Ao longo dos séculos, o amor tem sido um dos sentimentos relacionados ao comportamento humano mais proferido ou mesmo desejado (Oltramari, 2009), talvez por isso, há muito tempo, tem sido objeto de atenção do campo psi. Na modernidade, o amor foi deslocado para a esfera privada e, como efeito, temos a impressão que o amor nada tem a ver com os outros ou com o que é comum. O amor foi resguardado como algo que só diz respeito à intimidade do indivíduo e à sua total autonomia (Costa, 1999a).
Na modernidade líquida, contexto atual assim denominado por Zygmunt Bauman (2004), o amor adquire uma conotação de mercadoria, tecido a partir da lógica de mercado, dos laços frágeis e voláteis. Jurandir Freire Costa (1999b) também o observa sendo atravessado por aspectos do consumismo como a descartabilidade, prazeres imediatos e fugazes, afirmando que esta “é a era das sensações, sem memória e sem história” que está suplantando a “era dos sentimentos, do gosto pela instrospecção e por histórias sem fim de apostas ganhas e perdidas” (p. 21).
A complexidade do amor denota que seu significado não é único, os saberes implícitos nos discursos e nas práticas amorosas são múltiplos (Chaves, 2010). Entendemos que o amor pode ter significados diferentes para os indivíduos, e estes terem também expectativas diversas com relação a ele. Com a crise do ideário romântico, que parece não mais se sustentar na nossa sociedade – se é que algum dia deu conta – talvez muitos acreditem que o amor está deixando de existir. Será que não há mais espaço para ele? Ou estaríamos atribuindo outros sentidos e significados?
Os ideais, as fantasias, as crenças, os desejos compõem as representações sociais do amor. As representações sociais são criadas na ação comunicativa e ligam os sujeitos a outros sujeitos e aos objetos-mundo, numa espécie de triangulação, delineada por um contexto e por um horizonte temporal (Bauer & Gaskell, 2002; Jovchelovitch, 2008; Moscovici, 1984). Elas consistem em um trabalho de dar sentido, de significar e de orientar as práticas (Jovchelovitch, 2008) do amor. Os afetos participam dessa construções, porque os objetos provocam os sujeitos de diferentes maneiras e também possibilitam o sentimento de pertencer a um grupo social (Arruda, 2014).
O amor é, pois, ao mesmo tempo, obra do social e da singularidade; é tecido numa rede de significados que são contextuais, históricos, políticos e subjetivos. Ele movimenta o eu, os outros e a sociedade. É naquilo que é vivido e narrado que se observa sua movimentação e existência. Olhar para as narrativas do amor é ser sensível às representações que o movimenta. Essa movimentação refere-se não somente àquilo que é do campo psíquico (afetos, fantasias, desejos), mas também da cultura material. Ela destaca a materialidade dos objetos que interage dialéticamente com as subjetividades. Busca-se, segundo Daniel Miller (2013), investigar os significados atribuídos nessa inter-relação sujeito-objeto. No presente estudo, por exemplo, interessam os objetos que
participam das relações amorosas que podem ser um celular, uma roupa etc. Ambas teorias se relacionam e se entretecem. Compreender o amor enquanto uma operação simbólica “exige que repensemos o caráter atribuído à relação entre mundo material e o mundo simbólico” (Jovchelovitch, 1995, p. 64).
Podemos refletir sobre o amor a partir de muitos objetos, sendo o cinema um deles. O cinema é um palco potencial para as narrativas do amor. De fato, este é um dos temas mais recorrentes. Os filmes retratam o modo de ser e de viver de cada época e, assim, carregam as particularidades de cada contexto sócio-histórico e cultural, mas são mais que simples fotografias em movimento.
O cinema, ou melhor, suas narrativas e discursos, como uma mídia ativa, capaz de potencializar a criação e emergência de novas formas sociais, torna-se um território frutífero para a veiculação, criação e transformação de representações sociais. Queremos dizer, seguindo Serge Moscovici (2009), que aquilo que é representado na mídia passa a construir a realidade e funciona como um meio para estabelecer as associações com as quais nós nos ligamos uns aos outros. O cinema (e suas narrativas) não é a sociedade, mas ele “é uma obra extremamente coletiva” (Dunker & Rodrigues, 2012, p. 14); e na interlocução entre o eu/expectador1, o(s) objeto(s) e o mundo, o amor “fora das telas” vai se (re)configurando. Sob este aspecto tomar o cinema como expressão-em-movimento de uma subjetividade social, é possível abrir “janelas” para a Psicologia entender as práticas cotidianas.
A produção cinematográfica argentina com participação da Espanha e Alemanha, Medianeras - Buenos Aires na era do amor virtual (Taretto, 2011) apresenta questões que estão latentes na nossa sociedade, especialmenteas relacionadas ao amor. Ela tem como plano de fundo a arquitetura da capital argentina em alusão às relações amorosas que se estabelecem nos dias de hoje. O cenário arquitetônico não está ali de passagem, ao contrário, ele pulsa, nos sensibilizando a observar as condições subjetivas e materiais narradas no filme.
O filme disparou certos questionamentos: que representações encontramos sobre o amor? O que muda com as transformações sociais? Será que o fracasso/sucesso amoroso depende única e exclusivamente de cada um de nós? Quais as expectativas e exigências em relação ao amor? O que a cidade e os objetos (em sua materialidade) dizem das formas de amar nos dias de hoje?
