Nosso objetivo neste artigo é de apresentar algumas dimensões da participação grupal que possibilitaram a permanência de um grupo no tempo. Tomamos como estudo de caso um grupo de mães que, iniciado na década de 1970, no contexto dos movimentos sociais da Zona Sul do Município de São Paulo, continuava em atividade em 2015. Com esse objetivo, iniciamos a discussão situando a perspectiva teórica que embasou o estudo que tem como aporte as reflexões construcionistas sobre linguagem em uso. A seguir, apresentamos o contexto no qual surgiu esse grupo de mães. Nesse breve histórico, postulamos que os clubes de mães, nesta região e nessa época, emergiram como iniciativa das Comunidades Eclesiais de Base, as CEB, com objetivos que mesclam formação, geração de renda e ativismo social. Apresentamos, a seguir, os objetivos, procedimentos e principais resultados de pesquisa, argumentando que os afetos, entendidos como práticas sociais, têm papel central na articulação e consolidação dos grupos comunitários.
Partimos do pressuposto que o processo grupal é anterior à sua teoria; grupos sempre existiram. Precisar sua origem exigiria trazer à discussão os primórdios da história da humanidade, pois em todos os tempos e em todas as épocas o agrupamento representa uma possibilidade de organização social, além da manutenção da história, da cultura, dos costumes e de cada ethos. É também uma forma de se autoproteger, seja em tribos, famílias, comunidades e nações. Contudo, como os grupos são fenômenos psicossociais há uma longa trajetória de teorizações a seu respeito no campo da psicologia (Spink, Mengon e Medrado, 2014). É necessário, portanto, situar de onde falamos ao ter um grupo como foco de estudo. Posicionados no enquadre das abordagens construcionistas, consideramos que a prática grupal é de natureza essencialmente linguística, mais precisamente, da linguagem como ação.
Concordamos com Tomas Ibáñez (2004, p. 39) ao afirmar que dizer é também fazer, uma vez que a linguagem constitui as coisas mais do que meramente as descreve, deixando de ser, assim, a “palavra acerca do mundo para passar a ser ação sobre o mundo”. Nesse sentido, a partir do giro linguístico, a linguagem “deixou de ser vista como um meio para representar a realidade e passou a ser considerada um instrumento “para fazer coisas”. Junto com suas funções “descritivo/representacionais” a linguagem iria adquirir, portanto, um caráter “produtivo” e se apresentava como um elemento “formativo de realidades” (Ibañez, 2004, p. 47).
Para Emerson Rasera e Marisa Japur (2015), nessa abordagem:
Nós nos deslocamos do fenômeno grupal para os estudos da prática grupal e propomos o entendimento do grupo como uma construção social, redefi
nindo-o como uma prática discursiva, o que significa uma forma de criar realidades relacionais por meio da linguagem. A partir desta redescrição o grupo se torna parte do relacionamento de pessoas enquanto uma construção linguística e enquanto um objeto sobre o qual se fala, que tem diferentes significados de acordo com as pessoas que estão envolvidas. Ao mesmo tempo é na arena das conversas que a negociação de sentidos acontece, o que afeta a estabilidade dos discursos sobre o grupo (p. 82; tradução nossa)
Para esse autor, trabalhar com grupos numa perspectiva construcionista é entende-los numa visão não essencialista, adotando uma abordagem prática focalizada nas formas específicas de organizar e facilitar a conversação. Há que se preguntar, portanto, organizar e facilitar, para quê? No caso de grupos de mulheres, como os clubes de mães, autoras feministas, como Claudia Pedrosa e Jacqueline Brigagão (2014), consideram os grupos como espaços de fortalecimento e empoderamento. Argumentam que essas reuniões grupais:
Possibilitam às participantes espaço para recriarem a si próprias. À medida que interagem, falam, ouvem, dançam e trabalham juntas, vão inventando novas formas de viver e de se posicionar no mundo. Ou seja, nas relações interpessoais com outras mulheres vão conhecendo e construindo novas possibilidades de ação” (Pedrosa et al., 2014, p. 221)
Para a pesquisa construcionista é importante entender quais são os processos que propiciam a formação de grupos, como este que foi foco desta investigação. Queremos entender como o clube de mães se constituiu, qual foi a finalidade da reunião dessas mulheres, o que as mantêm juntas, como trabalham em conjunto, como nomeiam seus encontros, como se relacionam entre si para além do momento dos seus encontros semanais no clube de mães. Deixamos claro que o que importa nesta pesquisa é o que as mães dizem sobre o clube. Trata-se de uma rede de relações que se estabelece enquanto tricotam e falam dos problemas da comunidade, pensando em soluções para resolvê-los.
Os clubes de mães que emergiram nas décadas de 1960 e 1970 estão em grande parte associados às lutas de comunidades religiosas pela redução da pobreza e promoção da justiça social e fundados no contexto das comunidades eclesiais de base (CEB). Na Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, realizada em Medellín, na Colômbia, de 24 de agosto a 6 de setembro de 1968, a igreja católica iniciou um modelo de pastoral com base na teologia da libertação. Essa mesma linha teológica foi amadurecida em Puebla, 1979, com ataques diretos às causas da pobreza, considerando-as como sendo produzidas por processos de exploração econômica em toda América Latina.
Para se conseguir a coerência do testemunho da comunidade cristã no empenho de libertação e de promoção humana, cada país e cada Igreja particular organizará sua pastoral social com meios permanentes e adequados que mantenham e estimulem o compromisso comunitário, garantindo a necessária coordenação de iniciativas, no diálogo constante com todos os membros da igreja. A “Cáritas” e outros organismos que vêm trabalhando com eficácia há muitos anos podem oferecer um bom serviço. (Conselho Episcopal Latinoamericano, 1980, pp. 160-161)
Nesse cenário nasceu a igreja popular, assentada na organização de grupos e associações como expressão de uma religiosidade voltada à defesa dos pobres e excluídos da sociedade e do engajamento nas questões sociais. Destaca-se, nesse contexto, o surgimento das comunidades eclesiais de base.
