Por uma político-ética da narratividade no mercado de carnes

Narrative, Ethics and Politics in the Meat Market

  • Michele de Freitas Faria de Vasconcelos
  • Fernando Seffner
Apresentamos neste texto parte das produções de pesquisa que acompanhou a construção de corpos inseridos num Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e outras Drogas, em cidade do nordeste brasileiro, focando de modo mais acentuado em arranjos de masculinidades. Especial atenção é dada à tensão entre normalização de corpos e tentativas de (re)existências. A argumentação se desenvolve no campo da saúde pública, em particular o da saúde mental, e alicerçada nos estudos de gênero e sexualidade. A produção de dados se valeu de observações registradas em diário de campo, acompanhamento itinerante, composição de um coletivo de pesquisa, entrevistas, grupos focais em que, dentre outras coisas, se discutia trechos de diários de campo, rodas de conversa e oficinas com profissionais e usuári*s. A aposta metodológica foi a de forjar um modo de narrar coletivo que agenciasse experimentação e desaprendizagens corporais, junto a modos de produzir cuidado em saúde e de fazer pesquisa.
    Palavras chave:
  • Corpos
  • Masculinidades
  • Cuidado em Saúde Mental (Álcool e outras Drogas)
  • Narratividade
The paper presents part of the research productions that accompanied the construction of bodies inserted in a Psychosocial Care Center for Alcohol and Other Drugs (CAPS-AD) of a city in the northern region of Brasil, focusing more sharply on masculinities arrangements. Special attention is given to the tension between normalized bodies and attempts at resistance and (re) exist. The argument is in the field of public health, particularly mental health, and rooted in gender and sexuality studies. The data production methodology made use of observations recorded in a diary, itinerant follow-up of a collective of research, interviews, focus groups where, among other things, was discussed diary topics, conversation circles and workshops. The attempt was to produce a way of collective narrating strategy, combining up experience and body (un)learn well as ways of producing health care and doing research.
    Keywords:
  • Bodies
  • Masculinities
  • Mental Health Care (Alcohol and other Drugs)
  • Narrative

1 Nossos (des)caminhos e nossos (des)propósitos acadêmico-políticos

Um corpo não cessa de ser submetido aos encontros, com a luz, o oxigênio, os alimentos, os sons e as palavras cortantes ― um corpo é primeiramente encontro com outros corpos.

(Pelbart, 2003, p. 46)

Iniciamos seguindo a pista 8 do livro Pistas do Método da Cartografia. Nela, Eduardo Passos e Regina Benevides (2009) definem como “política da narratividade” um problema metodológico fundamental: “no trabalho da pesquisa em saúde e da clínica, é sempre de narrativas que tratamos” (p. 150). Seguem afirmando que toda prática de saúde dá-se pelo que se expressa no encontro entre sujeitos, nós diríamos, no encontro entre corpos. Assim, quando tomamos o (des)encontro entre corpos como problema de pesquisa, narrar essa expressão é um desafio, sobretudo, quando entendemos que rigor ético diz respeito à exigência de, com a pesquisa, produzir espaços coletivos de análise-interferência em práticas de saúde.

Com a pesquisa, tateamos, pois, um exercício ético que possibilite transpor o limite de uma inclusão social restrita apenas à repetição do condicionado pela sociedade da qual “se faz parte”, uma ética “que possui em sua emergência a força de uma conspiração, da invenção de um pouco de possível em um mundo do qual se procura regular/gerenciar a vida na forma de uma mortífera ordem” (Rodrigues, 2009, p. 205). Na tentativa de reposicionar o intolerável, parece ser preciso exercitar uma atenção e um modo de narrar que, vez por outra, forje-se no perigo dos encontros com o imprevisível, atenção a movimentos que não se deixam iluminar e identificar, narração do que não se deixa nominar. Atenção “à voz ainda não dita, à matéria informe, aos gestos sem mensagem a enviar que habitam a escuridão do anonimato” (Baptista, 2010, p. 104). Em vez de ansiar por verdades claras e narrativas finalizadas, experimentar narrar bem ali no encontro com corpos que se tecem no escuro fascinante da noite,1 onde as vidas não se deixam dizer, pesquisar a noite dos corpos:

Na noite, esboços de imagens, prenúncios de experimentações do existir são incansavelmente criados por lutas invisíveis porque a vida não as dá sossego. Essas lutas podem ser vistas no corpo que pulsa sem dono, nos rastros de uma ausência, no gesto suspenso por êxtase ou dor, nas frases cortadas pelo espanto, ou nas narrativas interrompidas por falta de ar. São enfrentamentos noturnos nos quais nada se acomoda em geografias imóveis ou no tempo pacífico dos calendários. Neste espaço, onde a forma de algo vivo se faz no desassossego, a violência do encerramento de qualquer história é inexistente. Ali, entre sombras e escuridão, a felicidade e a barbárie desconhecem um

único formato e a palavra derradeira. Imagem e forma ignoram a perenidade da essência, assim como a função de representar ou evocar alguma coisa. Neste território noturno, a estética é inseparável de uma ética. Nada está terminado e ninguém, humano ou inumano, ousa dizer, sou ou não sou. (Baptista, 2010, p. 105)

Ética noturna “do inacabamento de existências” (Baptista, 2010, p. 104). Ética como um exercício de experimentação de um ir dando forma à vida, como exercício crítico do instituído e como experiência de crise das formas vigentes. Esse texto discorre sobre a montagem de uma político-ética da narratividade em pesquisa cujo objetivo foi o de encontrar a noite de práticas de cuidado em álcool e outras drogas, a noite de corpos de usuári*s2 de CAPS-AD,3 de corpos de profissionais, a noite do corpo do cuidado, a noite do corpo da pesquisa e da escrita. Encontrar a noite, aquele espaço em que o corpo se verga, resiste ao exercício de um poder que intenta reiteradamente marcá-lo, delimitá-lo, extrair sua força para alimentar-se, (re)existe.

A busca é por zonas em que se abre a possibilidade de experimentação de um corpo “estranho” ― queer ― vibrátil, lama úmida, que brota lentamente a remexer, com lentidão insuportável, raízes identitárias (Lispector, 2009; Louro, 2004). No CAPS-AD rastreamos trajetos corporais em ensaios existenciais, seguimos linhas que compõem uma resistência ativa, a qual diz respeito à potência dos corpos, sua capacidade de diferir, de contagiar, de produzir alianças, de fabular mundos bem ali no seio desse momento histórico-político de segregação, homogeneização e “perda-de-mundo” (Pelbart, 2003).

