História de uma trabalhadora doméstica

Story of a domestic worker

  • Maria Chalfin Coutinho
  • Tielly Rosado Maders
  • Mônica Back Westrupp
  • Geruza Tavares D’Avila
O contexto de recentes transformações na regulamentação do trabalho em serviços domésticos no Brasil ensejou o desenvolvimento de uma pesquisa com foco no cotidiano de trabalhadoras domésticas. Apresentamos aqui a história de vida de uma trabalhadora doméstica, nomeada de Fernanda. Sua história foi levantada por meio de três entrevistas, com uso de duas produções gráficas: Trajetória Socioprofissional e Agenda Colorida. A análise, inspirada nos Núcleos de Significação, possibilitou a criação de três núcleos: trajetória social, cotidiano e trabalho e sentidos atribuídos ao trabalho doméstico. Na trajetória analisada, destacamos a persistência de desigualdades de gênero, geração e classe. A história de Fernanda foi permeada por emoções ambivalentes, que evidenciam o quanto na vida desta mulher trabalhadora, com baixa renda e escolaridade, a ocupação como empregada doméstica se coloca como única possibilidade, do mesmo modo que outras mulheres, inclusive de sua família.
    Palavras chave:
  • História de Vida
  • Trabalho Doméstico
  • Cotidiano
  • Emoções
The context of recent changes in the regulation of work in domestic services in Brazil caused the development of a research focusing on the daily lives of domestic workers. Here we presented the life history of a domestic worker, nominated Fernanda. His history was collected by three interviews, using two graphic productions: Socio-professional Trajectory and Colorful Agenda. The analysis, inspired by the Meaning Core, enabled the creation of three: social trajectory, daily life and work and senses attributed to domestic work. In the analyzed trajectory, we highlight the persistence of gender inequalities, generation and class. Fernanda history was permeated by ambivalent emotions that shows how the life of this woman worker with low income and educational level, the occupation as a domestic worker stands as the only possibility, just as other women, including his family.
    Keywords:
  • Life History
  • Domestic work
  • Daily Life
  • Emotions

1 Introdução

As transformações no contexto latino-americano convivem com formas tradicionais de trabalho, como o trabalho doméstico remunerado. No Brasil, o serviço doméstico pode ser considerado uma das formas mais antigas de trabalho remunerado e apresenta configurações típicas de uma sociedade colonizada. A categoria das trabalhadoras domésticas vem sendo objeto de intensa discussão em diversos campos da sociedade brasileira e é alvo de recentes modificações legais, as quais vêm provocando mudanças no cotidiano e nas relações de trabalho.

Somente em abril de 2013, com a aprovação da Emenda Constitucional nº72, a categoria das trabalhadoras domésticas conquistou alguns direitos previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e já assegurados a outras categorias regulamentadas, tais como o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), o seguro-desemprego e a regulação da jornada de trabalho, conforme orienta o Ministério do Trabalho e Previdência Social (MTPS, 2015). A maior parte desses direitos só foi implementada com a aprovação da Lei Complementar nº 150, de 1º de Junho de 2015. Apesar desses avanços na legislação que protege o trabalho doméstico, outros direitos ainda necessitam de regulamentação, sejam na forma de lei, portaria ou norma técnica, além da fiscalização para garantir o que já foi conquistado legalmente.

O contexto apresentado ensejou a realização de uma pesquisa1 cujo principal objetivo foi investigar as práticas possíveis e os sentidos produzidos no cotidiano de trabalhadoras de serviços domésticos. No decorrer da pesquisa e ao longo de nossas análises, as emoções revelaram-se centrais para compreender o cotidiano e as trajetórias de vida das entrevistadas. Assim, a temática das emoções, não contemplada originalmente entre os objetivos da pesquisa, passou a integrar seu escopo.

Com base neste trajeto apresentamos aqui um recorte da pesquisa mais ampla, a partir da história de vida de uma trabalhadora em serviços domésticos, aqui nomeada de Fernanda, em que destacamos as mediações afetivas enquanto ponto central de sua história e cotidiano de trabalho.

Iniciamos o presente texto com algumas considerações acerca do trabalho doméstico e com a apresentação das duas categorias teóricas fundamentais para a análise da história de Fernanda – Emoções e Cotidiano. Em seguida apresentamos o Método da pesquisa e, então, a análise da história de vida de Fernanda, sintetizada em três Núcleos de Significação, quais sejam: trajetória social, cotidiano e trabalho e sentidos atribuídos ao trabalho doméstico, sendo as emoções discutidas em todos os núcleos

analisados. Nas considerações finais problematizamos os principais resultados encontrados e propomos alguns questionamentos.

2 Situando o trabalho doméstico

As transformações ocorridas desde as últimas décadas do século XX no mundo do trabalho, especialmente a reestruturação produtiva, afetaram não apenas os sistemas produtivos, mas também e, substancialmente, os modos de ser dos sujeitos na contemporaneidade. Observamos uma maior precarização das condições e do próprio trabalho para grande parte dos/as trabalhadores/as, além da ampliação de seu número no setor de serviços.

Para Lourdes Bandeira e Hildete P. Melo (2013), tais transformações acentuaram a divisão social e sexual do trabalho nas últimas 5 décadas no Brasil. Maria C. Coutinho, Regina Célia Borges, Laila Graf e Aline S. Silva (2013) afirmam que, no país, a partir dos anos 1990, houve a intensificação da reestruturação produtiva diante de um quadro de desemprego e flexibilização das relações trabalhistas e, em suas palavras: “observou-se, de um lado, a emergência de novos modos de trabalhar e de se inserir no mercado de trabalho. De outro lado, persistem ou mesmo se ampliam as ocupações informais, tradicionais no país” (Coutinho et al., 2013, p. 1126).

O trabalho doméstico remunerado é configurado como uma ocupação tradicionalmente informal e desenvolvido majoritariamente por mulheres, podendo ser considerado como uma forma de prestação de serviços. Definir o setor de serviços é controverso, uma vez que os setores se constituem heterogêneos e com caráter multifacetado. Já o termo “serviços” utilizado por Félix Fisher (1952, citado por Mônica Andrade, 1994), corresponde àquelas atividades econômicas que se caracterizam por não serem produtoras de bens materiais (Andrade, 1994).

Segundo Natalia Fontoura, Antonio Lima Jr e Carolina Cherfem (2015) o serviço doméstico continua sendo uma relevante ocupação feminina, em especial, dentre as mulheres negras. Em pesquisa realizada pelo DIEESE (2013), em 2011 havia aproximadamente 6,6 milhões de pessoas ocupadas nos serviços domésticos no Brasil, e a parcela de mulheres correspondia a 6,1 milhões (92,6%), o que evidencia o papel importante deste trabalho na ocupação de grande parte das mulheres.

Apesar de a categoria ser regulamentada, somente 4 em cada 10 trabalhadoras se encontravam protegidas socialmente no ano de 2014, conforme Fontoura et al. (2015, p. 34): “Em 2014, somente 30% da categoria possuíam carteira de trabalho assinada. Considerando aquelas que afirmaram contribuir para a Previdência Social, a proporção chega a quase 40%”2. Esses dados revelam que a maioria das trabalhadoras domésticas atua na informalidade e não tem acesso às proteções legais.

O contingente de trabalhadoras, composto em sua maioria por mulheres, de baixa renda e escolaridade, revela fortes atravessamentos de gênero, classe e raça, próprios de uma sociedade com heranças escravocratas. No que tange à questão de gênero, cabe lembrar algumas peculiaridades do trabalho feminino, apontadas por Maria Fernanda Diogo (2012, p. 86): “manutenção da segregação ocupacional, acentuada desigualdade salarial, desvalorização cultural do trabalho de mulheres, maiores taxas de desemprego, dupla jornada de trabalho, discriminações quanto aos direitos sociais e trabalhistas e aumento da presença feminina em ocupações precárias”.

