mix Brasil no ano de 2010, produzido e dirigido por Daniel Ribeiro e categorizado dentro do gênero drama. Uma película cinematográfica que ao longo dos seus 17 minutos retrata a estória de Leonardo, um garoto cego, vivendo sua adolescência em meio às dificuldades e superações da cegueira. Com a entrada de um novo colega de classe, Leonardo se depara com seus desejos e sentimentos eróticos voltados para o novo colega. É nessa narrativa construída em imagens retratando o cotidiano da vivência de um adolescente, que o diretor Daniel Ribeiro apresenta de maneira sutil e intensa os fluxos de desejos que podem surgir nos acontecimentos e seus acasos.
As imagens trazidas em cada cena para ir compondo a narrativa fílmica convidam-nos a transitar um mundo além do visível, um mundo das sensações. O mundo de um garoto cego que em meio às suas limitações se depara com seus desejos e paixões, é o meio pelo qual o diretor nos convida a entrar em um quarto escuro onde as luzes nunca se acendem. Não é um convite qualquer! Na verdade, somos indagados e, de certo modo induzidos, a ver através da composição das personagens, principalmente do seu protagonista Leonardo, algo que não se pode ver, mas simplesmente sentir: o tesão, o sentimento amoroso, a ternura. Como aponta Beatriz Furtado no capítulo A imagem-intensidade no cinema de Sokurov (2013), a cinematografia contemporânea encontra-se diante de imagens fluidas que deslizam sobre outras imagens, tendo como seu pano de fundo outras imagens. Imagens que, por meio do avanço tecnológico e de investimentos estéticos na produção fílmica, apresentam a capacidade de fazer emergir imagens pulsantes compostas por forças intensivas e por tensões que nos levam, por vezes, a sentir este corpo vibrátil materializado virtualmente na tela.
Em se tratando especificamente desse curta-metragem onde a protagonista é cega, as imagens construídas ao longo da estória são deslizamentos de mundos paralelos daquilo que não se pode ver, mas se sente, imagina, deseja e do que se vê e não é sentido ou imaginado. Esse jogo de opostos nos dá elementos para indagarmos a produção de desejos, para tentarmos encontrar pistas para a desconstrução de um suposto “desejo gay” inato e biologicamente determinado. Assim,
O paradoxo da homossexualidade contemporânea é, no entanto, reivindicar o próprio nome, fazendo com que, ao mesmo tempo, ele signifique bem mais e bem outra coisa: “É, no fundo, para um novo estilo que a homossexualidade produz, hoje, enunciados que não se referem e não devem se referir à própria homossexualidade papel. (Schérer, 1999, p. 137)
Um dos elementos que afirma essa construção de enunciados imagéticos que descaracteriza essa naturalização do desejo é um diálogo não verbalizado, um diálogo de acontecimentos agenciadores de outros acontecimentos, que reconfiguram a cada imagem acasos de uma plasticidade sensível e intensificada de afetações. Leonardo não vê Gabriel, apenas o sente, o percebe, o toca e se deixa tocar por ele; a relação se constrói e se movimenta ao longo do curta-metragem contundentemente pelas sensações. Sensações que se movem provocando aproximações e possibilidades de outros campos de afetos, de outros mundos de experimentações. O garoto Léo, assim chamado pelos amigos, não se deslumbra com a beleza física do amigo, com um desejo provocado pelos olhares entre eles, mas pela relação cotidiana de aproximações entre ambos, isto é, não se orienta pelo mercado de imagens e sensações dadas para o consumo gay.
O desejo de Léo é orientado pela experiência não-vidente dos desejos, dos intempestivos espaços sem lugares, não sucumbindo às regras normatizadoras do poder/saber/prazer. A protagonista permitir-se transitar por mundos de afetos desdobrados e exteriorizados em suas outras versões (Levy, 2011). Uma espécie de experiência original que vaza pelas fissuras do molar, do que heterormativamente se diz e se produz sobre as homossexualidades e suas múltiplas expressões. Um exceder os limites determinados seja por teorias, por regras morais, religiosas, sociais e políticas; um permitir-se existir no vazio do que não se nomeia indo além das representações.
