Cena ocorrida em um serviço de saúde, no qual funciona uma Estratégia de Saúde da Família:
Campanha de vacinação para a gripe. A sala de espera do serviço está lotada. Um ex-morador do bairro conversa com a recepcionista:
- Coisa boa voltar no posto! Aqui éramos bem tratados! Trouxe o meu guri1; ele pode fazer a vacina, não é?
- Pode, sim. Fazia tempo que o senhor não aparecia. Que pena que se mudou, pois a doutora chegou a comentar que iria dar um jeito naqueles seus problemas, pois ela conseguiu os resultados dos exames e tudo mais. Mas não deu tempo, porque o senhor foi embora… Se tivesse ficado, ela até saberia o remédio certinho...
- Não me diga isso! Lá o médico não entende nada do que eu tenho. Mas será que não dá para conseguir uma consulta aqui? Pelo menos pra ela me dizer o que fazer... Está cada dia mais difícil, sabe?
- Impossível, me desculpa! Mas sem o cadastro nada feito... Quem sabe o senhor volta, aí poderemos arrumar uma consulta e a doutora já lhe dá a solução? (Entrada do diário de campo, 27 de junho de 2013)
Esse diálogo integra os dados de uma pesquisa2 que objetiva investigar a articulação entre políticas públicas de saúde, inclusão e território, tomando como ponto de inflexão usuários que denominamos como nômades, isto é, pessoas que, seja por pertencerem a determinados grupos que têm o nomadismo como escolha de vida, seja em decorrência de suas necessidades de sobrevivência, circulam entre diferentes territórios, mudando-se com frequência. Deve-se ressaltar que, em se tratando do contexto brasileiro, as políticas públicas de saúde inscrevem-se no Sistema Único de Saúde – SUS, o qual foi instituído a partir da Constituição Federal de 1988, mediante a premissa ‘saúde para todos’. O SUS se organiza em três níveis de atenção: atenção básica, média complexidade e alta complexidade (urgência e emergência). Carolina Milena Domingos, Elisabete de Fátima Polo de Almeida Nunes, Brígida Gimenez Carvalho e Fernanda de Freitas Mendonça (2016), fundamentando-se no estudo de Conill, ao traçar um comparativo do sistema público brasileiro com outros países que também adotaram sistemas de saúde universais (como a França, Inglaterra e Canadá), apontam que há uma diferença significativa especialmente no que tange à proposta de descentralização: enquanto que, na França, a gestão é centralizada, e, no Canadá e na Inglaterra, há uma descentralização para um nível regional, no Brasil, há a proposta de municipalização
da saúde. A municipalização da saúde significa, segundo Marta Arretche e Eduardo Marques (2002, p. 456), que “os municípios devem vir a assumir a gestão dos programas de saúde pública e de atenção básica à saúde, além de regular a rede hospitalar instalada no município”.
No Brasil, visando à reorganização do Sistema Único de Saúde – SUS, as Estratégias de Saúde da Família (ESF) surgem como instrumentos de qualificação e consolidação da atenção básica, tornando-se referência no processo de reorientação do trabalho em saúde, enquanto porta de entrada do SUS. Nesses serviços, opera uma equipe multiprofissional de Saúde da Família, cuja composição mínima compreende um médico, um enfermeiro, um auxiliar ou técnico de enfermagem e agentes comunitários de saúde. Funcionando com uma área de abrangência restrita, as ESF atuam com uma população específica, que é cadastrada ao serviço de acordo com os seus endereços residenciais. São os agentes comunitários de saúde que, através de visitas domiciliares e do contato constante com a comunidade, mantêm a atualização desse cadastro, bem como do acompanhamento a cada família da área adstrita em questão (Ministério da Saúde, Brasil, 2012). A noção de território, então, se configura como um importante organizador das políticas públicas de saúde brasileiras: em diferentes documentos aparecem termos como distritos sanitários, microáreas, regiões, áreas de abrangência, bases territoriais, entre outros. Utilizada nos diferentes níveis de complexidade da atenção em saúde para estabelecer a relação custo-investimento-efetividade, estruturando os planos de ações e a rede do SUS, a noção de territorialidade nas ESF assume ainda o pressuposto vinculatório entre equipe e usuários. Porém, na maior parte das vezes, tal noção aparece como algo dado, como se a divisão em territórios geográficos fosse um pano de fundo naturalizado sobre o qual as ações em saúde se desenrolam. Entretanto, se considerarmos que, como pontua Milton Santos (1996/2012), o espaço é produzido pela técnica, a territorialidade proposta pelas políticas públicas de saúde pode ser desnaturalizada e problematizada.
