Dialogicidade e contradições nas narrativas de si: estudo de casos múltiplos com adolescentes

Dialogicity and Contradictions in Self Narratives: Study of Multiple Cases with Adolescents

  • Raquel de Andrade Souza Ew
  • Thiago Gomes de Castro
  • Kátia Bones Rocha
Neste trabalho investigou-se a construção de narrativas de si por adolescentes, utilizando como dispositivo um exercício dialógico sobre o self. A pesquisa foi embasada pela perspectiva de que o self é composto por múltiplas vozes, como família, amigos, escola e o próprio participante, em relações resultantes de diferentes posições sociais como estudante, filho, amigo e pessoa. Trata-se de um estudo de casos múltiplos, qualitativo e de cunho descritivo-exploratório, com três estudantes do ensino médio. No estudo verificaram-se os movimentos das vozes e as valências morais (positivas e negativas) atribuídas às posições conforme solicitadas pela entrevista. Observou-se que cada unidade de significado da fala carrega em si uma voz de autoria, com uma valência moral constituída contextualmente, conforme as posições sociais ocupadas por cada participante. As posições se organizaram hierarquicamente dentro das narrativas ratificando o entendimento do self dialógico como sendo múltiplo, polifônico, resultante do diálogo de diferentes discursos.
    Palavras chave:
  • Adolescência
  • Self dialógico
  • Narratividade
  • Valência moral
In this study, the construction of adolescent’s narratives about themselves, was investigated using the dialogic exercise about the self as tool. This research was based on the perspective that the self is composed of multiple voices, like family, friends, school and the participant himself, as a result of their different social positions like student, son, friend and person. This is a multiple cases study, with a qualitative and descriptive nature, non-probabilistic sample of three high school students. This study observed the movements of the voices and the moral valences (positive and negative) assigned to positions as requested by the interview. It means that each speech unit brings with it a voice written with a moral valence contextually constituted according to the social position occupied by each participant. The positions are hierarchically organized within the narratives confirming the understanding of the dialogical self as multiple, polyphonic resulting from different discourses dialogue.
    Keywords:
  • Adolescence
  • Dialogical self
  • Narrativity
  • Moral valence

1 Introdução

A investigação das narrativas e das possibilidades de interação em adolescentes é um foco de interesse diante da diversidade de contextos e desafios da contemporaneidade. A presente pesquisa procurou investigar a dialogicidade e as contradições das narrativas de si que os adolescentes produzem a partir da perspectiva do self dialógico. Para Jerome Bruner (1990/1997) o self é um narrador, contamos histórias de nós mesmos de forma ininterrupta tanto para outros como para nós mesmos. Além disso, considera que o self é dinâmico, elabora narrativas sobre nossa existência e reorganiza esta narrativa à medida que ocorrem novos fatos, incluindo o que fomos e o que seremos. Hubert Hermans (2003) descreve o self dialógico como aquele que reúne uma multiplicidade de narrativas de si e a negociação destas em diferentes posições e contextos. Estas múltiplas narrativas se sobrepõem e se contradizem, gerando significados e conflitos que as tornam dominantes e emergentes conforme o contexto (Hermans, 2001a). Assim, a característica que define o self dialógico é sua combinação de propriedades temporais (sequência) e espaciais (posição, posicionamento e reposicionamento), em que o Eu se apresenta em posições relativamente autônomas, com habilidade de mover-se de uma posição à outra de acordo com mudanças na situação e no tempo (Hermans, 1999). Essas mudanças de posições podem ser inclusive opostas e irão derivar do movimento do próprio sujeito (self) e das posições de seus interlocutores reais e imaginários (dialógico) que estão mutuamente entrelaçados (Valsiner, 2002).

A narrativa de si é formada a partir da relação que se constitui de forma associativa dentro de um contexto e que se manifesta em um fluxo de mesmidade, ou seja, o sujeito se reconhece como sendo ele mesmo em todos os seus atos, e previsibilidade, conferindo uma percepção de contorno de si e de identidade (Märtsin, 2010). Simultaneamente, por estar em diálogo com o outro e consigo mesmo, a narrativa de si torna-se suscetível a uma constante ruptura e reestruturação a partir desta interlocução (Hermans, 2003). Isto provoca a alteração da narrativa ativando novos significados que conduzirão o processo decisório produzindo novas conexões dentro das relações sociais. Para Maria Cláudia Oliveira (2006) estes diálogos podem produzir uma escala de interferências nas identidades que vão desde a reestruturação da autocontinuidade, até a inovação de si mesmo.

Nesse sentido as narrativas de si são constituídas de vozes (Eu/Outro) que representam a direta existência deste constante diálogo para negociação das diversas situações internas e externas às quais as pessoas se veem confrontadas. Assim, a voz personifica e ao mesmo tempo qualifica o diálogo interno (conversas internas), descentrando-o e orientando-o para o outro, num processo interativo, que reúne aspectos de movimento e multiplicidade (Bertau, 2007). Esta personificação corporificada da voz no diálogo interno seria a própria consciência e o movimento de interlocução das vozes a base de consolidação das posições do self.

A decisão de analisar o self dialógico na adolescência se justifica pelos múltiplos canais que estão sendo conectados e desalinhadamente afinados na juventude, produzindo múltiplos diálogos simultâneos que compõem as formas como o sujeito percebe a si mesmo. O adolescente confronta-se com inúmeras mudanças relacionadas a sua autonomia com adesão a diferentes grupos de pares, novos papéis na família e perspectivas relativas ao mundo do trabalho, além de mudanças na autopercepção (Oliveira, 2006). Neste contexto, o sujeito se encontra descentrado e desta forma usa o recurso de construção de narrativas para dar contorno e unidade às diferentes posições e contradições que experencia internamente diante das relações com os outros em diferentes contextos (Bakhtin, 1979/2011; Hermans, 2001a). Na adolescência, a constituição do senso de si é regulada pelo contexto cultural, cujas práticas irão mediar a formação dos significados e da autoimagem através das narrativas que servem como instrumento de organização do conhecimento de si (Oliveira, 2006).