Jurema Brites e Felícia Picanço (2014) estimam que as trabalhadoras domésticas atuem em 7,4% das unidades domiciliares no Brasil, sendo as famílias empregadoras, em geral, oriundas da classe média e alta da população. As autoras observam o caráter ambíguo e, simultaneamente, perverso das relações entre empregadoras e empregadas, pois “ao mesmo tempo que absorve e retém as mulheres, em especial, as mais pobres, negras e menos escolarizadas, é, também, fundamental para a libertação de outras mulheres para o ingresso no mercado de trabalho” (Brites & Picanço, 2014, p. 131).

Lúcia Helena Soratto (2006, p. 234) enfatiza, ainda, o quanto a herança da escravidão é reforçada em função do contexto privado em que acontece o trabalho e em decorrência “da combinação entre a natureza da atividade e do modo como as pessoas da casa se relacionam com as atividades domésticas”, o que implica estar subordinado às urgências e vontades do outro durante todo o tempo (Soratto, 2006).

Por ser considerado “como trabalho reprodutivo, atividade da qual os seres humanos dependem e reproduzem desde o início da vida social” (Coutinho, Maders, Medeiros & Savanhago, 2014, p. 7), o trabalho doméstico é uma atividade que deve ser realizada diretamente por pessoas e cotidianamente e, apesar de ser menos valorizado socialmente do que as atividades consideradas como produtivas3, cumpre um importante papel social pode ser:

Entendido como o trabalho da manutenção da vida e reprodução das pessoas, ou seja, aquele que envolve um conjunto de atividades realizadas na esfera privada e familiar sem as quais a reprodução humana não estaria assegurada, como o cuidado com os filhos e dependentes e as tarefas domésticas (limpeza da casa, preparo das refeições, etc.). (Machado, 2014, p. 61)

Existem diferentes modalidades de trabalho em serviços e, assim, encontram-se relações de maior distanciamento entre as pessoas que produzem e as que consomem os serviços, inclusive com separação no tempo/espaço. Contudo, no âmbito do serviço doméstico o consumo do trabalho acontece imediatamente após a sua concretização, ou seja, a produção e o consumo são simultâneos, ocorrem ao mesmo tempo. Quando se acrescenta o cuidado de pessoas, essa relação torna-se ainda mais intensa e complexa (Soratto, 2006).

Portanto, quando se analisa o trabalho doméstico é fundamental considerar o seu exercício no âmbito privado, no qual as contradições das relações de trabalho são invisibilizadas. Conforme destacam Bandeira e Melo (2013, p. 38), a inserção das mulheres no mercado de trabalho não contribuiu para repensar os papéis biológicos e sociais entre homens e mulheres, pelo contrário, legitimou-os. Assim, a realização das tarefas domésticas continua configurando-se como uma “obrigação” das mulheres:

A ação política só absorveu a participação feminina no âmbito da produção de mercadorias, relativas ao mercado de trabalho, deixando de levar em consideração as tarefas que só por razões afetivas as mulheres prestam aos demais seres humanos. A realização destas permanece uma obrigação feminina e numa sociedade de classe estas tarefas podem ser exercidas por outras mulheres: patroas4e empregadas. Esta foi a forma conciliatória que a sociedade de classe adotou para vivenciar a “invisibilidade” dos afazeres domésticos? (Bandeira & Melo, 2013, p. 38, grifos nossos)

Nesse sentido, Brites e Picanço (2014) problematizam a noção da “ambiguidade afetiva” entre “patroas” e empregadas, especialmente entre estas e as crianças de quem cuidam. Esse termo, cunhado por Donna Goldstein (Brites, 2007), revela uma naturalização das distâncias sociais entre quem vende e quem compra os serviços domésticos, mascaradas pelos laços afetivos característicos das relações entre “patroas” e empregadas. Dessa forma, direcionamos a reflexão para o lugar ocupado pelas emoções no cotidiano das trabalhadoras domésticas.

3 Emoções e cotidiano

Para situar as emoções que permeiam a vida cotidiana de trabalhadoras domésticas, tomamos como referência uma compreensão de sujeito guiado não apenas pela razão, mas também pelos afetos. Essa concepção é encontrada nas obras de Lev Semenovich Vigotski cujos estudos evidenciaram uma “unidade dos processos afectivos e intelectuais” (Vigotsky, 1934/2007, p. 48, grifo do autor) tanto nas inclinações do sujeito quanto em seu pensamento5. Assim, nossa escolha por este autor pauta-se em sua visão integrada entre mente e corpo, entre razão e emoção, e não no predomínio de uma sobre a outra.

Lavinia Magiolino (2014), em pesquisa realizada com atrizes de uma companhia de teatro acerca do processo de significação das emoções, ressalta o complexo movimento emocional vivenciado e expresso pelas atrizes no momento mesmo em que atuam, quando, por exemplo, sentem algo no corpo e não conseguem colocar em palavras. Nesses momentos, os sentimentos as levam a agir de maneira diferente, desenrolando-se gestos sempre relacionados diretamente a determinadas emoções não traduzíveis em palavras, as quais estão em constate processo de significação. Da mesma forma, no contexto privado do serviço doméstico as vivências são marcadas pela simultaneidade e imediatismo das relações de trabalho, que ocorrem no tempo/espaço do aqui e agora. Tais relações se configuram a cada encontro e as emoções se constituem “na trama de relações sociais de que faz parte, ao ocupar diferentes posições sociais” (Magiolino, 2014, p. 55).

Dessa forma, pode-se dizer que as “emoções significadas”, constituídas de conteúdos e sentidos compartilhados e reproduzidos social e cotidianamente, compõem um sistema funcional complexo que guia nossas ações, num constante processo subjetivo, dialético e sígnico, de caráter refratário e contraditório (Magiolino, 2014).

Em relação às empregadoras e empregadas domésticas, Dominique Vidal (2012) evidencia o quanto a afetividade é primordial, a partir de uma pesquisa realizada na cidade do Rio de Janeiro, no Brasil. Para o autor, a “amizade entre desiguais” retoma a questão sobre o paternalismo evidente nesse tipo de relação, pois:

Se o discurso paternalista é, pois um instrumento de que o empregador lança mão para assentar sua dominação, ele dá lugar, sobretudo, a uma duplicidade compartilhada da qual ambas as partes podem esperar tirar proveito, mesmo se as empregadas não ocupam a posição mais confortável nesta troca desigual (Vidal, 2012, p. 181)

Além das relações marcadas pelo paternalismo, Vidal (2012) acrescenta a gratidão à análise da afetividade entre patroas e empregadas, uma vez que essa relação não apresenta características apenas utilitaristas. O autor ressalta o quanto as empregadas domésticas e também suas empregadoras revelam o forte vínculo afetivo que possuem umas com as outras e, ao mesmo tempo, o quanto desconfiam umas das outras. O tema da afetividade6 complexifica a análise sobre o trabalho em serviços domésticos e, então, aponta para a necessidade de se compreender o cotidiano laboral dessas trabalhadoras, espaço onde as relações se constituem.