A partir disto, discutimos, no presente artigo, como o nomadismo, compreendido aqui de forma ampla, se constitui como uma interrogação às políticas públicas de saúde, na medida em que põe em xeque a questão da inclusão (que se fundamenta no imperativo saúde, direito de todos, tal como formulado pela Constituição Federal de 1988). Para isto, utilizamos os dados produzidos na pesquisa citada acima, a qual foi composta de duas etapas: uma análise de documentos – Constituição Federal de 1988 (Senado Federal do Brasil, 1988, artigos 196 a 200); lei orgânica da saúde 8.080/1990 de 19 de setembro de 1990; Programa Saúde da Família (Ministério da Saúde, Brasil,1994); Guia Prático do Programa Saúde da Família (Ministério da Saúde, Brasil, 2001); Política Nacional de Atenção aos Povos Indígenas (Fundação Nacional de Saúde, 2003); Política Nacional de Humanização (Ministério da Saúde, Brasil, 2003); Pacto pela Saúde 2006 (resolução 399); Mais Saúde: direito de todos (Ministério da Saúde, Brasil, 2007), Política Nacional da Atenção Básica (Ministério da Saúde, Brasil, 2012) – e a observação participante em duas equipes de Estratégias de Saúde da Família. No presente artigo, desenvolvemos a discussão relativa aos dados produzidos durante a observação participante, nos anos de 2013 e 2014. A investigação se desenrola em uma cidade de médio porte (de acordo com o censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2010), o município conta com uma população de 118.374 habitantes), situada no interior do estado do Rio Grande do Sul, com uma economia que se apoia fortemente no cultivo de tabaco e indústria fumageira, o que ocasiona um número considerável de trabalhadores temporários (denominados ‘safristas’). A escolha desses serviços se deu pelo fato dos mesmos estarem localizados em bairros populosos da periferia urbana, nos quais, segundo contatos prévios com profissionais de saúde do município, os fenômenos de deslocamento de usuários são frequentes.
Nesse percurso metodológico, valemo-nos da observação participante e, para tanto, realizamos visitas semanais a esses serviços de saúde, durante as quais acompanhamos o cotidiano de trabalho dos mesmos (visitas domiciliares, campanhas de saúde, reuniões de equipe, atividades na comunidade, cadastramento de usuários, etc.). As observações ocorreram especialmente junto às agentes comunitárias de saúde. Destaca-se que todas as agentes que trabalhavam nos serviços investigados participaram do estudo, num total de onze profissionais, distribuídas entre as duas ESFs. As conversas e observações foram norteadas pela seguinte questão: como se articulam as noções de território e inclusão no que se refere a sujeitos que não se fixam aos territórios? No intuito de compreender como se estabelecem as relações entre as equipes de saúde e esses usuários, que aqui convencionamos chamar nômades – enquanto aqueles que, com frequência, mudam-se, circulando em moradias localizadas nas diferentes áreas –, os dados produzidos foram sendo registrados em um diário de campo coletivo. A proposta de investigação apoiou-se na cartografia, a qual, como assinalam Virgínia Kastrup e Eduardo Passos (2013), rompe com as concepções metodológicas tradicionais, na medida em que busca o acompanhamento dos processos da pesquisa. A cartografia pode ser compreendida, ainda, como pesquisa-ação, uma vez que não tem regras prontas, nem conceitos preestabelecidos e, portanto, não conta com uma suposta neutralidade do pesquisador, uma vez que a análise é feita sem distanciamento do campo analisado e não há o estabelecimento prévio das etapas para alcançar determinado fim. É nesse sentido que utilizamos aqui a expressão produção de dados, visto que entendemos a pesquisa enquanto um agente que constitui e é constituído com/nesse processo, refutando o termo coleta de dados, tradicionalmente usado nas pesquisas, o qual pressupõe uma realidade preexistente.
