Em busca do silêncio e da infâmia nas drogas: percursos de experiência, escrita e pesquisa

In search of silence and infamy in drugs: courses of experience, writing and research

  • Pedro Augusto Papini
  • Jaqueline Tittoni
Este trabalho mostra um percurso em dois espaços de educação permanente em drogas: as experiências nos projetos Caminhos do Cuidado e Rede Multicêntrica narrado na forma de uma pesquisa acadêmica. Aqui procuramos desenhar estes espaços no fio da experiência do pesquisar, onde a experiência de escrita pode produzir e reconstruir as questões de um campo de experimentações. Campo este, de dispersão e de narrativa, mas que se apresenta com alguns pressupostos de busca: como a busca pelos silêncios nos discursos que falam intensamente sobre drogas. Partiremos de uma introdução que indica alguns equipamentos que compõe a produção do pesquisar, a saber, a escrita, a leitura e a análise de um percurso na forma de produção de narrativas. Tais estratégias nos alçarão a pensar os discursos que pululam em discrição quando se diz de usuários de drogas e das estratégias que orientam as políticas públicas neste campo.
    Palavras chave:
  • Drogas
  • Narrativas
  • Educação
This work shows a journey in two drugs lifelong education spaces: the experiences in the Caminhos do Cuidado’s and Rede Multicênttrica’s projects narrated in a academic way research. Here we look to draw these spaces in the knife-edge of the researcher’s experience where the writing expierence may produce and rebuild the poits of an experimentation field. Field of dispersion and narrative but with some assumptions of this search: like the search for a silence in drugs theme. We will leave for an introduction that indicate about a gear that composes the research production; that gear are the writing, the reading and the analysis in the research process in the shape of narrative production. These strategies will make we think about the discourses that swarms in discretion when we talk about drugs and drugs users and about the strategies that guide the public policies in this field.
    Keywords:
  • Drugs
  • Narrative
  • Education

1 Introdução

A pesquisa acadêmica é um percurso, tanto quanto um resultado; ela é um instrumento para problematizar, tanto quanto mais tornar possível o conhecer. Ao compartilharmos uma perspectiva crítica que inscreve o pesquisar em processos de experimentações e problematizações implicados com os movimentos da vida e suas descontinuidades, a narração de um processo de pesquisa compõe, também, este percurso. Em uma perspectiva que toma o conhecimento como construção que, para além de firmar os alicerces que lhe dão sustentação, busca novas formas e novas aberturas, o narrar um processo percorre, ele mesmo um percurso particular a ser tematizado. Neste texto, buscamos mostrar uma narrativa que se ensaia à luz da produção foucaltiana sobre a vida dos homens infames, fato que se revela, aqui, tal qual se mostrou no próprio percurso do pesquisar, a saber, no final. Buscamos mostrar um percurso, entre tantos, que se construiu orientado pela curiosidade de ouvir os silêncios que habitam a tagarelice dos discursos sobre as drogas e, especificamente, sobre drogas e saúde mental, que é o campo de experimentações que se delineiam nesta pesquisa.

Inspirados em Michel Foucault (1984/2013), entendemos o pesquisar relacionado com o descaminho daquele que conhece; este interlocutor nos dá sustentação quando imaginamos que a imersão em fluxos de experimentação, como em um campo de pesquisa, tem como propriedade mudar aquele que entra no fluxo. O exercício da narrativa da pesquisa, neste caso, implica em estar disposto a sucumbir ao problema que o levara até ali, para, então, modificá-lo e transformá-lo no próprio processo de escrita. Dizer que se vai narrar o processo de pesquisa pode, também, ser cair em armadilhas transcendentais ou individualizantes; portanto, antes de propriamente narrar, há que se falar em como, de que modo, com que pressupostos.

Para pensar tais questões, queremos olhar brevemente sobre o que poderíamos chamar de uma ascese da pesquisa, como nos mostram Jéssica Prudente e Jaqueline Tittoni (1984/2014), a partir de estudos foucaultianos. As autoras nos apresentam uma leitura dos estudos de Michel Foucault sobre a ascese como exercício ético e a paraskeué como equipamento deste exercício, traçando possíveis relações destes elementos teóricos com as estratégias metodológicas no processo do pesquisar. Tomando a ética como problematização da liberdade (Foucault, 1984/2014), o exercício ético da pesquisa consiste em interrogar, provocar e tensionar as relações de poder e as condições de sujeição na busca dos espaços de criação, de produção de diferenças e de reflexões possíveis no campo de pesquisa (Prudente & Tittoni, 2014). Como interrogar, provocar e tensionar, perguntam as autoras, para, em seguida, responder: por uma série de exercícios onde a escrita e a leitura são dois deles.