Nosso trabalho foi sendo tecido por entre o objetivo de agrupar o que se repete, aqueles pontos de saturação das falas, essas que costumam dizer do terreno do instituído e o exercício de uma “atenção flutuante” (Kastrup, 2009), que rastreia as denominadas “falas dispersas” (Ferreri & Nobre, 2010), gestos e paisagens corporais “dispersos”, ali onde explodem singularidades e singularizações. Este é o demorado movimento: pinçar gestos, vozes, falas que vão construindo junto com o percurso teórico um certo plano de análise por meio do qual se produzam coletivamente narrativas singulares e não finalizadas, respostas circunstanciais, provisórias e parciais para os objetivos propostos e, sobretudo, perguntas, mesmo que muitas não sejam respondidas, pelo menos não agora, não aqui. Perguntar é onde tudo começa e não se finaliza, perguntar abre caminhos e estilhaça certezas claras e razoáveis, ao estilo de Judith Butler.4

Desse percurso “zigue-zagueante” destacamos elementos do processo de feitura dessa político-ética da narratividade: 1) ratificação do entendimento d*s informantes e suas narrativas como participando do processo de construção das linhas de análise. Ou seja, produção de uma reflexividade coletiva e não focalizada n* pesquisador*; 2) a descrição não é de paisagens estáveis, mas de terrenos de análise instáveis e belicosos, bem ali entre o corpo formatado e sua capacidade de gênese, como que compondo uma imagem em movimento. Utilizamos o artifício da montagem de cenas, pinçadas por entre o cotidiano do funcionamento de um CAPS-AD, na medida em que essas parecem trazer a força desse discorrer processual da pesquisa; e 3) aliança com outras linguagens que não só as ditas ‘científicas’, na tentativa de forjar um corpo de sustentação para essa experimentação de encontros que forçam a diferir, em zonas de risco entre o mortífero e o embrionário (Pelbart, 2004).

A essa altura, parece caber alguns dados do “campo” de pesquisa. Escrevemos de um lugar, e com descrições e análises fruto de procedimentos metodológicos que não se furtam à aproximação e ao contágio. Acompanhando o cenário nacional, com a municipalização do sistema de saúde no início do ano dois mil, deu-se um movimento de substituição do modelo asilar, com fechamento de hospícios, hospitais e clínicas psiquiátricas e de conformação de um novo modelo assistencial, centrado na implantação de Centros de Atenção Psicossociais (CAPS).

Nessa direção, os CAPS foram preconizados pelo Ministério da Saúde para garantirem um cuidado de base territorial e comunitária, funcionando como organizadores das redes municipais de atenção em saúde mental. Em nosso caso, um CAPS para pessoas com necessidades decorrentes de usos de álcool e outras drogas, CAPS AD. Até 2012, ano de finalização da pesquisa, o município dispunha de uma rede bem estruturada de serviços de saúde mental (diversos CAPS, com especializações diferentes, quatro residências terapêuticas, assistência ambulatorial, retaguarda de urgência mental e do Serviço Móvel de Urgência/SAMU).

Num levantamento realizado em agosto de 2007 pela coordenação junto a profissionais e a documentos (atas de reuniões técnicas, de reuniões de equipes de referência, prontuários, registros de acolhimento inicial) do CAPS AD pesquisado, tinha-se que: dos 187 usuári*s cadastrad*s, 174 eram homens e 13 mulheres, porcentagem de 93% e 7%, respectivamente. Ao longo dos cinco anos de inserção (2006, 2007, 2008, 2009 e 2012) foram observados conflitos de gênero e, principalmente, conflitos entre as pessoas que se reconhecem como pertencentes ao chamado “gênero masculino”: conflitos entre gerações; conflitos entre usuários5 de álcool e usuários de outras drogas, sendo que os primeiros costumam reproduzir uma postura preconceituosa face aos segundos: “eu bebo cachaça, mas não sou drogado”; conflitos decorrentes de diferenças/desigualdades no que se refere à sexualidade etc. Foram percebidas, ainda, dificuldades de inserção no serviço de jovens, mulheres, homossexuais e travestis.

A circulação, nos anos indicados, pelo local, permitiu dialogar com *s sujeit*s, com a equipe; acompanhar trajetórias de usuári*s dentro e fora de espaços institucionais, seguir suas trilhas pela cidade; permitiu um acompanhar o que faziam, como faziam, o que pensavam, com quem conviviam dentro e fora do espaço do CAPS ad, cartografar algumas linhas de territórios existenciais que iam sendo traçados; permitiu, enfim, habitar coletivamente, com a pesquisa, um território de vida (Alvarez & Passos, 2009).

2 O mercado de carnes e a carne que vai à mesa do capital

Cidade do nordeste brasileiro, muito sol, poucas árvores nas ruas, o que amplifica um calor que poderia se abrandar com a sombra e a brisa que vem do mar. Bairro perto da praia, afastado do centro, o que compromete o deslocamento de usuári*s para o serviço. Um amplo estacionamento, com algumas poucas arvorezinhas saindo de buracos no cimento, compõe a parte da frente da construção. Para entrar, um portão gradeado, de uns quatro metros de altura, coberto por tinta gasta que não encobre pontos de ferrugem, vai até o teto, situando-se bem à direita da parede, como se querendo não existir ali entrada ou pelo menos produzindo um desejo de ali não adentrar, ares carcerários. O ar pesa ainda mais por conta do pé direito extremamente alto da edificação, ares de gaiola. Logo à frente desse portão de ferro, outro portão similar. Entre os dois, um corredor ao lado esquerdo, onde se encontram uma portaria, um banheiro e alguns cômodos. Passando o segundo portão, tem-se um grande vão que lembra um galpão. Não fossem as telhas de Eternit e o calor nordestino que elas fazem amplificar, o pé direito alto e as paredes descascadas, sujas de poeira grudada e mofo, junto ao fedor de “limpeza malfeita”, combinado com os fortes odores que exalam das carnes, um azedo misturado com um nada leve toque de cheiro de produto de limpeza, esse enorme vão evitaria uma sensação de que se vai sufocar. No seu canto esquerdo, dois banheiros e, à sua frente, três mesas retangulares de mais ou menos três metros de comprimento por um de largura, feitas de azulejos brancos onde se costumava expor as carnes.

Em algum momento entre o fim dos anos 1980 e início dos 90, esse lugar foi fechado, sendo reativado em 2003. Nele, foram realizadas algumas poucas reformas, sobretudo referentes à instalação de salas construídas por meio de divisórias. Nesse espaço “reformado” já não se tratava mais do antigo mercado municipal de carnes, ali funcionara, até 2013, o CAPS-AD. De antigo mercado de carnes a serviço de saúde mental, carnes continuavam expostas nas mesmas mesas de azulejos brancos. Carnes não mais de gado abatido para o consumo humano. Carnes, agora, humanas em exposição, abatidas pelo mercado de consumo. Carne humana? De que “espécie”? Humanos? As carnes expostas já não eram as mesmas, embora o espaço utilizado continuasse o sendo. A respeito dessa transmutação da destinação do lugar e das carnes ali em exposição, destaquem-se os seguintes fragmentos de fala pinçados de campo de pesquisa (Vasconcelos, 2013):

Quando eu cheguei aqui, eu olhava pra isso aqui e eu tinha pavor, eu detestava. E assim, eu tinha uma rejeição muito grande a essas pessoas deitadas aí, porque pra mim era bem isso, era um bocado de gente. Isso aqui era, era um mercado de carne e é carne morta que vende em mercado. (...) Esses homens deitados na mesa que a gente sabe que costumava ser um mercado de carnes (...). E aí, quando eu vi, só consegui imaginar aqueles homens, carne, né? Pedaços de carne. (Trabalhadora do CAPS-AD, grupo focal com trabalhador*s, maio 2008)

“Homens deitados em cima do balcão”, “pedaços de carne” que ali, no CAPS-AD, põem-se à mostra. No balcão de azulejos brancos, essas carnes invisíveis (invisibilizadas) para muitos (por muito) de “nós” (em nós), são postas à luz. Para que alguma coisa de suas vidas chegasse até nós. Essas “vidas destinadas a passar por baixo de qualquer discurso e a desaparecer sem nunca terem sido faladas” (Foucault, 1977/2006, p. 207), ali deixam rastros: Josés Carlos, Joões Batistas, Paulos, Ananias, Roses, Adrianos... Vidas dessa gente da escuridão, que parece arriscá-las até o fio da navalha, e muitas vezes ultrapassando esse fio, para não sucumbir ao sonho luminoso do progresso contínuo, de um futuro que se faz desde sempre traçado em pormenores, mediante uma gestão calculada de todos os riscos, de um porvir estático, estatizado, mercantilizado, salpicado com pitadas de qualidade de vida. Vidas andarilhas, carnes-força em metamorfoses monstruosas, carnes que perderam a prudência e se lançaram na overdose de abrir-se a intensidades, carnes vivas em sofrimento, carnes maltrapilhas transmutam-se ali em corpos organizados.

