Vigiar e assistir: o território na atenção básica e a racionalização do acontecimento

Watching and assisting: the territory in primary health care and the rationalization of the event

  • Érico Francisco Vieira Ibiapina
  • Anita Guazzelli Bernardes
A discussão engendra-se no cenário da saúde pública brasileira. Consideram-se, no processo de análise, a Política Nacional de Atenção Básica e as Diretrizes Nacionais de Vigilância em Saúde. O objetivo é problematizar o modo como é constituída a noção de caso a partir das estratégias políticas que articulam tecnologias de vigilância/assistência no território da atenção básica. Para tanto, aponta-se de que forma o território-moradia possibilita a espacialização do caso como requisito para estabilização/operacionalização da Política Nacional de Atenção Básica. A análise fundamenta-se em uma perspectiva pós-estruturalista da psicologia social. Opera-se com os conceitos de dispositivo de segurança, de Foucault, e de territorialização, de Deleuze e Guattari. Analisam-se as políticas públicas de saúde seguindo os procedimentos de seleção, leitura e análise de arquivo. Como desdobramento, focaliza-se o modo como a trajetória do cuidado questiona, mobiliza e modifica a relação entre território e acesso na atenção básica.
    Palavras chave:
  • Atenção básica
  • Território
  • Política de saúde
  • Subjetividade
This discussion takes place in the scenario of Brazilian public health. The analysis has addressed the National Policy of Primary Health Care and the National Guidelines for Health Surveillance. The aim is to problematize the way in which the notion of case has been constituted from the political strategies that articulate surveillance/assistance technologies in the territory of primary health care. In order to do that, we point out the way that the dwelling-territory has enabled the case spatialization as a requirement for stabilization/operationalization of the National Policy of Primary Health Care. The analysis has been grounded on a post-structuralist perspective of social psychology by using the concepts of security device, by Foucault, and territorialization, by Deleuze and Guattari. The public health policies have been analyzed by following the procedures of file selection, reading and analysis. In addition, we have focused on the way that the health care trajectory questions, mobilizes and modifies the relation between territory and access in primary health care.
    Keywords:
  • Primary Health Care
  • Territory
  • Health Policy
  • Subjectivity

1 Introdução

A discussão engendra-se no cenário da saúde pública brasileira. Este artigo analisa a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) (Ministério da Saúde, 2011) em saúde e as Diretrizes Nacionais de Vigilância em Saúde (DNVS) (Ministério da Saúde, 2010). O objetivo é problematizar o modo como é constituída a noção de caso a partir da articulação entre tecnologias heterogêneas (vigilância/assistência) no território da atenção básica. Nesse sentido, a análise circunstancia a política pública de saúde como parte de um jogo tático de um dispositivo de segurança (Foucault, 1977/2008), pontuando-se de que forma o território-moradia possibilita a espacialização do caso como requisito para estabilização/operacionalização da PNAB (Ministério da Saúde, 2011).

Este texto é um recorte de uma pesquisa que focaliza as relações entre território e acesso para a compreensão dos modos de produção de subjetividade. No processo de construção da problemática de pesquisa, considera-se central a relação entre território e acesso em saúde como condição de possibilidade para a visibilidade de problemas populacionais. É a partir desta relação que a política possibilita criar um plano de organização (Deleuze & Parnet, 1977) possível entre intervenções do Estado e população.

Esta pesquisa faz parte de um movimento de problematizações fundamentado em uma base epistêmica pós-estruturalista da psicologia social, principalmente sobre os campos analíticos de Foucault, Deleuze e Guattari. Estes autores oferecem ferramentas teórico-metodológicas como intercessoras para pensar o campo investigativo da psicologia social. No presente artigo, opera-se com os conceitos: dispositivo de segurança (Foucault, 1975/2005; 1977/2008; 1978/2008) e territorialização (Deleuze & Guattari, 1992; 1995; 1997; Deleuze & Parnet, 1977). Considera-se que essas ferramentas conceituais são auxílio para reflexão sobre aquilo que as políticas públicas de saúde produzem como efeito. Ademais, o campo pós-estruturalista da psicologia social tem contribuído com a intercessão de conceitos para a desnaturalização de práticas de poder que se engendram nas relações entre Estado e sociedade (Neto, 2015). As políticas públicas foram colocadas em análise sob uma perspectiva genealógica, seguindo-se os procedimentos de seleção, leitura e análise de arquivo (Foucault, 1972/2000).

A análise situa a política pública de saúde como parte de um jogo de forças agonísticas que atuam sobre a governamentalização do Estado (Foucault, 1977/2008). Foucault (1977/2008) empreende uma análise genealógica da governamentalidade como regime de poder instaurado no século XVIII “que tem por alvo principal a população, por principal forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança” (p. 143). Nessa análise, o autor parte do questionamento sobre em que consiste essa nova tecnologia do poder, que se apoia e objetiva a noção de população e que tem por mecanismo essencial as tecnologias capazes de normalizar uma realidade – os dispositivos de segurança.