Há várias formas de organização pastoral na igreja católica, algumas são mais institucionais e o protagonismo dos leigos, pequeno. Neste enquadre, a centralidade está na pessoa do padre e em sua direção. Em contrate, as CEB sempre foram vistas como um espaço de reinvenção da caminhada eclesial, sem se desvincular da instituição, mas dando voz e vez aos homens e às mulheres que as integram. Os grupos sociais se multiplicaram na igreja popular. Uma CEB se formava para discutir soluções para os problemas enfrentados pelos moradores. As pessoas se encontravam para organizar as reivindicações.
Adolfo Calderón (1995) argumenta que
A influência e a presença das CEB sob a inspiração da teologia da libertação ocorreram na maioria dos movimentos populares que emergiram no espaço urbano demandando, principalmente, direitos que diziam respeito a bens e serviços urbanos de consumo coletivo. Dos movimentos realizados em São Paulo, podem ser citados o movimento de luta por ônibus, em 1974, na zona sul da cidade, o movimento de Custo de Vida, iniciado em 1973 pelo Clube de Mães da Paróquia de Vila Remo (zona sul), os movimentos de luta pela regularização de loteamentos clandestinos nas zonas Sul e Leste da cidade de São Paulo, em 1978, o movimento de luta pelas creches, no final da década de 1970. (p. 31)
No contexto latino-americano, a igreja católica teve um papel importante durante os regimes militares, contrapondo-se à violação dos direitos humanos e lutando pelo surgimento da consciência das causas de empobrecimento da população, das questões ideológicas e do aumento da violência, determinantes de um novo cenário social, econômico, político e cultural que afetou a população. O espaço comunitário nas igrejas serviu de refúgio a perseguidos políticos, atuando ainda como centro de denúncias de tortura e instância de reflexão em busca de justiça (CNBB, 2014).
A literatura sobre os movimentos sociais surgidos nesse período está amplamente documentada, por exemplo, nos textos de Adolfo Calderón (1995), Eder Sader, (2001), Maria da Glória Gohn (2013), Gabriela dos Anjos, (2008) e Laís Abramo e Maria Valenzuela (2016). Eder Sader, (2001), argumenta que os movimentos sociais da década de 1970 produziram um novo sujeito que encampa lutas pensando sempre no coletivo. Este autor entende que estudar o cotidiano é entender um certo alargamento da política
Que são as migalhas das pequenas vitórias das pequenas lutas? São as experiências que os excluídos adquirem de sua presença no campo social e político, de interesses e vontades, de direitos e práticas que vão formando uma história, pois seu conjunto lhes ‘dá a dignidade de um acontecimento histórico’. (Sader, 2001, p. 12)
Porém, para nossos propósitos, o foco desta contextualização são os clubes de mães. Escolhemos a região de M’Boi Mirim por ter sido palco de muitas iniciativas e movimentos sociais desde a década de 1970 e continua a ser uma área de alta vulnerabilidade social. Foi lá que surgiu, na Vila Remo, no Jardim São Luís, um dos primeiros grupos de mães da cidade de São Paulo. As atividades desse grupo também estão amplamente documentadas, seja pela referência à Vila Remo na bibliografia acima citada, seja por depoimentos de algumas de suas integrantes mais antigas. Tivemos a oportunidade de conversar com Dona Maria Reis e Dona Maria José (entrevista realizada em 18/07/2015). Dona Maria Reis, uma senhora de 79 anos, é uma liderança local respeitadíssima por seu engajamento nas lutas por melhorias no bairro e por sua ação pastoral na região, onde vive desde o início de 1969. Dona Maria José, 78 anos, chegou ao bairro em 1976. Ambas continuam atuando em atividades comunitárias. Em seus depoimentos, elas ilustram esta estranha mescla de atividades religiosas e ativismo social. Por exemplo:
Teve um movimento aqui, que eu participei, que foi um dos maiores movimentos de São Paulo, na década de 1970: foi o loteamento clandestino. E deu resultado, conseguimos regularização de vários loteamentos.
Em 1973, mais ou menos, a gente começou a comunidade, ali onde é a casa paroquial. Nós corremos atrás, a Cúria comprou o terreno e nós começamos os nossos encontros reivindicatórios. Era um centro pastoral, pra gente fazer as duas coisas, pra gente rezar e também reivindicar.
O clube de mães era um trabalho de formação cidadã. Eu vejo hoje a falta de conscientização; nossa preocupação era com a conscientização do pessoal. Havia ali os trabalhos manuais, mas era pra segurar o povo. Era um grupo unido, uma mulherada unida e o nível de consciência política crescia.
Aquele lá era o movimento contra a carestia, mas não tinha nada a ver com o panelaço das madames hoje, né?! Até quando eu vi aquele panelaço eu disse: “Filha da mãe, a gente batia panela pedindo comida e elas batem pra quê?”. Nós tínhamos um lema que era: “Abaixo a carestia que a panela está vazia!” O movimento do custo de vida foi para lutar contra a alta dos preços. A gente fazia abaixo assinado e acho que foi muito importante, porque o Brasil inteiro se mobilizou.
Os trabalhos manuais eram só um chamativo. O grupo crescia, cada semana vinha chegando mais. É bom lembrar que o clube de mães era da Paróquia da Vila Remo. A paróquia tinha vinte comunidades, todas tinham clube de mães. Então, quando você ia reivindicar alguma coisa, você enchia ônibus, porque era muita gente.