Em cima das mesas brancas, conversando entre si, jogando cartas e dominó, dormindo, figuram corpos iluminados, nomeados, classificados, ordenados, catalogados, capturados por práticas “especialistas” que os apreendem numa série “sem fim” de etiquetações: usuário/as de drogas lícitas e/ou ilícitas; usuários/as do serviço; trabalhadores/as, vagabundos/as, a maioria esmagadora é de “vagabundos/as”, salvo os/as que antes “disso”, se aposentaram; usuários/as com residência fixa, moradores/as de rua; homens, mulheres; heterossexuais, homossexuais; velhos, adultos, alguns/umas poucos/as adolescentes; brancos/as, negro/as; classe média baixa, pobres, paupérrimos. Ricos/as parecem não se expor a essa mesa.

Práticas, inclusive discursivas, circulam naquele espaço, fazendo com que determinados aspectos desses corpos ― virtualidades ainda sem rosto (Veyne, 1982/2008) ― se convertam em marcadores sociais, que funcionam como definidores desses corpos, proibindo-lhes quaisquer nomadismos ou hibridações, tentando, obstinadamente, interceptá-los. Por meio do objetivo de organização desses corpos, o serviço CAPS parece articular-se a um outro mercado, ainda de carnes. Quem cuida desse mercado? Quem cuida da carne? Cuida para que(m)? Como a carne que se vendia outrora se transfigura na carne que se cuida agora? As carnes, o que elas buscam naquele mercado e naquela exposição? O que encontram entre os azulejos brancos? O que o branco desses mesmos azulejos conta dos “novos” cortes que ali se operam? Que espécie de luz aí se produz? Por que é tão importante que essas carnes sejam iluminadas e organizadas? O que vislumbramos nas práticas, discursivas e não discursivas, “onde a noite é sabotada por uma poderosa iluminação?” (Baptista, 2010, p. 105). Por que essas carnes, essas vidas, esses corpos infames ― que não existem senão pela necessidade de indicar o limite do humano, de marcá-los, inclusive discursivamente, de modo a torná-los indignos da memória humana ― tendem a ser “‘sufocados’ (como se sufoca um grito, um fogo, um animal); [qual] a razão pela qual se quis impedir com tanto zelo os pobres de espírito de passearem pelas estradas desconhecidas”, pela noite? (Foucault, 1977/2006, p. 205).

A biopolítica é entendida aqui como “governo da população pelo Estado, mediante a vigilância, o controle e a manipulação de algumas variáveis econômicas; a biopolítica é o governo econômico, que concebe e opera a população a partir de sua economicidade natural” (Farhi Neto, 2010, p. 183). Nesse contexto, pensemos com a figura 1, “o Estado entrega ao mercado, ou pelo menos divide com ele, a gestão dos aspectos biológicos da população ― entre outros, a saúde” (Farhi Neto, 2010, p. 183).

Imagen

Figura 1

Corpo Marcado

Nossas subjetividades, expressões corpóreas dos regimes de verdade deste tempo, parecem desejar o controle das funções e eficácias corporais. Para adiantar-se a possíveis males, descrições e prescrições contra os supostos perigos tendem a ser cada vez mais aceitas. Desse modo, operam-se mensurações dos males, cada vez mais numerosos, localizando-os no interior das carnes, no âmbito da fisiologia, da bioquímica, da genética. Sob esse registro, os sinais do perigo encontram-se escondidos num corpo que, se escavado, examinado, monitorado, revela-os. Em suas carnes encontram-se instaladas ameaças ao bem-estar da população. Tais ameaças e males são quase sempre descritos como resultantes dos desregramentos, dos excessos, dos vícios, das faltas. Trata-se de apresentar detalhadamente os perigos iminentes que se instalam nas comidas, nas bebidas, no cigarro, nas drogas e que acometerão os corpos que não se conformarem segundo as prescrições oferecidas pelo “Estado pedagogo” (Soares, 2009, p. 79).

Por meio da inscrição do corpo “numa moral do esforço” (Sant’anna, 2009), acredita-se ser possível desvencilhar-se de tais males. Tal moral indica um caminho seguro em direção à saúde perfeita como resultado de um estilo de vida ativo e de uma ocupação “sadia” do tempo livre. Na corrida pelo corpo são, vendem-se pacotes de prazeres comedidos e regrados, um mundo de prazeres não regulamentados passa a ser vigiado, dando lugar ao lazer e a uma “pedagogia do bem-estar”. Dessa forma, o corpo passa a ser entendido como “aquilo que precisa ser diariamente superado” (Sant’anna, 2009, p. 92). Regrando e submetendo suas condutas pelo princípio do empreendedorismo, os indivíduos que emergem nesse cenário são presas voluntárias6 de processos de subjetivação controlados flexivelmente pelo mercado (Duarte, 2009). O investimento é, então, na formação do capital humano.

Em nome do bem-estar da população, pedagogias (se) inscrevem (n)a carne dos indivíduos como uma espécie de antídoto aos perigos, preservando os contornos de um corpo sempre ameaçado que, ao despir-se de sua organização e regramento, pode se tornar vida infame. A cruzada dos empreendedores de si é a da modelação diária de seus corpos, esculpindo e limpando sua carne de todos os vícios. De acordo com Francisco Ortega (2008), “trata-se da formação de um sujeito que se autocontrola, autovigia e autogoverna”, o qual tem no corpo e na atividade de autoperitagem “a fonte básica de sua identidade” (p. 32).

Dessa forma, uma “polícia da vida” começa a se desenhar “quando cada cidadão está convocado a participar, cuidando dos vivos em sua área, das condutas de cada um. (...) Ser tolerante e responsável é o que se espera de cada um” (Passetti, 2011, p. 132). Aprofunda-se, assim, a vigilância do corpo e da saúde. Parece ser assim também que se reduz a pressão exercida sobre os serviços públicos, ao mesmo tempo em que segmentos populacionais inteiros – especialmente aqueles privados de todos os recursos e que precisariam da “proteção” e da assistência estatal – são abandonados à lógica do mercado e dos discursos de autoajuda bioidentitária do “autocontrole”, do “cada um por si”, do “só depende de você”, do “só você pode cuidar de si mesmo”.