As autoras afirmam que a escrita é um dos elementos dessa ascese do sujeito-pesquisador-escritor, da constituição dessa relação de si para consigo, tão cara a Michel

Foucault nos últimos cursos do College de France. Mas qual é a tática, qual é o instrumento desta ascese? Podemos pensar que a paraskeué está para a ascese, assim como a metodologia está para a experiência da pesquisa. A paraskeué é uma das táticas da ascese ou uma de suas estratégias. Assim, podemos entender a metodologia como uma paraskeué ou um equipamento. A paraskeué que Foucault (2001/2011) nos traz, é a preparação ao mesmo tempo aberta e finalizada do indivíduo para os acontecimentos da vida. Foucault nos mostra a parasskeué como o exercício do atleta do acontecimento.

“Trata-se pois, na ascese, de encontrar uma preparação, uma paraskeué capaz de ajustar-se ao que se possa produzir, e a isso somente, no momento exato em que se produzir, caso venha a produzir-se” (Foucault, 2001/2011, p. 286)

Neste trabalho falaremos da experiência em dois locais que formam uma geografia da nossa busca, traduzida na dissertação de mestrado “Fragmentos de um cálice: drogas e narrativas”, defendida junto ao programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Estes dois espaços são o projeto “Caminhos do Cuidado” e a “Rede Multicentrica”. Um relato de pesquisa é sempre polifônico e pode-se ouvir, muitas vozes nas entrelinhas que habitam as restrições impossíveis da escrita. Neste caso, em especifico, propusemos ouvir os silêncios e a busca foi, na maioria das vezes, por recursos de escuta e de visibilidade. As cidades, os lugares, as histórias contadas nas rodas de conversa são material que torna capaz dizer de um certo silenciamento, pois ao metaforizar uma certa infâmia, nos permitem acessar o que se enuncia silenciosamente como um segredo contido nas palavras e nas figuras que podem indicar. A relação com as drogas como um segredo que se enuncia infâmia mostra-se, então para ser, a partir disso, uma outra coisa. Esta exposição distingue uma, entre as várias vozes desta pesquisa acadêmica, a saber, aquela que pode mostrar como os elementos para compor uma narrativa foram sendo escolhidos e colocados em destaque para dizer, neste caso, das relações de continuidade e de ruptura nos discursos que sustentam as linhas que ligam as drogas e a saúde mental. Estes elementos foram sendo destacados das histórias vividas no processo do pesquisar, envolvendo relatos de situações vivenciadas em processos de educação permanente com trabalhadoras e trabalhadores da saúde, bem como foram sendo definidos e elaborados a partir das experiências que ligavam pesquisadores e os processos de pesquisa.

Por fim, cabe, ainda, apresentar de modo sucinto uma paraskeué a que nos propomos: a prática da leitura de Marcel Proust e sua obra Em Busca do Tempo Perdido. A imersão em tal obra literária como parte de um exercício de ascese não é aleatória, já que importantes interlocutores desta pesquisa escreveram seus ensaios sobre ela, como Walter Benjamin, Maurice Blanchot e Gilles Deleuze. Este último dedicou um livro à obra de Proust, e inicia o seu trabalho falando justamente sobre o termo “busca” do título; ele diz que a “busca” não é simplesmente um esforço de recordação. A busca, diz Deleuze, é o relato de um aprendizado (Deleuze, 1964/2010). Não queremos de forma alguma discutir as inúmeras leituras que se tem da obra de Proust, mas é importante frisar que neste trabalho ela faz parte de uma tática. Podemos pensar que Em Busca do Tempo Perdido funciona como uma paraskeuê, dita assim por nós, pois é um livro que conta a história de um texto (Motta, 2013). E, ainda, quase que simplesmente com a reprodução de seu título já podemos pinçar a questão da pesquisa, a busca. A La Recherche Du Temps Perdu poderia ser traduzida pela “pesquisa do tempo perdido”. Portanto, sobre esta obra literária destacamos esses três elementos que se sobrepõe nesta tática da narrativa da pesquisa: a “busca”, o relato de uma aprendizagem e a história de um texto.