Hubert Hermans e Agnieszka Konopka (2010) mencionam que na adolescência o self dialógico apresenta uma característica contextual ampliada e a escola, juntamente com a família, se apresentam como os contextos de interação formal de maior participação diária. É neste sentido que se torna importante investigar como ocorre a dinâmica da dialogicidade na perspectiva de construção do self dialógico, tendo em vista os múltiplos acessos, a dinamicidade de posições ocupadas pelo self (Hermans, 2001b), bem como a contextualização da intensidade das forças destas narrativas e importância das significações percebidas pelos adolescentes.

Para entendermos a dinâmica do self dialógico na adolescência, podemos considerar o Eu como autor de narrativas contextualizadas, ou seja, o agente da ação, cujo protagonista é o Mim, que se produz na reflexão através da antecipação e planejamento. Estas narrativas construídas pelo Eu ocorrem a partir de diferentes relações com o tempo (presente, passado e futuro) e contexto, de forma a descrever o Mim em múltiplas posições autorais e relacionais dentro de contextos de experiências de vida (Santos & Gomes, 2010; Valsiner, 2002).

A seguir apresentaremos uma figura que construímos para representar as dinâmicas do self dialógico analisadas no presente estudo. Na representação do self dialógico o Eu seria a posição central que está constituído pelo Mim e pelo Você. A narrativa constituída pelo Mim em relação ao Eu é construída a partir das diferentes posições que o sujeito ocupa, neste estudo usamos as posições estudante, amigo, filho e pessoa, que são nomeadas como Posições Internas. As Posições Internas se constroem na interface com as Posições Externas (amigo, escola, família e ti mesmo), o que na figura corresponde ao Você. A ocorrência desta interface seria identificar como o Eu percebe que os Outros o percebem (exemplo: como a escola me vê como amigo, ou ainda, como eu me vejo como filho). Vejamos uma representação sintética do self dialógico e sua dinâmica na perspectiva proposta nesse estudo (figura 1).

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Figura 1

Representação do Self Dialógico

Logo, tendo em vista essa representação, podemos dizer que as narrativas são organizações do self que vão surgindo a partir das implicações deste nas interações sociais e nas diferentes posições assumidas no diálogo. As pessoas desta forma podem utilizar diferentes discursos que produzem diferentes posicionamentos de identidades, que não são próprias do self e sim são formas como este se posiciona no meio social (DeSouza, Oliveira, DaSilveira & Gomes, 2013). O self faz uso de relações dialógicas, que se constituem em posições transitórias para o eu, que seguem padrões de hierarquias temporais de forma a pontuar relações de poder e dominação, permitindo uma circulação com maior proeminência e exclusões entre as posições do eu (Santos, Gauer & Gomes, 2010). A estas posições serão atribuídos valores diferenciados que acabam gerando uma caracterização contextualizada pela história pessoal de cada entrevistado.

Sendo assim, há o estabelecimento do que neste estudo chamaremos de valência moral, ou seja, a atribuição de conceitos com valor positivo a negativo para a descrição de si pelos participantes. A valência qualifica o quanto o sentido dado ao descrever-se tende para uma forma mais positiva ou mais negativa dentro da contextualização da narrativa dos participantes. Irvana Marková (2003/2006) apresenta que é a partir desta noção de dialogicidade que o self altera suas posições diante da diversidade de situações dialógicas interacionais. O que pressupõe que o próprio self apresenta-se como uma encarnação das relações dialógicas que demonstram a coexistência e entrelaçamento entre vozes individuais e coletivas, que representam diferentes marcadores identitários (Marková, 2003/2006, 2006).

O objetivo deste estudo foi investigar a construção de narrativas de si por adolescentes, utilizando como dispositivo um exercício dialógico sobre o self. Nesse sentido, investigamos a consciência dos adolescentes sobre a existência de conversas internas, do seu processo e sua dinâmica. Além disso, buscou-se analisar como os participantes articulam suas narrativas de si nas diferentes vozes presentes em contextos enunciativos (família, amigos, escola e para si mesmo), e buscamos conhecer como qualificam as diferentes posições por eles ocupadas (estudante, filho, amigo, pessoa) através das valências morais atribuídas nas suas narrativas em uma perspectiva dialógica.

2 Método

2.1 Delineamento

O delineamento do estudo é qualitativo de cunho descritivo-exploratório, utilizando o estudo de casos múltiplos. Neste estudo foi utilizada descrição de frequências de falas como recurso lógico descritivo, acessório para inferência de prevalência dos dados qualitativos tipificados entre os participantes, sem a prerrogativa de obter medida de predição.

2.2 Participantes

Estudo realizado com três estudantes, entre 16 e 18 anos, do terceiro ano do ensino médio de escola privada de Porto Alegre. A escolha de três casos foi orientada por um critério de demarcação metodológica exploratória que permitisse um acesso descritivo dos processos dialógicos em contextos específicos (Lanigan, 1997). Deste modo não se buscou na análise dos dados saturar ou generalizar os casos como representativos da variabilidade dialógica das narrativas na adolescência, mas de demarcar critérios lógicos descritores dos eventos dialógicos manifestos pelos participantes.