Não condeno quem bebeu, tá entendendo? Porque eu sou alcoólatra também. Mas eu tou dizendo que tem controle sim. Agora é difícil, viu? Eu tou com 56 anos, é muito difícil. Não vou enganar nem a vocês nem a mim mesmo. Então, esse autocontrole depende também da pessoa. (usuário, grupo focal com usuári*s, janeiro de 2009)

Em nome da sobrevida, da segurança, da “qualidade” de vidas, prazeres diários como uso de álcool e outras drogas devem ser usufruídos com comedimento, seguindo bulas, inscritos no registro da escalada de corpos dopados rumo à felicidade, à atividade, ao bem-estar. Agora, basta a produtividade de “zumbis”-sobreviventes, de corpos que, pela participação, cindem-se entre o vivo e a invenção de vida: múltiplas modelagens de gestos, condutas e opiniões, corpos apenas vivos, enlatados que o capital consome.

3 A carniça

No mesmo momento em que se edifica o poder de “fazer viver e deixar morrer”, um poder que é exercido do lado da vida, que “é cada vez mais o direito de intervir para fazer viver, e na maneira de viver, e no ‘como’ da vida” (Foucault, 1975-76/1999, p. 295), um poder imbuído de dar forma à vida, de cuidá-la, de majorar suas forças, logo ali no limite de seu exercício, podem-se localizar paradoxos. Michel Foucault (1975-76/1999) pinça como exemplos a bomba atômica, a fabricação de vírus incontroláveis e universalmente destruidores para dimensionar o paradoxo incontornável que é o de um exercício de poder que é capaz de suprimir a própria vida para assegurá-la. A fim de garantir mais e melhores condições de sobrevivência a uma dada população, tem-se o contraponto da presença contínua e crescente da exigência da morte em massa: “as guerras já não se travam em nome do soberano a ser defendido; travam-se em nome da existência de todos; populações inteiras são levadas à destruição mútua em nome da necessidade de viver” (Foucault, 1976/2001, p. 129). Em outras palavras, os massacres se tornaram vitais para a gestão da vida e da sobrevivência dos corpos individuais e do corpo social. Tem-se, assim, “o excesso (...) do biopoder sobre o direito soberano” (Foucault, 1975-76/1999, p. 304), um excesso que aparece quando é dada a possibilidade humana técnica e política, não apenas de organizar a vida, mas de fazê-la proliferar e, no limite, suprimi-la. Mas como vai se exercer o direito de matar e a função de assassínio no interior do biopoder? Aqui, cabem as perguntas de Foucault:

Como um poder como este pode matar, se é verdade que se trata, essencialmente de aumentar a vida, de prolongar sua duração, de multiplicar suas possibilidades, de desviar seus acidentes ou então de compensar suas deficiências? Como nessas condições, é possível para um poder político matar, reclamar a morte, pedir a morte, mandar matar, dar a ordem de matar, expor à morte não só seus inimigos, mas mesmo seus próprios cidadãos? (Foucault, 1975-76/1999, p. 304).

O cuidado com a vida da população, seu incremento, não se separa, assim, da produção contínua da morte tanto no seu exterior como no seu interior: “são mortos legitimamente aqueles que constituem uma espécie de perigo biológico para os outros” (Foucault, 1976/2001, p. 130). Entendidos como entidades biológicas, os inimigos não são mais para serem derrotados, e sim exterminados. A chave para o exercício da face tanathos do biopoder foi, então, o racismo. O racismo é entendido como o meio pelo qual o Estado normalizador pode exercer o velho poder de matar do soberano. Para Foucault (1975-76/1999), o racismo assegura a função de morte na economia do biopoder, por meio da lógica de que “a morte dos outros é o fortalecimento da própria pessoa na medida em que ela é membro de (...) uma população, na medida em que se é elemento numa pluralidade unitária e viva” (p. 308). Ou seja, o biopoder funciona como um modo de inserir um corte no domínio da vida, o qual o poder se encarregou de gerir: um corte, uma defasagem no seio da população, uma fragmentação entre aqueles que devem viver e os que devem morrer:

‘Se você quer viver, é preciso que o outro morra’. (...). O racismo vai permitir estabelecer, entre a minha vida e a do outro, uma relação (...) do tipo biológico. (...) A morte do outro não é simplesmente minha vida, na medida em que seria minha segurança pessoal; a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura. (Foucault, 1975-76/1999, p. 305).

Redefinir-se e purificar-se, nem que para isso seja preciso produzir algumas vidas matáveis. Ressalte-se que, por matar, não se entende apenas o “assassínio direto” (Foucault, 1975-76/1999, p. 306): por tirar a vida, entende-se aqui expor à morte, multiplicar, para alguns/umas, o risco de morte. “Para fazer viver, para incrementar o cuidado purificador da vida, pode-se e, em algumas situações, permite-se deixar morrer” (Candiotto, 2011, p. 87). Em todo o caso, assassínios diretos não se configurariam em homicídio, já que se tratam de corpos matáveis, sobre os quais qualquer um pode exercer soberania, embora assassinatos aconteceram e acontecem: nas penitenciárias e nos hospitais psiquiátricos de ainda hoje, no cotidiano das ruas de nossas cidades. Por matar, entende-se, sobretudo, pequenos assassínios indiretos, abandonos: “banir determinados indivíduos no sentido de que, após abandonados, sejam suspendidas suas garantias previstas no ordenamento jurídico vigente. Abandonado, o indivíduo volta a ser capturado por quem o abandona a partir do exterior (ex capere) dos limites legais” (Candiotto, 2011, p. 96): forjam-se, assim, vidas nuas entregues à mercê de quem as abandona, ao mesmo tempo exclusas e inclusas, vidas dispensáveis e ao mesmo tempo capturáveis.

Em suas modulações contemporâneas, num momento em que a maioria dos corpos é dispensável por não ter poder/saber de consumo, o biopoder – valendo-se do dispositivo da soberania, por meio de mecanismos de vigilância, fiscalização e controle – seleciona corpos, criando modos de institucionalização segundo o duplo critério dos que se fará viver e os que se deixará morrer. Num limite, cotidianamente ultrapassado, até se matará. A vida nua que está em relação com tal dispositivo é proclamada sacra, hominis sacri,7 sem que disso se configure um homicídio: homem sacro é “aquele que o povo julgou por um delito; e não é lícito sacrificá-lo, porém, se alguém o mata, não será condenado por homicídio” (Agamben, 2002, p. 196). Vida insacrificável, porém exposta à morte. Eis novamente o paradoxo biopolítico: para multiplicar e purificar a vida daqueles/as em relação aos/às quais se deve fazer viver, deixar muit*s outr*s morrerem nos limites legais ou atuar de maneira homicida em estado de exceção, exercer o antigo direito soberano de matar. Em nome do cuidado com a vida, muitas são abandonadas e expostas à morte:

― O nosso amigo Maguila morreu um dia desses.

― Maguila morreu estagnado de álcool.

― De madrugada, morreu.

― De madrugada morreu. Porque a casa dele fica bem em frente [...] ao boneco.8

― Viu? O boneco são 18... 18 litros de álcool que o tenente tinha lá. Né brincadeira não.

― (...) Se abrir a torneirinha tá lá. Se a gente for agora, tá lá.

― Tá lá e ninguém paga nada. É 18 litros de álcool que o tenente lá da polícia bota.

― Bota todo dia.

― Ele que tá matando o povo.