A luta pelas creches era do clube de mães mesmo, porque muitas mães não podiam sair pra trabalhar, já que não tinham onde deixar seus filhos. Conseguimos muitas creches. (Dona Maria Reis e Maria José, Entrevista realizada dia 24 de setembro de 2015)
Neste contexto, as mulheres se dedicavam mais às atividades não remuneradas e os homens às atividades remuneradas (Laís Abramo e Maria Valenzuela, 2016). Elas eram militantes do cotidiano, se considerarmos como tal a adesão a determinada causa e o engajamento continuado em nome dela (Anjos, 2008). A autora destaca, ainda, a atuação feminina nos espaços públicos como uma forma socialmente consagrada de militância desinteressada. A liderança das mulheres sempre foi uma realidade nessas comunidades; o processo democrático é, portanto, disseminado e vivido no cotidiano, contrastando, é claro, com a igreja instituição, onde o poder hierárquico domina as relações.
De modo geral, os clubes de mães, assim como os movimentos sociais típicos das décadas de 1960 e 1970 passaram por muitas transformações. Maria da Glória Gohn (2013) apresenta as novas bandeiras de luta;
O tempo passou, surgiram novos campos temáticos de luta que geraram novas identidades aos próprios movimentos sociais, tais como na área do meio ambiente, direitos humanos, gênero, questões étnico-raciais, religiosas, movimentos culturais etc. Alguns movimentos transformam-se em redes de atores sociais organizados, ou fundiram-se em ONG, ou rearticularam-se como as novas formas de associativismo que surgiram nos anos de 1990. (p. 7)
Por mais que as demandas tenham mudado com o tempo, a essência dos movimentos sociais se manteve nas “ações sociais coletivas de caráter sociopolítico e cultural que viabilizaram distintas formas da população se organizar e expressar suas demandas” (Gohn, 2013, p. 13). O que muda em algumas situações são as estratégias: se antes a forma reivindicatória dos abaixo-assinados era exclusivamente manual, hoje se misturam aos meios eletrônicos e chegam rapidamente a todos os cantos do mundo, via internet. É importante destacar também que, a partir de 1990, outras formas de participação emergiram na esteira da Constituição de 1988, entre elas, como integrantes de uma diversidade de Conselhos Participativos.
É nesse contexto que emergem os objetivos da pesquisa ora relatada. Considerando a continuidade do grupo da Dona Mila na região de M’Boi Mirim, procuramos: (1) entender o que possibilitou a longevidade deste grupo iniciado na década de 1970 e (2) analisar a relevância da mobilização das integrantes do grupo na defesa de melhoria da qualidade de vida, seja em relação às carências sociais, seja no apoio cotidiano às agruras da vida.
Os encontros do grupo do clube de mães da dona Mila, acontecem semanalmente e fizemos uma visita por mês no período de um ano, de maio de 2014 a maio de 2015. Como moradores da região, já frequentávamos as suas reuniões, especialmente nas festas de aniversários e nos bingos promovidos por elas. O campo-tema (Spink, 2003) já estava em nós, compartilhando conversas do cotidiano sobre os problemas do bairro. O principal argumento, nessa perspectiva, é de que o pesquisador está inserido no campo-tema desde a escolha do objeto de pesquisa,
Argumento este que tem múltiplas faces e materialidades, que acontecem em muitos lugares diferentes. Os lugares – por exemplo, uma aldeia de pesca – fazem parte do campo tanto quanto as conversas (Ribeiro, 2003, p. 76).
Uma aldeia de pesca pode ser um dos lugares onde um argumento está presente, parte de um campo-tema de conflitos sobre saberes e de opções de desenvolvimento; mas haverá muitas outras. Entramos nesses lugares quando entramos no debate sobre o conflito de saberes e sobre opções de desenvolvimento e não quando entramos na aldeia; a aldeia é somente uma parte da territorialidade do campo-tema. Igualmente podemos estar na mesma aldeia por outras razões, por exemplo, para discutir sobre partidos políticos, práticas de saúde ou turismo (Spink, 2003, pp. 28 e 29).
Nas reuniões grupais procurávamos apenas observar. A intenção era entender o funcionamento do grupo e perceber as sociabilidades que se faziam presentes. Após alguns meses frequentando as reuniões pedimos um espaço para explicar os objetivos da pesquisa. Na ocasião, explicamos que gostaríamos de contar a história do clube de mães por meio das lembranças que fossem trazidas nas conversas, além de conhecer o trabalho que elas realizavam e entender os sentidos da participação grupal. Nesta ocasião, explicamos a necessidade do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e acertamos que as conversas seriam gravadas e, além disso, realizaríamos algumas entrevistas individuais.
No encontro seguinte, recorrendo ao uso das lembranças das integrantes, fizemos um levantamento dos nomes e datas em que cada participante entrou no clube, quais já não faziam mais parte e por que motivos, de modo a construir a linha de tempo da atividade do grupo. Nas demais reuniões conversamos sobre os trabalhos realizados no grupo e pedimos que elas contassem as diversas ações coletivas desenvolvidas por elas. No total, participamos de 12 reuniões.
Foram também feitas quatro entrevistas individuais; a escolha das interlocutoras aconteceu de forma aleatória, com exceção da líder, por ser a integrante mais antiga e por fazer parte do clube desde sua criação. As outras três entrevistadas se dispuseram voluntariamente a conversar. Com algumas questões norteadoras, as entrevistas serviram para a análise das características desse clube de mães e as escutas grupais para a coconstrução de sua história. As entrevistas aconteceram na casa das participantes. Todas as entrevistas foram gravadas e depois transcritas.