Essas questões incentivaram a construção do estudo aqui apresentado. Buscamos observar como estão sendo engendradas representações do amor em uma narrativa fílmica e analisar suas possíveis transformações. Particularmente, objetivamos problematizar as conexões entre o amor (do amor romântico até a atualidade), o social e a cultura, inclusive na sua materialidade (a cidade, os objetos que a compõe, as tecnologias).
O delineamento da pesquisa é do tipo teórico-empírica com abordagem qualitativa. A pesquisa qualitativa se caracteriza por lidar com as interpretações das realidades sociais, visando à captação do significado subjetivo das questões a partir da perspectiva dos participantes (no nosso caso, dos protagonistas do enredo cinematográfico) e se interessa pelos significados latentes da situação em foco (para os significados simbólicos e materiais) (Flick, 2013).
A leitura pode ser interpretativa e, para Angela Arruda (2014), é a ferramenta fundamental para alcançarmos as representações sociais. A interpretação é algo sempre da ordem do singular, não é instantâneo, é um exercício, um percurso. Observamos não só o que estava ali (aparente, visível), mas também o que não estava visível ou expresso de modo verbal. Assumimos, em conjunto com Pedrinho Guareschi (2009), que qualquer julgamento deve ser dinâmico e passível de transformação já que todo fenômeno social possui ao menos dois lados; pois são relativos e construídos sócio-historicamente.
O corpus de análise da pesquisa consiste nas narrativas da produção cinematográfica Medianeras – Buenos Aires na era do amor virtual. Os procedimentos de análise consistiram nos seguintes passos, salientando que a interpretação do material empírico é simultânea ao processo de construção da análise: assistimos várias vezes e transcrevemos o filme (corpus empírico)3 atentas às narrativas e à conexão das mesmas com as imagens, os sons e à sequência temporal do roteiro. Na sequência, organizamos um texto, intercalando as narrativas do filme, nossas observações e aproximações teóricas.
No processo de interpretação das narrativas, além de trabalhar com ideias de autores de diferentes áreas que contribuem com a reflexão sobre o amor, trabalhamos com autores de abordagem psicossocial. Esta compreende que o psicológico e o social são indissociáveis, evitando reduzir à cultura individual ou a supervalorizar as estruturas desarticuladas das dimensões subjetivas (Sousa & Novaes, 2013).
Sustentamos a nossa interpretação a partir de três operadores teóricos que serão apresentados nos tópicos a seguir: antinomias, subjetividade e intersubjetividade.
Medianeras, classificado nos gêneros romance e drama, é dirigido por Gustavo Taretto e conquistou os prêmios de Melhor Diretor e Melhor Filme Estrangeiro no Festival de Gramado de 2011, no Brasil. No elenco contracenam Javier Drolas, Pilar López de Ayala, Inés Efron, entre outros atores, durante 95 minutos. O longa-metragem se passa em Buenos Aires e traz a história de Martin, um web designer fóbico com sintomas depressivos e, Mariana, uma recém formada arquiteta que trabalha como vitrinista e que recentemente terminou um relacionamento amoroso. Ele trata dos encontros e desencontros entre esses dois personagens. Com metáforas, leveza, ironia o filme nos convoca a fazer uma análise crítica do nosso modo de vida.
Os sinais da modernidade acompanham a abertura do filme. A cidade de Buenos Aires é apresentada, inicialmente, imóvel, parada, opaca. Prédios altos, luzes piscando, um relógio localizado na torre da igreja que designa um tempo linear e um espaço com controle demarcado, um avião subindo, antenas de telecomunicações e outros objetos das grandes construções. Uma selva de pedra, sem natureza, sem vida. Uma concretude contrastante com a volatilidade moderna.
Só depois de alguns instantes, a narração é introduzida nos fazendo olhar, para o que provavelmente não havíamos reparado ainda, as contradições, as antinomias, que compõem as cidades. Para explicá-las, recorremos a Ivana Marková (2006), que as relaciona com a capacidade, exclusivamente humana, de fazer distinções e de expressá-las por meio da linguagem. Essa capacidade é básica e essencial para os processos como pensar, perceber, saber, sentir e expressar sentidos; logo, pensar dessa forma sugere uma natureza dialética e dialógica própria da mente humana.
À sua maneira, cada sociedade e cultura utilizam-se de critérios de classificações diferentes para tentar dar conta dos fenômenos. As antinomias são ilustradas quando o narrador destaca e coloca os opostos lado a lado, rompendo com um padrão e demonstrando a pluralidade e a heterogeneidade de vidas na cidade, ou como muito bem evidencia Rogério Haesbaert (2011), “a mistura incessante de planos de convivência entre diferentes” (p. 95).
Buenos Aires cresce descontrolada e imperfeita. É uma cidade super povoada num país deserto. Uma cidade onde se erguem milhares e milhares de predios sem nenhum critério. Ao lado de um muito alto, tem um muito baixo. Ao lado de um racionalista, tem um irracional. Ao lado de um estilo francês, tem um sem estilo. Provavelmente essas irregularidades nos refletem perfeitamente. Irregularidades estéticas e éticas. (Taretto, 2011) (Figura 1)
Figura 1
As irregularidades em antinomias (Taretto, 2011)
Quando referente às construções, a sensação de que falta uma lógica e um planejamento urbano, parece ter a função de dar conta, da conjunção das diversidades de ofertas de estilos de vida das pessoas que vivem, principalmente nas grandes cidades, sob efeitos de uma realidade de permanente mudança.