A pesquisa foi apresentada via carta dirigida a pais/responsáveis e alunos, através da comunicação interna da escola, convidando para inscrição de voluntários. Os estudantes foram sorteados a partir de uma lista de interessados em participar da pesquisa. Os participantes receberam nomes fictícios, sendo eles: Moisa com dezoito anos, que morava com os pais e era a filha mais nova de três irmãos; Clark com dezesseis anos, morava com a mãe, padrasto e irmão; Alessandro com dezessete anos, morava com a mãe e irmão. A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e os estudantes participantes, juntamente com seus responsáveis, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

2.3 Instrumentos e Procedimentos de Coleta

Foi realizada entrevista em profundidade com vinte e três perguntas e roteiro semiestruturado, composta por duas partes. Inicialmente investigou-se a percepção dos adolescentes sobre a existência das conversas internas e da contradição de pensamentos sobre si (exemplo: “Tu te percebes argumentando, conversando contigo mesmo?”, “Há momentos em que te vês com pensamentos contraditórios sobre ti mesmo?”). Em um segundo momento, introduzimos a dialogicidade dos posicionamentos do eu convidando os participantes a se descreverem a partir do olhar dos outros e de si mesmos sobre diferentes posições que ocupam socialmente (exemplo: “Gostaria que me descrevesses como tu percebes que és visto pela tua família como estudante?”).

Encontrar uma forma de poder acessar as diferentes vozes que estão articuladas na construção dos caminhos utilizados pelos adolescentes para sua autodefinição é um processo difícil de ser viabilizado através de uma pergunta única e direta. Sendo assim, utilizamos como referência para o roteiro da entrevista o Repertório Pessoal das Posições (PPR) desenvolvido por Hermans (2001b), traduzido e adaptado por Mariane L. DeSouza (2005), para a criação de questões que mesclassem diferentes posições (estudante, filho, amigo e pessoa) e contextos (família, amigos, escola e ti mesmo) de forma a estimular que o participante verbalizasse suas percepções de si mesmo. Os participantes foram convidados a se descreverem a partir do olhar dos outros e de si mesmos sobre diferentes posições que ocupam socialmente. A escolha das posições e contextos usou por critério situações que fossem comuns e socialmente ocupadas de modo geral pelos adolescentes. As entrevistas foram realizadas individualmente na própria escola dos participantes e duraram em torno de 75 minutos.

2.4 Análise de Dados

As narrativas foram analisadas em dois níveis: 1) Para a primeira parte da entrevista, referente à percepção dos adolescentes sobre a existência das conversas internas e da contradição de pensamentos sobre si, utilizou-se a Análise de Enunciação (Bardin, 1977/2010) que se define pela descrição do conteúdo das narrativas conforme o agrupamento de significado das respostas. Nessa etapa os agrupamentos de significado foram discutidos junto à teoria do self dialógico. 2) Para a análise das narrativas nas perguntas sobre as dinâmicas das posições do self dividiu-se o texto em unidades de significado (pré-análise) e utilizou-se uma demarcação qualitativa para identificação (a) das vozes de enunciação conforme análise dialógica proposta por Hermans (2001a), e (b) da valência moral de cada unidade de significado.

Na análise das vozes três juízes independentes categorizaram a forma como os participantes enunciaram a descrição de si mesmo, segundo o critério: 1ª pessoa (Eu), 3ª pessoa (Outro(s)) ou posição Neutra, que designa as falas de justificativa ou contextualização de sua tomada de posição na descrição. Na análise de valência moral os mesmos três juízes atribuíram se a experiência descrita pelos participantes possuía uma conotação positiva ou negativa em uma escala de intensidade de -3 a +3, onde -3 significa muito negativo, 0 nem negativo nem positivo e +3 muito positivo. Posteriormente, utilizou-se o programa SPSS (Statistical Package for the Social Sciences) para o cálculo de médias dos dados categorizados na análise qualitativa.

Para auxiliar na compreensão e visualização dos objetivos apresentamos fragmentos das narrativas, bem como criamos gráficos e figuras que pudessem representar a dinâmica da dialogicidade na construção das narrativas de si para cada participante. Esta estratégia teve finalidade ilustrativa e não pretende uma generalização do fenômeno para a adolescência.

3 Resultados e discussão

A seguir apresentaremos as estratégias nomeadas pelos participantes diante das contradições resultantes da dialogicidade do self. Também será descrito o fluxo das narrativas do Eu nas diferentes posições e contextos dialógicos, considerando a análise da incidência das vozes nomeadas Eu/ Outro(s) e Neutra implicadas nas narrativas. E por fim será apresentado a análise da valência moral atribuída para as posições por cada participante.

3.1 As estratégias diante das contradições resultantes da dialogicidade do self

Para analisar se os adolescentes tinham consciência da existência da dialogicidade e dos momentos de confrontação que esta dinâmica apresenta, foi questionado aos participantes sobre a experiência das conversas internas, se eles se sentiam argumentando consigo mesmos ou ainda tendo pensamentos contraditórios a seu respeito. A partir das respostas dos participantes foi possível identificar que estes reconheciam que argumentar consigo e pensar alternativas é um processo que ocorre em diferentes contextos e formas. Neste sentido um dos participantes refere:

Ah, eu me xingo às vezes. Sabe quando tu faz alguma coisa que tu já sabia que ia acabar dando errado? Ou até mesmo quando eu esqueço alguma coisa. Ah, eu pensei, pensei assim: não, preciso fazer aquele trabalho, ou, essa semana preciso realmente estudar. E aí passa a semana e não estudei nada. Aí, passa final de semana e “ah, olha o que tu fez?” Aí tu fica como se fosse outra pessoa que dá dicas pra ti mesmo. É, tem aquele que tu deveria fazer e tem o que tu faz, né. [...] Só depois de algum tempo que tu percebe a culpa, sabe? Daí tu fica falando contigo mesmo e tentando mudar aquilo. (Clark, entrevista pessoal, 23 maio de 2014)

As conversas internas para os entrevistados também têm o efeito de auxiliar no processo decisório, através do levantamento dos pontos positivos e negativos para as situações. Mesmo assim, ainda os participantes reconhecem que podem fazer coisas que são contra o que pensam.