Esse grupo é formado por mulheres que convivem em constante interação na comunidade onde habitam. As situações do cotidiano as mantêm próximas umas das outras. Esse cotidiano grupal tem se tornado cada vez mais objeto de estudo de vários campos da ciência, dentre eles a psicologia social. Para Jacqueline Brigagão, Vanda Nascimento, Roberth Tavanti, Pedro Piani e Pedro Figueiredo (2014):
Podem ser usadas diversas estratégias para facilitar as conversações grupais e seu registro. De modo geral, há muitos objetivos que orientam a realização, a coordenação e a metodologia de grupos: grupos terapêuticos, rodas de conversa, exercícios de dinâmicas de grupo, grupos focais, grupos de discussão, grupos de reflexão e outros. (p. 74)
Este clube de mães é um espaço democrático em que as mulheres podem livremente se expressar e interagir umas com as outras. Nesse contexto interativo, circulam repertórios oriundos dos três tempos definidos por Mary Jane Spink (2010).
O Tempo Longo é o domínio da construção dos conteúdos culturais que foram parte dos discursos de uma dada época. Permite que nos familiarizemos com os conhecimentos produzidos e reinterpretados por diferentes domínios do saber… O Tempo Vivido é o tempo de ressignificação desses conteúdos históricos, a partir dos processos de socialização. É o tempo de vida de cada um de nós; tempo da memória na qual enraizamos nossas narrativas pessoais e identidades. O Tempo Curto é o tempo da interanimação dialógica e da dinâmica da produção de sentidos. (p. 34)
Para marcar os fatos históricos marcantes do grupo da Dona Mila e da história social da região, utilizamos a linha do tempo como ferramenta de organização dos dados e uma maneira de registrar os fatos e acontecimentos históricos do grupo. Com este intuito, pedimos que as participantes trouxessem fotos e recordações do grupo para realizarmos a construção da linha do tempo.
Para analisar as entrevistas fizemos uso dos mapas dialógicos que, segundo Vanda Nascimento, Roberth Tavanti e Camila Pereira (2014), constituem
Um recurso que nos permite dar visibilidade aos passos dados na construção da pesquisa e à dialogia presente nos discursos analisados. Parte da compreensão de que rigor metodológico em pesquisa científica implica explicitação dos passos de busca e de análise das informações obtidas e visa à reflexividade do/a pesquisador/a no processo da pesquisa. (p. 249)
O clube de mães da Dona Mila teve inicio em 1969, na instituição “Cedro do Líbano”. O grupo começou por iniciativa das religiosas da congregação Filhas de Nossa Senhora da Misericórdia. As reuniões aconteciam uma vez por semana, todas as quartas-feiras segundo relata Dona Mila. No final da década de 1990 as reuniões passaram a acontecer na casa da Dona Mila. O novo espaço possibilitou às participantes uma flexibilidade inexistente no tempo em que era abrigado na instituição. Hoje, as mulheres podem chegar mais cedo e as responsáveis pelo lanche do dia podem levá-lo antes e organizar o espaço do jeito que quiserem. O entra e sai vivido nesse cotidiano revela a liberdade concedida pela líder e dona da casa.
A primeira atividade do clube foi aula de corte e costura. As freiras ganharam as máquinas e, entre as mulheres do bairro, convidaram dona Josefa para ser a professora. Ela ainda mora no bairro, mas, em decorrência da idade, não sai mais de casa sozinha e, por isso, não participa mais do grupo. Dona Mila e Dona Cida são, hoje, as integrantes mais antigas participantes do grupo desde o seu início. Elas lembram sempre de dona Josefa como alguém que lhes ensinou muito.
Instalado no “colégio das freiras” (apesar da instituição se chamar “Cedro do Líbano”, a comunidade a conhecia como “colégio das freiras”), o grupo foi dirigido e coordenado em sua primeira fase pelas religiosas. As irmãs organizavam tudo; forneciam a matéria-prima para as aulas, o maquinário, o local e as orientações do que fazer com a produção. As reuniões começavam às 13 horas, com a aula de corte e costura; havia um intervalo às 15 horas para um lanche, precedido por um momento de oração. O lanche era preparado pelas cozinheiras da instituição, após o qual a irmã responsável por acompanhar o grupo fazia uma palestra que, geralmente, envolvia o trabalho e as estratégias de venda do que era produzido pelas mulheres.
As irmãs conseguiram junto à prefeitura de São Paulo uma equipe para ministrar, na sede da entidade, cursos de formação em artesanato, liderança, higiene pessoal, cuidados com a casa e com a água, já que naquele tempo não havia no bairro água encanada e/ou tratada – quase todos os moradores cavavam um poço nos fundos de suas casas. No curso para líder de grupos, Dona Mila foi escolhida como coordenadora, trabalho que realiza até hoje.
Algumas mudanças sutis foram acontecendo no início do ano 2000 sob a coordenação da Dona Mila. As irmãs foram reduzindo sua presença em todo o período das reuniões, deixando as mulheres mais livres para a condução do trabalho. As religiosas sempre compareciam no intervalo para o café, pois mesmo não dirigindo efetivamente o grupo, elas nunca deixaram de ministrar as palestras de orientação para o trabalho. Outra mudança foi em relação ao lanche doado pelo colégio. Após um descontentamento com a higiene das xícaras em que o café era servido, Dona Mila conversou com as mulheres e elas decidiram assumir essa responsabilidade, trazendo o lanche de casa. Pouco a pouco foi surgindo a necessidade de uma contribuição mensal para a compra do material utilizado e para outras despesas do grupo. O valor inicial foi de 50 centavos, depois 5 e 10 reais. Em 2015 esse valor passou a 20 reais. Para ajudar a líder, o clube de mães também escolheu uma secretária e uma tesoureira, que mantinham a organização e controlavam a presença e as contribuições das mulheres.