― Fez uma promessa de nunca mais beber, que ele bebia muito, né? Aí por causa disso, tá pagando cachaça para todo mundo. (Usuários, grupo focal com usuári*s, maio de 2008)

Em outros termos, é possível que esse limite do qual depende a politização da vida biológica na ordem estatal tenha se alargado, passando a habitar o corpo biológico de cada um de nós, viventes. “A vida nua não está mais confinada a um lugar particular ou a uma categoria definida” (Agamben, 2002, p. 146). Acompanhando o movimento dessa linha de demarcação, uma das características da biopolítica contemporânea é a capacidade e necessidade de redefinição continuada do limiar que ao mesmo tempo articula e separa o que está dentro e o que está fora do que denominamos vida humana, digna de ser vivida. Uma vez que a vida nua, vida matável, zona de indistinção entre o homem e o animal, está dentro da cidade e a penetra cada vez mais profundamente, a linha que delimita o que está dentro e o que está fora deve ser continuamente redesenhada, a fim de que se mantenha isolada a vida sacra. Há que se decidir quais serão os “novos” homens sacros. Policiamento, formação e tutela da população. Nesses nossos terrenos biopolíticos, a política parece converter-se em polícia: “preocupação com a vida em todos os seus aspectos” (Pelbart, 2003, p. 64).

Nesse registro, engendra-se um contexto de hiperprevenção em que as doenças que acometem o corpo e até mesmo a morte são entendidas como fracasso pessoal, reveladoras de desvios, dos excessos cometidos por um corpo que desrespeitou as regras, que se desviou do reto caminho da vida ativa rumo à saúde perfeita. Sua aparência física, bem carnal, aqui também desempenha um papel nessa exposição do mal:

A sociedade tem medo de encostar perto de um alcoólatra. (...) O mau hálito, entendeu (...) a fisionomia de um alcoólatra quando chega para procurar um emprego é uma imagem muito discriminada, porque a feição quebra o alcoólatra. E quando ele vai procurar emprego, geralmente as pessoas olham muito para isso. (Usuário, grupo focal com usuári*s, janeiro de 2009)

Os indivíduos que falharam na prevenção de riscos à saúde são, então, responsabilizados por suas doenças e culpabilizados por seus sofrimentos. Individualização, culpabilização, segregação e infantilização são importantes veículos na tomada de poder da subjetividade, na interceptação de processos de singularização, de recusa aos moldes de viver. Dessa forma, “quem não procurar uma existência livre de riscos torna-se um desviante, irresponsável, inapto para cuidar de si, que fornece maus exemplos, eleva os custos do sistema de saúde e como consequência não cumpre com seus deveres de cidadão autônomo e responsável” (Ortega, 2008, p. 34), trabalhador e homem de família.

Esses empregos meus, a maior parte eu perdi tudo por causa da cachaça. Irresponsabilidade minha, entendeu? E foi se agravando, entendeu? Aí, quando me separei da minha esposa foi pior. (Usuário, entrevista individual, dezembro 2007)

No momento em que vigor do corpo, beleza, juventude, longevidade, saúde como um plus, um superavit de energia e vitalidade funcionam como os novos critérios que avaliam o valor dos indivíduos e grupos, os inábeis a cuidar de si despontam como as novas figuras de anormalidade: velhos/as, gordos/as, sedentários/as, fumantes, bêbados/as, viciados/as, adictos/as, compulsivos/as, pessoas que vivem com deficiências, pessoas que vivem com HIV, anoréxicas. A carne humana que não se coloca a serviço do capital financeiro, a carne humana que escapa a esse contínuo “dar forma”, essa carne humana é podre, é carniça, precisa ser descartada:

Quando você se entrega num espaço assim, é carne morta. (...) É carne morta que vende em mercado. (...) Parece que o mercado de carnes continuou, as pessoas estão expostas aí. Parece que nenhuma carne tá boa para consumo. Nossos invisíveis, aqui são visíveis, mas são visíveis podres. (Redutor de danos, grupo focal com trabalhador*s do Projeto de Redução de Danos, dezembro 2007)9

Nas mesas de azulejos brancos, invisíveis são iluminados, registrados como vidas nuas, infames, corpos indignos, “visíveis podres”, carniças, uma vez que suas peles exibem a marca da abjeção, dos excessos, dos desvios, da inabilidade de um cuidar de si que se faz nos registros de uma bioascese. No CAPS-AD, encontram-se sujeitos que falharam ou resistiram ao governo mercadológico dos corpos e que, por isso, parecem assinalar zonas de ingovernabilidade. Nesse sentido, caberia perguntar: por que essa necessidade de visibilidade? Nessa visibilidade residiriam outras funções além do escopo – ele mesmo fundamental para o exercício de poder em questão – de apontar o limite de um possível pré-estruturado para os corpos humanos?

4 Existiria alguma maneira de fazer viver mortos-viventes?

Em cima dos balcões, encontram-se corpos que flutuam entre vida e morte, encarnações do homo sacer, habitantes da zona de indeterminação entre o homem e o animal, vidas que precisam, portanto, ser banidas da comunidade humana. Vidas em suspensão, que excepcionam e extravasam um real pré-fabricado de formas de vida modeladas. Vidas definidas por sua simbiose com a morte, sem, porém, pertencerem ainda ao mundo dos cadáveres: mortos-viventes. A aposta em jogo parece ser, mais uma vez, a decisão sobre essas vidas que podem ser mortas sem que se cometa suicídio ou se pode deixá-las viver. Mas viver de que modo? Sob que condições? Nesse terreno movediço entre vida e morte, para decidir, convoca-se a intervenção do Estado encarnado em práticas de uma saúde policialesca, a qual solicita gentilmente que sujeitos confessem sua (ir)responsabilidade face aos sofrimentos infligidos aos seus corpos desde que se desviaram do caminho da prevenção a todos os riscos, desde que começaram a cometer reiteradamente excessos, ficando à mercê dos perigos dos prazeres do uso de álcool e outras drogas. Expostos à mesa, práticas de governamento iluminam seus corpos, intervêm sobre eles na tentativa de produzir mudanças em seus “estilos de vida” rumo à sua qualificação. Mediante o poder de inscrever condutas, tais práticas irão decidir entre a animalização desses corpos, caso eles se mantenham não desejando o cuidado e o arreio e, assim, justificar a sua morte; ou entre a reanimação desses falsos vivos, humanizando-os, restabelecendo sua saúde, mediante vigilância cotidiana, inclusive dos próprios corpos sobre si mesmos e, com ela, sua humanidade, permitindo sua “integração” à cidade, ao mundo humano: “Intervir sobre o falso vivo. Somente o Estado pode fazê-lo e deve fazê-lo. Os organismos pertencem ao poder público” (Agamben, 2002, p. 172). Para essa engrenagem funcionar, é preciso reiterar a crença em um Estado provedor de segurança, alcançando, por meio dela, o voluntariado dos corpos desviantes e de seus encarregados diretos, os/as cuidadores/as: “apenas os humanos podem decidir o que fazer da natureza, e sobretudo os humanos civilizados” (Cocco, 2009, p. 74).