Outro ponto considerado importante se refere às redes de relações sociais construídas no cotidiano de trabalho, mediadas pelas emoções. Ancorados em autores da abordagem da Nova Sociologia Econômica, particularmente no sociólogo Mark Granovetter, Christiane Girard-Nunes e Pedro Silva (2013) apontam a importância das redes de sociabilidade para o entendimento econômico dos mercados, uma vez que o próprio mercado de trabalho é imerso nessas redes. De acordo com os autores, a articulação em redes, assim como as relações de confiança estabelecidas, são importantes para o funcionamento de alguns mercados, o que inclui o das trabalhadoras domésticas. Girard-Nunes e Silva (2013) também chamam atenção para algumas mudanças em relação ao uso dessas redes sociais, pois diferente de anos anteriores – em que a empregadora acionava sua rede de relações sociais para contratar uma trabalhadora doméstica, “as próprias empregadas passaram a utilizar suas redes sociais como modo de conseguir o emprego ou de possibilitar a entrada de outrem” (Girard-Nunes & Silva, 2013, p. 598).

Quando se analisa a vida cotidiana de trabalhadoras domésticas, cabe lembrarmos, tal como fizeram Coutinho et al. (2013), ancoradas em José Machado Pais, ser o cotidiano não só um espaço de repetição e rotina, pois nele há também possibilidades da emergência do inusitado. Assim sendo, a análise das práticas cotidianas ocupa um lugar de destaque, é no cotidiano que a vida acontece e, por meio dele, é possível evidenciar os processos micro políticos, as práticas astuciosas, os modos de ser e não apenas as repetições.

Outro autor relevante para análise das práticas cotidianas ou “maneiras de fazer” é Michel de Certeau (1998). Para o autor as ações cotidianas podem ser de tipo estratégico ou tático, a estratégia “postula um lugar capaz de ser circunscrito como um próprio e portanto capaz de servir de base a uma gestão de suas relações com uma exterioridade distinta” (Certeau, 1998, p. 46, grifo do autor). Opostamente, o lugar ocupado pela tática é sempre o do outro, onde o “fraco” busca assegurar alguma independência por meio das circunstâncias, uma vez que ele não dispõe de uma base para “capitalizar seus proveitos”. As táticas constituem a “arte do fraco”, pois: “pelo fato de seu não lugar, a tática depende do tempo, vigiando para `captar voo` possibilidades de ganho. O que ele ganha, não o guarda. Tem constantemente que jogar com os acontecimentos para os transformar em ‘ocasiões´” (Certeau, 1998, p. 47). Tendo em vista o lugar de subalternidade tradicionalmente ocupado pelas trabalhadoras domésticas, conhecer suas práticas cotidianas remete às táticas, tal como propõe Certeau (1998). Para compreender as emoções que permeiam o cotidiano laboral das trabalhadoras domésticas, apresentamos a análise da história de vida de Fernanda.

4 Método

Considerando as articulações entre emoções e cotidianidade acima apontadas, buscamos compreender a vida cotidiana de uma trabalhadora doméstica por meio de sua história de vida. Esse método, inserido no amplo campo das abordagens biográficas, se efetiva quando se solicita a alguém para rememorar sua vida (Silva, Barros & Barros, 2007). De acordo com Maria Isaura Queiroz (1988), a história de vida, ao lado de outras modalidades de história oral, “se define como o relato de um narrador sobre sua existência através do tempo, tentando reconstituir os acontecimentos que vivenciou e transmitir a experiência que adquiriu” (Queiroz, 1988, p. 20).

O método da história de vida se consagrou na chamada “Escola de Chicago”, movimento significativo que compreendeu pesquisas sociológicas desenvolvidas na Universidade de Chicago entre 1915 e 1940, aproximadamente (Becker, 1999; Silva et al., 2007). Posteriormente, com o advento e hegemonia das pesquisas estatísticas do tipo survey, as histórias de vida caíram em desuso por um longo período, sendo retomadas, como modalidade relevante de pesquisa, a partir das últimas décadas do século XX, particularmente quando articuladas com o método biográfico.

Entre os autores que situam a história de vida no campo biográfico está Franco Ferraroti (1991), o qual busca fundamentos na historicidade e na razão dialética. Ancorado em Karl Marx, Ferrarotti (1991, p. 172) destaca o caráter histórico, o qual possibilita compreender um ato em sua totalidade, pois “só a razão dialética nos dá acesso ao universal e ao geral (a sociedade), começando pela individualidade singular (um determinado homem)”. Tendo como referência a razão dialética, buscamos por meio da história de vida de uma trabalhadora doméstica, fazer a articulação entre o singular e o coletivo. Para apreender a história de Fernanda, uma das trabalhadoras domésticas participante da investigação mais ampla, foram realizadas três entrevistas e, nestas, foram produzidos dois documentos gráficos com o uso de duas ferramentas complementares: Trajetória Socioprofissional e Agenda Colorida.

Ao solicitarmos à Fernanda para que nos contasse sua história, demandamos a descrição de suas ações ao longo do tempo, por meio de narrativas sobre sua vida em cada um dos encontros. Para Daniel Bertaux (2014, p. 261), “Um curso da ação, isso se narra. E aquele que pode contá-la melhor é, evidentemente, aquele ou aquela que a conduziu do início ao fim”. As narrativas de vida implicam em rememorar as experiências. No pioneiro estudo brasileiro “Memória e sociedade”, Ecléa Bosi (1987) colhe memórias de velhos. Para Bosi (1987, p. 48) a memória é “faculdade épica por excelência” a ser preservada, pois a “história deve reproduzir-se de geração a geração, gerar muitas outras, cujos fios se cruzem, prolongando o original, puxados por outros dedos”.

Para colher as memórias dos velhos, Bosi (1997, p. 1) procurou “a formação de um vínculo de amizade e confiança com os recordadores”. No contato com Fernanda, também buscou-se estabelecer uma relação de proximidade. Assim, as entrevistas fizeram uso de um roteiro norteador, com algumas temáticas a serem exploradas, mas esse foi usado de forma flexível, para não impedir a relação cordial e direta com a participante do estudo, conforme sugere Nadir Zago (2003). As entrevistas foram gravadas em áudio e, posteriormente, transcritas. As produções gráficas, usadas durante a segunda e a terceira entrevista, constituíram-se como elementos disparadores da fala da entrevistada. Dessa forma, nossa análise centrou-se nas transcrições das entrevistas, inclusive nos discursos produzidos a partir das duas ferramentas utilizadas.

A Trajetória Sócio-Profissional (TSP), ferramenta proposta por Vincent de Gaulejac (2014) e adaptada por Dulce Soares e Gisele Sestren (2007), consiste em um recurso por meio do qual o participante representa graficamente sua trajetória pessoal e familiar articulada com a história social. Após a finalização do registro gráfico, a participante discorreu sobre sua história de vida, destacando elementos importantes e, muitas vezes esquecidos, de sua trajetória, expostos no registro. Ao facilitar à entrevistada rememorar sua história, a TSP revelou-se uma ferramenta válida para os estudos biográficos. O segundo instrumento complementar utilizado foi a agenda colorida (AC), que consiste em um registro semanal das atividades realizadas durante cada hora do dia (Dulce Soares & Aline Costa, 2011). Da mesma forma, após essa produção, a participante pôde visualizar e expressar suas vivências cotidianas de forma detalhada e aprofundada, constituindo a agenda colorida como um valioso instrumento para conhecer o cotidiano.