Para dar conta de tal discussão, o texto se desdobra da seguinte forma: em um primeiro momento, problematizamos a noção de território colocada nas políticas públicas de saúde, buscando compreender o quanto as próprias políticas são um elemento importante de sua constituição. Após, trazemos alguns dados produzidos no decorrer da investigação, com o intuito de ampliar o conceito de território colocado nas políticas públicas de saúde, a partir de algo que se coloca como um problema para as mesmas: o nomadismo. Para finalizar, discutimos como se dá a inclusão/exclusão daqueles usuários que não se enquadram nos critérios estruturados para uma determinada clientela, especialmente no que se refere à residência fixa.
Milton Santos (1996/2012) discute, a partir da geografia, a relação entre espaço e técnica. Para o autor, não há, de um lado, o meio geográfico e, de outro, um meio técnico. Os lugares se criam e se recriam a cada movimento da sociedade: o espaço é uma forma-conteúdo, ou seja, “uma forma que não tem existência empírica e filosófica se a consideramos separadamente do conteúdo, e um conteúdo que não poderia existir sem a forma que o abrigou” (p. 25). Dessa maneira, a técnica é a principal forma de relação entre o homem e o meio, constituindo-se como um conjunto de meios a partir dos quais o homem realiza sua existência e cria espaço. A técnica não é, portanto, externa ao espaço, mas é parte integrante do mesmo, sendo um elemento de sua produção e sua transformação. O espaço é formado, assim, por um “conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações” (p. 63). Ou, como o autor coloca em outro texto (1988/2012), o espaço provém da relação da sociedade com a paisagem (formada por objetos materiais e não materiais), pressupondo, necessariamente, movimento.
Para entendermos melhor a relação entre políticas públicas de saúde e espaço, é necessário compreender que, a partir do processo de reorientação do modelo assistencial da saúde que se deu com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), o conceito de território é estruturante da atenção primária em saúde no Brasil. Conforme expresso na Constituição Federal de 1988 e na Lei Orgânica da Saúde 8.080, o SUS associa a perspectiva territorial à diretriz de descentralização, mediante a regionalização dos serviços e das ações em saúde, objetivando alcançar os princípios de universalidade e integralidade, atenção às demandas locais, participação social e uso adequado dos recursos (Gadelha, Machado, Lima, e Baptista, 2009).
A partir das contribuições de Milton Santos, Maria Laura Silveira (2009) afirma que o que faz o território uma categoria central é o seu uso, visto que não há como explicar o território sem esse: “o território usado não é uma coisa inerte ou um palco onde a vida se dá. Ao contrário, é um quadro de vida, híbrido de materialidade e de vida social” (p. 129). Nessa perspectiva, território usado é sinônimo de espaço geográfico, sendo formado por objetos e ações, sendo que, na definição do território, é preciso considerar a inseparabilidade entre a materialidade e seu uso, a natureza e a ação humana, os fixos e os fluxos. Trata-se, assim, de um território vivo.
Dessa maneira, o espaço como algo vivo não pode ser compreendido, no campo da saúde, como um elemento que somente localiza ou sustenta as práticas de saúde. Na medida em que o espaço é algo complexo, constituído pela interação de diferentes fatores articulados à vida, não havendo uma dissociação entre os chamados elementos naturais e as relações sociais, pode-se afirmar que os discursos da saúde também produzem o espaço, disparando, em função de seu caráter educativo, determinadas transformações culturais, as quais não estão relacionadas somente a porções de terra que podem ser demarcadas, mas, especialmente, aos sujeitos que aí habitam e lhe dão forma (Souza, 2014).