Eu faço muito assim de conversar comigo mesmo sabe, pensar “bah isso aqui vai me fazer bem ou que não vai por isso”. [...] só que algumas vezes eu me pego e faço algumas coisas que vai contra o que eu penso, sabe? [...] É que às vezes, sempre tem um motivo por trás do que eu vou fazer e se eu penso uma coisa e faço alguma coisa contrária é porque algum motivo teve [...] naquele momento foi o melhor a fazer, foi a decisão que eu achei melhor tomar no momento assim, sabe [...] É assim, na hora era a melhor opção. (Alessandro, entrevista pessoal, 30 maio de 2014)

Diante disto, vemos que a contradição está presente em diversos momentos de suas conversas internas sobre si mesmo e os pensamentos contraditórios surgiriam como resultado dessas conversas. Como recursos para estas situações de pensamentos contraditórios, os entrevistados utilizavam estratégias como: esquecer a situação, retirar-se do conflito ficando mais recluso, conversar com outras pessoas para relativizar as situações com outras opiniões, ou ainda, relevar a situação ao considerar que a ação tomada era a melhor opção.

Podemos sintetizar através da figura 2 quais foram as funções mencionadas pelos participantes para as conversas internas e também quais os recursos que utilizam diante da contradição resultante destas conversas.

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Figura 2

Função das conversas internas e estratégias mencionadas diante das contradições resultantes da dialogicidade

Os participantes apresentam a clara noção de que estão constantemente falando consigo. Conforme descrevem este processo, observamos que este é bastante dinâmico no sentido de haver concordâncias, discordâncias, continuidade e interrupção na sequência de pensamentos e argumentações que eles próprios apresentam a respeito de si, de uma situação já vivida ou a ser vivenciada. Segundo Hermans (2001a) isto configura um formato ativo de self que, a partir da teoria do self dialógico, podemos entender através de uma variedade de posições do eu. Vemos que a configuração destes campos apresenta uma série de significados, associados a sentimentos, e resultam de integrações, negociações e contradições no próprio self.

O self dialógico apresenta por unidade básica a díade eu-outros, desta forma estas posições do eu sempre surgem por um endereçamento da relação a um público, seja ele real ou imaginário (Cunha & Gonçalves, 2009). Sendo assim o self dialógico habita um campo narrativamente construído, abrigando as contradições de conservadorismo e inovação. De acordo com João Salgado e Miguel Gonçalves (2007) os diálogos internos e externos podem provocar reorganizações do sistema dentro de um contexto fluído e variável.

Para que pudéssemos visualizar os muitos diálogos possíveis sugeriu-se que os participantes respondessem perguntas que explicitassem esta dinâmica das posições. Com isso, observamos como os participantes intercalaram estas conversas em diferentes vozes (Eu, Outro[s]), o que tratamos como fluxo das narrativas do eu nas diferentes posições e contextos. Nessa dinâmica também foi avaliada a valência moral do fluxo das narrativas, que seria a atribuição de valor em graus mais positivos e negativos para a descrição de si por diferentes vozes. Esta análise visou demonstrar a oscilação das narrativas pela continuidade, interrupção, negociação e contradição apresentadas pelos adolescentes.

3.2 O fluxo das narrativas do eu nas diferentes posições e contextos dialógicos: análise da incidência das vozes eu/ outro(s) e neutra

O fluxo das narrativas do self dialógico apresentou-se com dinâmicas diferentes em relação às vozes de enunciação da descrição dos participantes conforme as posições e a partir do ponto de vista dos contextos solicitados. Foram identificadas pelos juízes ao todo 296 unidades de fala que foram qualificadas conforme as categorias de voz Eu, Outro(s) e Neutro (conforme pode ser visto nas figuras 3, 4 e 5).

Observamos que as vozes foram influenciadas pelo contexto, ainda que em uma análise descritiva geral a frequência de vozes para Eu e Outro(s) foi muito semelhante (Eu=142 / Outro(s)=138), com baixa frequência para a voz Neutra (N=16). Isso evidenciou a intensa dialogicidade através dos turnos de vozes intercaladas presente na construção das falas dos três participantes. Podemos pensar que a incidência geral equilibrada do turno das vozes nos dá a dimensão material do que afirma Hermans (2003) ao dizer que o self encontra-se na fronteira entre o si mesmo e o outro. Assim os diálogos a respeito de nós mesmos ficam oscilando entre as diferentes vozes em um processo de negociação e ponderação permanente.

Contudo, quando considerado o contexto das falas, evidenciamos que o contexto escola referiu uma prevalência maior das vozes Outro(s) (Outro(s)=47 / Eu=18) enquanto que o contexto si mesmo apresentou maior prevalência para a voz Eu (Eu=65 / Outros=5). O resultado para o contexto si mesmo já era esperado uma vez que a pessoa em geral faz uso de uma descrição em primeira pessoa para falar de si mesmo. Por outro lado, o contexto escola indicou a prevalência da voz Outro, o que refere uma percepção dos participantes de ordem diferente em relação aos outros contextos, demonstrando que os participantes tinham uma opinião estabelecida em relação à escola. Esta opinião variou da afirmação de que a escola não tinha visão sobre as diferentes posições por eles ocupadas até a percepção de que a escola tinha uma visão generalizante das demais posições a partir do conceito de estudante que a mesma atribuía ao participante. Como podemos constatar pela frase a seguir: “A escola me vê [...] vai muito pelo aluno que a gente é, porque é a única visão que a escola tem. Daí é através daquela visão que tem que tirar conclusão para as outras também” (Alessandro, entrevista pessoal, maio de 2014).