A análise das informações levantadas, quais sejam, as transcrições das entrevistas, foi realizada por meio dos Núcleos de Significação, em procedimento inspirado em Wanda Aguiar e Sergio Ozella (2013). Num primeiro momento houve a apreensão dos sentidos do discurso do sujeito, seguindo as etapas de leitura flutuante e organização do material em pré-indicadores, aglutinação dos mesmos e, finalmente, a construção dos Núcleos de Significação. No presente artigo, apresentamos os três Núcleos de Significação construídos: Trajetória social, Trabalho e cotidiano e os Sentidos atribuídos ao trabalho doméstico. Além de analisarmos os Núcleos de Significação da pesquisa original, em que Fernanda participou, evidenciamos o quanto as emoções ocupam um lugar destacado em cada um dos mesmos.

5 Discussão dos resultados

Nesta seção apresentamos os três Núcleos de Significação e nossa discussão a partir dos/as autores/as mencionados na primeira parte do texto. Iniciamos com a síntese biográfica de Fernanda na intenção de situar sua história de vida num espaço e tempo específico.

5.1 Síntese biográfica de Fernanda

Fernanda, a interlocutora desta pesquisa, tinha 45 anos no ano dos encontros investigativos e, apesar de residir na cidade de Florianópolis, capital, é proveniente do interior do estado de Santa Catarina, região sul do Brasil. Atualmente mora com os 3 filhos, sua nora e o companheiro, cujo vínculo é a união estável. A renda média mensal de Fernanda é em torno de 2 salários-mínimos7.

Desde muito cedo, Fernanda dedica-se ao trabalho, tendo abandonado os estudos (frequentou a escola por pouco mais de 1 ano) para auxiliar seus pais na pequena propriedade rural em que moravam, onde limpava o mato, plantava milho e mandioca e ajudava nos afazeres domésticos dentro de casa. Aos 9 anos foi levada por sua madrinha para trabalhar como empregada doméstica na casa de uma família. Aos 15 anos, ela conhece uma mulher da capital e vai trabalhar em sua casa, permanecendo neste emprego por 4 anos. Durante alguns meses, ela passa a morar com um namorado e, também, com sua irmã na periferia, mas em seguida volta a residir com seus empregadores, quando fica grávida de seu primeiro filho. Fernanda permanece nesse emprego até seu filho completar 3 anos, depois trabalha em outra residência durante um ano e, em seguida, em função da dificuldade em conciliar trabalho e a criação do filho pequeno, o deixa sob os cuidados de sua família, em sua cidade de origem. Ao retornar para a capital, consegue empregar-se em outra casa por 9 meses, quando conhece seu atual marido e se casa, tendo seu segundo filho aos 30 anos e o terceiro um ano e 9 meses depois. Durante as duas gestações, trabalhou em unidades familiares com vínculos formais de trabalho, mas depois que os filhos nasceram começou a trabalhar informalmente. Só voltou a trabalhar formalmente há 3 anos, quando sua atual empregadora engravidou e pediu para Fernanda trabalhar regularmente em sua casa.

Atualmente, além do seu trabalho com registro formal com uma jornada de aproximadamente 10 horas diárias, ela trabalha como diarista fazendo a limpeza de duas outras residências, de quinze em quinze dias, e vende produtos de higiene e beleza. Planeja comprar um apartamento financiado por um projeto governamental de habitações populares e morar com seus filhos, também sonha em ter um negócio próprio e parar de trabalhar como empregada doméstica.

5.2 Trajetória social

O primeiro núcleo aborda a trajetória social de Fernanda, que se apresenta muito similar à de outras mulheres que atuam nos serviços domésticos no Brasil, mas guardando algumas peculiaridades. Conforme mencionam Brites e Picanço (2014), há uma redução do número de jovens atuando nesse setor, fator que, assim, abre possibilidades de inserção e permanência para mulheres em idade mais avançada “reduzindo a forma de recrutamento comum durante muitas décadas, que procurava adolescentes meninas para trabalhar como domésticas a título de oferecer melhores oportunidades de vida e, em alguns casos, escolarização” (Brites & Picanço, 2014, p. 139). Como já citado sobre o caso de Fernanda, ela foi levada por sua madrinha para atuar em uma unidade familiar com apenas 9 anos de idade, com a finalidade de trabalhar, e permanece no serviço doméstico até hoje, ora com vínculo formal, ora sem.

Como explicitado por Brites e Picanço (2014), em alguns casos, há o recrutamento de meninas para o trabalho doméstico em troca de melhorias de oportunidades e até mesmo escolarização. No caso de Fernanda, não houve a possibilidade de voltar para escola, ela somente lê e escreve o seu nome. Mesmo antes de ser recrutada para o trabalho “fora de casa” pela sua madrinha, ela já havia interrompido os estudos devido ao trabalho “dentro de casa”.

Importante mencionar também a reprodução dos estereótipos de gênero pelos familiares de Fernanda, desde quando ela e os irmãos residiam na casa de seus pais. Assim, ela e suas irmãs realizavam o trabalho “dentro de casa”, enquanto seus irmãos ajudavam os pais no serviço “fora de casa”, o que se perpetua até os dias atuais.

Comigo são 7, tem 2 meninos e 5 meninas [...] As irmãs, tudo tão fazendo a mesma coisa que eu faço [...] minha mãe sempre trabalhou no sítio, em casa mesmo, negócio de roça... [...] Negócio de lenha, madeira, carvão essas coisas que eles fazem lá [referindo-se ao pai e aos irmãos]. (Fernanda8, entrevista pessoal, abril de 2014)

Nesse sentido, Diogo (2012) explica o quanto os estereótipos de gênero “são resistentes a revisões e mudanças, pois derivam de naturalizações que ocultam a produção social das diferenças entre homens e mulheres, inocentando-as por intermédio do discurso biologizante” (Diogo, 2012, p. 100). Diante da necessidade de ajudar suas famílias e, uma vez que não possuíam escolaridade suficiente para disputar outros lugares no mercado de trabalho, se observa alternativas diferentes de inserção ocupacional para meninos e meninas na família de Fernanda, colocando-se para as mulheres o trabalho doméstico.

Segundo Brites e Picanço (2014) é por meio desse trabalho de baixo prestígio que muitas mulheres podem participar, de forma distinta, da sociedade de consumo. Foi nessa dualidade que Fernanda conseguiu ajudar seus pais, num primeiro momento de sua vida e, em seguida, sustentar a si mesma e aos seus 3 filhos. Hoje, ela e o companheiro são corresponsáveis pelo sustento familiar.

Outro aspecto em relação ao gênero refere-se aos momentos de gravidez na vida de Fernanda. Por um lado, foram as gestações e o nascimento dos filhos que acabaram por impedi-la de continuar no trabalho doméstico com vínculo formal e a levaram a atuar na informalidade como diarista, uma vez que os/as empregadores/as não “aceitavam” empregadas com filhos/as pequenos/as, como aponta Diogo (2012), em pesquisa sobre as mulheres atuantes no setor de vigilância, em que a gravidez constitui-se um dos principais transtornos, pois as mulheres vigilantes grávidas acabavam sendo afastadas do seu emprego tão logo suas barrigas cresciam e ficavam visíveis. Por outro lado, foi a gestação de sua última empregadora que determinou que se “fixasse” como empregada com vínculo formal de trabalho nessa unidade familiar. A necessidade da empregadora em “contar com alguém” para cuidar da casa e de um recém-nascido, sinalizam a importância de uma relação afetiva de confiança entre ela e sua contratada: uma “amizade entre desiguais”.

Para Fernanda, a gravidez e a maternidade trouxeram mudanças para sua trajetória ocupacional, o que também foi relatado pelas trabalhadoras domésticas entrevistadas por Coutinho et al (2013). Para as autoras: “Elas também relatam entradas e saídas no mercado de trabalho, ocasionadas principalmente por contingências pessoais e/ou familiares, como mudança de cidade (para acompanhar os pais ou o marido), gravidez, nascimento ou doença de filhos” (Coutinho et al, 2013, p. 1132).