Em Buenos Aires, facilmente visualizamos os patrimônios carregados da cultura portenha e o moderno, que é produto de uma globalização. Essas misturas participam de uma dinâmica complexa e ratificam a ambiguidade também “geográfica” da modernidade líquida. Portanto, não há um continuum regular e padronizado, mas um crescente processo de diferenciação e de segmentação. “Trata-se de um constante rearranjo de valores, formas, funções e significados. Para isso, os ritos de renovação são celebrados cotidianamente, através da permanente destruição e construção da qual a metrópole é testemunha” (Haesbaert, 2011, p. 89). Essa antinomia destruição e construção é artefato característico da modernidade líquida. Na vida urbana os aspectos que atraem são os mesmos que causam repulsa. A variedade do ambiente é tanto fonte de medo, principalmente, para aqueles que perderam familiaridades e se sentem angustiados e inseguros, quanto empolgante por não faltar novidades (Bauman, 2004).
Implicitamente, o filme parece brincar a todo momento, com outras antinomias: o par visível e invisível (o que enxergamos e o que negamos, as metáforas, o retrato “congelado” e o movimento) e interno e externo (a arquitetura urbana e o universo particular, o espaço público e o espaço privado, o vitrinista na vitrine e o expectador da vitrine), que serão explorados no decorrer da análise.
E depois de sucessivas imagens de prédios é inserido o humano, mas não qualquer humano: os construtores civis. Estes compõem o cenário, mas quase passam despercebidos, se é que reparamos, pois se tornam uma extensão dos prédios, as cores das roupas confundem-se com o que fazem. Provavelmente para nos lembrar que, mesmo que só consigamos ver concretos, também está presente algo do humano. Um ser que dá forma, que é responsável por tudo isso. Para reforçar, a planta baixa mostrada dá mais um sinal de que não é possível apagar a ação humana, que dá existência a toda concretude arquitetônica.
Claro que as antinomias trazidas no filme desde seu início já anunciam o humano, mas o espectador desavisado não nota, ao menos não de primeira, conscientemente. É aos poucos que a percepção de uma humanidade nos objetos vai mostrando que ali coexistem pessoas. Aos poucos, Buenos Aires, a cidade onde os personagens vivem, vai sendo delineada, e não de uma maneira meramente ficcional, mas retratada, como se fosse lida. Vai ganhando dimensão e forma, com apartamentos cada vez mais estreitos, indicando um grande aumento da população e prédios cada vez maiores e próximos uns dos outros. Entretanto, no lado de dentro, nos prédios (“caixas de sapato”), instaura-se a solidão. Afinal, ali só cabe um único “par” (Figura 2).
Figura 2
As “caixas de sapato”
Esse cenário urbano torna-se espelho de si mesmos, coerente com seus construtores. Caos, multidões, incongruências, incertezas, medos, que mesmo sem saber, são compartilhados. As incertezas que permeiam os relacionamentos e outras instâncias, tornaram-se na fluidez da modernidade, uma força individualizadora. Bauman (2001) afirma que as angústias contemporâneas são feitas para serem sofridas em solidão, uma vez que não convergem em uma causa comum.
Os formatos, os tamanhos e as localizações dos apartamentos e dos prédios são investidos de valores e utilizados como critérios para diferenciar uma pessoa da outra. Essas distinções marcam as classes socioeconômicas e criam polaridades, mutuamente exclusivas (ricos ou pobres) e com status diferenciado (superior e inferior). Não se abre brechas para uma dialogicidade. Ivana Marková (2006) explica que a dialogicidade é a característica ontológica da mente humana de conceber e comunicar realidades sociais em termos de diversidade. Sem dialogicidade há rupturas entre racional e irracional, destruição e construção como se cada parte não tivesse nada a ver com a outra. O produto é, então, um mundo/uma cidade cindido que parece esquizofrênico.
Como tratar e representar as relações humanas na modernidade líquida se é difícil materializá-la? Um possível caminho é a objetivação, um processo ativo e automático que, torna o desconhecido em conhecido ao transformá-lo em algo concreto, pertencente ao mundo físico, como explica Birgitta Höijer (2011). É uma materialização de ideias abstratas. Para tal, a objetivação se processa via aproximação da arquitetura urbana com os modos de viver as relações amorosas, assim, cidade com toda sua “concretude escorregadia” é a terra eleita de uma “encenação da vida cotidiana”, parafraseando Michel de Certeau, Luce Giard, Pierre Mayol (2013, p. 38). Buenos Aires é “mapeada” cinematograficamente para representar aquilo que é da ordem do imaginário, do impossível com sabor de possível. A encenação da vida cotidiana que se dá logo na largada do filme, vai desvelando o filme como uma metáfora arquitetônica.
A narrativa em off mostra a cidade como uma promessa, que se tece até o personagem Martín, que logo descobrimos ser o narrador de abertura, dar-se conta de que essa mesma cidade, produto de uma cultura líquida, acaba dando às costas justamente àquilo que produz as subjetividades – ou ao rio que segue seu fluxo.