A escola tem sido socialmente depositária do papel de fomentar o conhecimento, estipular conceitos de competência e de chancelar as habilidades apresentadas pelos adolescentes (Nunes, Pontes, Silva & Dell’Aglio, 2014). Além de ter esta propriedade avaliativa também é o local em que o adolescente desenvolve a maior parte do seu contato social, fora do contexto familiar. Segundo Hermans e Konopka (2010), o self inclui o outro em suas percepções de si mesmo sendo que sua motivação para autorreferência não é algo construído individualmente. Logo o contexto escolar, por exemplo, passa a ser percebido e imaginado através dos professores que atuam como agentes motivadores da própria motivação autorreferente dos adolescentes. O que caracteriza que a motivação no self dialógico é inclusiva do outro. A motivação observada do outro se constituirá como parte do self estendido. Este ponto nos pareceu, de acordo com os próprios depoimentos dos adolescentes, uma oportunidade para a escola ampliar o espaço de interação com os estudantes no sentido de exercitar formas em que possam, juntamente com os professores e colegas, construir outros campos de percepção, apresentação e contornos de si, para além apenas da avaliação a partir do desempenho escolar.

Para facilitar a compreensão e visualização da dialogicidade criamos uma representação gráfica das disposições das vozes para cada um dos participantes. O gráfico busca elucidar os padrões de oscilação das vozes conforme os contextos e posições assumidos, indicando uma forma de topografia dialógica descritiva (Hermans, 2001b). Quando analisamos individualmente as falas dos participantes, observamos diferenças no uso de vozes conforme a posição. Em alguns momentos houve uma concentração maior das narrativas na primeira pessoa (Eu) quando o participante respondeu a partir de si e não do Outro(s) (terceira pessoa). E também houve a marcação Neutra quando havia contextualização, explicação ou justificativa na resposta. Ao criarmos o gráfico do fluxo da narrativa de si dos participantes distribuímos as falas de acordo com as posições (estudante, filho, amigo e pessoa) conforme a percepção por contexto (eixo x – família (F), amigos (A), escola (E) e ti mesmo (T)) e relacionando com as vozes interlocutoras (eixo y - Eu, Outro(s) e Neutra).

Ao analisarmos a configuração das narrativas individuais dos participantes, verificamos que o gráfico do fluxo de narrativas de Moisa nas diferentes posições demonstrou que a participante utiliza uma quantidade maior de orações para a construção da posição filha em relação as demais posições estudante, amiga e pessoa (ver figura 3).

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Figura 3

Gráfico ilustrativo do fluxo das narrativas do self dialógico da participante Moisa

Também se observou nas falas de Moisa, o quanto dentro de cada posição e contexto (família, amigos, escola, ti mesmo) há a intensificação de troca entre as vozes (Eu/ Outro(s)/ Neutro) para descrição de si mesma. Percebemos que na posição estudante Moisa concentra-se mais na voz da terceira pessoa nos diferentes contextos, mas que se concentra na primeira pessoa quando se refere ao contexto da percepção da escola. Assim sua fala, neste contexto, apoia-se muito mais pela sua própria vivência, do que pela manifestação de um discurso direto da escola a seu respeito. Vivência esta que está repleta de decepções por não atingir os objetivos concretos de tirar boas notas e de necessitar de reforço para progressão escolar anualmente.

Já na posição de filha a fala concentra-se na terceira pessoa no início da narrativa para depois oscilar entre as posições, o que aponta para uma tendência de maior dialogicidade das vozes à medida que vai aprofundando sua descrição como filha do ponto de vista de sua família. Como pode ser exemplificado pelo seguinte fragmento:

Mas é difícil dizer como eu sou vista ao todo. Mas eu acho que a minha mãe, em particular, ela me vê como uma filha ingrata [...] Ninguém pensa igual, né...quando eu falo o que eu tô pensando pra ela, ela fica super braba [...] não tem como conversar naquela casa [...] eu sou vista de diversas formas por eles [...] em geral eles me acham queridinha [...] eu não sei dizer realmente. (Moisa, entrevista pessoal, 22 de maio de 2014, ênfase adicionada)

A tendência à oscilação entre as vozes corresponde a uma intensificação reflexiva que se apresenta pelo aumento da dialogicidade entre as vozes. Esse fenômeno vem sendo estudado pela literatura de conversa interna ou reflexividade (DaSilveira, DeSouza & Gomes, 2010), no qual se aponta a relação entre reflexividade e negociação dialógica entre vozes em uma narrativa. Assim, a intensificação reflexiva está relacionada ao volume de narrativas dirigidas a cada posição. Ao examinarmos o conteúdo destas narrativas vemos que a construção de sentido vai sendo formulada a partir da experiência dentro de um agenciamento do eu articulado com o espaço em um determinado tempo. Portanto podemos considerar que as narrativas dependem das experiências na autorrealização e se dispõem em uma negociação hierárquica de forma polifônica que resultam em um tipo de organização narrativa (Santos et al, 2010). Cada participante irá, portanto, de acordo com sua experiência e conforme contexto, apresentar uma intensificação valorativa de determinada posição configurando assim sua singularidade.

Ao analisarmos o fluxo das narrativas de Clark (ver figura 4) verificamos que este apresenta em termos gerais um equilíbrio entre as vozes do Eu e dos Outro(s) nas diferentes posições. Contudo, diferentemente de Moisa, Clark tende a concentrar a sequência de falas em uma voz, ora na voz Eu ora na voz Outro(s), indicando menor exercício dialógico no fluxo das narrativas quando comparado a Moisa. Há uma predominância da voz Eu apenas para posição pessoa. Para os contextos família e escola há uma maior consistência quanto ao uso da voz Outro(s), para o contexto de amigos há um equilíbrio entre as vozes e no contexto ti mesmo há o uso quase que exclusivo da primeira pessoa (Eu).