Ainda sobre aspectos da trajetória de Fernanda similares aos de outras trabalhadoras domésticas, referimos as entradas e saídas no mercado de trabalho doméstico. Estas foram determinadas especialmente pelas redes de relações sociais de Fernanda, e em suas palavras “a maioria assim, nesse prédio aqui eu trabalhei em todos, eu conhecia, então uma passava pra outra né, uma precisava, a gente fazia amizade né [...] foram indicando”. Tais situações remetem ao que Girard-Nunes e Silva (2013) apontaram quanto às redes de relações sociais e a confiança construída entre empregadoras e empregadas domésticas, pois é por meio dessa relação afetiva que estas trabalhadoras se (re)inserem no mercado de trabalho, seja ele formal ou informal. Desde o recrutamento de Fernanda para o serviço doméstico, realizado por alguém de sua família, há o uso das redes sociais.

Retomando Vidal (2012) na análise da afetividade entre empregadoras e empregadas, é possível observar que essa relação não é apenas de cunho utilitarista, pois ambas necessitam estabelecer relações de intimidade e confiança para o desenvolvimento das tarefas domésticas, desde o recrutamento das domésticas até o encerramento de suas atividades. Assim, interesses dos dois lados seriam, em alguma medida, atendidos nessa relação. Além disso, como se verá mais adiante, Fernanda é orientada nas casas de suas empregadoras por outras mulheres, suas empregadoras, pois são estas quem supervisionam o trabalho doméstico que será desenvolvido em suas casas.

Em seus projetos, Fernanda prospecta a compra de uma casa e ter seu próprio negócio, e não deseja voltar aos bancos escolares. De modo similar ao das diaristas entrevistadas no estudo de Coutinho et al (2013, p. 1133), a entrevistada na presente pesquisa não apresentava “planos estruturados relativos à sua vida laboral futura”.

Assim, no Núcleo de Significação “Trajetória social” as emoções se evidenciam por meio das relações de intimidade e confiança estabelecidas em suas redes de relações sociais. A vínculo de “amizade” com outras trabalhadoras domésticas e com os/as próprios/as empregadores/as permitiu a permanência de Fernanda neste tipo de trabalho, erigindo sua trajetória a partir dessas redes de relações “costuradas” pela afetividade.

5.3 Cotidiano e trabalho

O cotidiano do trabalho doméstico inclui uma gama bastante variada de atividades e funções que, quando tratadas indistintamente, “em um mesmo pacote”, acabam por salientar apenas características negativas, como a repetição e a rotina (Soratto, 2006). Uma vez que esse contexto de trabalho se dá no âmbito da vida privada, compreendê-lo em seus múltiplos entrelaçamentos torna-se, no mínimo, desafiador.

Em relação à rotina e variabilidades do trabalho doméstico realizado por Fernanda, é válido diferenciar três formas já identificadas por Coutinho et al (2014) em estudo anterior com outras empregadas domésticas. O trabalho doméstico formal, exercido com carteira assinada, em que ela possui vínculo empregatício formalizado; o trabalho doméstico informal, sem carteira de trabalho, exercido por ela intercaladamente, em duas residências fixas (2 vezes ao mês em cada); e, por fim, o trabalho doméstico não remunerado realizado em sua própria residência. Quando chega ao trabalho:

Tem que fazer o básico né, o básico é passar aspirador, passar pano, tirar o pó, dar uma limpada boa nos banheiros, arrumar as camas, ajeitar tudo, fazer o almoço, colocar na mesa, depois do almoço, lavar toda a louça, botar na máquina a louça né, passar pano na cozinha, ajeitar tudo, estender roupa, botar roupa na máquina e estender, tudo isso tem que fazer. (Fernanda, entrevista pessoal, abril de 2014)

Mesmo que realize várias atividades fixas e, por isso, repetidas todos os dias, seu cotidiano de trabalho é organizado a cada dia de forma diferente, com certa flexibilidade. Como realiza seu trabalho durante os 5 dias da semana, em uma mesma residência, pode distribuir diversas atividades em diferentes momentos ao longo dos dias, levando em consideração, também, a agenda da própria família para quem presta serviço.

No apartamento onde Fernanda trabalha, moram sua empregadora, o marido e suas 3 filhas, de 3, 5 e 13 anos de idade. Assim, além das tarefas relacionadas a limpeza, organização e preparo de alimentos, também exerce o cuidado das 3 crianças:

Daí vou fazendo um pouquinho cada dia, porque tem as pequeninhas né, não dá para fazer a faxina tudo num dia, aí tem um dia que tu limpa os vidros, no outro tu limpa os banheiros, como ontem eu faxinei os banheiros, aí hoje eu fiz o resto, não dá pra fazer tudo num dia porque as duas ficam de manhã em casa comigo, e a M. e a T. brigam muito (Fernanda, entrevista pessoal, abril de 2014)

Como aponta Soratto (2006), “a presença de crianças também tem grande influência na quantidade de serviço da casa e no ritmo que precisa ser imposto à execução dos serviços” (p. 150). O cuidado no ambiente doméstico tem a finalidade de

Atender às necessidades humanas concretas, emocionais e psicológicas, pressupondo uma interação face a face entre quem cuida e quem é cuidado, em uma relação de interdependência, de suporte ao cuidado ou trabalhos de cotidiano, tais como a preparação da comida, a realização da limpeza da casa e o cuidado de pessoas. (Marcondes, 2014, p. 82)

A limpeza e a arrumação da casa, nessas ocasiões, são realizadas constantemente e nunca cessam, fazendo com que haja uma reorganização do trabalho ao longo do dia e um decorrente aumento da quantidade de trabalho para dar conta ao final da jornada, acentuado pelo tempo despendido às atividades de cuidado.

As emoções assumem papel central nesta convivência contínua e diária na residência de outra família e o cuidado com os membros da mesma envolvem uma intensa aproximação e intimidade, a qual extrapola os limites das relações de trabalho, denotando o caráter ambíguo das relações no cotidiano laboral.

Nesse sentido, Leny Sato e Fabio Oliveira (2008) apontam a complexidade em gerir o cotidiano de trabalho, em que os trabalhadores não apenas executam mecanicamente o que lhes foi prescrito e agem de acordo com sua “a interpretação de regras, segundo suas próprias avaliações e buscam resolver os problemas que se apresentam dia após dia” (Sato & Oliveira, p. 194). No caso de Fernanda, gerenciar o cotidiano implica um contínuo exercício emocional e uma constante negociação entre as diferentes pessoas envolvidas e se revela para além da prescrição e obediência:

Aí adianto o almoço, vou arrumar as camas e depois eu volto para acabar o almoço, vou fazendo o almoço e vou fazendo o serviço da casa assim, daí de tudo faço um pouquinho né, daí a pequena fica junto e tenho que olhar ela né (Fernanda, entrevista pessoal, abril de 2014)

As demandas de trabalho e cuidado se intensificam na presença das crianças, o que faz com que Fernanda passe a manhã em função delas, atrasando as demais atividades. Dessa forma percebemos que a dinâmica e características da família definem a quantidade e tipos de serviços e, também, o ritmo com que serão realizados. Em dias corridos “a jornada pode ser ocupada de forma ininterrupta e em ritmo acelerado, o que significa ficar em pé e em movimento o tempo inteiro” (Soratto, 2006, p. 152).