Vista e claridade são promessas que poucas vezes se concretizam. O que esperar de uma cidade que dá as costas ao seu rio? É certeza que as separações e os divórcios, esses males, exceto o suicídio, todos me acometem. A violência familiar, o excesso de canais a cabo, a falta de comunicação, a falta de desejo, a apatia, a depressão, os suicídios, as neuroses, os ataques de pânico, a obesidade, a tensão muscular, a insegurança, a hipocondría, o estresse e o sedentarismo são culpa dos arquitetos e incorporadores (Taretto, 2011).
Já que os recursos são excassos ou distribuídos inequitativamente, a narrativa de abertura do filme se encerra apresentando dois caminhos: a patologização do “eu” ou a culpabilização do “inatingível”. No entanto, ao atribuir aos arquitetos a culpa dos males que acometem as pessoas, não acreditamos que se quer responsabilizá-los, pelo contrário, a crítica está exatamente aí, subvertendo o discurso tão comum no cotidiano: o de depositar no outro. É uma colocação um tanto irônica, pois reconhece que a cidade nos reflete muito bem, afinal, os arquitetos somos nós - todos nós. De fato, parece-nos, que a trilha percorrida pelos personagens principais, Martín e Mariana, na maior parte do filme, é uma tentativa de delinear linhas de fuga para esse eu.
Por meio delas são anunciados os primeiros sinais de transformação: as plantas que nascem em meio ao concreto, sem nenhuma intervenção humana. Contrárias à razão, elas ensinam sobre a resiliência necessária para sobreviver em locais inóspitos, árdua tarefa de enfeitar a selva de pedras. “Uma estranha beleza cambaleante, absurda... uma metáfora da vida irrefreável” (Taretto, 2011). Sobre potências e não menos, sobre a dificuldade das pessoas fazerem o mesmo: achar brechas e resistir.
É no clima de primavera em Buenos Aires que nos são apresentadas as medianeras, que dão nome ao filme. Estas são as laterais dos prédios, que não tem nenhuma função, apenas são superfícies sem janelas que dividem o lado de dentro e o lado de fora. Elas são telas expostas na cidade e ao mesmo tempo invisíveis. Carregam a história, a crise econômica, estampam outdoors registrando o capitalismo, expõe as marcas do tempo e as feiúras que se quer negar. Contudo, o que se cria sobre elas permite que possa existir beleza onde não há. Criativamente, ganham novas simbologias, novos sentidos, novas esperanças (hope), para, inclusive, quem sabe, fazer a mediação com o(a) Outro(a) (disponible) (Figura 3).
Figura 3
As medianeras
Pela proximidade com o edifício vizinho, a construção de janelas nas paredes laterais é proibida pela lei argentina. No entanto, sob a intervenção de alguns, são abertas janelas sem nenhum respeito às normas urbanas - janelas clandestinas, contraventoras. Uma estratégia contrária à opressão de se viver “encaixotados” em apartamentos, as pessoas abrem frestas que permitem enxergar por outra perspectiva, iluminar seus apartamentos, - algo que fratura o isolamento, permitindo entrar algo de fora. Então, ilegalmente, mais próximo ao final da trama, Mariana e Martín, rompem as paredes de seus apartamentos.
As intervenções nas medianeras objetivam linhas de fuga que convocam a implicação subjetiva. Isto é, o sujeito também pode determinar alguns aspectos na sua vida, mesmo que os tempos sejam difíceis e instáveis. Buscar caminhos que abrem janelas, convida-o a redescobrir o seu interior e a se encontrar com a cidade e com o outro.
Martín e Mariana são os narradores e os personagens. Contam as suas histórias de vida e narram a experiência anônima e solitária de viver na cidade, numa busca, ainda que um tanto monótona, por um outro que forme um par, uma relação, poderíamos cogitar, amorosa. Ao mesmo tempo em que representam seu eu, representam também algo dos sujeitos atuais. Algo que nos remete a George Mead (1982), que desenvolveu uma teoria social e dialógica do sujeito, fazendo uma distinção entre o “mim” (me, no inglês) e o “eu” (I, no inglês), dois componentes que em conversação constituem o self 4. O termo “mim” representa o outro incorporado ao sujeito social. Trata-se do self cuja ação é convencional, conformista, habitual e reprodutora da ordem social. O “eu” refere-se o sujeito biológico, impulsivo e também observador, cognitivo, criativo e agente de mudança social. Trata-se do self capaz de analisar e modificar o “mim”. A junção do “mim” com o “eu” constitui o outro generalizado, que corresponde a reflexividade estabelecida entre o indivíduo e a sociedade à qual pertence.
Durante todo o filme, podemos assistir de modo pendular, a ação do “eu” e do “mim”, compondo uma narrativa líquida de eus desconectados, com misturas de solidão, afeto, apatia, tristeza. Aos poucos a narrativa vai se transformando até que culmina no encontro do outro e da transformação do mim, ou nos eus conectados, mas nunca com plena certeza.
Martín e Mariana são vizinhos, porém não se conhecem, esbarram-se pelas ruas da cidade sem reparar um no outro. Bauman (2004) já definia as cidades como os “espaços em que estranhos permanecem e se movimentam em íntima e recíproca proximidade” (p. 129). Entretanto, em Medianeras, os dois são conectados pela forma intercalada em que contam as suas histórias e assim, percebemos algumas experiências, sentimentos, atitudes e interesses em comum que vão construindo subjetividades.