Nessa primeira fase, as irmãs davam suporte e coordenavam o grupo, mas quem o liderava no cotidiano era a Dona Mila. Com as mudanças na direção, reestruturação da instituição e diminuição de vocacionadas à vida religiosa, a congregação das Filhas de Nossa Senhora da Misericórdia decidiu fechar a missão no bairro e deixar de trabalhar com o “Cedro do Líbano”. A nova coordenação restringiu o espaço físico e a atuação do clube de mães. Para Dona Mila, parecia que o grupo não era mais do interesse da entidade, embora a instituição administrasse toda a produção de trabalhos manuais e colhesse os lucros de sua venda.
Entramos assim na segunda fase, final da década de 1990. Sem o apoio das religiosas, Dona Mila continuou liderando o clube de mães. Mas as mulheres percebiam na postura da diretora do “Cedro” pouca colaboração e falta de vontade de sua permanência na instituição. Após muitas inquietudes e “desaforos”, um episódio redundou na saída do clube de mães da instituição.
Na terceira e atual fase, o grupo se reúne na casa da Dona Mila, que também é considerada pelas mulheres como a casa de todas: espaço de liberdade para falar o que querem, contar piadas, falar palavrões, chegar e sair. As participantes a chamam de “mãezona”. A mudança de local, porém, não trouxe alteração estrutural nos modos de ser do grupo. As reuniões continuam com a mesma estrutura.
Os passeios promovidos por Dona Augusta e assessorados por Paloma, filha da Dona Mila, também fazem parte dessa etapa. Elas viajam para feiras de artesanatos, festas da uva e do morango e tantos outros eventos. Estão sempre em movimento.
As sociabilidades no grupo pesquisado são produzidas e reproduzidas por e em conversa-em-ação, muitas conversas e muitas ações (Spink, 2012). Mas o que vem a ser essa sociabilidade? Entre aquelas apontadas nas conversas do grupo e nos testemunhos das participantes em suas reuniões, destacamos a atuação social, a rede de solidariedade, o compartilhamento do espaço, a geração de renda, a caridade. Num primeiro momento a ação dos grupos sociais e da militância se dava no nível da assistência, por ser um período onde faltava tudo. Dona Mila, em sua entrevista, destaca a mobilização comunitária para reduzir os danos das enchentes, com a reinvindicação de uma ponte no córrego Ponte Baixa, causador das inundações,
Naquele dia a irmã Glória estava comigo, estávamos sozinhas. Primeiro nos mandaram a Campo Limpo, mas não era lá; depois nos mandaram lá na marginal, onde fica a CET [Companhia de Engenharia de Tráfego, que faz a gestão do trânsito paulistano], mas não era com a CET. Aí pegamos um táxi e fomos à prefeitura. Aí fomos lá, perguntamos com quem podíamos falar. Nos mandavam de um lado para o outro, e nada! Nos mandaram a uma parte de cima, a moça disse: “Não, aqui não é”. Eu disse: “Filha, em algum lugar tem que ser”. Abri a porta e lá estava o Jânio Quadros, era o prefeito. Nos mandaram falar com o secretário aqui em Santo Amaro, para falar com o secretário de Obra dessa parte; os engenheiros nos atenderam muito bem, só que demorou muito tempo: 14 meses! Foram muitas reuniões. (Dona Mila, entrevista realizada em 08/04/2015)
A rede de solidariedade é o segundo fator, e é por meio dessa rede que as participantes dão suporte umas às outras em suas diversas necessidades, em especial nas situações de doença, conforme nos conta:
Olha, eu vou dizer pro senhor, é assim: elas buscam um apoio, uma forma de conversar, sabe? Eu vou tirar por duas que eu ouvi ali falando uma coisa interessante outro dia, que eu fiquei até emocionada. Uma foi a H., uma delas foi ela. Ela até chorou nesse dia, foi até na quarta-feira passada, foi quarta agora… Ela falou uma coisa pra gente que eu até emocionei. Ela falou assim pra gente: que com todos estes problemas que ela tá passando, doença, ela disse pra gente que não imaginava que ela teria apoio da gente ali; que ninguém ficou olhando pra ela e falando “ô, coitada”, “tadinha”. Ninguém, ninguém, ninguém… pelo contrário, a gente começou a conversar com ela como se fosse uma coisa normal e, ali, tratar ela como se nada tivesse acontecido. E ali ela falou assim: “Olha, eu nunca imaginava que vocês fossem me tratar dessa forma”. (Dona Ilzabete, entrevista realizada em 25/05/2015)
As mulheres cuidam umas das outras e os afetos se estendem para fora do grupo. O vínculo se dá a partir das relações que se estabelecem entre as pessoas e pressupõe respeito às diferenças e à existência de necessidades comuns e complementares. Trata-se de uma articulação que ultrapassa as fronteiras do grupo e passa a fazer parte do cotidiano da comunidade.
Agora mesmo, a J. está passando necessidades, uma situação bem ruim. Então, não estou levando alimentos para as cestas básicas na igreja; estou fazendo um esforço pra ajudá-la. O problema é que o marido não aceita ajuda. Ele diz que é ele que tem que resolver. Mas não vamos abandonar nossa irmã, nós sabemos o que é passar necessidades. Quando eu cheguei aqui, nesse Brasil, sozinha e sem família, só eu sei a falta que faz uma ajuda de alguém. Hoje, o que sustenta a casa são os trabalhos que ela faz aqui, não só a casa, mas os netos também (Dona Mila).