O desejo aqui, interseccionado pela cegueira de Leonardo é transgressor a toda norma, encontra-se em todos os lugares de forma rizomática por meio de conexões, fragmentações e multiplicações, ou seja, o desejo é puro devir, força ativa que põe em movimento os processos (Parisi, 2009).
Assim, os enunciados imagéticos do curta-metragem constroem personagens que se conectam por relações fluidas de amizade, paixões, desejos, desconcertos, encontros e desencontros. Retratam realidades de adolescências frente às possibilidades da vida, sendo uma delas a vivência dos desejos transgressores aos padrões estabelecidos. São processualidades descontínuas que levam a indagações e questionamentos sobre a sexualidade de Leonardo. Seria apenas um momento da vida dele? Algo passageiro? Ah, ele é adolescente não sabe ainda o que quer da vida! Ou seria algo do coletivo, do político, das possibilidades de existências? Não nos interessa aqui o desenrolar da narrativa fílmica, até mesmo porque ela acaba de maneira inesperada, onde Leonardo descobre que a pessoa que o beijou em seu quarto não foi sua amiga Giovana, e sim Gabriel, e o curta-metragem tem seu fim.
Os elementos que emergem com força são as construções das relações e os afetos que as atravessam independentemente da orientação do desejo. Sendo esta orientação algo fluido, plástico, metamorfo e não determinado por um gene ou por uma simples opção (consciente) de escolha. O que nos interessa são essas descontinuidades que fazem “desaparecer” a personagem ficando apenas o entre-lugar, o campo das sensações, pondo em xeque a percepção pré-determinada sobre as sexualidades e gêneros e a produção de desejos.
O sujeito não desaparece; em vez disso, sua excessivamente determinada unidade é posta em questão. O que levanta interesse e questionamentos é seu desaparecimento (isto é, a nova maneira de ser que o desaparecimento é), ou diferente disso, sua dispersão, que não aniquila, mas passa a nos oferecer uma pluralidade de posições e descontinuidade de funções (e aqui reencontramos o sistema de descontinuidades, que parecia ser em um determinado momento certo ou errado (Birnbaum, 2011, p. 80).
O curta-metragem apresenta-nos enunciados imagéticos os quais não são palavras ou discursos verbalizados que são o foco da narrativa, mas as imagens que são construídas a partir delas. O movimento de aproximação da câmera em certos momentos da película nos leva a uma tentativa de aproximação das sensações que emergem naquele instante, pois se findam os diálogos com palavras, desaparecem as personagens, ficando simplesmente os acontecimentos. A narrativa se materializa principalmente no trajeto de Léo indo do colégio até sua casa, junto com sua amiga Giovana que o ajuda nesse percurso. Porém, com a chegada de Gabriel essa configuração muda. Um dia, Gabriel, no meio do caminho, se oferece para levar Léo até em casa, já que Giovana mora a três quadras antes.
Nesse momento, o movimento da câmera sai do plano global dos três personagens em cena fixando-se no acontecimento da mão de Léo sendo colocada no braço de Gabriel. O foco da câmera ao produzir essa cena através do “Elipse”13, objetiva que aquele instante do enquadramento fílmico que foi posto em suspensão, seja preenchido pelx espectadorx por meio de seu repertório próprio e de sua imaginação. Ou seja, uma imagem que cria arranjos para ver o que não está sendo exibido ao mesmo tempo em que está no espaço/tempo sendo vivenciado e experimentado na ordem dos afetos (encontros e seus desdobramentos, ideias, sensações, pensamentos, desejos, práticas, etc).
Nesse instante acaba-se construindo uma imagem-intensidade14, aquela que rompe com os limites, que propõem “o sentir do insensível, o ver do invisível, o ouvir do inaudível, o tocar do intangível” (Furtado, 2013, p. 23). Uma imagem que faz pensar no que está sendo mostrado e não nos discursos verbais, até mesmo porque eles se findam nesses momentos específicos. Esse é o grande impacto do curta-metragem em se tratando das performances de desejos, pois este dá-se no entre-lugar, ou seja, não interessa de onde surgiu ou suas consequências, mas o seu meio, as processualidades daquele instante.
Assim, os momentos mais potentes em se tratando dessa performatividade fluida são os momentos em que o diálogo verbal não existe, ficando apenas as imagens daspersonagens que desaparecem, restando somente assensações das enunciações imagéticas, pois na construção fílmica a linguagem não verbal pode provocar mais impacto do que as narrativas, dependendo do que o diretor/produtor objetiva com a cena.