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Figura 4

Gráfico ilustrativo do fluxo das narrativas do self dialógico do participante Clark

No fluxo das narrativas de Clark a menor intensidade de trocas de turnos entre a voz eu e outros é intercalada com o uso da voz neutra, o que configura o recurso de contextualizar e justificar seu direcionamento das narrativas. Ao longo de sua narrativa esta baixa dialogicidade aparece associada a uma percepção de Clark mais consistente e autocentrada a respeito de si mesmo. Quando usa a voz neutra esta tem a função de confirmação e ampliação de sua descrição. Clark utiliza o recurso de conceituação para referendar consistência às narrativas sobre si, o que dá suporte as suas percepções transparecendo maior segurança ao falar de si mesmo:

O conteúdo de física agora, o professor falou que quem conseguisse entender aquilo ali devia ser engenheiro certamente sabe? Quando ele passou, eu entendi, já fiz sabe? Eu sei fazer, mesmo ele explicando em uma aula só, já tinha captado tudo certinho (Clark, entrevista pessoal, 23 maio de 2014, ênfase adicionada)

Em relação ao participante Alessandro (ver figura 5) podemos verificar que há uma maior estabilidade nos turnos entre as vozes no curso de suas narrativas. Por outro lado, no contexto da escola, independente das posições narradas, há uma concentração na voz do outro. Ao verificarmos o conteúdo destas narrativas podemos ver que o participante toma a escola regida por um princípio que balizará todas as suas avaliações de posição em relação aos seus alunos. Um exemplo disso é quando fala: “Pelo aluno que eu sou é que eles me julgam pelo filho que eu seria entendeu?” Para o participante, a escola estende seu conceito estabelecido para a posição estudante, para todas as demais posições que o estudante venha a ocupar.

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Figura 5

Gráfico ilustrativo do fluxo das narrativas do self dialógico do participante Alessandro

Neste contexto a fala de Alessandro também apresenta uma percepção cristalizada do posicionamento da escola, mas ao contrário de Moisa, esta descrição fica muito mais como um posicionamento direto da escola, do que por uma convicção, percepção de que ele seja assim mesmo. A diferença que aparece é que enquanto Moisa localiza este discurso na primeira pessoa (Eu), Alessandro apresenta na terceira pessoa (Outro). Assim para os participantes foi comum a presença do discurso de que a escola define seus alunos pelas notas e pelo seu desempenho escolar, havendo certo desconhecimento sobre as relações, características e capacidades globais dos estudantes.

Podemos considerar que a polifonia articulada para diferentes posições diz respeito à ativação de diferentes contextos e vozes (Eu/Outro) que irão se organizar de forma diferenciada para cada participante. Podemos considerar pelos dados apresentados no contexto desta pesquisa que a maior intensificação na troca das vozes para definição do self diz respeito a maior dialogicidade que a posição articula (DaSilveira et al., 2010). Vemos que para alguns participantes houve clara diferença entre a intensidade de turnos de vozes, preponderando para determinados contextos o uso de uma única voz o que poderia estar nos apontando para uma representação do self qualitativamente homogênea. Além disso, o processo dialógico aparece influenciado pelas experiências de forma a configurar arranjos singulares para cada participante, transparecendo que a qualidade (valor) da experiência narrativa é um fator importante. Nesse sentido, a entrevista demonstrou o processo dialógico fornecendo indícios de dominância de determinadas vozes para determinadas posições e maior intensidade de trocas intersubjetivas para outras posições do eu (DeSouza et al., 2013).

Faz-se necessário para complementar a análise, observar a qualidade do que está sendo dito pelos participantes em contextos específicos sobre posições específicas. Para aprofundarmos esta compreensão passaremos então a visualização das narrativas em relação às valências, ou seja, como o participante atribui valor a si ao se descrever.

3.3 Análise da valência moral para as posições

A observação da valência das falas permite acessar a qualidade dos posicionamentos do self e o conteúdo da dinâmica das narrativas. Assim, a organização do sistema do self aparece como resultado da diferenciação das múltiplas vozes na direção de uma integração hierárquica com atribuição de valor para as posições. Como as posições do eu são auto reflexivas e auto avaliativas elas podem alterar sua qualidade conforme as situações, entrando em conflito ou mesmo integrando-se a outras posições, caracterizando-se pela contextualização e dinamicidade (DeSouza et al., 2013; Hermans, 2001b). Assim, escolhemos apresentar graficamente a qualidade das posições descritas pelos participantes, uma vez que as vozes de enunciação apareciam nas narrativas mediadas pelas posições. Portanto, o objetivo é verificar o valor atribuído para qualificar determinada posição enunciada.

Sendo assim, como recurso para elucidarmos a caracterização da valência conforme as posições, construímos a partir das narrativas gráficos que representam a síntese de como os adolescentes apresentam as posições de acordo com o valor atribuído variando do mais negativo ao mais positivo. O eixo Y representa a média da amplitude das valências e o eixo X indica as posições. Vejamos a seguir como se configuraram os sistemas dialógicos de cada um dos participantes com relação ao valor percebido nas posições, iniciando pela participante Moisa (figura 6).

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Figura 6

Valência para as Posições – Moisa

Quando verificamos a avaliação que a participante Moisa descreve para cada posição que ocupa, verificamos que as posições de amiga e pessoa ocupam os pontos mais altos do eixo y, o que corresponde a uma descrição mais positiva.