A ideia é que a casa é de todas, pois o ambiente acolhedor traz às participantes do grupo um sentido de pertença e aprofunda as relações extra grupo, dando oportunidade de se conversar sobre a vida, como nos conta:
Ahhhh… a gente faz nossos passeios. Aí dona Mila pede pra não marcar de quarta porque: “Eu não vou abrir mão do meu dia, se você tem passeio, de quinta ou de sexta eu vou”. Então a gente procura fazer isso. E dia de aniversário dela, a gente já foi no shopping, almoçar com o grupo. Foi muito bom! E a Paloma sempre fala, prepara para um passeio: “Olha, eu arrumo pra vocês. Falem onde vocês querem ir que eu agendo, faço tudo”. Mas as senhoras, não são todas que querem ir. Então, agora nós fomos para Guararema, num instante enche o ônibus, porque já participa do grupo da dona Mila, do tricô, do terço. (Dona Augusta, entrevista realizada em 30/05/2015).
Dona Mila e Dona Augusta destacam também em suas entrevista as aprendizagens e os compartilhamentos do grupo.
Começamos com costura, teve bordado, depois com crochê, entremeio do crochê. Começamos com tricô quando entrou a Cecília e a dona Eleni, com bordado varicor. Aí também entraram várias com artesanato. Aí a irmã Ágda, outra superiora, argentina, fez um curso da prefeitura, aí nos ensinaram macramê… Depois desse curso, veio outro curso, eles deram todo o material e uma professora para nos ensinar a fazer tricô e crochê e macramê – aí foi quando elas nos ensinaram a fazer macramê. Lembro-me sempre da professora, se chamava dona Lili, do Brooklin [bairro nobre da Zona Sul paulistana]. Isso tudo foi a prefeitura que mandou, por intermédio da irmã Agda. Ela conseguia muitas coisas para nós e também para as crianças… aprender a escrever à máquina, naquele tempo, pinturas. A irmã Agda pedia tudo isso. Tudo o que nós fizemos ficou no colégio, todos os trabalhos ficaram lá. Ficamos fazendo por dois meses e tudo ficou para o colégio. (Dona Mila)
Uma que, em primeiro lugar, elas querem aprender, interessadas lá para ir fazer o trabalho com lã, a linha, o bordado. Mas daí ela vê que todo mundo acolhe, todo mundo recebe bem. Se uma chega e não dá um abraço, um beijo: “É, você nem me viu aqui. Eu estou presente, eu também estou aqui!” Então a gente vai lá, dá um abraço, só se sai correndo. Mas quando chega todo mundo, se uma esquece também a dona Mila, ela chega e: “Olha, estou aqui, você nem me viu?” Aí vai lá e dá um abraço. Então é bem assim: uma acolhe a outra. (Dona Augusta)
Trata-se também de um espaço para o desabafo das dores do viver, onde a escuta solidária de mulheres que se conhecem e se gostam funciona não só como um suporte afetivo, mas também como uma estratégia de empoderamento coletivo. Ao compartilhar problemas e encontrar soluções conjuntas, todas crescem e se transformam.
O pretexto inicial para participar do grupo é sempre o desejo de aprender os trabalhos realizados, artesanatos em geral. Aos poucos a relação se transforma, criam-se vínculos, nascem novas amizades e a família do clube de mães da dona Mila vai aumentando.
Uma que, em primeiro lugar, elas querem aprender, interessadas lá para ir fazer o trabalho com lã, a linha, o bordado. Mas daí ela vê que todo mundo acolhe, todo mundo recebe bem. Se uma chega e não dá um abraço, um beijo: “É, você nem me viu aqui. Eu estou presente, eu também estou aqui!” Então a gente vai lá, dá um abraço, só se sai correndo. Mas quando chega todo mundo, se uma esquece também a dona Mila, ela chega e: “Olha, estou aqui, você nem me viu?” Aí vai lá e dá um abraço. Então é bem assim: uma acolhe a outra (Dona Augusta).
Ainda tentando contribuir para o entendimento das várias versões sobre sociabilidades, gostaríamos de destacar os modos de ser das mulheres do clube de mães. Elas traduzem a sociabilidade no cotidiano como uma forma específica de estar com e para as outras. Apesar de tudo que está presente como individualidade (interesses pessoais, outros propósitos, outros movimentos), tudo que está presente em cada uma engendra e provoca efeitos nas outras. No contexto grupal, o tato, a simpatia, a sensibilidade, a cordialidade, o simples desejo de conviver e estar juntas, produzindo sentido, traz o efeito da permanência do grupo ao longo do tempo.
A metáfora do patchwork é a que mais representa o trabalho do clube de mães pesquisado:
As materialidades se encaixam, são descentradas, várias sendo executadas de diversas maneiras, juntas e separadas, mas inter-relacionadas em um único tipo de história, que se desloca de um lugar ao outro, em busca de conexões locais, levando à lógica da colcha de retalhos. (Law e Mol, 1995, p. 276)
O objetivo inicial das freiras que incentivaram a formação do grupo era ensiná-las a fazer algo para depois vender, por ser também um projeto de geração de renda. As peças fabricadas durante os encontros, utilizando a matéria prima conseguida pelas freiras, eram destinadas a bazares e doações. Em suas casas as mulheres faziam o que aprendiam no grupo e vendiam para a geração de renda e ajuda na economia doméstica. A geração de renda do grupo perdura até os dias atuais, pois o que se produz no grupo vira renda compartilhada, familiar e para caridade.
Porque você viu a L. mesmo dizer que não tem amiga, né? Então ela começou a se valorizar, começou a aprender com as mulheres de lá. Ela aprendeu vender melhor. Então diz que muita gente a procura quando precisa de casaquinho, de manta, de sapatinho, que sabem que ela faz. Então ela falou assim, que nessa época de frio, elafalou que levanta uma boa grana, com negócio de cachecol. Ela faz uns cachecóis bonitos também. (Dona Helenice, entrevista realizada em 24/05/2015).