O conceito de territorialização (Deleuze & Guattari, 1992; 1995; 1997; Deleuze & Parnet, 1977) é aqui operado para pensar sobre os modos como a articulação entre tecnologias da vigilância e tecnologias da assistência produzem efeitos sobre o território no campo da atenção básica de saúde. O conceito de territorialização (Deleuze & Guattari, 1992; 1995; 1997) é o processo de fixação de distintos sentidos, eventos e elementos, em um plano de organização específico, no qual a multiplicidade se torna homogeneidade, de forma a produzir territórios/territorialidades.

Focaliza-se, nesta perspectiva, como a PNAB (Ministério da Saúde, 2011), em articulação com as DNVS (Ministério da Saúde, 2010), permite a emergência de tecnologias de controle por meio da integração entre o território da vigilância e o da assistência na atenção básica de saúde, dando condições de visibilidade para outros elementos nesse processo. Desse modo, coloca-se em análise como, a partir da ampliação do acesso na atenção básica de saúde brasileira mediante a naturalização do território-moradia, torna-se possível a articulação territórios-serviços (assistência e vigilância), funcionando como parte de um mecanismo de poder que se engendra na regulação dos hábitos da população domiciliada, constituindo subjetividades fixas nas moradias. Para tanto, a análise interroga como a política pública constitui a noção de caso a partir da vigilância de práticas individuais (saúde-adoecimento) por meio do território-moradia como localização e espacialidade do acontecimento (gestão do aleatório). A análise dos arranjos constituídos entre políticas de saúde, território na atenção básica e vigilância/assistência permitiu, ainda, a emergência de outros elementos para compor a problemática, como, por exemplo, o modo como a vigilância aparece enquanto mecanismo de gestão de riscos na atenção básica.

O texto percorre o seguinte itinerário: (1) Coloca em análise a articulação entre vigilância e assistência na atenção básica a partir da PNAB (Ministério da Saúde, 2011) e das DNVS (Ministério da Saúde, 2010); (2) Discute os mecanismos que atuam na totalização do caso individual como estratégia de segurança e a emergência da racionalização da imprevisibilidade do acontecimento; (3) Pontua de que forma o território-moradia, enquanto base territorial da atenção básica, possibilita a espacialização e localização do aleatório como requisito para estabilização da PNAB (Ministério da Saúde, 2011) e intervenção-conhecimento sobre os acontecimentos da vida; (4) Circunstancia como a trajetória do cuidado interroga, mobiliza e modifica a maneira de operar a relação entre território e acesso na atenção básica e a produção de formas de subjetivação.

2 Vigilância e assistência na atenção básica

O Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro é tributário de uma reforma política e social no campo da saúde (Paim, 2008) e estrutura-se a partir da promulgação da Lei Orgânica de Saúde (Lei 8.080, 1990), por meio da qual se delineiam diretrizes e princípios do SUS, como a universalidade e a integralidade da assistência à saúde. A universalidade, como princípio, define que todos têm acesso à saúde em todos os níveis de complexidade de atenção do sistema. Já a integralidade é entendida como o “conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema” (Lei 8.080, 1990, p. 04). A integralidade, portanto, refere-se à continuidade do cuidado e ao acesso da população a todos os níveis de atenção em saúde. A proposta de criação do SUS como sistema unificado e de abrangência nacional considera:

A organização da oferta de serviços à população, mediante programação regionalizada baseada em análise de necessidades e exigências do perfil epidemiológico, com a crescente articulação das ações de natureza preventiva e curativa e a complementaridade entre os diversos níveis de complexidade de atenção na rede de serviços, por meio de um processo decisório democratizado e sob controle dos atores sociais. Isso tudo no interior de um sistema único enquanto princípio orientador, mas flexível quanto às formas organizacionais (Barros, 1996, p. 14).

O modelo de atenção à saúde implementado no campo da atenção básica no Brasil estrutura-se como uma aposta política para o desenvolvimento de ações em gestão do cuidado integral à saúde, de acordo com a PNAB (Ministério da Saúde, 2011). O modelo de saúde da atenção básica no país focaliza o cuidado primário e ações de prevenção e de promoção da saúde orientadas para a família e para a comunidade (Cunha, 2004). Com a PNAB (Ministério da Saúde, 2011), as práticas de saúde na atenção básica (1) compreendem um campo de produção de saúde que abrange, dentre outros aspectos, clientela territorialmente referenciada, capilaridade, descentralização, ações de promoção e prevenção de saúde com foco no cuidado primário e adscrição de famílias no território; (2) focalizam as condições de vida da população, fabricando formas de racionalizar problemas populacionais com base nas necessidades de saúde da comunidade. Nesse sentido, o problema colocado como urgência no contexto da atenção básica em saúde no Brasil é justamente como se devem conhecer os determinantes e condicionantes sociais da saúde com base nos hábitos da população no que se refere ao processo saúde-adoecimento. Segundo os princípios e diretrizes gerais da PNAB, é função da atenção básica de saúde desenvolver “práticas de cuidado e gestão, democráticas e participativas, sob a forma de trabalho em equipe, dirigidas a populações de territórios definidos, pelas quais assume a responsabilidade sanitária” (Ministério da Saúde, 2011, p. 19). Respondendo a uma urgência de governo populacional, a PNAB (Ministério da Saúde, 2011) amplia o acesso para populações localizadas em territórios específicos. Conforme as DNVS (Ministério da Saúde, 2010, p. 18), “a integração entre a vigilância em saúde e a atenção primária à saúde é condição obrigatória para a construção da integralidade na atenção”. A articulação entre vigilância e assistência coloca-se como condição de possibilidade para a integralidade, que, por sua vez, atua como princípio doutrinário do SUS e pressupõe a articulação entre serviço-território-acesso para a garantia de cuidado em todos os níveis de complexidade do sistema. A política pública, então, aparece como uma tecnologia que constitui parte de um dispositivo, pois arranja as condições estratégicas para que se articulem elementos heterogêneos como resposta às urgências, configurando certas formas de relações de poder. O dispositivo, para Foucault (1979/1984), implica:

Manipulação das relações de força, de uma intervenção racional e organizada nestas relações de força, seja para desenvolvê-las em determinada direção, seja para bloqueá-las, para estabilizá-las, utilizá-las, etc... O dispositivo, portanto, está sempre inscrito em um jogo de poder, estando sempre, no entanto, ligado a uma ou a configurações de saber que dele nascem mas que igualmente o condicionam. (p. 139)

É importante destacar que a integração dos territórios-serviços não implica meramente a operacionalização de novas tecnologias no campo da atenção básica, mas a atualização nas formas de se racionalizar a demanda de saúde e também a emergência de novas técnicas que tornam o território uma potência agenciadora das condições de vida populacionais. Não se trata, portanto, de uma simples articulação, mas da possibilidade de atualização do território-serviço da atenção básica justamente a partir de uma relação de reciprocidade que se produz entre tecnologias heterogêneas. Com o movimento de territorialização na atenção básica, o território torna-se um híbrido (Latour, 1994), pois, a partir dele, se articulam diferentes tecnologias (vigilância/assistência) para poder operar um mesmo plano de organização (Deleuze & Parnet, 1977). O híbrido, para Latour (1994), é um operador conceitual que permite pensar uma crítica à purificação dos objetos a partir da modernidade. O híbrido refere-se aos objetos como efeitos de processos de articulação entre elementos heterogêneos; no caso, o território na saúde torna-se um híbrido, na medida em que tecnologias da assistência e da vigilância se articulam para poder formar um mesmo plano de organização para operar a política de saúde.

No caso da atenção básica, o acesso deve ser condicionado a uma demanda específica das necessidades de saúde da população. Segundo a PNAB (Ministério da Saúde, 2011), constitui-se como uma das diretrizes da atenção básica a “articulação das ações de promoção à saúde, prevenção de agravos, vigilância à saúde, tratamento e reabilitação e manejo das diversas tecnologias de cuidado e de gestão necessárias a estes fins” (p. 3). A política orienta as condições de articulação entre tecnologias heterogêneas e de gestão, de maneira a produzir visibilidades aos problemas populacionais por meio da captura dos acontecimentos, dos movimentos, da aleatoriedade inerente à vida, investindo-se na diminuição dos riscos e de agravos à saúde.

A vigilância na atenção básica, ao mesmo tempo em que permite dar visibilidade a certos problemas populacionais, também implica a regulação dos modos como a população deve viver, engendra o ajuste de hábitos cotidianos para não adoecer e as trajetórias de cuidado para evitar o adoecimento. Cunha (2004, p. 41) diz que “na Atenção Básica (...) não existe um encontro eventual com o doente em situação de isolamento, mas encontros seguidos no tempo, em situação de concorrência da intervenção terapêutica com as intervenções da vida”. Assim, permite-se inserir na minúcia do cotidiano da população uma vigilância contínua sobre o corpo individual, seus hábitos e a atualização do que condiciona e determina saúde, ou seja, o que deve ser vigiado. De acordo com as DNVS (Ministério da Saúde, 2010, p. 21):

Essa política objetiva a promover a qualidade de vida, empoderando a população para reduzir a vulnerabilidade e os riscos à saúde relacionados aos seus determinantes e condicionantes – modos de viver, condições de trabalho, habitação, ambiente, educação, lazer, cultura e acesso a bens e serviços essenciais.

A vigilância permite o acompanhamento longitudinal dos casos e sua distribuição espacial, expressos em mapas da saúde (Decreto 7.508, 2011) que, por sua vez, traduzem hipóteses sanitárias sobre o processo saúde-adoecimento na comunidade. Dessa forma, a vigilância em saúde pública focaliza determinados problemas populacionais e permite o monitoramento do comportamento de doenças com base em fatores, tais como o movimento da população, migrações e demais aspectos relacionados aos hábitos da população, isto é, aquilo que constitui a população como “conjunto de fenômenos naturais” (Foucault, 1977/2008, p. 473). Nesse sentido, a vigilância operacionaliza o estabelecimento de sistemas de informação que permitem a produção de conhecimento e a centralização das informações sobre fatores condicionantes de doenças. A vigilância também atua no planejamento de programas de controle na comunidade para gerenciamento e regulação dos acontecimentos populacionais.