Movendo-se do exterior, da cidade e da sua pele, a câmera segue para as entranhas da cidade. Martín está ali dentro, na frente do computador. Um humano conectado na máquina, em meios a um apartamento repleto de coisas, objetos que parecem mortos, amontoados como no holocausto, mas, engana-se quem pensa que eles não estão pulsando, repetindo dizeres que dizem de Martín, o cara que se autologa como superavailable (superdisponível).
Superdisponível para quê? Para quem? Nem ele parece saber responder essas perguntas que cutucam os expectadores, mas que o provoca a sair de seu ostracismo. É preciso dizer ao mundo, colocar na rede esse status de disponibilidade, indicando que ali tem um desejo - o desejo de anunciar uma possibilidade de abertura para um outro, ainda que via techné (Figura 4).
Figura 4
O superavailable
Que sujeito é esse? Seria um prenúncio de um humano-máquina? A não-resposta ao seu anúncio também revela que o ciberspaço não prescinde das mesmas dificuldades dos espaços de lugar. Na falta de um retorno, de um contato que aceite sua disponibilidade, Martín passa a falar não diretamente de um eu, mas do lugar que um possível eu ocupa. “Esta é a minha quitinete. São 40 e poucos metros quadrados e uma janela deprimente que dá para um pulmão sem ar. Avenida Santa Fé, 1.105, quarto andar, H” (Taretto, 2011). O pequeno apartamento por ele habitado expressa, tal qual a tela do computador que está sempre a sua frente, o isolamento em que se encontra. Limitado por medidas precisas, quadradas, fechadas.
Ele apresenta o espaço em que vive – o ciberespaço. É através dele que trabalha, que se informa, que se diverte, que compra e que faz sexo. Onde é inscrito algo de si, quando atualiza o status do chat todas as vezes que vai dormir, que acorda e que está ocupado. “Online, offline, sleep” (Taretto, 2011). Martín estrala seus dedos, torce seu pescoço, mostra que ali tem um corpo, que pulsa vida - não nos esqueçamos! Ou já nos esquecemos? Estejamos atentos, este corpo a todo o instante dá sinais: medo, pânico, depressão, insônia. Contudo, Martín afirma sofrer todos os males, apenas não o suicídio. É uma interação que provoca, convoca, que produz ações e reações.
Os objetos a todo o momento se fazem presentes no filme, fazendo uma mediação entre os sujeitos ("mim"/"eu") a outros sujeitos e ao mundo. Eles, portanto, dizem desses sujeitos, através da forma intencionada e afetiva que interagem, expressando também o inconsciente; da maneira como se apropriam e usam, dos lugares que lhes dão em suas vidas; e dizem sobre o entorno, pois os objetos ganham também um sentido no social (compartilhado por todos ou não). Vale destacar, o que Sandra Jovchelovitch (2008) nos esclarece: o objeto é sempre uma representação do objeto real, visto que é impossível capturar um objeto em sua totalidade. Por isso, dizemos que a realidade é construída, correspondendo sempre a uma ação humana subjetiva e intersubjetiva.
Dois objetos destacam-se no cotidiano de Martín: a fotografia e a mochila. Tirar fotos foi prescrito pelo seu psiquiatra. Desse modo, ele passa a ver o mundo através de uma lente. Quem vê? Ele ou a máquina? Não importa. A máquina faz a mediação do olhar dele. Nesse movimento tem algo de transformador, é através do produto da máquina, a fotografia, que ele encontra uma forma de se conectar com o mundo e redescobrir a sua volta. Uma brecha criativa que pôs o eu em movimento e assim, perder o medo da cidade e dos outros. Como ele mesmo diz: “observar é estar e não estar. Ou talvez estar de um jeito diferente” (Taretto, 2011); compondo mais uma antinomia: visível e invisível.
A fotografia consiste em capturar uma cena (materialidade) e apreender a realidade (objetividade), através de um olhar único, de uma atenção intencionada, da sensibilidade intransferível. A fotografia como um “entre”, que compõe o triângulo sujeito (Martín), objeto-mundo (máquina) e outro (aquilo que é fotografado). E só assim, ele foi se afastando, indo para mais longe, nos bairros e nas suas experiências, precisando apenas de seus pés e de uma mochila.
A mochila tem tudo o que ele considera necessário: câmera, filmes, dinheiro, preservativos, caderno, ipod, lanterna, pilhas, óculos de sol, Rivotril, Amoxicilina, Ibuprofeno e um manual em caso de acidente ou ataque de pânico. Como se contivesse tudo necessário para protegê-lo dos imprevistos da vida. Objetos da modernidade líquida?
A mochila passa a fazer parte do seu corpo, ou melhor, ela é corpo, extensão de seu ser. Ela é da cor preta assim como sua roupa, decretando esse continuum corporal e talvez espiritual. A sua única marca é a xilogravura de um rosto anônimo. Como se sair de casa fosse uma viagem, mas uma viagem perigosa e é preciso estar preparado e alerta. Bauman (2008) enuncia os medos líquidos modernos, que são ainda mais aterrorizadores por serem difíceis de estabelecar alguma lógica, de dar um sentido e provocam um pesado sentimento de impotência. Os contos morais de nossa época emanam ininterruptamente a ameaça da eliminação e a quase completa impotência perante ela (Bauman, 2008). A representação da cidade para Martín - desconhecida, insegura e hostil - dá formas para essa ameaça. Um lugar no qual é preciso ter criatividade para sobreviver. Se o mim não consegue controlar tudo, o eu consegue acessar objetos que, de algum modo, transformem o mim, caso esse venha a sofrer pane ou ataque de pânico.