Poderíamos tomar assim um modo de pensar a pesquisa: um percurso, um percurso de uma busca em encontrar algo. E, adendo a isto, Maurice Blanchot (1969/2010) nos ensina algo muito importante na palavra encontrar.

Lembro-me de que a primeira significação da palavra encontrar não é de forma alguma encontrar, no sentido do resultado prático ou científico. Encontrar é tornear, dar a volta, rodear. Encontrar um canto é tornear o movimento melódico, fazê-lo girar. Aqui não existe nenhuma ideia de finalidade, ainda menos de parada. Encontrar é quase exatamente a mesma palavra que buscar, que diz 'dar a volta em'. (1969/2010, p. 63)

Uma última nota introdutória sobre a escrita. Como Michel Foucault é um interlocutor importante, olhemos para o que ele nos diz em uma entrevista em que ele faz um raro relato biográfico e fala sobre a escrita (Artières, 2004). Foucault revela que seu estilo vinha de uma antiga herança do bisturi: “Talvez, no fim das contas: será que não traço na brancura do papel aqueles mesmos signos agressivos que meu pai traçava outrora sobre os corpos quando ele operava? Eu transformei o bisturi em caneta” (Foucault, 2011/2016, pp. 43-44). Foucault com sua escrita percorria e incidia o corpo do outro.

2 Turbulência e maniçoba: a experiência no projeto Caminhos do Cuidado e na Rede Multicêntrica

Estamos em um avião indo para casa. Boa e velha casa. Existe um tipo de turbulência da qual as pessoas dizem que o avião “pegou um vácuo”. É um fenômeno causado por correntes de ar dentro de nuvens ou grandes diferenças de pressão, acontece uma momentânea perda de sustentação e o avião perde altura como um elevador que desce muito rápido. Viajar de avião é um luxo, viajei a primeira vez há poucos anos; com o projeto Caminhos do Cuidado as viagens passaram a ser frequentes e, como muitos, já nem me lembro mais quantas vezes utilizei desse veículo que intervém na virtualidade das distâncias. Pegar um vácuo é sentir uma fugaz certeza de que o avião vai cair e que vamos todos morrer incapazes de fazer qualquer coisa.

Neste dia que peguei um vácuo no ar, estava voltando da linda cidade de Belém para Porto Alegre. Chamou-me a atenção que em Belém, ao mapa no extremo oposto de Porto Alegre (onde resido), fosse possível depararmo-nos com os mesmos escritos que violam os muros da capital gaúcha: “polícia fascista”, “passe livre”, “foda-se a copa”.

Em Belém, deixei de comer maniçoba, um prato típico local. A maniçoba, dizem, é algo como uma feijoada indígena que, ao invés dos comuns grãos escuros do feijão, sua feitoria é a base de folhas de mandioca. Não ter experimentado a maniçoba me deixa com duas saudades: uma refere-se ao fato de que, diferente das pichações, não encontro esse alimento em Porto Alegre; o outro fator consiste na poesia de seu preparo. A folha de mandioca é cozida durante sete dias ininterruptos, é um paciencioso procedimento para que seja neutralizado o seu veneno.

Tive a sorte de combinar viagens com trabalho e com pesquisa. Em dado momento, minha função no projeto Caminhos do Cuidado era estar junto a profissionais de nível superior do Sistema Único de Saúde - SUS - para estes tornarem-se tutores de um curso voltado para agentes comunitários de saúde (ACS) e agentes e técnicos de enfermagem (Atenfs) de Estraégias de Saúde da Família nas suas cidades de origem. O principal objetivo do projeto era formar a totalidade dos ACSs e boa parte dos Atenfs do país na discussão sobre drogas e saúde mental. Para isso, era preciso que uma equipe centrada, inicialmente, no Rio de Janeiro e em Porto Alegre, se estendesse pelo território nacional durante os anos de 2013 e 2014 para preparar os tutores para darem aula ao público final.

Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Curitiba, Goiânia, Belém, Salvador, Porto Alegre, Belo Horizonte, Vitória, Fortaleza, Porto Velho, Boa Vista e São Luiz são cidades, nesta ordem, que já visitei com os propósitos do projeto Caminhos do Cuidado. Falando desse modo das cidades, já denoto certa serialidade a que me sinto exposto; refém da memória e incapaz de abraçar todas as belezas e todas as singularidades, agora lembro delas assim, em lista.

O projeto Caminhos do Cuidado teve por objetivo principal, a formação da totalidade de agentes comunitários de saúde e parte dos técnicos de enfermagem do Sistema único de Saúde para trabalhar com drogas e saúde mental. Foi uma ação de governo federal que envolveu eixos de um programa sobre drogas mais amplo: o Crack é Possível Vencer (Brasil, 2011), que continha três eixos: cuidado, educação e autoridade. Uma direção frequente da cartilha que explica o programa é a integração entre entidades para lidar com o problema (juntos contra um inimigo comum!). O projeto Caminhos do Cuidado foi financiado seguindo a lógica da integração dos eixos Cuidado e Educação.

Algo muito importante nos cursos, tanto para tutores como para os agentes e técnicos de saúde, se colocava no sentido de deslocar preconceitos quanto ao cuidado de pessoas que usam drogas, já que as discussões sobre drogas são permeadas fortemente por dizeres reducionistas. No nosso contato com os profissionais da saúde, se colocava evidente este discurso comum que vemos de modo problemático nas mídias de grande circulação. Assim, como a procurar o novo referenciado no velho ou procurando o novo baseado no velho, tínhamos esse a priori de que o tema era polêmico e, por vezes, dramático e carregado de práticas fascistas. Contudo, belas histórias nos surpreenderam tanto quanto as funestas. E de funesto, podemos lembrar de uma roda de conversa, onde uma profissional de uma pequena cidade do interior, narrou sobre um jovem usuário de crack que foi, junto com outros pacientes de um Centro de Atenção Psicossocial em Álcool e Drogas - CAPS AD, a um evento do tipo seminário chamado “como vencer as drogas”; durante o evento, o rapaz parecia meio agitado - narrou a colega - e, provavelmente, ele “tinha usado naquele dia”. Quando as autoridades iniciaram a fala de abertura (secretarias da saúde, segurança, educação e prefeito), o jovem agitado irrompeu do silêncio da plateia e gritou: “ESTOU COM FOME”; imediatamente, como se já tivessem apostos e o grito do rapaz soasse como “AGORA!”, um grupo de policiais avançou sobre o jovem, imobilizando-o e, em seguida, arrastou-o até a viatura. A mesma, sem mais explicações, saiu e se perdeu na distância dos olhos envergonhados das pessoas que ali ficaram.

De belo, podemos lembrar de uma moça cega participando do curso para tutor que contou a sua história de cegueira tardia e disse da experiência de modificar um olhar; ao fim, pegou um violão e tocou uma música.

Experimentarmos nos perder entre os caminhos do belo e do funesto e tentar vaguear ao alto as dicotomias que restringem tanto o pensamento nas discussões sobre drogas (Torossian & Papini, 2013) é um intento desta escrita e deste projeto. A experiência do deslocar-se, neste caso, entre dicotomias, pode mostrar-se um instrumento ético capaz de novos traçados, curioso de novas aventuras e inquieto de sua própria experimentação.

Um curioso procura curiosidades. Curiosidade, imaginemos, é uma espécie de vontade - diferente da realização final de um desejo. Então, nos é permitido pensar, se um curioso procura curiosidade, ele procura uma vontade; porém, procurar já pressupõe uma vontade: a vontade de achar. Então, a partir dessa breve reflexão podemos pensar que curiosidade é uma vontade de vontade; coisa parecida com a insônia (que é vontade de vontade de dormir).