O tempo é curto para fazer tudo e tem muita coisa para fazer no dia, eu não sento, das sete e meia da manhã às quatro da tarde eu não sento, para almoçar é bem rapidinho ali, come e já joga a louça na pia, já tem que ir correndo fazer as coisas porque não dá tempo de terminar [...] só na pia é duas três horas que tu fica lá na cozinha, tem um monte de panela, que não vai na máquina, vai só os pratos, tem fogão para arear, roupa para recolher e outra para tu dobrar e estender, já tem roupa para ti passar, então é muita coisa. E o dia eu acho muita correria, porque tem as crianças também, quando elas não tão, dão uma saída com a mãe, ah eu adianto muita coisa, aí é bem rapidinho né, porque daí elas não tão (Fernanda, entrevista pessoal, abril de 2014)

A dinâmica e movimentação da casa é mais intensa quando seus membros se encontram presentes, pois estes demandam o atendimento imediato de suas necessidades, principalmente quando há crianças, acumulando as novas tarefas às que já estavam previamente definidas, o que acelera o ritmo de trabalho e configura um esquema menos flexível de distribuição dos serviços (Soratto, 2006). Tais aspectos apontados por Fernanda evidenciam a quantidade e a proporção das demandas as quais devem ser atendidas, exigindo um prolongado trabalho emocional acentuado pelo cansaço físico.

Além do trabalho fixo em uma residência, toda quinta feira após o expediente, Fernanda trabalha como faxineira em dois outros apartamentos do mesmo prédio, intercalando de 15 em 15 dias um local e outro.

Então, eu entro sete e meia e saio as quatro, daqui eu vou pra outro serviço, não tem horário de sair, porque como eu já entro as quatro, fico até terminar. É aqui mesmo [...] Mas faz a mesma coisa, só que lá tu faz tudo num dia, aqui tu tem direito de todo dia fazer um pouco de cada, não precisa fazer tudo. Só tens que fazer todo dia o almoço, passar pano todo dia, mas fazer uma faxina como diarista é diferente, chega lá tu faz tudo, tudo, tudo, só não faz almoço, mas tu passa roupa, faz tudo (Fernanda, entrevista pessoal, abril de 2014)

Podemos identificar diferenças em relação às atividades realizadas por Fernanda no local fixo e no trabalho de diarista. No local fixo, como vimos acima, Fernanda intercala atividades de cuidado com as demais tarefas e tem certa flexibilidade e autonomia para a organizar seu cotidiano de trabalho, podendo separar determinadas atividades por dias da semana. Já no trabalho como diarista, tudo deve ser feito em apenas um período curto de tempo e não há atividades relacionadas ao cuidado e ao preparo de refeições, o que implica em menor vinculação emocional com os contratantes do que a observada nas relações estabelecidas na residência onde atua como mensalista, situação também observada por Coutinho et al. (2014), ao compararem diaristas e mensalistas.

Em relação ao trabalho de diarista, Fernanda enfatiza o quanto é desgastante: “é de chegar em casa e as costas estarem ardendo”. Nesse sentido, outros estudos apontam o serviço de faxina como sendo um trabalho mais cansativo e como uma atividade de limpeza mais pesada, “que demandam mais esforço físico, como limpar janelas, banheiros, vidros e tapetes” (Machado, 2014, p. 62). Para Soratto (2006), mesmo realizado em boas condições, “os serviços domésticos não poupam o corpo, pela própria natureza das atividades, que sempre demandam algum tipo de esforço físico para a sua realização” (p. 158).

Apesar de mencionar certa flexibilidade em sua rotina semanal, a repetição em suas tarefas é enfatizada a todo momento por Fernanda: “Todo dia quase mesma coisa. Não muda. Serviço doméstico não muda”; “Mas é bem isso que eu falei para vocês, não posso contar diferente, porque é todo dia a mesma coisa”; o que confere o caráter de cristalização e repetitividade no trabalho doméstico tanto remunerado quanto não remunerado. Para Machado (2014), essa percepção de repetição do trabalho doméstico “é reforçada pelo fato de que as tarefas não se esgotam nas casas de suas patroas: chegando nas suas casas, elas têm que cuidar novamente de tarefas domésticas e de sua família” (Machado, 2014, p. 70).

Após o expediente de trabalho, Fernanda vai para sua casa, onde as tarefas domésticas se repetem, como podemos perceber em sua fala:

É a mesma rotina que eu tenho aqui, não gostaria de chegar e fazer tudo o que eu faço que eu tô morta de cansada, vontade de sentar, porque depois que eu sento eu não tenho vontade de levantar de tão cansada, aí eu chego em casa, eles não lavam a louça aí eu lavo a louça, as vezes o banheiro tá para faxinar e eu vou lá e faxino, a casa tá para varrer e eu já varro, a roupa tá jogada pelo chão e já junto e boto lá no cesto, aí eu pego e faço tudo, faço aquela limpeza geral assim né. Aí quando eu olho já são onze horas, a hora passou assim, daí eu vou correr para tomar um banho e dormir, e eu não vi a hora passar, trabalho tanto que não vejo a hora passar (Fernanda, entrevista pessoal, abril de 2014)

Maria Betânia Ávila e Verônica Ferreira (2014) ressaltam serem as mulheres “as principais realizadoras das inadiáveis, incessantes, repetitivas e incontornáveis” (p. 23) tarefas domésticas. A dupla jornada, no caso das trabalhadoras domésticas, significa mais um turno da mesma atividade realizada em seu trabalho remunerado (Soratto, 2006). Repetição e sobrecarga evidenciadas na fala da entrevistada:

Olha, descanso? Eu não falei para vocês, mas sábado e domingo são os dias que eu mais trabalho em casa, eu não paro, porque eu vou organizar os guarda-roupas, entendesse? Porque dai tá uma bagunça, vou dobrar roupa, vou tirar roupa, vou ver se tem roupa para lavar, aí vou lá no quarto da menina, vou ajeitar, vou perguntar se tem roupa para lavar, então eu não paro, minha nora que diz, para minha sogra, deita um pouquinho, ah mas é os dias que eu tenho para ajeitar as coisas, não dá. Ah eu vou e passo pano, varro, ai as vezes o marido tá em casa daí suja muita louça, agora já tá mais comportado de tanto eu pegar no pé (Fernanda, entrevista pessoal, abril de 2014)

Fernanda ressaltou que seu marido não a ajuda com as tarefas domésticas da casa, e em relação ao sustento da família, apesar de corresponsável, contribui menos, revelando uma sobrecarga no cotidiano de Fernanda. Segundo Ávila e Ferreira (2014), a divisão sexual do trabalho pode ser identificada no interior da esfera do trabalho reprodutivo por meio da distribuição desigual de trabalho entre mulheres e homens em suas casas. Além disso, como aponta Machado (2014):

É hábito entre as mulheres ouvidas na etapa qualitativa fazer o que é considerado mais urgente e simples durante a semana (o “tapinha”) e usar os finais de semana não como um momento de descanso do trabalho remunerado, mas como o momento para realizar as tarefas que não foram exercidas durante a semana (a “faxina”) (Machado, 2014, p. 62)

Ainda, como forma de complementar sua renda mensal e contribuir mais para o sustento da família, Fernanda vende alguns produtos de beleza e higiene, prática essa também realizada por algumas trabalhadoras domésticas entrevistadas por Coutinho et al. (2013).

Em meio a um cotidiano constituído por diversas atividades de trabalho, cristalizadas e aceleradas, remuneradas ou não, a rotina de Fernanda se apresenta extremamente cansativa e evidencia a multiplicidade de tarefas com as quais ela está comprometida. Porém, é nesse tempo/espaço que conseguimos identificar algumas táticas certeaurianas (Certeau, 1998). Um exemplo de tática foi usado na relação com relação à filha mais velha da empregadora, de 13 anos, a qual passou a ir junto com sua mãe para o trabalho, pois a difícil relação com a menina atrapalhava o trabalho de Fernanda.