“Com outras construções também não dei certo” (Taretto, 2011). Assim apresenta-se Mariana, apoiada na mão do que parece ser um manequim. Uma arquiteta que não conseguiu construir nada, nem um prédio e nem uma casa. “Só maquetes inabitáveis” (Taretto, 2011). E é assim que se sente, vazia e deserta quando vê seu relacionamento de quatro anos desmoronar. Sente-se uma construtora fracassada. Aqui as construções ganham um outro contorno, antes enquanto construções civis nomeavam as residências, agora nos levam até as relações amorosas. São análogas, possuem estruturas distintas – físicas e afetivas, mas ambas são elaboradas pelo humano, coletivamente.
Sofrendo uma perda, Mariana pergunta-se quem é, pois ela também ruiu, já não se reconhece no espelho. É tomada por uma sensação de esvaziamento, de perdas de sentido. Podemos fazer uma analogia entre ela e seu apartamento: o seu companheiro deixou um lugar vago. Perdeu sua casa, perdeu partes da si, restando voltar para o apartamento onde morava quando mais jovem e solteira. Para ela, um retrocesso. Contudo, por mais que seja um movimento bastante doloroso e desestabilizador, questionar-se é um movimento de sobrevivência do eu, é um ato de coragem e de confronto ao mim. Seu “velho novo apartamentozinho” (Taretto, 2011). Fracassos profissionais e fracassos amorosos. Porém o que seria então “dar certo”? Quais são as suas expectativas? Trata-se de Eu Ideal?
“Com a vida desordenada em 27 caixas de papelão” (Taretto, 2011). É assim que se encontra, perdida no meio da bagunça que está seu apartamento e com toda a sua vida embalada. Podemos especular alguns significados da escolha pelo número 27. Para uma análise de discurso nenhuma escolha é por acaso, pois reflete o inconsciente de quem a produz, ao mesmo tempo que remete a uma representação social. O número 27 é o cobalto na tabela periódica (química). O nome do elemento origina-se do alemão kobalt ou kobold, que significa “espírito maligno” ou “demônio das minas”, chamado assim pelos mineiros devido a sua toxicidade. Apesar de sua toxidade, o cobalto é capaz de produzir coisas interessantes, como o azul nas cerâmicas e contribui nas radioterapias (Figura 5).
Figura 5
A "caixa de sapato" de Mariana
Temos a sensação de que Mariana está fragmentada, decomposta, aos pedaços, da mesma maneira que as partes dos manequins que vemos espalhados pelos cômodos. E mesmo cheio deles, o apartamento permanece inabitado. Mariana nomeia este momento de “adaptação. Estou acostumando a ser sozinha outra vez” (Taretto, 2011).
Como se fossem produtos tóxicos, as caixas da mudança não são abertas por Mariana, que fica praticamente inerte em meio a tudo aquilo. A bagunça do apartamento expressa a confusão interna. Somente aos poucos vai colocando no lugar e vai recriando o ambiente e a si mesma, transformando lentamente o cobalto (ou as caixas) numa possibilidade de existência, liberando os raios que fazem terapia.
Enquanto arquiteta, as construções civis ocupam um lugar significativo em sua vida, fazendo-a prestar atenção aos detalhes à sua volta. Em contrapartida, tem claustrofobia e não consegue usar os elevadores, dificultando o acesso aos prédios altos, que tanto admira. Essa fobia torna-se praticamente uma contradição para uma arquiteta. Dentre tantas construções, o planetário é a sua favorita, pois além de ser construído pelos materiais que mais gosta, permite contemplar a imensidão do universo. Ir ao planetário a faz sentir-se apenas uma pequena parte de algo maior. Essa visão a posiciona em relação às pessoas e ao mundo, o que nos faz lembrar da triangulação (sujeito-outro-objeto/mundo) de pertencimento das representações sociais (Jovchelovitch, 2008). Observar o espaço sideral produz a mesma sensação de olhar para o livro “Wally na cidade”, a faz sentir-se só, mais uma entre milhões.
Outro objeto de grande significado para ela é a vitrine. Enquanto não consegue um trabalho como arquiteta, ganha a vida como vitrinista. A vitrine é definida por ela “como um lugar perdido... que não está nem dentro e nem fora. Um espaço abstrato e mágico” (Taretto, 2011). A vitrine comunica: é um espaço que permite que se expresse ao mundo, porém sob o anonimato. É justamente essa aparente desvinculação que autoriza a criação. E mais uma vez estar sob o anonimato remete tanto a enorme angústia, quanto ao alívio de ser apenas mais uma pessoa na multidão.