Além disso, com os instrumentos de que dispõe a vigilância, emerge uma condição de possibilidade para a visibilidade do caso a partir da duração do fenômeno no que se refere ao acompanhamento longitudinal de doenças e de sua espacialidade (localização e distribuição geográfica). Portanto, a vigilância como mecanismo da gestão de riscos dá visibilidade a “fenômenos que se desenvolvem essencialmente na duração, que devem ser considerados num certo limite de tempo relativamente longo” (Foucault, 1975/2005, p. 206). A definição do caso em saúde pública constitui-se uma das principais etapas de investigação em vigilância, e sua operacionalização traduz o que deve ser foco de investigação e controle contínuo. As Portarias 204 e 205 do Ministério da Saúde aparecem em 2016 como a composição da lista de notificação compulsória, atualizando os casos passíveis de notificação, ou seja, essas portarias fazem parte de um recurso infraconstitucional que traduz a noção de caso como aquilo que deve ser notificado, como eventos de saúde, agravos ou doenças. Essas portarias demarcam a produção de conhecimento em vigilância epidemiológica na saúde pública, substancializando intervenções que se iniciam na notificação individual para a totalização dos casos em um contexto coletivo. É também pela articulação entre as tecnologias da assistência e as da vigilância no território que as necessidades de saúde passam a ser alvo das ações de promoção de saúde como forma de “reduzir vulnerabilidades e riscos à saúde relacionados aos seus determinantes e condicionantes”, de acordo com a Política Nacional de Promoção da Saúde (Ministério da Saúde, 2006, p. 17).

Para Foucault (1977/2008), a partir do avizinhamento entre ciência médica e estatística, emerge a noção de caso, que não é o caso individual, mas a maneira de individualizar o fenômeno coletivo da doença. É, portanto, na quantificação de casos no interior do campo coletivo que vão se integrar fenômenos individuais. A articulação entre tecnologias heterogêneas no território da atenção básica permite que se estabeleça um jogo entre individual-coletivo na produção de conhecimento sobre os determinantes e condicionantes de saúde na comunidade, engendrando uma “superfície que se estende do orgânico ao biológico, do corpo à população” (Foucault, 1975/2005, p. 213). Assim, as notificações individuais na assistência tornam-se totalizadas no plano coletivo a partir da noção de caso expressa em portarias, boletins epidemiológicos, mapas da saúde e perfis epidemiológicos. Ademais, a articulação entre tecnologias de vigilância e assistência envolve um mecanismo retroalimentador, ou seja, as notificações individuais compõem uma noção de caso coletivo da doença enquanto demanda. Por sua vez, as objetivações coletivas do caso (perfis epidemiológicos e mapas da saúde) confirmam as notificações individuais. Nesse sentido, a noção de caso não implica uma cesura no tecido coletivo, mas é justamente pela integração do caso individual como um fenômeno coletivo que o dispositivo de segurança consegue “levar em conta o conjunto sem descontinuidade” (Foucault, 1977/2008, p. 81). Esse ciclo retroalimentador demarca um movimento de vigilância das necessidades coletivas ao ajuste da conduta individual pela assistência; demarca o movimento da assistência individual à determinação do que deve ser vigiado coletivamente. Isso assinala a “lei enquadrada por mecanismos de vigilância e correção” (Foucault, 1977/2008, p. 8). As tecnologias de segurança, as disciplinares e o jurídico-legal engendram-se nos mecanismos políticos de regulação da vida.

Desse modo, a articulação entre tecnologias de vigilância e assistência pode aparecer amalgamada nas três técnicas: a jurídico-legal na ordem das leis; a disciplinar na série de técnicas médicas; a de segurança no esquadrinhamento da população e na vigilância dos acontecimentos aleatórios. Para Foucault (1975/2005, pp. 212-213):

O elemento que vai circular entre o disciplinar e o regulamentador, que vai se aplicar da mesma forma ao corpo e à população, que permite controlar a ordem do disciplinar do corpo e os acontecimentos aleatórios de uma multiplicidade biológica, esse elemento que circula entre um e outro é a “norma”.

A norma refere-se a um campo de discursividade (leis, portarias) que se torna um dos meios possíveis de enunciar e operacionalizar uma política pública. É pelo efeito de conjunto, tendo a norma como um dos elementos heterogêneos na constituição do dispositivo, que se garantem as condições de articulação da vigilância com a assistência, por exemplo. Conforme as DNVS (Ministério da Saúde, 2010):

O processo de planejamento do Sistema Único de Saúde é pautado pela análise da situação de saúde na identificação das condições, dos determinantes e dos condicionantes de saúde da população, dos riscos sanitários na organização de serviços e na gestão em saúde, e estabelece as condições para a integração entre vigilância, promoção e assistência em saúde. (p. 99)

No processo de planejamento de saúde, consideram-se a análise situacional das condições de acesso de uma população aos serviços ofertados pelo sistema, as condições ambientais e socioeconômicas da população e a capacidade de oferta de serviços no território. O planejamento de saúde, ao constituir-se como a tradução das necessidades de saúde da população, figura como instrumento e técnica de intervenção para produção de conhecimento e racionaliza as formas como a demanda de saúde deve entrar nos cálculos de governo para tornar-se necessidade de saúde. O problema se produz a partir das estratégias políticas que constituem o que deve ser vigiado, analisado, centralizado e divulgado. De acordo com Foucault (1978/2008, p. 49), “o regime de veridicção não é uma certa lei da verdade, mas sim o conjunto das regras que permitem estabelecer, a propósito de um discurso dado, quais enunciados poderão ser caracterizados, nele, como verdadeiros ou falsos”. Neste caso, a problemática demarca o modo como se produz a noção de caso a partir da vigilância para fundamentar intervenções na assistência e regulação dos hábitos de um segmento populacional no território da atenção básica.