O som de uma porta se abrindo ou de um automóvel partindo, deixando limpo sem narração, pode dar ritmo e forma para um filme/vídeo com tanta eficácia quanto pontos e vírgulas dão ritmo e moldam palavras […] Algumas tomadas – trens passando em alta velocidade, armas disparando, edifícios desabando – são fortes demais para aceitar narração; as imagens abafarão as palavras e o espectador perderá qualquer coisa que você esteja querendo lhe dizer (Watts, 1999, p. 60).
Outro momento que demonstra esse contexto é quando Gabriel vai à casa de Léo para fazer um trabalho do colégio, chegando os dois no quarto de Leo, ele vai se trocar, tirando a camisa. Aqui, mais uma vez o diálogo se finda e a câmera mostra a cena de Léo tirando a camisa a partir dos olhos de Gabriel. Em um primeiro instante pode parecer algo peculiar, mas ao pensarmos no processo de filmagem em que a imagem que o diretor quer mostrar através da câmera diz muito mais do que aparentemente se percebe; é onde nos deparamos novamente com a imagem-intesidade que nos força pensar o impensado, que se impõe ganhando força, espaço e vida. Imagem que nos impele e solicita ir além dos limites do pensado, perto do indefinido como afirma Maurice Blanchot (1987), limites impostos por saberes/verdades que delimitam os prazeres, os desejos e suas vicissitudes no que é inteligível. Porém,
A imagem pede a neutralidade e supressão do mundo, quer que tudo reentre no fundo indiferente onde nada se afirma, tende para a intimidade do que ainda subsiste no vazio: está aí a sua verdade. Mas essa verdade excede-a; o que a toma possível é o limite em que ela cessa. Daí resulta o seu lado dramático, a ambiguidade que ela anuncia e a mentira brilhante que se lhe recrimina (Blanchot, 1987, p. 255).
É o outro de todos os mundos, performances de expressões de vidas e desejos que colocam em xeque os discursos binários e heteronormativos sobre as sexualidades e gêneros. Há uma quebra/ruptura dos clichês cinematográficos que ao apresentar personagens homossexuais no enredo das suas películas, representava-os de maneira caricata e estritamente vinculados ao mundo de drogas, prostituição e sexo; criando ao mesmo tempo referências estereotipadas das homossexualidades em uma dualidade de “real” e “ficção” de imagens de um cinema que não é somente arte, mas “linguagem mobilizadora e desestabilizadora de nossas certezas” (Xavier, 2008, p. 14).
Contudo, ao nos depararmos com a imagem de dois adolescentes do sexo masculino colocados pelo diretor/produtor em uma cena que, na maioria das vezes, é protagonizada por um adolescente do sexo masculino e uma adolescente do sexo feminino, encarando o seu desejo, somos impelidxs a outras sensibilidades e contornos que compõem a produção do desejo e a própria existência. O pensamento deleuzeanamente falando, é forçado a pensar mediante a intensidade de afetos e significações que a imagem propicia ao olharmos pelos olhos de Gabriel para o corpo de Léo.
Pois, quando Deleuze nos fala de uma imagem que solicita neutralidade e supressão do mundo, ele evoca uma abertura ao campo dos devires, territórios do ininteligível e inaudível, de múltiplas experimentações que excede o imaginado. Realidades percebidas nas duas imagens trazidas aqui, focadas especificamente pela câmera, que finda os diálogos provocando inquietudes nos acontecimentos.
Estranhamentos que fluem queerizando a cena não por algo dito, pelo contrário, por aquilo que não se diz e nem se representa, mas pelas conexões performáticas desterritorializadoras agenciadas por desejos que põem em movimento a própria cena. É como se a materialização daquele instante pela imagem construída fosse o Corpo sem Órgãos15 tão discutido na filosofia deleuzeana, onde as intensidades, os fluxos, as positividades, as experimentações e também as extratificações da vida estão sempre em fluição de sensações que produzem memórias e atos. Atos de desejos que são externos aos corpos, fazendo conexões e reconexões com outros estados de vida que se dobram sobre si mesmos abrindo espaço para lançar-se a mundos diversos (Deleuze & Guattari, 1996).