A produção grupal e outras iniciativas, como bingos e doações, possibilita ao grupo colaborar com duas casas de apoio à criança com câncer, uma casa abrigo, com as mulheres que participam do clube e, eventualmente, com pessoas necessitadas do bairro, como comentam:
O primeiro dinheiro que nós juntamos, compramos uma cadeira de rodas e doamos para uma rádio entregar para alguém. Todas ficaram contentes. No outro ano minha Paloma pegou a Marina [a neta que foi adotada em um abrigo chamado Vila Acalanto, localizado na região]. Aí falei assim: “Olha, esse dinheiro que vamos ajuntar, vamos ajudar o orfanato da Vila Acalanto”. Outra disse que seria bom também comprar cestas básicas, mas para fazermos cestas básicas precisávamos de mais dinheiro. Então outra sugeriu fazermos bingos – temos bingos aqui há muitos anos. Decidimos isso: com a mensalidade ajudamos a Vila Acalanto e com os bingos comprávamos cestas básicas. Já ajudamos bastante com fraldas. Esse ano compramos uma máquina de lavar para elas. (Dona Mila).
Isso, a gente produz e ela faz a entrega todo mês de julho para a casa de abrigo das crianças com câncer, de blusa, de cachecol, de manta, de cocha, que tem umas lá que faz cocha de crochê. Então é essa a meta da gente, o que ela [dona Mila] pede pra gente é uma blusa pelo menos por ano, entendeu? Que ela pede para cada aluna. Uma pra cada pessoa do grupo, e uma blusa. Mas também, se você não conseguir fazer, não tem problema. (Dona Helenice).
O grupo, hoje, parece estar focado no bordado, tricô e crochê, optando cada uma das participantes pela atividade de que gosta ou para a qual tem mais habilidade.
O que a gente faz normalmente é bordados, crochê, tricô, né? Isso aí pra quem gosta. A maior parte delas lá, elas gostam. Tem umas que gostam mais do tricô, do crochê e tem algumas que fazem só o crochê – não conseguem se adaptar ao tricô. Mas na realidade o que se faz lá realmente é tricô, crochê e bordado. Você entendeu? Então as que sabem de tudo um pouco fazem de tudo um pouco; e quem não sabe, faz o que melhor se adapta. Então tem umas que fazem mais crochê, outras fazem mais tricô. E tem outras que só fazem bordados. O senhor entendeu? Então é nosso trabalho lá. Então, fora isso, são os bingos que a gente faz – [as participantes] arrecadam prendas para poder fazer os bingos. (Dona Ilzabete).
Após o aprendizado das habilidades, as mulheres começam a fabricar seus produtos e os vendem. Com o dinheiro arrecadado elas compram suas coisas, ajudam na despesa da casa, se empoderam.
Porque você viu a L. mesmo dizer que não tem amiga, né? Então ela começou se valorizar, começou a aprender com as mulheres de lá. Então que pra elas vender melhor. Então diz que muita gente procura ela quando precisa de casaquinho, de manta, de sapatinho, que sabe que ela faz. Então ela falou assim, que nessa época de frio, ela falou que levanta uma boa grana, com negócio de cachecol. Ela faz uns cachecóis bonito também. (Dona Helenice).
O grupo é um espaço facilitador que legitima os saberes apreendidos, que são trazidos ao hoje e multiplicados com as mulheres da comunidade. As aprendizagens enriquecem a convivência, mas em especial iluminam os fazeres do cotidiano grupal.
O surgimento dos clubes de mães no contexto dos movimentos sociais foi uma das instâncias que possibilitou a organização de mulheres nas lutas por direitos; elas foram vozes atuantes nas comunidades da periferia de São Paulo. A história contada sobre o cotidiano dessas mulheres, que coconstruíram com suas práticas um espaço melhor para se viver, representou apoio nas agruras da vida. Alguns desses grupos, como o de Dona Mila, continuaram atuantes na comunidade. Tendo em vista este contexto, esta pesquisa foi estruturada em torno de duas questões: (1) o que possibilitou a longevidade do grupo de mães de Dona Mila que teve início na década de 1970 e (2) qual a relevância da mobilização de mulheres na melhoria da qualidade de vida.
Em relação à longevidade, buscamos entender as múltiplas dimensões de participação que sustentaram a permanência no tempo desse clube de mães. As dimensões são múltiplas porque, de fato, lá acontece “de um tudo”, como elas mesmas afirmam. Dentre os fatores que contribuíram para a permanência do clube de mães ao longo dos últimos 45 anos identificamos: (a) troca de saberes, aprendizagem de novas habilidades e geração de renda individual, (b) possibilidade de desenvolver ações sociais, (c) possibilidade de sair de casa, (d) o espaço para falar das experiências pessoais e, sobretudo, (e) o compartilhamento dos afetos.
Em relação à troca de saberes, aprendizagem de novas habilidades e geração de renda, tem destaque o artesanato que, no grupo de dona Mila, continua a ter um papel fundamental na motivação para participar das reuniões. Esse sempre foi um fator aglutinador em grupos de mulheres que se reúnem, em diversos contextos (e não apenas como fruto de movimentos sociais), para aprender novas habilidades assim como para produzir artefatos que podiam contribuir na geração de renda ou serem utilizado para fins de caridade. Por exemplo, atualmente, a produção artesanal feita coletivamente é doada a entidades que cuidam de crianças carentes com câncer. Além disso, o grupo ainda distribui cestas básicas para as famílias necessitadas da comunidade e organiza bingos beneficentes cuja renda é destinada a um dos abrigos de crianças e adolescentes da região. Assim, ações sociais também são razões explícitas para as reuniões.