3 Demanda de acesso e regulação do aleatório

O conhecimento sobre a demanda de saúde está atrelado a um processo de territorialização em atenção básica; como afirma Faria (2013, p. 135), “o ponto de partida para o desencadeamento da territorialização (...) é o próprio serviço conforme sua capacidade de oferta”. Nesse sentido, regula-se a demanda pela oferta de serviços no território de adscrição. Em tal modelo territorial de atenção à saúde, nem toda demanda se torna necessidade de saúde da população. A tríade “serviço-território-população” (Monken & Barcellos, 2007, p. 212) torna-se subsumida à capacidade de oferta de acesso do sistema de saúde. Em artigo, Braga, et al. (2016) problematizam as lacunas na assistência à população existentes entre os serviços de saúde ofertados e as necessidades da demanda. Nesse estudo, analisam-se as produções científicas no que se refere à configuração das relações entre oferta, demanda e necessidades relacionadas à atenção domiciliar em saúde. Para os autores, “há um descompasso entre a lógica sob a qual se organiza essa oferta – a da racionalização de custos – e a demanda e necessidades de saúde da população” (Braga et al., 2016, p. 905). Identifica-se uma lacuna entre oferta, demandas por cuidados e as necessidades em saúde, evidenciando-se muito mais a racionalização dos custos pensando-se no planejamento e gestão de saúde do que na assistência às necessidades de saúde que se colocam como demanda.

Pensar a relação entre oferta e demanda torna-se importante, pois é a partir da racionalização da demanda que se pode dar visibilidade a um “problema populacional”, como, por exemplo, a quantificação de casos epidêmicos em uma população que se converte em demanda para a saúde. Conforme os acontecimentos regulares e próprios da população, a demanda atualiza-se e a oferta passa a ser específica para determinados grupos populacionais. Por exemplo, a demanda por assistência em saúde tem se atualizado, e, com o decorrer do envelhecimento e aumento da expectativa de vida da população, há tendência ao aumento de casos de doenças crônicas que caracterizam mudanças no contexto demográfico e epidemiológico no Brasil. Para Braga et al. (2016, p. 904), “a demanda por essas modalidades de cuidado domiciliar ganhou impulso com o aumento da visibilidade do processo de envelhecimento populacional brasileiro”.

Como estabelece a PNAB (Ministério da Saúde, 2011), um dos objetivos da atenção básica é a “integração de ações programáticas e demanda espontânea” (p. 1) e conseguinte articulação das ações de promoção, prevenção e vigilância em saúde. Nesse ponto, a política pública arranja os meios possíveis para articulação entre vigilância e assistência como parte de um jogo estratégico que atende às urgências de demanda que se atualizam com a população. Ademais, as estratégias de promoção e prevenção trabalham com a racionalização das necessidades de saúde de uma população específica espaço-temporalmente contextualizada. Assim como afirma a PNAB (Ministério da Saúde, 2011, p. 1), as ações em saúde são “dirigidas a populações de territórios bem definidos (...) considerando a dinamicidade no território em que vivem essas populações”. A vigilância torna-se, então, um mecanismo de gestão de riscos articulado à assistência, na medida em que possibilita a racionalização do imprevisível (espontâneo) por meio da antecipação da demanda (programático). Porém, esse ponto abre questionamentos para a forma como é racionalizada a previsibilidade do acontecimento no território da atenção básica.

É justamente a racionalização da previsibilidade, ou tornar previsível o imprevisível, que dá estabilidade para a PNAB, no sentido de que ela atua na captura dos acontecimentos da vida e opera as condições de convertibilidade (Deleuze & Parnet, 1977) da demanda de acesso para as necessidades de saúde no território. Nesse caso, engendra-se uma racionalidade específica que permite que o individual seja substancializado num jogo de constantes coletivas que marcam a emergência da população e de sua naturalidade intrínseca.

Com o movimento de territorialização da atenção básica promovido pela incorporação do território de serviços da vigilância, o programático passa não somente a subsumir a demanda espontânea, como também torna a imprevisibilidade como parte da constância dos fenômenos de uma população, enquanto elemento da realidade passível de captura a partir da estatística do caso. A PNAB (Ministério da Saúde, 2011), em articulação com as DNVS (Ministério da Saúde, 2010), arranja condições em que “é ao mesmo tempo uma análise do que acontece e uma programação do que deve acontecer” (Foucault, 1977/2008, p. 53). Torna-se viável, portanto, programar intervenções a partir do aleatório e sobre o aleatório enquanto acontecimento da vida.