Dessa forma, pode-se entender o funcionamento das políticas de inclusão nos dias atuais como a produção de investimentos temporários, visando a educar e formar empresários, ou seja, buscando autossuficiência de segmentos da população considerados de risco. Nesse mesmo sentido, o CAPS-AD torna-se um lócus pedagógico, preocupado com a modelagem de corpos desnecessários em corpos autônomos, incluídos na reiterada caminhada de alimentação do capital. Nesse serviço, tais corpos são incluídos para serem gerenciados e assim minimizar os riscos que podem oferecer para a população, para o Estado e para si mesmos. Dessa forma, o objetivo de reinserção social transmuta-se no de defesa social.

― Muita gente desenvolve o alcoolismo, mas muita gente faz isso camuflado. Tem muita, muita, muita gente mesmo, vige, que é da alta mesmo, são alcoólatras, não se dão conta que são e nem admitem que são, mas na verdade são até talvez pior do que, ééé, essa turma que anda caindo na rua...

― A turma da maresia.

― Não, eu digo uma turma que anda...

― Liberalmente.

― (...) ficam fechados, tal, inclusos, vai lá e arrocha...

― (...) Para mim, os piores alcoólatras são (...) os encamuflados, né? (...) são as pessoas que têm condições. (...) Mas são liberal porque eles têm um motorista dele, ele se embriaga, entra no carro dele e ninguém vê, entendeu? E nós? Eu, entendeu? Porque não tenho condições, não tenho motorista, então na vista da sociedade, eu sou o pior alcoólatra.

― Quem tá usando crack é a classe média.

― Tem um policial mesmo que usa crack, então que pega propina dos vendedores de crack lá no centro (...). (Usuários, grupo focal com usuári*s, dezembro 2006)

O que se aponta com esses fragmentos de falas é para a fabricação de corpos que fazem uso excessivo de álcool e outras drogas, como alcoólatras, como “crackeiros”, como perigosos que precisam ser “contidos” para não expor a população a riscos. Quando a contenção é assistencial, esses corpos se transfiguram em doentes que precisam de cuidados, tendem a ser assistidos, submetidos a uma dinâmica institucional. Os corpos carimbados como alcoólatras e crackeiros tendem a ser aqueles que se mantêm fora da borda das/os cidadãs/ãos contribuintes, entendidos, assim, como párias sociais ou como crianças carentes tomadas aos cuidados de serviços benevolentes formadores de cidadania.

A inclusão de corpos não cadastrados nos bancos de crédito no regime de cidadania, entendida como prática governamental visa, então, a incluir os excluídos como tal, trazê-los para espaços de participação e de convivência social. Tal modo de inclusão, operado mediante aproximação física entre os corpos ativos e os não regrados, não permite que se prossiga falando em “excluídos” – uma vez que “estes” também compõem os mapas de intervenção estatal, que as ovelhas desgarradas do controle das condutas devem retornar ao rebanho – nem em exclusão de acesso a redes assistenciais. Lembremos: foi há bem pouco tempo que o uso abusivo e prejudicial de álcool e outras drogas tornou-se problema de saúde pública. Esse tempo coincide com a emergência da necessidade de purificação do povo da qualidade de vida, liberando-o das sombras do desregramento que instalaria, em seu seio, vestígios de animalidade.

Entre a demonização e a vitimização de usuári*s de álcool e outras drogas, objetiva-se: 1) deixar morrer (torturas e extermínios acometem diariamente esses corpos, nas ruas e nos estabelecimentos que servem para sua carceragem tais como hospitais psiquiátricos, delegacias e penitenciárias): “Escolhi a figura de um homem algemado com muita dor. Eu passei por isso lá em Alagoas. ― Quem nunca foi algemado e espancado em delegacia? É natural. Eu fui também” (usuário, oficina de contação de histórias, novembro 2006); 2) higienizar (pelo menos alguns poucos, a fim de atestar a “bondade humanitária” das práticas de governamento); e 3) submeter a um cuidado com ares carcerários salpicado de tortura, instituindo uma revista militar na entrada de um serviço que, em sua ambiência, já guarda uma atmosfera de cadeia, como se registra no fragmento:

É a tendência de trabalhar com esses usuários num modelo mais punitivo. Então o ad passou a ser, é, um serviço extremamente normativo, rígido e punitivo (...). Tinha a revista de usuário que ainda tem, mas só que hoje tem de uma forma mais leve e assim, a gente não consegue acabar por mais que a gente queira, porque o próprio usuário chega na assembleia e diz se sentir inseguro porque alguns colegas chegam armados, então a gente sai, quando a gente vê um usuário mais problemático a gente chega mais junto. Então a gente faz assim: ‘o que é que você tem?’ Eu já vi o vigilante fazer assim: ‘O que é que você tem aí no bolso? Vamos ver!’ (Trabalhador do CAPS-AD, entrevista individual, janeiro 2009)

Às vezes, muitas vezes, parece que não basta a obediência, é preciso sofrer. “A tortura torna-se hoje uma técnica de controle cada vez mais generalizada, ao mesmo tempo em que se banaliza sempre mais. (...) e simples formas de humilhação (como as revistas corporais) constituem armas comuns no arsenal contemporâneo da tortura” (Hardt & Negri, 2005, p. 42). Purificá-los por meio de intervenções sanitárias, aceitando, assim, sua inclusão em alguns pontos delimitados e insulares da rede humana, tais como os CAPS-AD, para que possam ter seus corpos organizados, nomeados, cerceando possibilidades de hibridação e nomadismo, classificados na comunidade humana; para que seus corpos possam se conformar ao governamento, estando sujeitos a normas disciplinares e de seguridade, diagnosticando-os e educando-os para práticas comportamentais e de vida consideradas de menores riscos. E assim:

O rio da biopolítica, que arrasta consigo a vida do homo sacer, corre de modo subterrâneo, mas contínuo. É como se, a partir de certo ponto, todo evento político decisivo tivesse sempre uma dupla face: os espaços, as liberdades e os direitos que os indivíduos adquirem no seu conflito com os poderes centrais simultaneamente preparam, a cada vez, uma tácita, porém crescente inscrição de suas vidas na ordem estatal, oferecendo assim uma nova e mais temível instância de poder. (Agamben, 2002, p. 127)

Nesse contexto, práticas de saúde e práticas de pesquisa podem ser facilmente transmutadas em práticas de sequestro. Inquietam-se com a noite dos corpos e, por isso, almejam retirá-los de qualquer zona de sombra. Sobre a mesa branca ou, numa assepsia maior que evitaria ainda mais o contágio, observando-os pelo vidro: a sala em que trabalhador*s costumam passar a maior parte de seu tempo dentro do serviço tem um vidro na parede que dá justamente para o vão onde ficam as mesas. A esse respeito, destaquem-se os seguintes fragmentos de fala:

O prefeito não disse que era para terminar com os manicômios? E por que eles ficam tudo ali na sala e a gente aqui fora? O que é isso rapaz, coloque gente que sabe trabalhar aqui! Eles não sabem não. A prática é aqui no cotidiano e não ali no ar-condicionado. (Fala de usuário expressa embaixo de uma das mesas de azulejo, registrado em diário de campo, janeiro 2007)

Tem uma hora que tem tanta coisa para fazer (...). Os técnicos entram na sala e ficam fechados dentro da sala. E aí é claro o usuário vai entender do jeito dele, vai entender ‘Poxa, o cara não vem aqui, o cara não cuida’ ou ‘o cara age com preconceito’. E assim, claro que também é uma defesa do técnico de chegar e se trepar na sala já que tem tanta coisa para fazer e aí não precisa tá lá. (Profissional do CAPS-AD, grupo focal com trabalhador*s, dezembro 2008)