Devaneios a parte, a curiosidade dava vontade de ver detalhes únicos em todas as cidades. Ocorre, porém, que um dia, em Curitiba, confessei para uma colega algo que incomodava minha curiosidade. Um pouco embaraçado, disse a ela que havia algo inesperado nas cidades que andávamos visitando: elas eram, de certo modo, iguais. A minha colega (que estava em sua primeira viagem com o projeto), também ansiosa por singularidades, discordou e deu a entender que eu não estava me esforçando direito e que eu era pouco criativo. É claro que eu estava me esforçando.... Mais tarde esqueci-me desse episódio. Agora, porém, posso lembrar que sim as singularidades estavam lá; só que não as encontrei, obviamente, onde eu estava procurando. Afinal, nos parece que um curioso só se sacia quando encontra algo de fora, da borda exterior ao que a imaginação pôde suportar; um curioso nunca acha nada, porque quando acha, esqueceu-se que estava procurando.

Dessas memórias, opto por registrar que havia uma friagem nas cidades, friagem que as continuidades suscitavam neste pesquisar. Há um filme dirigido por Anna Luiza Azevedo (2009) que se chama “Antes que o mundo acabe”; neste, um fotógrafo está envolvido em um projeto cujo nome é homólogo ao do filme: “Antes que o mundo acabe”; ele viaja pelos continentes do planeta catando os últimos registros de civilizações que nunca tiveram contato com a história da cultura global hegemônica. A ideia do projeto no filme é fazer esses registros antes que seja impossível.

A continuidade vem logo antes (é uma irmã mais velha) da generalização. E as cidades visíveis a que me referia à minha colega, aqui, são importantes para esboçarmos a problemática da continuidade. E é precisamente na cidade de Curitiba, no ônibus que nos levava do local dos cursos até o hotel, que as ideias da pesquisa começaram a virar texto. Preocupado com os acontecimentos que o tema das drogas fazia emergir no projeto Caminhos do Cuidado, falei para os amigos: “o que há é um silêncio na área das drogas, é proibido falar!”; o que um astuto e experiente colega respondeu “ao contrário, se pode falar sim das drogas, e se fala até demais! O que há é uma tagarelice”.

Aeroporto, táxi, hotel. Isso esteve necessariamente presente em todas as cidades. Desses três elementos, ouso destacar um deles: o hotel. Diferente dos táxis e dos aeroportos, os hotéis, lugares de estadia e não de passagem, são os que, dos três, encontro lembranças bem mais palpáveis. E não digo isso pelo fator (talvez crucial) de que as formações aconteceram nos mesmos hotéis em que estávamos hospedados.

Em Minas Gerais, em um curso de tutores, ficamos em um hotel antigo e grande no centro da cidade de Belo Horizonte. Havia lindas tapeçarias enfeitando longas paredes que desembocavam em escadas. Tinha um teatro com capacidade para mais de quinhentas pessoas. Tudo muito velho, nos espaços para realização de eventos - muitas salas com carpete vermelho, as majestosas tapeçarias sempre nas paredes enquadradas em vidro; algumas salas possuíam lustres bonitos e desnecessários; inúteis cortinas contornavam as bordas das janelas de salas onde não entra o sol. Havia enfeites e decorações que chamavam outra época; parecia o ambiente aristocrático de um filme dos anos 30 (ou de uma era proustiana). Quanto a esse ambiente todo, descobri que ali, naquelas salas em que faríamos uma capacitação sobre drogas para profissionais da saúde, em áureos anos passados, ocorreram as efusões de um grande cassino que o hotel abrigara.

E nesse hotel em que os vícios trocavam suas máscaras em um baile do tempo, após uma oficina, escutamos a história de Fernanda. Fernanda era uma enfermeira de uma Estratégia de Saúde da Família que expôs em um debate um sentimento; ela temia ser negligente. Contou que se estivesse fazendo seu trabalho na unidade de saúde e chegasse uma pessoa que está, segundo avaliação dela, nitidamente se matando devido ao uso de alguma droga, ela, como profissional, se não dissesse para essa pessoa parar de fazer uso, estaria sendo negligente. Como educadores achamos essa uma ótima questão, em especial porque fazia parte de um anseio. Pedimos para que Fernanda contasse mais.