Se pensarmos as políticas públicas como técnicas, podemos compreender como elas definem determinados espaços, não apenas no sentido de delimitá-los, mas também de definir formas de circulação, acesso à saúde, categorias de inclusão e exclusão, etc. Ao recortar uma determinada região, marcando fronteiras, os serviços de saúde produzem fluxos: quem pode ou não ser atendido, qual a agente comunitária responsável por determinada família, para onde se dirigir, quais grupos participar ou não... Por outro lado, como adverte Milton Santos (1996/2012), o espaço também redefine os objetos técnicos, incluindo-os em um conjunto no qual a contiguidade os faz operar de forma coerente e solidária. Nessa perspectiva, podemos afirmar que os diferentes espaços também redefinem as políticas públicas de saúde, integrando-os em um determinado conjunto, ganhando uma significação relativa, impossível em outro lugar.
No caso da Política Nacional de Atenção Básica - PNAB, em sua caracterização é salientada a atenção integral à saúde, tanto no plano individual quanto da coletividade. O conjunto de ações de saúde compreendido pela Atenção Básica é desenvolvido:
Por meio do exercício de práticas de cuidado e gestão, democráticas e participativas, sob forma de trabalho em equipe, dirigidas a populações de territórios definidos, pelas quais assume a responsabilidade sanitária, considerando a dinamicidade existente no território em que vivem essas populações. (Ministério da Saúde, Brasil, 2012. p. 19)
Porém, também é possível pensar que, embora as políticas públicas de saúde brasileiras enfatizem a ideia de dinamicidade do território, tal como colocado acima, há uma tensão permanente entre uma noção fixa de território e a ideia de movimento. Nesse sentido, é interessante ressaltar os dois qualificativos enunciados na PNAB referentes aos territórios: definidos e dinâmicos. O estabelecimento de uma base territorial permite o planejamento e a descentralização das ações: daí a importância de definição do território. Além disso, há um condicionante forte nos serviços ofertados à população: a residência. Nessa perspectiva, conforme a PNAB, uma das questões a ser prevista na implantação das equipes de ESF, equipes de saúde bucal, equipes de agentes comunitárias, equipes de atenção básica para populações específicas ou núcleos de apoio à saúde da família, é a estimativa da população residente. No caso dos grupos que não se enquadram nessa categoria, a população de rua, a PNAB prevê uma política de atendimento mediante consultórios de rua (Ministério da Saúde, Brasil, 2012), cujas equipes estão articuladas aos demais serviços do Sistema Único de Saúde.
No encontro entre as políticas públicas de saúde e a população – equipes e usuários – os discursos que se atravessam nesse agenciamento e circulam nesse território, significam e são ressignificados, constituindo o próprio espaço e os sujeitos desses espaços, produzindo modos de ser-equipes/profissional de saúde e ser-usuários. No caso da PNAB, sob o imperativo de saúde para todos e na prerrogativa de regular a circulação dos usuários entre os diferentes níveis de atenção do SUS, o qualificativo que diz do recorte de territórios definidos implica, também, em modos de conduzir condutas, na diligência entre equipes que buscam, administram, controlam e gerem os modos de ser usuários desejados, isto é, usuários que permaneçam sob o olhar e as prescrições daquilo que os primeiros entendem como práticas de saúde.
Nessa produção de subjetividades, de modos de ser e viver que forjam os sujeitos da saúde (profissionais e usuários), torna-se pertinente compreender a relação entre as políticas públicas e as práticas educativas. Como argumenta Camilo Souza (2014), as políticas públicas de saúde, mediante a circulação de discursos referentes à segurança da vida – ou seja, discursos que objetivam a promoção de melhores condições de vida para a população – constituem-se como ferramentas educativas importantes e se relacionam, diretamente, com as transformações espaciais, interpelando sujeitos e instituindo formas de ser e viver. Para o autor, o espaço não é, assim, um mero palco no qual se desenvolvem as ações da saúde, um elemento secundário, sendo que as práticas educativas têm efeitos sobre o próprio espaço. Entretanto, apontamos que as Estratégias de Saúde da Família, enquanto principais dispositivos da PNAB, têm traduzido e produzido seus territórios na perspectiva do espaço como um elemento secundário, um plano já dado a partir do qual se desenrolam as práticas de saúde, sendo o trabalho desenvolvido, mediante uma série de mecanismos, tais como cadastramento e visitas domiciliares, no sentido da vinculação ao território.