“Técnicas de aquário” exercitam, então, poder sobre corpos usuários de álcool, outras drogas e de CAPS. Tais práticas incitam contornos, definições, confissões, identidades corporais, produzem sujeitos. Ali, a carne viva (muitas vezes em carne viva) da escuridão ganha contornos corporais, conformando-se à sujeição da claridade, como refere Baptista:

Na noite onde eles habitavam, nada era um, nenhuma diferença se eternizava, nenhuma forma vivia em paz; existiria apenas uma força que nunca ousava dizer seu nome ou sua origem. Delitos, sofrimentos, comportamentos desviantes, sexualidades, ilustrariam a cintilância da verdade encarnada nos agora indivíduos ou sujeitos. Do efeito deste fulgor, um eu concentra, confessa, exibe a potência do seu contorno. (...) a razão médica, psicológica, jurídica faz falar o que antes era um possível silêncio, um provável ainda não, um por vir, um nada, ou o que a luz da razão não suporta quando confrontada pelo seu próprio brilho. (...) histórias são contadas dissipando a impertinência ou o incômodo do inominável. Seria inocente este aniquilamento? (Baptista, 2010, p. 104)

Quando luz demais parece cegar, quando corpos guiados por saberes e fazeres protocolares e burocratizados esvaem-se em apatia e desânimo, esboça-se um terreno em que usuári*s e trabalhador*s encurralad*s, uns no calor em cima das mesas, outros em suas salas com ar-condicionado, têm suas pupilas desgastadas. Um*s passam os dias ali “sem fazer nada”:

Gasto dinheiro que eu não tenho, pago passagem para fazer o quê? Por exemplo, hoje não teve oficina. Passamos o dia todinho só sentindo calor, de oito às onze, todo mundo aqui sem fazer nada. (Usuário, de diário de campo, dezembro de 2008)

Eu vejo que é um problema que está incomodando muito os usuários. (...) toda vez que eu vejo eles falando, em toda roda que tem... que é da falta de oficinas, que é um componente muito importante do CAPS, pro tratamento. (Trabalhadora do CAPS-AD, fragmento de diário de campo, janeiro 2009)

Outr*s seguem “apagando incêndios” e “enxugando gelo”:

Do meu ponto de vista é como se você fosse para a guerra com uma faca e o adversário vem com metralhadora, bazuca, tanque de guerra! Eu acho que a gente oferta uma coisa, mas que talvez não dê conta do tamanho da problemática. Por que eu acho que a problemática em si, né?, tem que colocar isso em questão, não é nada simples, requer um alinhamento de várias políticas públicas, fica muito focado só no CAPS-AD e no PRD. (...) Parece que sempre... que nunca... o corpo técnico é suficiente para demanda que existe, sempre acaba virando esse trabalho de enxugar gelo, de apagar incêndio. Não se consegue reforma, tá faltando até produto de limpeza e papel higiênico. (...) se tivesse um investimento, poderia, né?, trazer mais resultados, só que esse investimento nunca chega, nem o outro serviço que eu trabalho, os dois tão enxugando gelo (Trabalhador do CAPS-AD, grupo focal com trabalhador*s, dezembro 2008)

Passar os dias “sem fazer nada” ou “apagando incêndios” e “enxugando gelo” – seria inocente tal aniquilamento (Baptista, 2010)? A precariedade das políticas públicas, o sucateamento e os ensimesmamentos dos serviços públicos e seus cotidianos, a falta de investimentos, a má remuneração d*s que ali trabalham não parecem ser algo que se dá “ao acaso”. Ao contrário, parece tratar-se de “uma improdutividade produtiva”, ou seja, da instauração proposital de um dado modo de funcionamento de uma política social que deve servir a corpos desnecessários, àqueles que não fazem parte dos bancos de dados dos cartões de crédito, do rebanho de homens e mulheres endividados/as.

5 (Re)existências com pés de pano

Como produzir linhas de escape desse registro? Por que não, bem ali no mercado de carnes, experimentar a abertura de corpos e desejar mais do que se conformar a práticas de sujeição, corpos prenhes de invenção, que desejam outras experimentações? “Essas vidas, por que não ir escutá-las lá onde, por elas próprias, elas falam?” (Foucault, 1977/2006, p. 208). Uma procura suada foi tecida por alegres encontros, mesmo fortuitos, com insurgências corporais noturnas, a busca de uma menina que costumava ir com *s avós ao mercado de carne transmutada em trabalhadora, gestora, pesquisadora compósita por entre a política de saúde mental da cidade e o seu mandato de cuidar de corpos usuários de álcool e outras drogas, seu/nosso rastreio foi por outros modos de funcionamento inscritos em tais políticas, por pontos de resistência à conformidade das condutas, à submissão das subjetividades. Pontos de resistência vez por outra parecem pulular nas brechas de um cotidiano chapado, nas brechas de corpos feitos de apatia. Bem ali no mercado de carnes, em instantes lampejantes, corpos se abrem, encarnando outros modos de subjetivação, outras maneiras de viver, de conviver que não os prescritos pelas práticas de governamento.

Ali, pequenas bolhas de ar suspensas na terra árida da biopolítica neoliberal parecem se formar e fazer respirar, pedindo passagem para outros modos de cuidar e de educar em saúde, próximos do que Foucault (1977/2006), a partir do pensamento grego clássico, denominou tékne toû bíou. Ou seja, um cuidado-educação engajado com a constituição de um ethos, a partir da abertura dos corpos para os acontecimentos da vida. Em vez de uma fôrma de ação, um dar forma à vida, uma educação para a vida, entendida como exercício, como prova, formação, experimentação com força para transfigurar sobrevidas, a vida nua, a zoé da qual o governo biopolítico se vale, em vidas que assumem o risco de respirar outros ares menos rarefeitos, constituindo maneiras de viver singulares. Bem ali, funcionando à deriva de formas de sujeição, forjam-se (re)existências.

Um corpo se fez pesquisa por meio do objetivo de “marcar a singularidade dos acontecimentos (...) espreita-los lá onde menos se esperava” (Foucault, 1979/2001, p. 15); seguir linhas que irrompem na cena instituída a partir de encontros, relações, afetos e desafetos, problemas que acontecem no cotidiano, problematização. Num indispensável demorar-se, farejar o cotidiano e, imerso nele, buscar por insurgências dessas reservas de vida e de morte, matéria-prima para a tessitura de modos de viver “desatinados” desatados de diagramas de poder, não previstos por lei nem pelo modelo psicossocial nem por script algum. Modos estes que se gestam em pausas, nos intervalos de domínio da biopolítica, num espaço insular alheio ao Estado, à sociedade civil, ao mercado.

Um corpo se fez escrita na procura por essas surpresas, lampejos cintilantes que agitam o campo de vivências inscritas num CAPS ad, fagulhas que, se encarnadas, podem abrir o corpo e a vida, de modo a não se prosseguir apenas vivo. Foi assim que um corpo se fez pesquisa e escrita com outros corpos: ensaios de existência. O trajeto foi, então, o de escutar e compor com saberes, fazeres e verdades singulares, escritos mediante experimentação de corpos engajados – mesmo que por instantes, mesmo que uma ínfima parte neles –, logo ali entre política e ética, num empreendimento de (des)aprendizagem, de (des)subjetivação, de transvaloração, que os seduzem ao descaminho, abrindo-os para rotas e paisagens noturnas.