Eles (família) me veem como uma pessoa que se pode confiar. Uma pessoa amigável. Eu sou de poucos amigos, mas os amigos que eu tenho assim, eu valorizo eles [...] Eles (amigos) preferem conversar comigo porque vou ouvir, mais ouvir do que falar. Então, eu acho que eles (amigos) me veem como uma boa amiga [...] Eles (família) me veem como uma pessoa um pouco intolerante, irritada, mas ao mesmo tempo calma.[...] Meus amigos me acham super simpática.[...] Sou vista como uma pessoa quieta e fofinha pelos professores. (Moisa, entrevista pessoal, 22 de maio de 2014)

Essa capacidade de acolhimento e de escuta dirigida em sua narrativa às posições amiga e pessoa, parecem interferir acentuando sua capacidade reflexiva em relação às outras posições. Para as posições de estudante e filha observa-se uma tendência à neutralidade moral, o que na verdade reflete a divisão de atribuições balanceadas entre valências positivas e negativas. Essa polarização positiva/negativa para as posições de estudante e de filha correspondem ao seu histórico, que envolve questões referentes ao fato de querer ser uma excelente filha em oposição aos conflitos familiares do cotidiano, como também em receber recorrentes avaliações de desempenho escolar insuficiente o que provoca tensionamento sobre sua conceituação de estudante. Seu comportamento escolar descreve como sendo bom, amigável e colaborativo, mas este não se reflete nas notas escolares que recebe.

Eu me considero uma filha boa porque eu não saio em festa, não dou preocupação nesse sentido. [...] Eu me sinto uma filha ruim no aspecto de não concordar com eles (pais) no todo. Eu fico pensando: será que eu sou uma filha tão ruim assim que não concordo com quase nada que eles falam?

Na escola eles me veem como uma boa aluna, em questão de comportamento, mas em questão de notas eu acho que sou vista como aquela que fica no provão. [...] Eu me vejo como uma péssima estudante. Eu falo muito em relação às notas e isso conta muito para mim porque, eu noto como meus pais ficam tristes quando eles recebem meu boletim, sabe? Eu queria estudar mais, mas eu não consigo. Eu não tenho muito a capacidade de armazenar as coisas. (Moisa, entrevista pessoal, 22 de maio de 2014)

Já o participante Clark (figura 7) descreve suas posições com uma configuração diferenciada de valências.

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Figura 7

Valência para as Posições – Clark

Diferentemente de Moisa que se apresenta muito crítica em relação a si mesma, identificamos que Clark descreve cada posição que ocupa de forma mais homogênea e tende a uma avaliação positiva geral no conjunto das referências.

Meus amigos mais próximos sabem que eu sou relaxado, não fico estudando toda hora assim. Mas eles sabem que eu sou inteligente.[...] A escola acho que me vê como um aluno normal, que alcança as notas para passar e passa com folga. [...] Eu me vejo como um aluno que vai um pouco melhor que a média, mas que realmente poderia ir bem melhor se me esforçasse. [...] Eu sou visto como ótimo filho. Que respeita eles (pais) e faz o que eles pedem. [...] Os amigos me veem como um filho normal. [...] A escola não tem visão sobre isso, só estão envolvidos no que é de interesse deles, se a gente é bem comportado. (Clark, entrevista pessoal, 23 maio de 2014)

De modo geral a percepção que o participante Clark faz do modo como é visto é mais positivo, o que nos aponta para uma situação de autoestima elevada e mais estável comparativamente aos demais participantes. Esta caracterização positiva na descrição de si em diferentes posições e perspectivas se manifesta mais sobressalente na posição de amigo:

Eu me vejo como um amigo melhor do que os outros. Eu não sei ainda direito se eu vou ter algum dia um amigo que nem eu sou para os outros, sabe? Eu gostaria de ser amigo de uma pessoa como eu. (Clark, entrevista pessoal, 23 maio de 2014)

Para o participante Alessandro todas as posições foram descritas de forma mais positiva do que negativa, com exceção da posição estudante que concentrou uma descrição notadamente negativa.

Eles (família) me descreveriam como alguém que não estuda, um mau aluno. Tenho preguiça de vir para aula. [...] Meus amigos talvez diriam até pior assim, porque na sala de aula às vezes eu me distraio, não presto muita atenção assim. [...] Para escola, um aluno que bagunça assim, que não estuda. (Alessandro, entrevista pessoal, 30 maio de 2014)

No que se refere aos aspectos de comportamento disciplinar na escola reconhece que é visto como sendo bagunceiro e má influência para os outros estudantes. Discurso assimilado e apresentado dialogicamente em sua narrativa como constatamos na análise prévia de vozes nesta posição. Por outro lado, em sua fala suas características de personalidade são descritas como forte e singular, sendo altamente valorizadas, bem como sua postura autêntica de amizade e parceria. Esta dinâmica pode ser visualizada na figura 8.

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Figura 8

Valência para as Posições – Alessandro

Quando analisamos as posições em conjunto dos três participantes em relação às médias das valências (figura 9), identificamos que as posições de estudante e filho apresentam maior polarização entre valências negativas e positivas, tendendo a uma medida central. Já a valência para amigo e pessoa é mais positiva.

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Figura 9

Valência para as Posições - quadro geral

A valência mais central para estudante corresponderia ao fato de que nesta posição há uma construção social em que se estabelecem dificuldades em construir valências motivacionais exclusivamente positivas para além das avaliações acadêmicas (Hermans & Konopka, 2010). Logo, em nossa interpretação, os participantes da pesquisa que não apresentam bom desempenho, manifestam também uma percepção de self para a posição de estudante mais negativa, gerando uma ambivalência valorativa entre percepção de si como estudante e percepção da escola sobre si. Para a posição filho, o mesmo ocorre quando consideram a percepção de si, de como são na família, e a expectativa dos pais, muitas vezes descompassada em relação a sua interação com o núcleo familiar.