Foucault (1977/2008) afirma que as técnicas de vacinação essencialmente preventivas no século XVIII “permitiam pensar o fenômeno em termos de cálculo de probabilidades” (p. 77). A noção estatística do caso como uma racionalização das necessidades de saúde populacionais e fundamentação para programação de ações em saúde permite pensar o fenômeno coletivo da doença em termos de probabilidades de esse evento ocorrer. A partir da noção de caso, é possível pensar a noção de risco como uma racionalização do acaso, da probabilidade de contaminar-se, de morrer ou de curar. A visibilidade que a racionalização dos riscos produz sobre problemas populacionais demarca uma aproximação específica entre tecnologias da assistência com tecnologias da vigilância, entre estatística e saúde.

A estatística do caso possibilita uma das formas de racionalização do risco em saúde como uma margem probabilística para operar ações programáticas em saúde. A categoria risco, ao produzir conhecimento sobre uma realidade por meio de mecanismos políticos de gestão, passa a ser subsumida a objetivações probabilísticas, segmenta o corpo populacional (números de homens, mulheres, idosos, hipertensos, gestantes, pobreza) e homogeneíza uma multiplicidade como forma de territorialização (Deleuze & Parnet, 1977).

Segundo Deleuze (1992), são “formas de territorialização”, em que elementos heterogêneos se tornam subsumíveis a categorias homogêneas. Assim, o mecanismo que engendra a articulação entre assistência e vigilância em saúde “agrupa os efeitos de massa próprios de uma população, que procura controlar uma série de eventos fortuitos que podem ocorrer em uma massa viva; uma tecnologia que procura controlar a probabilidade desses eventos” (Foucault, 1975/2005, p. 297).

De acordo com Foucault (1977/2008), no que se refere à emergência da população como elemento a ser considerado numa prática refletida de governo, sua naturalidade “aparece na constância dos fenômenos que se poderia esperar que fossem variáveis, pois dependem de acidentes, de acasos, de condutas individuais, de causas conjunturais” (p. 97). A aproximação entre vigilância e assistência permite que a conduta individual possa compor um conjunto de regularidades que dizem respeito à totalidade do corpo populacional. Nesse ponto, a racionalização dos riscos pela probabilidade dos casos em saúde é estratégica para dar substancialidade aos acontecimentos populacionais que dependem de condutas individuais, de acasos, da aleatoriedade.

Isso marca o aparecimento da população como um instrumento e objetivo de práticas de governo (Foucault, 1977/2008), na medida em que nem toda oferta de acesso absorve toda demanda de saúde, mas toda necessidade de saúde coletiviza e substancializa cada demanda individual. A população aparece como um objeto técnico passível de ajuste e regulação, fazendo funcionar um elemento natural (condutas individuais, acasos, aleatoriedade) na totalidade coletiva (necessidade de saúde).

A vigilância, ao estabelecer a noção de caso, também visibiliza a duração do fenômeno por meio do policiamento contínuo das notificações que estabelecem padrões espaciais e longitudinais do caso. Para Foucault (1975/2005, p. 207), “a biopolítica vai se dirigir, em suma, aos acontecimentos aleatórios que ocorrem numa população considerada em sua duração”. Como já pontuado, a visibilidade que a vigilância proporciona ao acontecimento deve-se tanto à possibilidade de apreensão do fenômeno pela sua duração em termos de longitudinalidade do acontecimento, quanto à sua espacialidade como localização do acontecimento no território. A vigilância, dessa forma, aparece como um procedimento da gestão de riscos, no sentido de que ela permite pensar o fenômeno a partir de sua probabilidade e localizar a imprevisibilidade espaço-temporalmente.

4 A espacialização dos acontecimentos da vida: localização do aleatório

O plano de organização territorial da PNAB (Ministério da Saúde, 2011) torna-se uma categoria avaliativa e operativa do sistema de saúde. É avaliativa porque possibilita o acompanhamento e localização dos casos em saúde e a atualização de elementos das dimensões geográficas e sociais que atuam como determinantes e condicionantes de saúde. Também se constitui como categoria operativa, uma vez que é sobre o plano territorial que são organizadas as ações de saúde e ocorre a emergência de um saber sobre o corpo populacional. A vigilância em saúde e a epidemiologia consideram, dentre outros fatores, a relação entre doença, espaço e grupos populacionais, como afirmam os estudos sobre a importância da variável espacial para a análise de casos em saúde (Alves, Magalhães & Coelho, 2014; Bühler, Ignotti, Neves & Hacon, 2014; Fonseca, Hacon, Reis, Costa & Brown, 2016; Teixeira, Gracie, Malta & Bastos, 2014). Mais do que simplesmente uma categoria operativa e avaliativa da PNAB (Ministério da Saúde, 2011), o plano de organização territorial aparece como um mecanismo de visibilidade entre o usuário e o sistema de saúde. No momento em que o acesso se articula com o território na atenção básica, a política pública fabrica meios para a saúde operar sobre os acontecimentos da vida, determinar o que deve ser condicionante e determinante de saúde e racionalizar o aleatório. Ao aproximar as práticas de saúde do cotidiano das pessoas, a política pública permite que a vigilância em saúde focalize determinados problemas e necessidades sociais.