Falas disparatas: “Meu dia a dia é só comer e tomar cachaça” (usuário de cachaça, mas não de CAPS-AD, praça da cidade, diário de campo, janeiro 2009). “Tudo se passa como se o corpo não tivesse mais agente para fazê-lo ficar direito, organizado ou ativo” (Pelbart, 2004, p. 143). Depois de ter quebrado as duas pernas em 2008, inspirado na malandragem do cavalo do Pica-pau, intitula-se Pé de Pano. Sai e volta com um bodinho.10 Gestos desatinados que extravasam por todos os lados qualquer nominação e inscrição num quadro de condutas reguladas. Posturas sem sentido, intenção ou finalidade, “‘extraviadas’, inumanas, disformes, solitárias, com sua presença impalpável e peso de chumbo” (Pelbart, 2004, p. 143): sorrindo e parecendo uivar, urrar, continuadamente gesticula mãos cortando o pescoço. “Eu vagabundo, eu... Eu sou um invisível, um inútil. Não sei, eu sou o vento” (mesmo usuário de cachaça, mas não de CAPS-AD, praça da cidade, diário de campo, janeiro 2009), e “o vento experimenta o que irá fazer com sua liberdade” (Rosa, 1936). Se é tão difícil seguir o vento, ao menos escutar suas vozes, senti-lo passar, dando passagem... Nesses tempos de corpos blindados com armaduras identitárias até o último fio de cabelo, de identidades como próteses de corpos organizados, vale se sentir convocad* pelo experimentar foucaultiano, que diz justamente do risco de abrir-se, de “abrir o corpo”, de, nas brechas de mecanismos governamentais, fazer um corpo com peles mestiças de cão, lobisomem, vento, mar.

Num momento em que a recusa maior do arranjo governamental é para o que há de fera em cada um de nós, talvez vidas desatinadas destinadas ao desaparecimento possam deixar trilhas para descaminhos. Talvez os corpos infames em cima das mesas brancas, esses seres das ruas, das calçadas, das sarjetas possam deixar pistas para a tessitura de uma ética da escuridão, em que corpos e vidas podem se abrir ao impossível, ao invivível, ao inominável e ao ilocalizável. Escavar o desgaste, “o disparate, a dor, o acontecimento que no gume de seu instante pede significação, muda uma vida, começa a tecer um sujeito” (Albuquerque Júnior, 2011, p. 123), experiências-limite vividas na carne de corpos que habitam o CAPS-AD em vez de aniquilá-las, expondo-as ao poder. Num momento em que uma subjetivação pelo medo do contágio se reedita, desejando purificação, talvez seja possível (re)existir pelo contágio, pela mestiçagem com corpos andarilhos, com o que de andarilho insiste, resiste em povoar (nossos) corpos. Quem sabe olhando para a sobrevida produzida pela economia social mercadológica se possa farejar outros (im)possíveis que não o do regramento econômico-estatal das condutas de usuários/as e trabalhadores/as, que não o da segregação entre mesas e aquários...

Tantos pés ‘gastos’ em suas sandálias gastas, como os da figura 2. Pés itinerantes, arrasta-pés no espaço do CAPS-AD e em seu entorno convocavam e convocam a demorar um pouco mais, a olhar uma, duas, três vezes a “mesma” paisagem, a pensar com os pés, prestar atenção aos relevos que vão nela se tecendo e ali encontrar centelhas de uma vida corporal que não se deixa submeter. Pés que abrem passagem para a problematização e desestabilização de certas cenas instituídas, as quais dizem da necessidade de pôr esses pés em sapatos novos, de pararem com a itinerância e darem seu futuro de presente ao empreendimento do capital. Mas é do destino de tais pés o descaminho. A insistência na errância, eis o canto que parece exalar e sair pelos pés desses corpos, vidas vestidas de errância, vidas infames, vidas de hominis sacri, algumas delas insistem em viver, mesmo que sobrevivendo. Tais pés andarilhos, pés que sorriem, pés de pano que devêm vento, fazem pensar que não se trata apenas da sobrevida de farrapos humanos. Variados usos da droga, do CAPS, do corpo e da vida podem ser experimentados por uma só pessoa: uso fascista em consonância com o desejo de mercado, de Estado, de polícia, com o desejo de aniquilar; uso suicida em concordância com o desejo de seu próprio aniquilamento; mas também um uso que se faz em conformidade com um plano afeito à decomposição do organismo, ali onde o corpo sofrido, dolorido, moribundo se debate, podendo experimentar um desfazer sem matar-se, abrindo-se a intensidades, conexões, devires, lançando-se na aventura de aprender a desenhar novas formas, lama grossa a brotar lentamente (Lispector, 2009).

Imagen

Figura 2

Itinerâncias

Essa escrita se fez, pois, em consonância com uma ética do descaminho e do inacabamento dos corpos (Baptista, 2010). A montagem do corpo desta escrita – que se traduz num canto de insistência que sopra como vento de pés andarilhos em composição – se fez justamente ali onde a experimentação poderia ser inócua, ao constatar o que parece óbvio, ou seja, a inoperância de uma política de saúde em suas práticas de cuidado; ou mortífera, ao ousar se compor por entre encontros com corpos maltrapilhos habitantes de um lugar que, à primeira vista, parecia com eles convalescer. Mas foi possível ver insurgir, no bojo dessa paisagem moribunda, subjetividades nascentes, forjando (re)existências. Para fazer desse “entre” o moribundo e o nascente um território possível de habitação, de observação e de escrita, foi preciso também fincar os pés na errância, ensaiar o desapego a certezas científicas, produzir uma espécie de aliança com a literatura, com a música, com a poesia, com linguagens outras, fabuladoras de uma saúde frágil, porém prenhe de vida, de uma vida que não se deixa dizer, assim como pensar o corpo como a grande razão, num espaço em que não se diz “eu”, faz-se o eu. Dessa forma, criou-se o desejo coletivo de acompanhar um mapa movente de construção de corpos de profissionais e usuári*s habitantes de um CAPS-AD, bem como o processo de construção do próprio corpo institucional, do cuidado e do próprio corpo da pesquisa e da escrita, em suas formatações e reexistências. Nesse processo, foi preciso ousar itinerar.

No encontro com essas vidas nuas, infames, em vez de seguir marcando-as como “vidas precárias”, posto que ousam sair da rota do “humano” (Butler, 2007), aventurar, sim, a partir desse encontro, navegar mares desconhecidos, bem ali onde “o sonho que sonhei é outro [e] a vida que criei é minha”. Em outros termos, a ousadia anunciada com esta escrita ensaística foi a de experimentar e fabular formas de vida, a de nos arrastar em paisagens noturnas, como vermes que passeiam na lua cheia e, assim, devirmos-outr*s menos encouraçad*s por identidades e mais prenhes de uma vida que não se deixa nominar. O encontro com hominis sacri, vidas infames, corpos abjetos pareceu, pelo menos em alguns instantes mesmo que fortuitos, funcionar como meio de abertura para descaminhos corporais: de profissionais e usuári*s, do cuidado, da pesquisa, da escrita...

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