Em contrapartida, outro elemento potente dessa película cinematográfica é o assumir ou não o desejo em uma sociedade preconceituosa, machista e lgbtfóbica. Léo, ao se questionar sobre sua possível paixão por Gabriel resolve contar para sua melhor amiga Giovanna. Porém, ele quer se certificar que não tenha ninguém por perto para que ele possa externalizar seu novo sentimento pelo novo amigo. Para falar de seu desejo pelo amigo, Léo não se sente tão à vontade, precisa se resguardar dos possíveis comentários, preferindo, então, falar particularmente com Giovanna. Digamos que aqui, o diretor/produtor esteja, numa licença poética colocando em prática o ditado que diz que nunca se deve “namorar no portão, pois se o amor é cego, o vizinho não é”, ainda mais se tratando de um amor homoerótico.
Assim, a realidade vivida por Léo é a mesma vivenciada por tantos jovens e adolescentes diante das homofobias e humilhações que perpassam o contexto escolar no que diz respeito às diversidades sexuais e de gêneros. Tais jovens, por vezes se encontram perdidos, confusos e solitários sem terem com quem falar a respeito dos seus sentimentos e desejos. O contexto escolar é repleto de pedagogias cerceadoras dos corpos e prazeres, delimitadoras de outras expressões de existência que não legitimam as dissidências à heteronormatividade compulsória e ao falocentrismo; que tentam aniquilar os desejos que transgridem e subvertem os códigos de masculinidades e feminilidades (Pereira, 2008).
Todavia, o curta-metragem apresenta principalmente as dificuldades em lidar com o inesperado dos acontecimentos que podem ser agenciadores de sentimentos, desejos e outros acontecimentos, etc. Referimo-nos especificamente a Giovanna que fica impactada com a revelação de Léo ao falar que está apaixonado por Gabriel, deixando-o sozinho na sala de aula e vai embora. Leonardo, então, volta pra casa sozinho, momento único em todo o curta-metragem, pois a personagem protagonista sempre faz o percurso do colégio para casa acompanhado de Giovanna. Esse é um ponto importante ao pensarmos os fluxos rizomáticos dos desejos, pois o mesmo pode agenciar outros desejos mediante suas territorializações e desterritorializações. Neste caso, a revelação de Léo à Giovanna sobre sua paixão por Gabriel, faz com que ela se dê conta da própria relação construída entre eles durante todo um percurso de acontecimentos, ou seja, por uma rede de afetos e afetações que produziu sentimentos de pertença e possíveis desejos de Giovanna para com Léo. Aqui, o marcador social geracional16 nos dá pistas de que o desejo acontece independentemente do tempo, da idade ou da vidência das pessoas. O desejo apenas acontece produzindo intempestivamente sentimentos arrebatadores e confusos, principalmente na adolescência.
Assim, em seu eixo narrativo, o curta-metragem nos apresenta desejos, sexualidades e gêneros que não habitam um lugar, mas que transitam lugares pelas tensões da vida, dos acasos e do que naquele instante emerge como potência. O curta-metragem quebra paradigmas de homossexualidades inatas ao humano, performando relações fluidas de afetações múltiplas que não é determinada por uma escolha ou opção, mas por uma abertura à reinvenção, à criação de territórios possíveis de existência em que se afirme como potência de vida/viver. Ele mostra-nos desejos que escapam às representações de certo e errado, de normal e anormal, criando outras realidades que não necessariamente precisem de sentido ou explicação, mas nos projete uma arte que estimula, produz e preserva as conexões com as potencias de vida na sua constante abertura aos devires.
Assim, as aproximações entre os territórios híbridos de imagens, sons, enunciações e técnicas apresentadas no curta-metragem, Eu não quero voltar sozinho, possibilita-nos perceber narrativas que apresentam caráter político/ético/estético e também educativo-pedagógicos, criando assim, espaços de debates, discussões e intervenções nos mais diferentes contextos sociais. Neste sentido, acreditamos que este curta-metragem possibilita no seu enredo fílmico a desconstrução e desnaturalização das homossexualidades retratadas em personagens homossexuais, que não se encaixam em figuras clichês ou estereotipadas, ou seja, que há vários modos de vivenciar as homossexualidades, de assumir-se ou não gay, de vivenciar os desejos dissidentes ao padrão heteronormativo. Não há, portanto, uma homossexualidade, mas várias. Não há senão a multiplicidade de configurações desejantes entre dois homens para além das demarcadas pela masculinidade fundada nas normas binárias heteronormativa.