Entretanto, território não se constitui apenas de fixos, mas também de fluxos: como afirma Milton Santos, “temos coisas fixas, fluxos que se originam dessas coisas fixas, fluxos que chegam a essas coisas fixas. Tudo isso, junto, é o espaço” (1988/2012, p. 85). Como agir diante daqueles que transbordam as categorias utilizadas? Como impedir ou controlar a circulação entre os territórios demarcados pela saúde, usuários que não se constituem como população de rua – e que, nessa condição, estariam ‘cobertos’ pelos consultórios de rua –, mas transitam por diferentes territórios, seguindo outras lógicas que não aquelas pensadas pelas políticas públicas? Ou ainda, como o diálogo que abre esse texto nos provoca a pensar, o que fazer diante de usuários que, vinculados a determinada equipe, desafiam os limites impostos pelos territórios adscritos?
Variados são os motivos que determinam o movimento de alguns usuários entre os diferentes territórios da saúde: medo da violência, precariedade das moradias, busca por emprego ou melhores condições de saúde e educação, desentendimentos familiares, entre outros. São estes os nômades produzidos nos tantos agenciamentos do percurso desta pesquisa. Os nômades que compõem a presente investigação não são aqueles que produzem suas existências num movimento constante que é cultural e específico, não falamos aqui de moradores de rua, artistas circenses, comunidades ciganas. A cartografia nos levou a outros encontros: com aqueles que fazem do movimento uma forma de sobrevivência e resistência. Para estes nômades, que não constituem uma população específica – são estudantes, trabalhadores, apaixonados, doentes, filhos de pais separados, pais de filhos distantes, entre tantos outros arranjos possíveis –, que estão ora lá, ora cá, nunca em grupo e não configurando uma condição potencialmente permanente, não existem políticas públicas, na medida em que eles precisam passar a prever a si mesmos.
As agentes comunitárias de saúde (o uso do gênero feminino se justifica pelo fato de que que eram todas mulheres no período investigado e nos serviços onde foi produzida a pesquisa) relatam que as mudanças de moradia nos bairros atendidos são comuns. Tais mudanças não se dão apenas para outros municípios ou bairros, mas dentro do próprio bairro, desafiando as divisões estabelecidas, já que na ESF cada agente comunitária de saúde assume como responsável uma microárea dentro da área de abrangência do serviço. Há casos de pessoas que mudam para uma casa de uma mesma rua, porém, ao fazerem isso, ultrapassam as linhas traçadas pela saúde: “do lado de cá, é uma microárea; do lado de lá, é outra” (Profissional 1, entrada do diário de campo, 10 de setembro de 2012)3. A cada mudança, mesmo que dentro da abrangência de uma mesma ESF, é necessária a destinação a outra agente comunitária e a consequente troca no número do cadastro. Quando se trata de uma mudança para outra ESF, há necessidade de transferência do prontuário para o outro serviço, sendo que, nesta passagem, este é enviado para a Secretaria Municipal de Saúde4. Há também situações como de uma determinada família que transita entre dois municípios, obrigando o serviço de saúde a ativar e desativar, constantemente, o cadastro. As agentes comunitárias, reconhecendo a não fixação de alguns usuários, muitas vezes realizam, em um primeiro momento, o que denominam como um cadastro provisório, esperando um determinado tempo – em torno de um mês – para incluí-los como moradores da área de abrangência da ESF. Neste movimento, muitos usuários não chegam a ser cadastrados, pois permanecem um tempo considerado muito breve.