A localização do aleatório enquanto acontecimento da vida, permite a estabilidade da política de atenção básica (Ministério da Saúde, 2011) e do atendimento ao princípio de integralidade (Ministério da Saúde, 1990), no sentido de que é por meio da articulação entre tecnologias heterogêneas no tecido territorial que se torna possível a captura do acontecimento, da aleatoriedade, bem como sua inscrição em perfis epidemiológicos e mapas da saúde como forma de organizar uma multiplicidade em movimento, em circulação. Como afirma Foucault (1977/2008, p. 27), “a segurança procura criar um ambiente em função dos acontecimentos possíveis”. Nessa perspectiva, a segurança, como tecnologia, não arquiteta o território propriamente, mas dá visibilidade a um elemento da realidade (hábitos populacionais), naturalizando um ambiente (território-moradia) em função dos acontecimentos possíveis. É justamente a partir da política que o espaço se torna tanto alvo das ações de saúde quanto aquilo que permite dirigi-las – torna-se objetivo e instrumento de um poder ao mesmo tempo. O território-moradia, como segmentaridade dura (Deleuze & Parnet, 1977), ao dar substancialidade (localização) ao acontecimento que depende dos acasos e condutas individuais, permite que se criem zonas de articulação como um ponto de encontro entre o cotidiano da população e o sistema de saúde.

As linhas de segmentaridade (Deleuze & Parnet, 1977) estabelecem um encadeamento entre elementos sucessivos, tais como: saúde-território-acesso-moradia-família. As estratégias de territorialização que operam cortes segmentários binários “não implicam em dualismo, mas antes são dicotômicas” (Deleuze & Parnet, 1977, p. 145). Assim, é uma estratégia de territorialização a criação de binarismos que cesuram o tecido populacional em padrões específicos de territorialidades, como, por exemplo: homem-mulher; criança-adulto; branco-negro; pobre-rico; homossexual-heterossexual.

Como composição heterogênea, o território permite que a assistência e a vigilância adentrem nos espaços privados das residências e ajustem condutas, ao mesmo tempo em que ocorre a atualização do que deve ser vigiado, localizando os acontecimentos da vida em seus aspectos fluxos (circulação, migrações). A política pública territorializa, assim, formas de viver, a partir do ajuste dos hábitos, da captura do que deve ser vigiado, da inscrição da população em perfis epidemiológicos e do uso dos seus espaços domiciliares. Cria-se, desse modo, certa modalidade de experiência da relação que se estabelece entre sujeito domiciliado e o sistema de saúde. Foucault (1977/2008, p. 27) afirma que “o espaço próprio da segurança remete, portanto, a uma série de acontecimentos possíveis, remete ao temporal e ao aleatório, um temporal e um aleatório que vai ser necessário inscrever num espaço dado”. O território-moradia como segmentaridade dura (Deleuze & Parnet, 1977), ao abrir territórios existenciais, não somente oferece visibilidade a um determinado segmento populacional, mas permite a localização do aleatório, a focalização e direcionamentos de técnicas políticas sobre um dos meios onde a vida acontece. Assim, tanto a racionalização do caso passa a subsumir o aleatório a partir da totalização de fenômenos individuais, quanto a racionalização do território passa a substancializá-lo, pois cria-se um plano de organização para a política de atenção básica em saúde operar sobre a imprevisibilidade como um elemento da realidade. Explica-se melhor: a política pública, na medida em que se apoia em um acontecimento da realidade (o aleatório baseado no acaso, nas condutas individuais), dirige técnicas sobre um meio onde ocorre a circulação de uma multiplicidade (Foucault, 1977/2008). A regulação populacional, nesse sentido, não se dá sobre o acontecimento em si na forma de anulá-lo, mas na de fazê-lo funcionar na própria realidade. As tecnologias de vigilância e de assistência localizam o espaço do acontecimento, tornando-o manejável, passível de estabelecer certa regularidade no encontro da política com os acontecimentos da vida. A espacialização dá substancialidade ao acontecimento, no sentido de que não é o acontecimento da multiplicidade dispersa no espaço, mas as formas como a população domiciliada lida com o processo saúde-adoecimento em um espaço delimitado pela moradia. Essa substancialidade produz modos de subjetivação dos próprios processos de saúde-adoecimento, constituindo subjetividades domiciliadas e fixadas nas moradias, nos casos e nos riscos.