No que se refere às posições de amigo e pessoa podemos entender que estas se apresentam mais positivas devido a alguns fatores. A posição amigo, caracteristicamente envolve relações que partem da escolha e afinidade do próprio adolescente. O que de partida pode estreitar associações de maior negociação e facilidade na interação. Já a posição pessoa envolve uma avaliação global de características, que reúnem as demais posições, como os participantes tenderam em usar uma narrativa descritiva de si mais positiva ou equilibrada, podemos supor que isto se reflita na descrição da posição pessoa. Sendo assim, podemos verificar que nas relações sociais há um endereçamento comunicativo, que está imerso em uma rede de significados em um contexto cultural de experiências passadas e expectativas futuras. A estas relações também são atribuídos valores que permitem que o processo de construção e criação de significados de si se apresente em constante transformação (D’Alte, Petracchi, Ferreira, Cunha & Salgado, 2007).

4 Considerações Finais

O entendimento das narrativas de si a partir da constituição do self dialógico pressupõe que o sujeito se constitui pelo diálogo que estabelece com os outros (reais e fictícios) em diferentes perspectivas de mundo. Esse diálogo produz auto narrativas viáveis que estão em constante reformulação, com versões diversas, de forma que não haja um sujeito essencial e sim diferentes formas de reconhecimento identitário do eu (Camilo, 2010). Nesta dinâmica haverá várias posições a serem ocupadas pelo eu, mas ao mesmo tempo este segue sendo o centro da experiência negociando significados e restabelecendo seu posicionamento diante dos outros, se subjetivando como um produto dialógico (D’Alte et al., 2007). Os participantes deste estudo reconhecem que este diálogo se caracteriza num processo contínuo de conversa interna cuja função indicada foi de organização, reconhecimento da cisão interna e auxílio nas decisões. Também manifestam que esta conversa produz contradições cujas estratégias de enfrentamento vão desde o abandono da situação, conflito, reclusão, ponderação de opiniões até aceitação das atitudes tomadas.

Ao mapearmos o fluxo das narrativas de si dos participantes verificamos a existência de uma topografia peculiar que revela a intensa dialogicidade, num fluxo contínuo de trocas de vozes (Eu, Outros e Neutro) de forma singular para cada participante. Cada unidade de significado da fala carrega em si uma voz de autoria, com uma valência moral constituída contextualmente e conforme as posições sociais ocupadas por cada participante. O que faz com que estas posições também se organizem hierarquicamente dentro das narrativas sendo enfatizadas, contextualizadas e tensionadas nas unidades de significado das falas. O que ratifica o entendimento do self dialógico como sendo múltiplo, polifônico e que se posicionará no meio social utilizando diferentes discursos nos diferentes contextos conforme hierarquização resultante destes diálogos (DeSouza et al., 2013; Hermans, 2001b).

Ainda assim, podemos verificar o pressuposto de que o self procura manter uma unidade mesmo que esta não se consolide de forma duradoura, já que está em constante atualização. Essas posições foram estabelecidas através de vozes narrativas, sendo que cada voz representou estruturas de avaliação moral, correspondendo a concepções e arranjos de diferentes discursos da sociedade. Discursos de concordância, complementação ou de oposição aos quais os participantes se apresentaram contextualmente engajados. Cabe destacar, que mesmo havendo este jogo de forças que envolvem a valência associada a diferentes vozes, podemos identificar a existência da metaposição que atua como dispositivo reflexivo dando unidade as diferentes posições assumidas pelo eu (Santos et al., 2010).

Uma importante contribuição a partir dos resultados deste estudo é a identificação de que os participantes entendem que a escola só percebe o aluno a partir do seu desempenho em avaliações escolares, tendo pouco conhecimento, ou mesmo interesse, em interagir em outras posições por eles ocupadas. Ao considerar que a escola é um importante espaço de exercício social e de construção conceitual sobre aptidões e planejamentos futuros, é fundamental atentarmos para a percepção dos participantes de que a escola apresenta um conceito generalista e homogeneizante sobre as diferentes posições que ocupam os adolescentes. Neste sentido entendemos ser um desafio, mas também uma necessidade, flexibilizar a perspectiva que a escola faz sobre o estudante, permitindo aprofundar os espaços de motivação e reflexão dialógica entre as diferentes posições que nesse espaço podem emergir. Esta pode ser uma forma de permitir a manifestação de outras habilidades e com isso a consolidação de valores positivos para a construção de narrativas que habilitem mais possibilidades do que barreiras para reconhecimento de si mesmo.

Apesar da fundamentação das posições de Hermans sobre self, é importante destacar o limite de tomar as posições do self a partir do aparato metodológico usado no presente estudo. Como bem assinala Aydan Gülerce (2014), o self é dinâmico e as tentativas das teorias do self dialógico de naturalizá-lo como objeto de estudo são provisórias e parciais. Ainda assim, a análise empreendida sobre os fluxos das narrativas conseguiu em alguma medida captar o dinamismo e qualidade da conversação do eu ao longo do tempo (selfing). Sabe-se que a análise das posições descreve em sua totalidade a topografia do movimento ativo do self, portanto seria equívoco tomar como generalizante uma análise que restringe sua topografia aos elementos e participantes constituintes deste estudo. Cabe destacar, que o estudo não analisou as valências relacionando-as às vozes de enunciação, o que pode ser uma oportunidade de estudo futuro, no sentido de correlacionar a percepção conceitual para a posição e a voz utilizada para descrição aprofundando a compreensão dos dados.

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