Desta maneira, se o território agencia formas de gestão da vida, as constantes mudanças dos usuários provocam a flexibilização das rotinas dos serviços de saúde, as quais precisam ser adaptadas, inventadas e reinventadas diante dos diferentes modos de viver que se apresentam no território, embaralhando seus limites. É significativo, assim, o relato de uma agente comunitária de saúde:
Fiz uma coisa meio errada essa semana: tem uma gestante que eu sei que não mora aqui, só que, lá onde ela mora, o atendimento é muito ruim. Sei que ela quer fazer o pré-natal aqui e me mentiu que está morando com a tia. E eu cadastrei... (...). Aí ela fica aqui só nos dias de consulta e me perguntou em que dias eu fazia a visita, e eu acabei meio que combinando os dias das visitas com ela. No fundo, não acho certa essa coisa de ter que morar aqui pra ser atendido, se lá é ruim. No fim, sei que ela só vai ficar aqui durante a gravidez. (Profissional 2, entrada do diário de campo, 19 de setembro de 2013)
Os usuários nômades subvertem as lógicas disciplinares que se fazem presentes nas rotinas dos serviços de saúde. Se, por um lado, a noção de território abarcada pelas políticas públicas busca garantir a inclusão de todos, tais usuários escapam aos controles: hoje estão aqui, logo não estarão mais. Os profissionais de saúde se queixam: “a gente sempre fica sabendo pelos outros quando vai ter mudança, as famílias nunca se lembram de contar para a gente que estão querendo se mudar. Afinal, quando as pessoas se mudam, o cadastro vira uma confusão” (Profissional 3, entrada do diário de campo, 09 de abril de 2013). Os movimentos dos usuários são vistos como um desconforto, um empecilho para a assistência à saúde. Uma das agentes comunitárias desabafa:
Cadastra, descadastra. Não aguento mais. Esse mês está terrível, em uma semana vão e voltam, voltam e vão. Parece que no calor fica mais fácil[…] Uma grávida veio, só cadastrei e a guria se mudou, agora já ouvi falar que está aí de novo. Aí, se mudam só uns, outros ficam, dá uma trabalheira e uma confusão naquelas pastas! (Profissional 4, entrada do diário de campo,12 de setembro de 2013)
Diante de tanto desconforto, uma menina responde à indagação da agente de saúde sobre o porquê de seus pais se mudarem tanto: “Mas que mal tem?! Sei lá, a gente gosta de se mudar, foi por isso...Precisa de um motivo? Faz mal se mudar?” (Usuário 1, entrada do diário de campo, 13 de junho de 2013). Os profissionais de saúde esforçam-se para fixá-los, seja por ações de convencimento ou pela tentativa de prever suas andanças. Uma das agentes, perante uma situação de uma mulher idosa que se divide entre as residências dos filhos, comenta: “Volto semana que vem pra ver se ela está aqui e se já decidiu onde vai morar. Então, até a semana que vem, vou conversar com a equipe e a gente vê e decide essa história de cadastro” (Profissional 4, entrada do diário de campo, 14 de novembro de 2013).
Uma vez que a lógica do território está estreitamente ligada à noção de saúde para todos, é possível perceber que a noção de território organiza-se como um jogo estratégico no campo da saúde, buscando o que Michel Foucault (1978/2008) entende por governo da população. Assinala-se aqui que a população não se reduz à soma dos indivíduos que habitam um território, mas consiste em uma variável que depende de uma série de fatores, como, por exemplo, o sistema de impostos, a distribuição e circulação dos lucros, entre outros. Além disso, ao distinguir os modos de funcionamento do poder, o autor assinala que, de uma forma simplista, seria possível dizer que enquanto o poder soberano é exercido sobre o território, a disciplina se volta para o corpo dos indivíduos e a segurança se dirige para a população. Porém, também sublinha que se trata de um esquema reducionista, pois todas as três formas de exercício de poder – soberania, disciplina e segurança – lidam com multiplicidades (pois o território é povoado e o corpo dos indivíduos se inscreve no conjunto da população) e compartilham os problemas relacionados ao espaço (sobre o território, sobre a repartição espacial dos corpos, sobre a relação da população com o território).