No desenrolar-se do enredo, a antinomia dentro e fora demarca mundos, o mundo externo/dos outros e o mundo interior/do sujeito, traçando limites ou continuidade entre eles. Em relação à vitrine, o lado de fora e o lado de dentro, pode ser entendido em analogia ao do self de Mariana, é o espaço através do qual a sua singularidade e subjetividade, são reconhecidos através do olhar do outro. A singularidade salienta o que há de único, diferente, enquanto a subjetividade tanta dar conta da realidade que constitui nosso ser em termos de alteridade (outros) (Guareschi, 1998). Uma tentativa de Mariana sinalizar sua existência: “imagino, talvez burramente, que se alguém para diante da vitrine, de alguma forma, se interessa por mim” (Taretto, 2011). Porém, no instante de um insight, ela mesma se vê refletida na vitrine. Percebe a partir de que lugar tem vivido: na vitrine como um manequim “imóvel, silenciosa e fria” (Taretto, 2011).
O enredo centrado em Martín e Mariana ("mim"/"eu"), permite-nos ver a vida sob os seus olhos, adentrando aos espaços privados: seus apartamentos e seus selfs. Quando faz isso, escancara a solidão que os assola. Não aparecem familiares ou amigos, apenas alguns personagens e objetos, que em grande parte, reforçam a frustração e o isolamento.
Recorremos a Jovchelovitch (2008), para compreender que o outro está sempre presente no sujeito, independente de sentir-se só ou à parte, pois se constituí pelo outro. É com o outro que se estabelece a comunicação, substrato para a vida. É a via pela qual se compartilha as representações individuais e que dinamicamente, constrói as representações. Estas produzem diferentes sistemas de saber, que orientam os pensamentos e as práticas. A seguir, apresentamos alguns dos outros significativos para os protagonistas, que irão expressar a intersubjetividade: o manequim e o Wally. A intersubjetivo faz com que não exista indivíduo isolado: num movimento de projeção-introjeção, de negociação e de criação de significações consensuais, o sujeito como outro é, inseparavelmente, instituído e instituidor (Jodelet, 2009).
Logo no início do filme, a figura curiosa do manequim, entra em cena como se fosse uma extensão de Mariana. Uma personificação entra em jogo: ela conversa, cuida, transa com o manequim. É para ele que Mariana dá um pouco de si. Cabe a ele ser sua única companhia, exercendo a função do outro. “Como foi seu dia?” (Taretto, 2011) está escrito na boca do manequim. A pergunta que nos interessa na modernidade. O isolamento e o retraimento, característicos desta modernidade, parecem transformar as relações das pessoas com os objetos inanimados. Seria um corpo sem órgãos? Um Proto-humano?
Fazemos uma associação com o Corpo sem Órgãos, conceito formulado por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1980/2004), que funciona como um conjunto de práticas, sendo aplicável à nossa vida. Como sabemos, “órgão” consiste na estrutura de um organismo, adaptado para realizar uma função. O nosso corpo todo, em conjunto, trabalha como uma máquina para a produção. Quando somos inseridos na sociedade, nossos desejos são sufocados, nossos órgãos capturados dentro de uma lógica capitalista e, tornamo-nos, algumas vezes, impotentes e infelizes. Para subverter esse aprisionamento, cria-se para si um Corpo sem Órgãos. Se quisermos ter potência e realizar nossa total capacidade é preciso transitar por esses corpos.
É assim que se sente Mariana, capturada pela lógica em que está inserida. Sente-se fracassada por não ter a carreira que se espera de uma arquiteta e por não ter um salário maior para escolher um lugar melhor para morar. Sustenta o imperativo do seu tempo: o de estar sempre feliz e em movimento. Mariana anseia na busca de alguma coisa que na verdade nem sabe o que é, mas precisa urgentemente estancar a falta. O manequim, um corpo também sem órgãos, entra em cena com ela para fazer um contraste: ela está ali, fragilizada, confusa, infeliz, com um desejo latente de in-corporar práticas que lhe devolvam mais vida e entusiasmo. Laboriosa tarefa. Em diversas cenas, ela carrega um pedaço do corpo do manequim, simbolizando o seu processo de transformação. Nesse sentido, o manequim é um importante objeto para refletirmos sobre a intersubjetividade. Ademais, especulamos que a cultura material também se abre para outras possibilidades, para a criação de modos de resistir ao que aparentemente está posto. Seria mais um “intersingularizar-se”.
Outro ponto a questionar tem a ver com o que Mariana, convicta, fala no dia seguinte a uma mimetização de relação sexual com o manequim: “Não se iluda, não foi nada mais que sexo” (Taretto, 2011). Como quem diz que não quer nada ou como uma reprodução do que já escutou em seus relacionamentos? Será que Mariana se sente um objeto em suas relações? Ao “revidar” uma possível experiência negativa com o outro, parece experimentar um outro papel, o que parece lhe dar certo conforto ou, pelo menos, um outro saber.
A questão que retumba é como são construídas as relações intersubjetivas na modernidade líquida quando o investimento psíquico no outro se dá através de uma intimidade mais mediada por objetos do que por humanos. Se eu coloco na boca do outro apenas aquilo que quero ouvir, fecho as medianeras para fazer a mediação (comunicação) e me abrir para as diferentes nuances do amor.
Nesse sentido, podemos pensar a relação objeto (manequim) e sujeito (Mariana) como uma tentativa de constituir um espaço potencial, isto é, o espaço dos símbolos. Os símbolos criam
O objeto representado, construindo uma nova realidade para a realidade que já está lá... É da essência da atividade simbólica – da atividade do espaço potencial – o reconhecimento de uma realidade compartilhada – a realidade de Outros. Mas é um reconhecimento criativo que leva a um envolvimento com outros e com o objeto que é o mundo (Jovchelovitch, 1995, p. 74).