Em seu eixo narrativo o curta-metragem apresentadesejos, sexualidades e gêneros que não habitam um lugar, todavia transitam lugares pelas tensões da vida, dos acasos e do que naquele instante emerge como potência. Quebra paradigmas de homossexualidades inatas ao humano, performando relações fluidas de afetações múltiplas que não é determinada por uma escolha ou opção, mas por uma abertura à reinvenção, à criação de territórios possíveis de existência em que se afirme como potência de vida/viver. Além disso, mostra desejos que não são visíveis e escapam às representações de certo e errado, de normal e anormal, criando outras realidades que não necessariamente precisam de sentido ou explicação, mas nos projeta uma arte que estimula, produz e preserva as conexões com as potências de vida na sua constante abertura aos devires.
Abrem-se, então, territórios de sensibilidades que colocam em xeque a inteligibilidade das homossexualidades construídas sob a base da lógica e vidência heterossexista que é cega às múltiplas formas de vivência do erotismo, do amor e encerra as homossexualidades em um único corpo, um único gênero, em único aparelho psíquico e porque não dizer, em um único desejo. É uma narrativa fílmica que tenciona as políticas identitárias de rotulações, enquadramentos e estratificações das homossexualidades. Políticas essas que delimitam os territórios de experimentação dos desejos, mediante estratégias normatizadoras provenientes das lógicas binárias do sistema sexo/gênero/desejos/práticas sexuais. As críticas implícitas nas imagens, nos discursos e nos enunciados imagéticos do curta-metragem, forçam-nos a pensar nos afetos e afetações, nas forças das paixões (Spinoza, 2010) que atuam em ação intensa de um corpo sobre outro, provocando intempestividades, devires, desejos.
Neste sentido, acreditamos que a arte cinematográfica, especificamente o curta-metragem aqui referido, se torna dispositivo potente para problematizações das realidades e vivências do cotidiano, onde as linhas de subjetivação se conectam rizomaticamente, produzindo desejos, aproximações, afetos e experimentações. Dispositivo este que pode ser utilizado pela Psicologia, bem como por outras áreas de conhecimento, para trabalhar as temáticas de diversidade sexual, combate às LGBTfobias, dentro dos espaços escolares com adolescentes, sendo que o curta-metragem apresenta o cenário da escola e da adolescência para se pensar à produção desejante e as múltiplas formas de relacionamentos e afetos.
Nesta perspectiva, a narrativa fílmica nas suas articulações e atravessamentos macropolíticos (política molar) e micropolíticos (política molecular) agenciam elementos de desnaturalização dos desejos como falta, refutando os pressupostos de que estes se encontrariam personalizados no campo individual, como pressupõe a lógica freudiana (Deleuze & Guattari, 2010). Deste modo, o curta-metragem, Eu não quero voltar sozinho, demonstra que os desejos não nascem de uma situação edípica, mas é fruto de encontros fortuitos; mostrando que o desejo sexual não tem origem biológica, e pode acontecer a qualquer um, vidente ou não.
Alcantara, Clarissade Carvalho (2011). Corpoalíngua: performance e esquizoanálise. Curitiba, PR: CRV.
Anacleto, Aline Ariana Alcântara & Teixeira-Filho, Fernando Silva (2012). A questão do feminino e o cinema brasileiro. Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis. Disponível em: http://www.fg2013.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/20/1381509257_ARQUIVO_AlineArianaAlcantaraAnacleto.pdf
Bessa, Karla (2007). Os festivais GLBT de cinema e as mudanças estético-políticas na constituição da subjetividade. Cadernos Pagu, 28, 257-283. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-83332007000100012
Birnbaum, Daniel (2013). Quem é “mim” hoje? A construção do ser no Der Sandmann de Stan Douglas. In: André Parente (Org.), Cinema/Deleuze (pp. 71-82). Campinas, SP: Papirus.
Blanchot, Maurice (1987). O espaço literário (Á. Cabral, Trans). Rio de Janeiro: Rocco.
Braidotti, Rosi (2009). Transposiciones: sobre la ética nômade. Barcelona: Gedisa Editorial.