Não, a mãe dela leva ela porque ela é muito malcriada, a gente não se dá muito certo, ela me enfrenta entendesse? Aí a mãe dela leva ela, também porque muita coisa errada que ela faz, com as irmãs, ela estraga os brinquedos das irmãs, ela pinta, corta os cabelos das bonecas das irmãs, então a mãe dela leva ela para ela não ficar em casa aprontando (Fernanda, entrevista pessoal, abril de 2014)

Nesse sentido, houve uma negociação entre Fernanda e sua empregadora. A tática usada por ela foi a de ressaltar o quanto a presença da menina em casa acabava por atrasar e, às vezes, até impedir a realização de tarefas relativas ao trabalho de limpeza e organização da casa. Fernanda jogou naquele instante a partir do seu não-lugar, usou de astúcia no tempo/espaço do outro - a casa de sua patroa - e aproveitou a reclamação da mesma para justificar a necessidade dela retirar sua filha de casa no período da tarde; assegurando a possibilidade de fazer do seu modo, se re-apropriando do espaço, uma “arte do fraco”, uma “ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio” (Certeau, 1998, p. 100). Por fim, nos parece interessante destacar o quanto a presença de crianças no cotidiano de trabalho marca também o aparecimento de algumas emoções mais positivadas em relação à atribuição de sentidos ao trabalho doméstico, evidenciadas no último núcleo de significação, apresentado a seguir.

5.4 Sentidos atribuídos ao trabalho doméstico

De acordo com Diogo (2005, p. 59), o trabalho feminino se caracteriza pela “descontinuidade da inserção no mercado de trabalho; a desvalorização cultural e a segregação ocupacional; a baixa qualificação; a grande presença feminina em postos de trabalho vulneráveis e o maior índice de desemprego”. Além disso, é marcado por uma sobrecarga, pois a maioria das mulheres possui o trabalho remunerado e o não remunerado, ou seja, aquele executado dentro das suas próprias casas.

Fernanda relatou contar com a participação dos filhos nas atividades domésticas em sua casa, porém ela mesma é a principal encarregada pelos afazeres domésticos em sua própria residência. Apesar das críticas de seu marido, procurava incentivar a participação dos filhos homens no trabalho doméstico.

Até o mais pequeno e a outra, todos eles, fazem tudo, um lava a louça, outro arruma cama, varre a casa, passa pano, e meu marido não concorda, diz que ele pode “virar fruta”. Ele não vai virar, porque quando ele for morar sozinho, for independente, vai fazer tudo sozinho, não vai precisar pedir pra alguém fazer pra ele ou deixar tudo sujo, ele já sabe. Então, acho que não tem que ser só mulher trabalhar de serviço doméstico, homem também pode e deve (Fernanda, entrevista pessoal, abril de 2014)

No discurso da entrevistada observamos o questionamento da naturalização do trabalho doméstico como atributo feminino e sua tentativa de ensinar aos filhos que este trabalho é responsabilidade de qualquer pessoa e independe de gênero. Entretanto, como foi evidenciado em outra fala apresentada anteriormente, ao chegar em casa Fernanda ainda precisa dar conta dos afazeres domésticos. Isto reforça o quanto, ainda hoje, as mulheres são responsabilizadas por grande parte das atividades na esfera do lar.

O trabalho doméstico carrega um peso de desvalorização social e econômico mais elevado do que o observado em outras ocupações femininas. Soratto (2006) aponta como possíveis motivos: a falta de status deste serviço na economia, por não ser considerado lucrativo; aspectos da atividade em si; confusão do público e privado; diferenças das classes sociais entre a prestadora de serviço e a empregadora; a imagem de trabalho pouco qualificado, o qual não seria requerido um conhecimento prévio; além do fato de o trabalho doméstico remeter ao trabalho servil, escravo, aquele que é degradante. Alguns trechos da fala da entrevistada evidenciam como significou a desvalorização pelo empregador e lidou com a vivência de humilhação no trabalho:

Já trabalhei em casa que foi muito ruim, da mulher querer me humilhar na frente dos outros, ai eu sai. [...] Ela me humilhou, disse que se eu não tivesse uma empregada para limpar, ela fez ali como se fosse uma escrava, ai na hora eu disse, eu sinto muito, eu tô cheia de conta pra pagar, mas eu prefiro me virar e trabalhar em outro lugar, eu sou muito honesta e vou sair, e saí. (Fernanda, entrevista pessoal, abril de 2014)

Fernanda relata o que Girard-Nunes e Silva (2013) apontaram quando por uma situação de humilhação essa proximidade mediada pela afetividade é desfeita e “o empregador coloca o empregado de volta em sua posição e reassume seu papel hierárquico superior” (Girard-Nunes & Silva, 2013, p. 599). As relações de confiança e “amizade” anteriormente construídas passam a não mais vigorar, marcando os lugares sociais entre empregadas domésticas e suas empregadoras.

Além disso, em sua fala, Fernanda nos revela o desejo por uma mudança de emprego.

É como eu te falei, se eu soubesse ler e escrever, e tivesse mais estudo, com certeza que eu tinha vontade. [...] Eu não tenho assim, tanta escolha, como falei pra vocês, tinha vontade de não trabalhar assim, não é um serviço que eu não goste, é um serviço que como vou falar pra vocês, que é enjoado, serviço muito mandado, queria ser independente, queria ter o meu serviço, meu próprio negócio. (Fernanda, entrevista pessoal, abril de 2014)

Foi possível observar ambiguidades no discurso da entrevistada sobre os sentidos do trabalho doméstico. Primeiramente relata que é um “serviço bom”, mas logo surgem termos depreciativos como “muito pesado” e “muito ruim”. Essas ambiguidades se evidenciam ao avaliar seu trabalho: “Eu acho que empregada doméstica é um serviço bom, não é ruim, mas só que é muito cansativo, muito pesado, muito ruim, assim, eu gosto de trabalhar, mas acho muito cansativo” (Fernanda).

Para Fernanda o trabalho doméstico constitui sua principal fonte de sustento e oferece segurança financeira. Em pesquisa realizada por Coutinho et al. (2013), com trabalhadoras domésticas sem vínculo formal, o sentido de trabalho também é relacionado ao sustento material, indicado como uma característica do capitalismo, no qual o trabalho é visto apenas como uma forma de sobrevivência.

Importante é que tu trabalha e no final do mês tu recebe né, que é importante, tu tem bastante conta e dívida pra pagar, isso é muito bom, tu trabalhar e chegar no fim do mês e receber teu salário, isso é bom (Fernanda, entrevista pessoal, abril de 2014)

Luciana C. Barbosa (2013) discute que as atividades domésticas são historicamente desvalorizadas e não reconhecidas como trabalho pela sociedade, o que está relacionado às questões de gênero, etnia e classe social. Podemos conferir na fala de Fernanda uma queixa devido à falta de visibilidade e reconhecimento do seu trabalho, o qual não é estimado da maneira que deseja pelos outros.

É que tu limpa e às vezes tu acha que a pessoa vai lá e não dá valor aquela limpeza que tu fez, dai eu fico chateada, eu discuto isso, que eu acho que se tu passou tanto tempo pra limpar e a pessoa vai lá e suja, isso é ruim, não te deu valor aquilo que tu deixou o quarto brilhando, isso que eu fico chateada. (Fernanda, entrevista pessoal, abril de 2014)

Bandeira e Melo (2013) nos ajudam na reflexão quanto à invisibilidade dos serviços domésticos ao questionarem as razões de a “empregada doméstica”, historicamente, não ter sido incorporada pela legislação trabalhista. “A resposta remete, com certeza, a recuperar, a desigualdade que ao longo do tempo tem cercado o serviço doméstico remunerado que caminha junto com a inferioridade consagrada ao papel feminino” (p. 40).