5 Considerações: trajetória do cuidado e outras modalidades de subjetivação

Como pontuado anteriormente, o território-moradia emerge como segmentaridade dura (Deleuze & Parnet, 1977) que compõe um território existencial pela possibilidade de regulação de um segmento populacional: a população domiciliada. O espaço do domicílio passa a agenciar a construção de subjetividades localizadas em um dos espaços de circulação da população no que se refere ao processo saúde-adoecimento. A territorialização, dentro do campo analítico de Deleuze e Guattari (1997), se produz a partir de segmentaridades determinadas que inscrevem um código-território específico, subsumindo elementos heterogêneos, de maneira a torná-los categorias homogêneas. Essas linhas de serialização, tais como território-moradia e domicílio-população-família, tornam-se linhas segmentárias que agenciam as formas de territorializar no campo da atenção básica em saúde, codificando modos de viver ao inscrever a população em certos grupos identitários. Esses segmentos que cortam o corpo populacional em formas de territorialização implicam um “dispositivo de poder” (Deleuze & Parnet, 1977, p. 146), pois permitem que se fixem códigos às condutas e a territórios específicos de pertencimento. A política dirige ações de ajuste não para a conduta de uma multiplicidade dispersa, mas para a conduta de um segmento populacional que ocupa uma espacialidade codificada.

Ao fixar um código à população, a política pública também afirma os modos como essa população deve acessar a saúde; no caso da atenção básica, a população, para acessar o sistema de saúde, deve estar fixa em uma residência, o que implica um modo específico de articular a relação entre território e acesso em saúde como parte da estratégia de um dispositivo de poder. A partir da articulação entre vigilância e assistência no território-moradia, outro elemento ganha visibilidade: a trajetória do cuidado. O problema da trajetória do cuidado assinala uma relação específica no que se refere à conduta e ao percurso do sujeito no processo saúde-adoecimento. A questão da trajetória do cuidado implica-se também na gestão do cuidado integral de saúde como organização e “gestão de redes de atenção e busca assegurar o princípio de integralidade” (Santos & Giovanella, 2016, p. 2). A noção de trajetória aparece com relação ao movimento do corpo com o poder que prescreve e assinala determinado percurso para o acesso à saúde. Isso demarca uma relação de poder em que discursos de verdade se articulam à normalização de condutas, neste caso, a regulação de condutas domiciliadas no que se refere ao ajuste dos hábitos e à própria trajetória do cuidado.

Desse modo, a trajetória do cuidado é tanto aquilo que demanda a urgência e vigilância dos hábitos no cotidiano, quanto o que excede à própria política pública, pois se trata de um movimento nômade, um fluxo inscrito na aleatoriedade das ações individuais. A articulação vigilância-assistência no território da atenção básica, ao mesmo tempo em que abre um campo de visibilidade sobre os hábitos cotidianos, também torna possível, a partir de uma grade de inteligibilidade, afirmar como devem ser ajustados os hábitos, que caminhos a população domiciliada deve percorrer para o acesso à saúde e o que deve ser vigiado nas famílias domiciliadas para compor uma determinada trajetória do cuidado normalizada. Portanto, a política de atenção básica, ao regular o aleatório, também se encontra com aquilo mesmo que é efeito do aleatório, ou seja, outras modalidades de subjetivação. A invenção de outras possibilidades de acesso à vida assinala outras modalidades de subjetivação, como as práticas populares de parteiras na região do agreste em Pernambuco (Melo, Müller & Gayoso, 2013) e a prática popular de curandeirismo no interior do Piauí (Medeiros, Azevedo, Machado & Sousa, 2007) e na Zona da Mata em Minas Gerais (Matos & Greco, 2005). Essas práticas populares inscrevem fluxos de cuidado, que escapam às formas de regulação e vigilância no campo da atenção básica de saúde. Tais práticas assinalam que há, no próprio território-moradia, trajetórias de cuidado que indicam formas de negociação com a norma. As formas de controle e regulação da conduta da população domiciliada pela PNAB (Ministério da Saúde, 2011) entram em negociação com outras modalidades de subjetivação que emergem dos percursos aleatórios implicados na própria trajetória do cuidado. Nessa perspectiva, as práticas populares de cuidado colocam-se como uma das formas de resistência a determinadas trajetórias de cuidado inscritas em normatividades que recaem sobre as condutas domiciliadas a partir de estratégias de regulação.

As práticas populares apontam certo movimento nômade que define fluxos “mutantes e não sobrecodificantes” (Deleuze & Parnet, 1977, p. 148), na medida em que implicam fluxos de desterritorialização do plano de organização da política pública. A desterritorialização refere-se ao movimento nômade das linhas de agenciamento mutantes (Deleuze & Parnet, 1977), o que desestabiliza o plano de organização da política, produzindo novas relações de codificação/territorialidade. As práticas populares de cuidado também assinalam uma trajetória que, ao mesmo tempo em que provoca, pede urgência de uma política pública. A trajetória é justamente aquilo que coloca em questão tanto a forma como se captura a minúcia do cotidiano quanto o modo como o próprio aleatório interroga a racionalização da imprevisibilidade no campo da atenção básica de saúde (Ministério da Saúde, 2011).

Pensar a trajetória do cuidado como um problema do presente que pede urgência em termos de respostas de governo, implica novas maneiras de negociação/contestação da população com a PNAB (Ministério da Saúde, 2011). Nesse sentido, as práticas populares que engendram novas trajetórias e percursos que não necessariamente condizem com as trajetórias de acesso à atenção básica de saúde produzem outras modalidades de subjetivação. Desse modo, novas ontologias e formas de negociação/contestação passam a emergir do encontro dessas trajetórias com a política pública.

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