Entretanto, ao analisar a distribuição dos espaços, é possível afirmar que
Enquanto a soberania capitaliza um território, colocando o problema maior da sede do governo, enquanto a disciplina arquiteta o espaço e coloca como problema essencial uma distribuição hierárquica e funcional dos elementos, a segurança vai procurar criar um ambiente em função de acontecimentos ou de série de acontecimentos ou de elementos possíveis, séries, que vai ser preciso regularizar num contexto multivalente e transformável. (Foucault, 1978/2008. p. 27)
Podemos pensar que os serviços de saúde funcionam na intersecção das práticas disciplinares e mecanismos de segurança; se, por um lado, baseiam-se no esquadrinhamento e controle da população, por outro, buscam respeitar os processos, levando-os em conta, fazendo-os agir. Se as práticas disciplinares pretendem regulamentar (quem, onde e como pode ser atendido), os mecanismos de segurança tratam de gerir, não no sentido de impedir que as coisas aconteçam, mas facilitando, deixando fazer, de modo que as regulações necessárias e naturais, ainda que sempre datáveis e transformáveis, atuem. Mais do que uma simples marcação de limites e uma tentativa artificial de modificação da realidade, trata-se de se conectar a essa realidade, apoiando-se na mesma, constituindo uma política de multiplicidade. Porém, é preciso ressaltar que não se trata de uma substituição dos mecanismos de poder – disciplina por segurança –, pois isso significaria compreender de forma estanque esses processos. “A segurança é uma certa maneira de acrescentar, de fazer funcionar, além dos mecanismos propriamente de segurança, as velhas estruturas da lei e da disciplina” (Foucault, 1978/2008. p. 14).
A esses mecanismos de disciplina e controle que se atravessam e se implicam, o que escapa/resiste tende a ser visto com estranheza e distanciamento, sendo que os modos de subjetivação engendrados por outras práticas que não aquelas que o discurso institucional propõe, são designados a partir da ideia de risco e vulnerabilidade. Na composição dos territórios de saúde, os nômades são uma parcela da população compreendida como vulnerável e perigosa, uma vez que, como relata uma gestora de saúde durante a apresentação da pesquisa, “se nem mesmo se organizam, e preveem suas idas e vindas, como serão previstos, incluídos?” (Profissional 5, entrada do diário de campo, 31 de outubro de 2013). Nesse processo de governamentalidade, enquanto administração da população, pressionados entre as verdades dos discursos de saúde e as formas de normalização assim constituídas, o nomadismo é incluído, de fato, como uma categoria (estática e definida) que prejudica, rompe, desata o trabalho em saúde, polarizando modos de ser-usuário/indivíduo, entre uma espécie de certo e errado que legitima as práticas de esquadrinhamento e controle dos corpos.
É possível ainda perceber, como assinalam Anita Bernardes, Eduardo Pelliccioli e Camilla Marques (2013), que o vínculo, como uma estratégia de cuidado que emerge a partir da ênfase na atenção básica, se forma a partir do investimento na liberdade: o vínculo qualifica o indivíduo, tornando-o capaz de agenciar a si mesmo e também é um atributo que lhe permite integrar a sociedade e engajar-se em seus mecanismos concorrenciais. Os autores afirmam que a capilaridade dos procedimentos de governamentalidade encontra nas práticas de cuidado uma possibilidade privilegiada para seu exercício, ampliando as práticas de saúde para uma lógica que se pretende vinculativa. Tem-se, assim, uma ontologia de rede, a qual só se torna possível mediante o vínculo, sendo que a territorialização da rede se sustenta mediante a produção de sujeitos que se encontram na articulação entre a saúde e o direito, através das noções de corresponsabilidade, autonomia e protagonismo.
Quero falar primeiro dos andarilhos, do uso em primeiro lugar que eles faziam da ignorância. Sempre eles sabiam tudo sobre o nada. E ainda multiplicavam o nada por zero – o que lhes dava uma linguagem do chão. Para nunca saber onde chegavam. E para chegar sempre de surpresa. Eles não afundavam estradas, mas inventavam caminhos. Essa a pré-ciência que sempre vi nos andarilhos. Eles me ensinaram a amar a natureza. (Manoel de Barros. 2008, p. 7)
François Zourabichvili (2004), ao tratar do conceito de território para Deleuze, aponta que este é bastante complexo, referindo-se à relação entre diferentes elementos: território, terra, reterritorialização, desterritorialização.