No clube de Dona Mila já foi ensinado corte e costura, crochê, pintura em tecido e tricô. Contudo não se trata meramente de aprendizagem de novas habilidades. Muitas dessas mulheres são mães e donas de casa em tempo integral e o artesanato é uma oportunidade de ampliação dos horizontes para além do universo doméstico. Para algumas participantes com quem tivemos contato durante a pesquisa, o grupo é um espaço de empoderamento, já que, além de possibilitar novas aprendizagens, permite a discussão de questões pessoais e de associação com outras mulheres para buscar soluções para problemas de diversas ordens. Há mulheres no grupo que resinificaram suas vidas; a participação as ajudou na superação da solidão após a perda de seus companheiros. Outras tiveram que usar o artesanato para sustentar suas casas. Algumas que enfrentaram ou ainda enfrentam doenças graves encontram apoio na participação grupal. Às vezes, na convivência grupal é preciso enfrentar os medos e as ansiedades. Respeitar o funcionamento de cada uma: algumas falam mais, já outras são mais tímidas. Cada uma contribui com o que pode do seu repertório de condutas e forma de ser.
Sair de casa, nos dias atuais, não se reduz a ir às reuniões semanais do grupo. O clube organiza passeios diversos que constituem, igualmente, oportunidades de ampliação de horizontes. Os locais escolhidos para os passeios geralmente são pontos turísticos onde grupos de vários lugares de dentro e fora do Estado se encontram. A estrutura desses espaços está preparada para receber essas caravanas; são oferecidos momentos de lazer com shows, bailes, jogos, bingos e outros. Para as que desejam há também espaços de aprendizagem, como artesanatos e culinária. O que se destaca nesses passeios são as conexões que os grupos fazem, os compartilhamentos dos saberes e as amizades.
Ao longo do trabalho, foi possível observar que o grupo é visto, pelas participantes, como um espaço de acolhimento, de compartilhamentos e de transformação social. O estudo de caso demonstra a importância da vida comunitária e possibilita entender a estratégia grupal como espaço de articulação, apoio e organização da vida. No grupo elas fazem acordos, criam princípios e valores para suas ações, se mobilizam e se organizam, para buscarem benefícios coletivos e justos a todas em seu cotidiano comunitário. As participantes compartilham experiências, fazem negociações e produzem sentido em suas interações.
É importante destacar a pluralidade das ações grupais nesse clube de mães. A abertura que elas têm para trazer ideias, novidades e habilidades, por si só, são convites abertos às mulheres da comunidade. À medida que o grupo se desenvolvia e crescia, a procura por esses cursos aumentava. A maioria das participantes do clube de mães é moradora dos bairros próximos, Jardim Vergueiro, Jardim Santa Josefina e Jardim das Flores. Elas participam de diversas atividades: fazem passeios, integram os grupos organizados pelos serviços de saúde, fazem caminhada, se envolvem nos eventos da igreja local, promovem bingos e tantos outros.
A possibilidade de expressão de afetos remete, ainda, à questão da liderança grupal pois, dentre os aspectos observados, há que ser destacado o papel fundamental que a líder desempenha. Apesar de Dona Mila buscar exercer um modelo de liderança participativa e compartilhar todas as decisões com as participantes, foi possível identificar que o clube se organiza em torno da sua figura. Isso porque as reuniões, já há muito anos, ocorrem na casa dela, onde inclusive há um espaço adaptado para acolher os encontros. Além disso, todas reconhecem que dona Mila está diariamente mobilizando e motivando a participação no grupo de outras mulheres do bairro. No cotidiano do grupo os afetos são expressados de várias maneiras; na preparação do lanche quando elas se dividem em grupos para cada semana, dividem custos e trabalho. No auxílio àquelas que adoecem, com visitas, cuidados pessoais e com a casa, acompanhamento ao médico e o que for preciso. Organização de passeios, aniversários, festas e bingos.
Quanto à relevância da mobilização de mulheres na defesa de melhoria na qualidade de vida, a pesquisa permitiu, entender a atuação das mulheres na criação e manutenção de muitas lutas e movimentos sociais ao longo do tempo. O Clube de Mães da Dona Mila realizou ações sociais e políticas dirigidas ao coletivo do bairro, em momentos específicos da sua história, dentre elas, a luta da comunidade pela construção de uma ponte e a participação nas reivindicações coletivas para os desabrigados das enchentes na região.
Cuidar da região em que se vive é responsabilidade de todos. Mobilizar pessoas para atuação nas lutas sociais que beneficiam o coletivo já é uma tarefa mais difícil. Dona Mila e suas amigas conseguiam chamar a atenção das vizinhas para os perigos que elas viviam no período das chuvas, quando o transbordamento do córrego inundava suas casas. Então, as mulheres reuniam membros da comunidade e as capacitava para a luta. As lutas políticas também fizeram parte do clube de mães no momento em que o bairro mais demandava, nas reivindicações e nas mobilizações, muitas vizinhas colaboravam e davam apoio aos trabalhos. As irmãs orientavam e apoiavam – em algumas situações acompanhavam as mulheres até aos órgãos públicos em busca de melhorias. As reivindicações não eram discutidas no grupo, mas dona Mila e suas companheiras de luta levantavam estas questões durante os encontros para buscar o apoio das demais participantes.
Porém, como existe há 45 anos, ficou evidente que a união e permanência no grupo está fortemente associada às relações intersubjetivas entre as participantes. Dito de outro modo, no caso desse clube de mães, as ações políticas são resultado das relações intersubjetivas e do sentimento de pertencimento que as mulheres têm em relação ao bairro.
Em suma, a pesquisa possibilitou entender o contexto do surgimento dos clubes de mães, o papel dos afetos na articulação e consolidação dos grupos comunitários e as singularidades do Clube de Mães da Dona Mila.
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