“Wally na cidade”5 é o único livro no qual Mariana não encontra, de jeito nenhum, o personagem principal Wally, produzindo nela uma fobia de multidões para além das páginas, tal qual revelada por Martín desde o início do filme. Reconhecemos nesse jogo uma metáfora da questão existencial de Mariana e da questão do amor nas grandes cidades. A “presença perpétua e úbica de estranhos visíveis e próximos aumenta em grande medida a eterna incerteza das buscas existenciais de todos os habitantes” (Bauman, 2004, p. 129).
O Wally simboliza Mariana, que se sente perdida entre milhões de pessoas, abandonada a si mesma e angustiada por não vislumbrar perspectivas. Também simboliza a procura pelo outro, pois se já é uma tarefa custosa achar o Wally com a sua camisa listrada vermelha e branca, como achar alguém sem saber exatamente por quem se está procurando? Como encontrar a pessoa amada se não se sabe a priori como ela é, nem qual a sua fisionomia?
Mariana busca encontrar um amor para sua vida, mas será que como no jogo, ela não percebe que o que procura esteve sempre muito perto? Seria Martín uma representação do Wally? E, que mesmo sem conhecê-lo, ele está destinado a ser o amor que ela tanto deseja viver? São perguntas fundamentais para tentar compreender a própria representação do amor para os personagens (Figura 6).
Figura 6
O livro "Wally na cidade
É como se Mariana dissesse que procura em vão, mas engana-se quem logo deduz que ela não quer encontrar(se). O uso da lupa revela o quanto ela quer encontrar Wally (ou o amor). Por de trás de um vidro (da lupa), como nas telas dos computadores, haverá de se encontrar alguém! Não um encontro com o amor romântico, ideal, como um olhar desatento poderia julgar. Mas um “amor medianera” que convida Mariana e Martín a redescobrir sua (inter)subjetividade.
Os nomes dos personagens começam com a mesma letra (M). Enquanto se cruzam pela rua, suas cabeças formam um desenho de coração. Entre diversos ditos e não ditos, eles, se estivessem juntos, formariam um, como “metades da laranja”. Seriam traços do amor-paixão romântico? Este parecia se tratar de um modelo que muitas pessoas acreditam ter deixado no passado. No entanto, é como se estivessem destinados a um encaixe um tanto quanto ideal e romântico. É um encontro impossível? Ou previsível? Ficamos esperando o momento em que finalmente vão se conhecer e ficar juntos? E se não ficarem juntos no final? Nós enquanto espectadores e expectadores, como reagiríamos? Soa-nos piegas? Ou também queremos gozar desse encontro? Mas o gozo parece inevitável. Ao mesmo tempo a modernidade líquida nos exige sempre gozar. Esse gozo também é sempre incerto.
É pela medianera que Mariana olha pela janela de seu apartamento e vê um homem com uma blusa listrada, vermelha e branca, e subitamente desce – pelo elevador, indo ao encontro deste, que vemos ser Martín. Pela primeira vez vemos um sorriso expressivo no rosto dela. Encontrou seu Wally, justamente em um momento de distração. A promessa, descrita na trilha sonora “True love will find you in the end” (Taretto, 2011), se concretiza? Um clichê previsível do “felizes para sempre”? No fluxo da liquidez, o amor romântico ainda está solidificado? Pode ser, depende do que o espectador vislumbra através da intencionalidade de suas representações e no compartilhamento destas. Mas o final não nos entrega certezas.
O des-fecho (pois na verdade não fecha) pode reafirmar a importância da implicação subjetiva, se queremos sacudir a monotonia, desamarremo-nos, encontremos caminhos mais iluminados, desafiamo-nos no contato com o outro, olhemos para dentro de nós e para fora dos nossos apartamentos. O final pode deixar apenas no ar que se desejamos viver um amor, devemos estar dispostos a buscar e tentar superar muitos obstáculos arquitetônicos e outros tantos interiores. As duas reflexões não precisam ser excludentes, esse amor pode ainda estar sobrecarregado de romântismo provocando contradições com um novo contexto cultural.
O cinema é campo privigeliado para reflexionar sobre o que está posto em nossa sociedade, seja da ordem do visível ou do oculto. Não só reproduz representações e constrói subjetividades, como também as produz. Há dizeres para serem vistos e lidos via saber-fazer da Psicologia.
As narrativas no filme indicaram caminhos diversos para o amor, que são construídos com base na tríade eu-outro-mundo. Não se sabe se é o amor que encontra o humano ou se o humano o encontra, mas, ao final do enredo, apesar das divergências, dos tropeços, dos sofrimentos, na constituição da subjetividade, das antinomias, as relações na modernidade convergem para o amor. Ainda que este não tenha um único formato, o amor insiste, revelando-se na arquitetura urbana, inclusive nas medianeras.
Que o amor nos faça pensar, que nos faça conhecer um pouco mais de nós mesmos. Que seja “amor-medianera”. Enfim, amar nunca é calmo, manso ou sereno. E “não é verdade que, quando se diz tudo sobre os principais temas da vida humana, as coisas mais importantes continuam por dizer?” (Bauman, 2004, p. 16). Por se tratar de humanos, amor é um tema inesgotável...
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