Inspirado antes na etologia do que na política, o conceito de território decerto implica o espaço, mas não consiste na delimitação objetiva de um lugar geográfico. O valor do território é existencial: ele circunscreve, para cada um, o campo do familiar e do vinculante, marca as distâncias em relação a outrem e protege do caos. (p. 23)
Em uma entrevista denominada Abecedário, Gilles Deleuze (1989/1997) afirma que um território só tem valor a partir das saídas que propicia, movimento que ele denomina como desterritorialização. Nesse sentido, Túlio Batista Franco, Emerson Elias Mehry, Cristina Setenta Andrade e Vitória Solange Coelho Ferreira (2009) propõem, a partir de Gilles Deleuze e Félix Guattari, a ideia de pensarmos em processos relacionais em saúde, como um rizoma, sem começo nem fim, se conectando a qualquer ponto. A produção da ‘realidade social’, como algo descontínuo/mutante, se dá nesses movimentos de “des-re-territorialização” que dizem tanto das intensidades das relações, quanto do funcionamento da forma como se pensa e produz o cuidado.
Tendo em vista tais questões, podemos fazer algumas perguntas: Quais as possibilidades que a noção de território oferece na saúde? Quais as conexões? Como os nômades exploram tais conexões, saídas? O que significa oferecer saídas? A saúde constrói redes ou muros nas fronteiras dos territórios? Nos fragmentos da pesquisa trazidos anteriormente, é possível perceber que os profissionais de saúde, em seu encontro com os nômades, buscam, muitas vezes, acolher a experiência daqueles que insistem em circular por entre os territórios predefinidos da saúde. Nesses movimentos, fendas abrem-se nos muros aparentemente monolíticos da saúde, sendo que, mesmo sob uma diretriz normativa, tanto entre os trabalhadores de uma mesma equipe, como entre equipes de diferentes unidades de saúde, os agenciamentos se dão de forma singular, de maneira que se criam, recriam, inventam e reinventam formas de se pensar os territórios.
De acordo com o dicionário, a palavra incluir (do latim includere), significa: “1) encerrar, fechar dentro de; 2) inserir, introduzir; 3) abranger, compreender; 4) conter em si; envolver, implicar; 5) encerrar-se, conter-se” (2009). Assinalamos que todos esses significados remetem a uma noção de fixação de lugares, mediante uma separação entre dentro e fora, na qual a posição de dentro é a desejável, enquanto aquele que está fora é visto como negativo. Assim, os nômades são marcados pela égide da falta. Entretanto, se um território só tem valor pelas saídas que oferece, os usuários nômades apontam-nos saídas, mostrando que os territórios vazam, são porosos, escorrem por entre os serviços de saúde. Incluir, assim, adquire outros sentidos, não apenas de fixação e controle da população, mas da delimitação de territórios de pertencimento, a partir do investimento no vínculo dos usuários com os serviços de saúde. Um território vivo, que se refaz a cada movimento, transbordando a lógica sedentária e burocrática e obrigando, constantemente, que as equipes repensem as rotinas e os procedimentos dos serviços.
Dessa maneira, o imperativo inclusivo colocado na Constituição de 1988 é tensionado: como pensar em saúde para todos sem homogeneizar a ideia de todos, constituindo uma política de multiplicidade? No encontro das políticas de saúde com os usuários que não se fixam aos territórios, é construída uma necessidade absoluta de se pensar outros modos de fazer, não tomando a inclusão de uma forma idealizada, como um ponto de chegada inquestionável, mas um ponto de partida: os nômades nos ensinam que os territórios se movem, esfumaçam-se em suas andanças. Às políticas de saúde, resta acompanhar seus passos, não afundando estradas, mas compondo caminhos.
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Barros, Manoel (2008). Memórias Inventadas. A terceira infância. São Paulo: Ed. Planeta do Brasil.
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Deleuze, Giles (1989/1997). O Abecedário de Gilles Deleuze. Paris: Montparnasse.
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