Acontece que Fernanda atende no posto a Dona Terezinha. As duas encontram-se há dois anos quase toda a semana. A Dona Terezinha, na verdade, também é conhecida como Professora Terezinha. Fernanda disse que o que a perturbava enquanto profissional de saúde era que a Dona Terezinha bebia mais de um litro de cachaça por dia. Todos os dias. Nos fins de semana, começava na sexta-feira à noite e só parava no domingo; o fim de semana era diferente dos dias “úteis” porque Dona Terezinha trabalhava como professora em uma escola local. Fernanda procurava entender de que maneira a professora Terezinha conseguia beber mais de um litro de cachaça em uma noite e, pela manhã, estar em plena disposição para ir ao trabalho – todos os dias, não faltava nunca.

Fernanda solicitava ao grupo da oficina uma “explicação física” para o que acontecia com a sua paciente. Lembrou do problema clássico da mistura de fármacos (quando um combina com outro e sua interação se torna fatal); a presença insistente do álcool poderia interagir com outra eventual substância de ordem médica, ocorrendo em envenenamento. Esta problemática soma-se a outra especulação: a de que toda pessoa que consome álcool compulsivamente, quando parar, sofrerá de graves sintomas de abstinência, podendo vir a óbito em função da ausência abrupta da coisa. Pois bem, este último quesito somado com o primeiro é um ponto que, em especial para Fernanda, coloca sempre o bêbado, drástico, sorrindo inutilmente para a morte.

Contudo, com a Dona Terezinha, acontecia uma coisa incrível: se ela precisasse, por dica médica, tomar algum outro phármakon de má interação com o álcool, ela simplesmente parava de beber durante os dias necessários. E era para isso que Fernanda solicitava uma “explicação física”, para a ausência dos famigerados sintomas de abstinência.

A rotina básica e resumida de Dona Terezinha era ir à escola o dia inteiro; à noitinha, passar no bar, comprar a sua cachaça e ir para casa; depois, beber e desabar para no dia seguinte começar de novo. Isso em todos os dias do ano, com uma exceção, porém. Durante os 40 dias da quaresma, Dona Terezinha não colocava sequer uma gota de álcool na boca.

Me pergunto, lembrando da maniçoba, quanto (ou como) é preciso escrever para se extrair o veneno das palavras? As palavras escritas carregam em si remédio e veneno: Jaques Derrida (1972/1991) chama isso de phármakon. Na escritura, o remédio e o veneno são inseparáveis: em realidade, é diferente da maniçoba – o tempo não está a favor da escritura porque ela só é presente. O Phármakon é um filosofema que refere aquilo que contem em si a vida e a morte, o remédio e o veneno.

Derrida (1972/1991) diz que as traduções para a palavra grega phármakon vão acabar escamoteando um sentido originário. Para os gregos a que o autor se refere, o termo carrega imiscuído tanto o valor do remédio quanto do veneno. Perigo e salvação na mesma palavra. Em alguns contextos, o apelo do remédio pode ser mais claro, mas o veneno nunca deixará de estar ali, compondo a substância. E o autor nos mostra em uma reflexão sobre um texto de Platão, como a ideia do phármakon se associa à escrita.

Escritura, maniçoba, álcool. Novamente, um triunvirato de continuidades nesta história. Referências importantes aqui pois dizem daquilo que interage de modo, por vezes, ambíguo com os sujeitos dessa experiência (seja o escritxr, o pesquisadxr ou o usuárix de drogas). Mas nos remontemos ao aeroporto, ao táxi e voltemos ao hotel de Belo Horizonte. Lembrar da maniçoba é válido: sublinhar as continuidades é importante neste trabalho. Para Fernanda, parecia haver uma ausência de continuidade na história em relação a Dona Terezinha, uma lacuna “física” que fazia a enfermeira sentir-se impotente e afastada frente à situação.

É curioso que essa displicência que Fernanda imaginava não se refletiu em uma memória que, ao fim do debate, como um último lembrete importante, ela contou. Certo dia, em um domingo, ela recebera uma ligação: era uma das filhas da Dona Terezinha. Dona Terezinha começara a beber cachaça na sexta-feira e, segundo a filha, não dava sinal de quem ia parar e parecia até que estava revirando os olhos. (Fernanda disse para o grupo que a escutava na roda de conversa que nunca dava o seu número pessoal para as pessoas que ela atendia, este caso era uma exceção). A filha de Dona Terezinha perguntou para Fernanda se elas tinham que internar a mãe; Fernanda respondeu que aquilo era uma decisão da família, mas que levassem em conta que, quando a Dona Terezinha melhorasse e percebesse que ela estava no hospital e não na escola, ela ia ficar brava. Dona Terezinha não foi internada: no dia seguinte, acordou e foi trabalhar – à noite, estava tomando cachaça de novo.