Um fato narrado pela entrevistada ajuda a confirmar a invisibilidade deste tipo de serviço. Fernanda contou-nos que só conseguiu obter um pouco de reconhecimento do seu trabalho quando ameaçou sair do emprego atual, ocorrendo uma mudança de atitude pelas pessoas que usufruem de seu trabalho. Somente após essa ameaça, seus empregadores passaram a valorizar seu serviço e a colaborar com ele.

Eu vejo que as pessoas assim, ajudam a manter, ajudam a cuidar, entendesse? No começo até era diferente, mas de um tempo pra cá eu comecei a querer sair porque tava muito cansada, ai começou a mudar, eu também comecei a falar, que todo mundo tinha que colaborar, porque se não, não dava né, porque é pesado, não é fácil trabalhar de doméstica. (Fernanda, entrevista pessoal, abril de 2014)

Concordamos com Soratto (2006) ao mencionar a ideia de reconhecimento, a partir de Christophe Dejours. Para este autor, a importância do reconhecimento se dá no momento em que o trabalho realizado se torna concreto e visível e, assim, apresenta-se útil para quem se propõe (Dejours, 2004). Por meio desse processo se confere pertencimento àquele/a que o faz e assim se torna possível o respeito e a manutenção da relação de ambas as partes, evidenciando novamente o papel importante das relações afetivas nesse contexto de trabalho. Nos serviços domésticos, fica evidente a necessidade do reconhecimento, devido ao esforço físico e emocional despendido, mesmo que o produto do trabalho seja consumido rapidamente. Também podemos interpretar essa “ameaça” de Fernanda enquanto uma prática astuciosa na intenção de obter o auxílio quanto à manutenção da limpeza da casa pelos próprios ocupantes dessa unidade familiar.

A construção de vínculos afetivos é essencial e surge como uma necessidade, seja de manter uma ligação afetiva ou mesmo de expressar os sentimentos. De acordo com Soratto (2006) a convivência cotidiana com as pessoas do ambiente de trabalho cria laços afetivos principalmente com as crianças, pois são as que permanecem em maior contato com as trabalhadoras. Como mencionado, Brites e Picanço (2014) também problematizam a questão da “ambiguidade afetiva”.

Como podemos ver na fala de Fernanda, quando é questionada se gosta de seu trabalho, o que se destaca não é a atividade em si, mas a relação que possui com a criança mais nova da casa, de quem cuida desde seu nascimento:

Ah como é que eu vou te dizer, é gostoso, eu gosto de todo mundo na casa, eu amo a pequeninha, eu criei ela desde bebezinha, adoro ela. [...] ela também me adora, então é um amor, sinto assim uma paixão por ela” (Fernanda, entrevista pessoal, abril de 2014)

Conforme Brites (2007) uma interrupção quanto ao trabalho doméstico pode representar uma grande perda afetiva para as trabalhadoras, uma vez que há apego e afeto entre estas e as famílias para quem prestam serviços, principalmente entre as crianças de quem cuidam.

Ao analisarmos seu cotidiano de trabalho, identificamos uma pluralidade de emoções ambíguas. Quando fala dos sentidos do trabalho e das atividades que realiza, utiliza termos como “cansativo”, “pesado” e “ruim”, em contrapartida, quando descreve sua relação com a criança mais nova que cuida, usa palavras como “gostoso”, “amor”, “paixão”. O trabalho doméstico cansativo e desvalorizado pelos outros, o forte vínculo afetivo com a filha mais nova dos empregadores faz com que Fernanda continue no atual emprego, o que revela a grande importância do afeto na realização e permanência em seu trabalho e o quanto razão e emoção se articulam.

6 Considerações finais

O presente texto buscou apresentar a história de vida de uma trabalhadora doméstica constituída por importantes laços afetivos. Por meio do entendimento de sua trajetória, suas práticas cotidianas e os sentidos atribuídos ao trabalho, foi possível identificar a importância das emoções no contexto do trabalho doméstico.

Para além dos aspectos teóricos tratados vastamente pela literatura sobre tema, foi possível perceber o quanto as práticas astuciosas de Fernanda auxiliam a negociar tarefas com seus/suas empregadores/as, proporcionando um certo controle sobre seu trabalho. Ao produzir sentidos relacionados ao trabalho, Fernanda articula razão e emoção, pois é por meio das táticas que ela se posiciona nessa relação de suposta “amizade”, usando tanto a razão quanto as emoções para negociar com seus empregadores.

As ambiguidades dos sentidos atribuídos ao trabalho revelam a complexidade das emoções presentes no cotidiano de Fernanda. Ao executar atividades na privacidade das residências de seus empregadores as trabalhadoras domésticas recebem demandas muito além da obediência e da execução de tarefas mecânicas, são requeridas relações de confiança e intimidade e, até mesmo, sentimentos de amor e carinho pelo outro. Ademais, Fernanda precisa estar em constante movimento para que a manutenção dessa relação afetiva tão próxima também a favoreça e, talvez, possa exercer algum controle sobre ela. Essa complexidade reitera o uso da leitura de Vigotsky, entre outros autores/as que se coadunam com essa concepção, para uma melhor compreensão da função das emoções no cotidiano dos serviços domésticos.

Identificamos o quanto razão e emoção se articulam quando Fernanda reconhece a humilhação, invisibilidade, desvalorização e o peso negativo do trabalho doméstico, fatores que a levam a refletir sobre a continuidade neste serviço. Por outro lado, as boas emoções vivenciadas cotidianamente, expressamente no cuidado de crianças, fazem com que Fernanda permaneça em seu labor. Nesse sentido percebemos o quanto as emoções, enquanto função psicológica superior aprendidas historicamente, “assumem um papel ativo, que desencadeia ações e não somente são desencadeadas por elas” (Machado, Facci & Barroco, 2011, pp. 649-650).

Do ponto de vista metodológico cabe destacar a riqueza e legitimidade do uso do método de história de vida, por meio do qual abriu-se espaço para que nossa interlocutora rememorasse experiências significativas e emoções associadas, pois “A memória é um cabedal infinito do qual só registramos um fragmento” (Bosi, 1987, p. 3). A articulação das entrevistas com ferramentas complementares, como a Trajetória Sócio-Profissional e a Agenda Colorida, também contribuem para evidenciar as mediações afetivas presentes na vida cotidiana de trabalhadoras domésticas. Como sugestões para futuras investigações, recomendamos o uso de abordagens metodológicas similares em outros contextos laborais.

Na introdução assinalamos o quanto as mudanças no contexto latino-americano se fazem ao lado da persistência de formas tradicionais de trabalho como o trabalho doméstico. Persistem as desigualdades de gênero, geração, classe, entre outras; evidenciadas na história de Fernanda, uma mulher trabalhadora, de baixa escolaridade, cuja ocupação como empregada doméstica se colocou como única possibilidade, do mesmo modo que outras mulheres com a mesma ocupação, pois a necessidade de trabalhar desde a infância e a impossibilidade de frequentar a escola foi um aspecto determinante de sua história.

Ressalta-se aqui a importância da continuidade de pesquisas centradas em formas tradicionais de trabalho na América Latina, evidenciando seus modos de ser e se emocionar no cotidiano de trabalho.

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