Deleuze, Gilles (1992). Controle e devir. In: Conversações. (pp. 209-218). Rio de Janeiro: Ed. 34.
Deleuze, Gilles (2009). Vigésima Primeira Série: Do Acontecimento. In: Lógica do Sentido (pp. 151-156). (L. R. S. Fortes, Trans.). São Paulo: Perspectiva.
Deleuze, Gilles, & Guattari, Félix (1995). Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia (Vol. 1, A. G. Neto e C. P. Costa, Trans.). Rio de janeiro: Ed. 34.
Deleuze, Gilles, & Guattari, Félix (1996). Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia (Vol. 3, A. G. Neto e C. P. Costa, Trans). Rio de janeiro: Ed. 34.
Deleuze, Gilles, & Guattari, Félix (2010). Introdução à esquizoanálise. In: O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. (pp. 361-506). (L. B. L. Orlandi, Trans.). São Paulo: Ed. 34.
Dosse, François (2010). Gilles Deleuze e Félix Guattari: biografia cruzada (F. Murad, Trans.). Porto Alegre: Artmed.
Foucault, Michel (1988). História da sexualidade I: a vontade de saber (M. T. C. Albuquerque e J.A. G. Albuquerque, Trans.). Rio de Janeiro: Edições Graal.
França, André (2005). Foucault e o cinema contemporâneo. ALCEU. 5(10), 30-39. Disponível em: http://revistaalceu.com.puc-rio.br/media/alceu_n10_andrea.pdf
Furtado, Beatriz (2013). A imagem-intensidade no cinema de Sokurov. In: André Parente (Org.), Cinema/Deleuze (pp. 15-30). Campinas: SP, Papirus.
Guattari, Félix (2000). Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34.
Guattari, Félix, & Rolnik, Suely (1996). Micropolítica: cartografias do desejo (4ª. Ed.) Petrópolis: Vozes.
Haraway, Donna (2000). Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: Tomaz Tadeu (Org.), Antropologia do ciborgue: As vertigens do pós-humano (pp. 33-118). Belo Horizonte: Autêntica.
Jesus, Jaqueline Gomes de (2015, 28 de janeiro). A verdade cisgênero. Texto para o blogspot: Blogueiras feministas: de olho na web e no mundo [Blog]. Disponível em: http://blogueirasfeministas.com/2015/01/a-verdade-cisgenero/
Lauretis, Teresa de (1978). Alice doesn’t: feminism, semiotics, cinema: an introduction. London: the mainillan press.
Lazzarato, Maurizio (2014). Signos, máquinas, subjetividades (P. D. Oneto e H. Lencastre, Trans.). São Paulo: Sesc São Paulo.
Levy, Tatiana Salem. (2011). A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Lopes, Denilson, & Nagime, Mateus (2015). New Queer Cinema e um novo Cinema Queer no Brasil. In: Lucas Murari & Mateus Nagime (Orgs.), New Queer Cinema: Cinema, Sexualidade e Política (pp. 09-11). Disponível em: http://www.newqueercinema.com.br/images/catalogo.pdf
Mansano, Sonia Regina Vargas (2009). Sorria, você está sendo controlado: resistência e poder na sociedade de controle. São Paulo: Summus.
Mello, Luiz, & Gonçalves, Eliane (2010). Diferença e interseccionalidade: notas para pensar práticas em saúde. Revista do programa de pós-graduação em ciências da UFRN, 11(2), 163-173. Disponível em: http://periodicos.ufrn.br/cronos/article/view/2157
Melo, Rogério Amador de & Barreto, Danielle Jardim (2014). Formação em Psicologia: discursos e saberes sobre experimentações de gênero. Psicologia: Ciência e Profissão, 34(3), 676-689. http://dx.doi.org/10.1590/1982-3703000932012
Moura, Eliana Peres Gonçalves de (1999). A Psicologia (e os Psicólogos) que temo e a Psicologia que queremos: reflexões a partir das propostas de Diretrizes Curriculares (MEC/SESU) para os Cursos de Graduação em Psicologia. Psicol. cienc. Prof, 19(2), 10-19. http://dx.doi.org/10.1590/S1414-98931999000200003
Nepomuceno, Margarete Almeida (1999). O colorido do cinema queer: onde o desejo subverte a imagem. II Seminário Nacional Gênero e Práticas Culturais: culturas, leituras e representações. Disponível em: http://itaporanga.net/genero/gt6/13.pdf
Parisi, Luciana (2009). The adventures of a sex. In: Chrysanthi Nigianni & Merl Storr (Orgs.), Deleuze and Queer Theory (pp. 72-91). Edinburgh University Press.