Fernanda tinha uma vontade de falar, de dizer algo a Dona Terezinha; e, do modo como ela contava, o que acontecia fora da ordem do prescrever estava longe da nobreza de uma ação de cuidado e de sensibilidade. E aqui, em Minas Gerais, lembramos de Curitiba, naquele ônibus em que começamos a pensar sobre a tagarelice e o silêncio nas drogas; e, em Belo Horizonte: o silêncio incômodo de Fernanda.

Negligência lembra “o ato de não fazer”, de omitir-se; talvez o silêncio seja uma forma de omissão da palavra. Mas, nos ensina Maurice Blanchot (1969/2010), em um diálogo é justamente essa omissão da palavra de um que proporciona a palavra do outro, o câmbio de interlocutor. Por isso então esta inversão em Curitiba: o que eu disse com “nas drogas não se pode falar” aqui se transmuta em “nas drogas não se pode ficar em silêncio”; lembrando de Fernanda, a quietude pode até ser confundida com negligência profissional. Esse medo de não estar presente parece forçar o diálogo a constituir-se em uma falange continua, monológica, indo a uma direção e vindo de um lugar – deixando pouco espaço para fragmentar-se no plural da interlocução.

O silêncio também carrega suas ambiguidades. Como o caso de um outro relato cuja conversa trata sobre a existência dos ininvestíveis em um hospital de Porto Alegre, pois podemos achar que os ininvestíveis habitam uma geada do silêncio. É notável, contudo, que o silêncio frente aos ininvestíveis não é narrado como negligência profissional, mas sim como um triste fado.

Em Porto Alegre participo de um coletivo de educação permanente em drogas chamado Rede Multicêntrica. A Rede Multicêntrica proporciona cursos onde se pode debater o tema das drogas, da redução de danos e das políticas públicas. E também, em Porto Alegre, de modo parecido com o Caminhos do Cuidado, posso estar em contato com esses debates de trabalhadores sobre o tema das drogas. Foi em um curso da Rede Multicêntrica que um grupo de profissionais de um hospital local disse dos pacientes “que não se investe mais”.

O ininvestível carrega um desmerecimento e uma presença – um imbricamento do biopoder (Foucault, 1976/2011). Este personagem está frente a um atendimento de saúde, está ali, com o corpo sondado em uma instituição que faz circular a palavra de que nele não se investe, de que a ele se é indiferente, de que nele não há força que se queira mais pôr. O fazer morrer e o deixar viver se confundem. O ininvestível é aquele sujeito que está em tal grau de degradação e que já foi tentado de tudo para que ele saísse deste estado; e que é preciso, por força e como que por esgotamento de opções, digamos, deixar morrer. E, mesmo assim, ele está ali, sendo desinvestido no hospital, o lugar de excelência para se fazer viver. Um imbricamento do biopoder: forçado a viver, deixado para morrer.

O ininvestível não é negligenciado, ele não é esquecido e o hospital ocupa-se dele. O discurso “daqueles que não se investe mais” é encontrado em um umbral onde as palavras são sempre as mesmas, onde seus atos contados são previsíveis e incontroláveis – indignos de investimento. O ininvestível está alocado em um silêncio que não pede movimento, em uma espécie de “já dito” que não dá necessidade de dizer mais; participa de uma fala que quando vê a abertura do estranho e do novo, se cala.

Esta reflexão sobre o ininvestível deve ser levada em consideração não apenas para agregarmos complexidade ao que chamamos de silêncio, mas, também, para caracterizar esse espaço da Rede Multicêntrica, onde também se conta e se problematiza muitas histórias sobre drogas.

A Rede Multicêntrica e o Caminhos do Cuidado expuseram este pesquisar a uma ampla e variada rede de lugares e de pessoas conversando sobre o tema das drogas. Não quaisquer pessoas, sim trabalhadores de algum equipamento das redes de políticas públicas. Mesmo com essa última constante, o que ocorre é uma verdadeira dispersão, uma desconcentração, uma diáspora de histórias, um alongamento da experiência. E esse alongamento é importante parra a narrativa. Para Walter Benjamin (2012), essa distância vai ser uma característica do narrador; o narrador contém o longínquo, é um viajante, um constante forasteiro - ou é uma pessoa muito velha, que leva o mistério da experiência nos seus anos vividos.