Parker, Richard Guy (2002). Abaixo do equador: culturas do desejo, homossexualidade masculina e comunidade gay no Brasil (R. Vinagre, Trans.). Rio de Janeiro: Record.
Pereira, Pedro Paulo Gomes (2008). Corpo, sexo e subversão: reflexões sobre duas teóricas queer. Interface - Comunic., Saúde, Educ., 12(26), 499-512. http://dx.doi.org/10.1590/S1414-32832008000300004
Peres, Wiliam Siqueira (2013). Psicologia e Políticas Queer. In: Fernando Silva Teixeira-Filho, Wiliam Siqueira Peres, Carina Alexandra Rondini & Leonardo Lemos de Souza (Orgs.), Queering: problematizações e insurgências na Psicologia contemporânea (pp. 55-63). Cuiabá: EdUFMT.
Platero Méndez, Raquel (Lucas) (2014). Metáforas y articulaciones para uma pedagogia crítica sobre la interseccionalidad. Quaderns de Psicologia, 16(1), 55-72. https://doi.org/10.5565/rev/qpsicologia.1219 Disponível em: http://www.quadernsdepsicologia.cat/article/view/v16-n1-platero
Prado Filho, Kleber (2006). Uma genealogia das práticas de confissão no ocidente. In: Alfredo Veiga-Neto & Margareth Rago (Orgs.), Figuras de Foucault (pp. 139-146). Belo Horizonte: Autêntica.
Preciado, Beatriz (2011). Multidões queers: notas para uma política dos “anormais”. Rev. Estud. Fem. 19(1), 11-20. https://doi.org/10.1590/s0104-026x2011000100002
Ramos, Eduardo (2009). A linguagem cinematográfica. In: Devanil Tozzi (Org.), Caderno de cinema do professor: dois (pp. 72-93). São Paulo: FDE.
Reis, Jaider Fernandes (2009). A descoberta do homoerotismo em curtas-metragens brasileiros. Dissertação de Mestrado inédita, Universidade Federal de Minas Gerais. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/JSSS-7U2NBW
Schérer, Renê (1999). Deleuze e a questão homossexual – uma via platônica da verdade. Lugar Comum, 7, 135-163.
Spinoza, Baruch (2010). A origem e a natureza dos afetos. In: Ética (pp. 1226-1236). (T. Tadeu, Trans.), Belo Horizonte: Autêntica Editora.
Stubs, Roberta; Teixeira-Filho, Fernando Silva & Peres, Wiliam Siqueira (2014). A potência do cyborg no agenciamento de modos de subjetivação pós-identitários: conexões parciais entre, arte, Psicologia e gênero. Fractal, Rev. Psicol., 26(3), 785-802. http://dx.doi.org/10.1590/1984-0292/1069
Teixeira-Filho, Fernando Silva (1993). Subjetividade estética: o gesto da sensação. Dissertação de Mestrado inédita. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Teixeira-Filho, Fernando Silva (2013). Psicologia e Teoria Queer: das identidades aos devires. Tese de Livre-Docência. Universidade Estadual Paulista.
Tostes, Felipe & Dias, Rafael (Direção) (2008). Cinema 7 cores [Film]. Brasil: Local de Produção: RJ. Disponível em: http://portacurtas.org.br/filme/?name=cinema_em_7_cores
Xavier, Ismail (2008). Um Cinema que “Educa” é um Cinema que (nos) Faz Pensar. Educação e Realidade, 33(1), 13-20. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/6683
Watts, Harris (1999). Direção de câmera: um manual de técnicas de vídeo e cinema. São Paulo: Summus.
Weissberg, Jean-Louis (2013). Comentário sobre a imagem-agida, com base em imagem-tempo de Gilles Deleuze. In: André Parente (Org.), Cinema/Deleuze (pp. 137-158). Campinas, SP: Papirus.
Weiszflog, Walter (2004). Michaelis. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php