3 O que catar? (a invenção sobre o arquivo)

Foucault (2012) discute sobre o que ele escolherá chamar de vida dos homens infames. Neste texto, A vida dos homens infames, Foucault descreve um arquivo com o qual ele escolheu se ocupar. O quê em tais ou quais registros fez com que se quisesse olhar para eles. Registros que se caracterizam por ter surgido depois de dois séculos de silêncio. Vidas ínfimas que se tornaram cinzas nas poucas palavras que as abateram, diz Foucault (2012, p. 202). No meio dos documentos e notificações, esse autor diz ter procurado personagens obscuros que pertencessem a esses milhares de existências destinadas a passar sem deixar rastro.

As histórias do Caminhos do Cuidado e da Rede Multicêntrica são cheias de personagens destinados a passar sem deixar rastros. Rastro é o signo de uma ausência. Apaguem os rastros! Nos aturde o poema de Bertold Brecht (1956/2000).

Foucault diz, da vida dos homens infames, que a raridade e não a prolixidade faz com que real e ficção possam ser equivalentes. Fragmentos de pura existência verbal, mas “fragmentos de discurso carregando os fragmentos de uma realidade da qual fazem parte” (Foucault, 2012, pp. 202-203). O fragmento não como a parte de um todo, mas contendo o todo. “Relatos que não mais existem senão através das poucas palavras terríveis que eram destinadas a torná-los indignos para sempre da memória dos homens” (Foucault, 2012, pp. 201-202).

Inspirados nesse movimento de investigação foucaultiana, pensamos em dizer o que nos atraiu para essa ou aquela história. Foucault fala de um embaraço e de uma certa poesia que fez brilhar alguma coisa ou outra. Em dado momento do texto, o autor lista algumas “regras simples” que ele diz ter se imposto:

  • Que se tratasse de personagens tendo existido realmente
  • que essas existências tivessem sido, ao mesmo tempo, obscuras e desventuradas;
  • que fossem contadas em algumas páginas, ou melhor, algumas frases, tão breves quanto possível;
  • que esses relatos não constituíssem simplesmente histórias estranhas ou patéticas, mas que de uma maneira tivessem feito parte realmente da história minúscula dessas existências, de sua desgraça, de sua raiva ou de sua incerta loucura;
  • e que do choque dessas palavras e dessas vidas nascesse para nós, ainda, um certo efeito misto de beleza e de terror (Foucault, 2012, pp. 201-202).

Obviamente, não faz sentido para nós simplesmente importarmos essas regras que esse importante interlocutor escolheu. Trata-se aqui, nitidamente, de um outro contexto, mas há vetores comuns. Essas regras, Foucault diz ter se imposto com o intuito de “reencontrar alguma coisa como essas existências-relâmpago, como esses poemas-vida” (Foucault, 2012, p. 202).

Por isso, a importância de nos ocuparmos em narrar as experiências com a Rede Multicêntrica e com Caminhos do Cuidado. Aqui, vindo desses lugares, dos hotéis, dos táxis, das viagens, chamou-nos à vigília histórias que também nos servem para pensar em existências obscuras e desventuradas; também que são breves; que carregam uma incerta loucura (se dando nas extravagâncias com as drogas); e que disso, em fragmentos, pudessem vir sensações um tanto díspares. Colocando um problema em perspectivas que se entrelaçam as políticas públicas, o phármakon, os acontecimentos ínfimos e o jogo com o silêncio.

E que o encontro com essas histórias tenha sido algo como uma turbulência; essa queda repentina, essa impotência perante a máquina da qual dependemos até que estejamos no solo. Mas da qual dependemos o voo inteiro, e isso nos pasma apenas quando achamos brevemente que o avião vai cair.

4 Referências

Azevedo, Ana Luiza (diretora); Toamsi, Luciana & Goulart, Nora (produtoras) (2009) Antes que o mundo acabe. Brasil: Casa de Cinema Porto Alegre.

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