Produção enunciativa nas estratégias biopolíticas atuais: a questão da qualidade de vida

Statements production in current biopolitical strategies: the issue of quality of life

  • Gabriel de Freitas Gimenes
  • Rosane Azevedo Neves Silva
Qualidade de vida é uma expressão com uma forte presença hoje em dia, de modo que se encontra ao seu redor uma profusão discursiva na qual esta expressão transita por vários campos e assuntos e apresenta diversos significados. O objetivo desse trabalho é pensar a qualidade de vida e essa profusão discursiva ao seu redor a partir das contribuições de Foucault e Deleuze acerca do conceito de enunciado e da análise enunciativa, a fim de se tornarem visíveis alguns enunciados de qualidade de vida. Uma vez tornados visíveis esses enunciados é possível problematizar essa múltipla e ambígua presença da qualidade de vida em nossa atualidade.
    Palavras chave:
  • Qualidade de vida
  • Biopolítica
  • Enunciados
Quality of life is an expression with a strong presence nowadays, so there’s a discursive profusion in which this expression transits through several fields and themes and presents different meanings. The aim of this work is to think this quality of life and this discursive profusion around it through the contributions of Foucault and Deleuze on the concept of statement and statement analysis, in order to render visible some statements of quality of life. Once these statements are rendered visible it’s possible to problematize this multiple and ambiguous presence of quality of life in our actuality.
    Keywords:
  • Quality of Life
  • Biopolitics
  • Statments

1 Introdução

O enunciado circula, serve, se esquiva,

permite ou impede a realização de um desejo,

é dócil ou rebelde a interesses,

entra na ordem das contestações e das lutas,

torna-se tema de apropriação ou de rivalidade.

Foucault, 1969/2005, p. 119

Em sua aula inaugural no Collége de France, publicada com o título de A Ordem do Discurso, Michel Foucault nos chama a atenção ao propor que, mais importante do que a descrição da proliferação discursiva encontrada em nossa sociedade, é a análise dos diversos procedimentos pelos quais se exerce uma rarefação do discurso. Como compreender essa rarefação do discurso?

Foucault (1970/2013) argumenta que aparentemente nossa sociedade “teria sido a mais respeitosa com o discurso”, uma vez que aqui este “teria sido mais radicalmente liberado de suas coerções e universalizado” (pp. 49-50). Essa é uma crença fortemente compartilhada em diversos estratos de nossa sociedade ocidental, liberal e humanista, científica e democrática. Gostamos de acreditar na verdade, gostamos de pensar que nossos discursos estão mais perto da verdade, gostamos de acreditar que nossa verdade é a do livre fluxo, não apenas de discursos, mas também de bens, serviços e pessoas. Mas, como qualquer pensamento minimamente crítico consegue facilmente notar, esse livre fluxo ideal não se concretiza nos diversos estratos, e é apenas em aparência que os discursos proliferam livremente em nossa sociedade.

Inclusive, ao nos relacionarmos com esses diversos discursos, as principais preocupações giram em torno de saber “quem disse?”, “onde disse?”, “o que quis dizer?”. Foucault considera que assim somos levados a nunca pensar nos discursos mesmos, mas a levá-los sempre em consideração a outra coisa, tal como um sujeito ou um lugar de enunciação, ou um significado do que foi enunciado. Investigam-se, assim, os discursos para compreender seus significados, para revelar as intenções ou motivações das pessoas que os enunciaram, ou o que elas quiseram dizer, ou para situar o lugar de onde foram enunciados, mas dificilmente esses discursos são pensados enquanto tais. Há um constante esforço em se estabelecer relações de continuidade entre os discursos e outros elementos identitários, de modo que os discursos são anulados em sua realidade.

Foucault (1970/2013) argumenta que, uma vez suspensas essas relações de continuidade dos discursos com esses elementos identitários, não se sabe muito bem o que sobra. Assim, essa pretensa afinidade de nossa sociedade com o fluxo livre de discursos se dissolve e manifesta toda sua potência em uma série de inquietações:

Inquietação diante do que é o discurso em sua realidade material de coisa pronunciada ou escrita; inquietação diante dessa existência transitória destinada a se apagar sem dúvida, mas segundo uma duração que não nos pertence; inquietação de sentir sob essa atividade, todavia cotidiana e cinzenta, poderes e perigos que mal se imaginam; inquietação de supor lutas, vitórias, ferimentos, dominações, servidões, através de tantas palavras cujo uso há tanto tempo reduziu as asperidades. (p. 8)

Desprovidos dessas relações de continuidade e de identidade, os discursos, em sua existência misteriosa, parecem ser fonte de grandes perigos. Foucault (1970/2013) propõe, assim, que “a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (p. 9). Torna-se, desta forma, importante uma análise desses procedimentos de controle e de delimitação, de sujeição e/ou de rarefação do discurso, que Foucault tenta localizar em três níveis: procedimentos externos de controle que tornam visíveis as íntimas relações entre os discursos e as relações de poder e de desejo; procedimentos internos de delimitação que limitam o acaso dos discursos a um princípio de identidade; procedimentos de rarefação dos sujeitos que tornam seletivas as zonas de acesso ao discurso. Temos aqui uma grande quantidade de práticas pelas quais toda uma intensa proliferação discursiva que aparentemente se dá ao acaso e livremente é delimitada, controlada e sujeita a diversos critérios pelos quais ela se enquadra em uma estrita e restrita ordem, a ordem do discurso.

Essa ordem do discurso, articulada ao redor desses procedimentos de controle, garante os limites e contornos pelos quais uma produção discursiva pode ocorrer em uma sociedade. A questão é sutil porque essa ordem é composta por um conjunto de práticas de coerção e limitação dos discursos – a partir do que poderíamos pensar essa ordem enquanto uma ordem repressiva –, mas tal controle se exerce justamente para delimitar e, dentro desse contorno, incitar a produção e a proliferação discursiva. A ordem do discurso é, assim, principalmente uma ordem produtiva, de uma produção seletiva, produtora de segregações e distinções de valor.

Tomemos, por exemplo, a expressão “qualidade de vida”. Ao seu redor variam os mais diversos significados, em uma profusão discursiva na qual proliferam distintos usos em campos difusos. De dicas e guias de promoção de saúde e bem-estar veiculados na mídia hegemônica a pesquisas científico/acadêmicas em diversas áreas ou programas de marketing, encontramos, hoje em dia, uma ruidosa falação sobre qualidade de vida.

Qualquer percurso pelos discursos sobre qualidade de vida apresenta um vasto campo de publicações que podem ser encontradas em diversos lugares, como sites de internet, revistas comerciais e revistas acadêmicas, num passeio que atravessa diversos campos, como medicina, administração de empresas, psicologia organizacional, epidemiologia, economia, psicometria, nutrição, saúde coletiva, educação física, sociologia, psicoterapia, administração, etc. Parece óbvio, portanto, que qualidade de vida seja algo importante, uma das coisas mais importantes na vida, inclusive. Parece natural a busca atual por qualidade de vida em nosso cotidiano, nas relações, no trabalho, nas cidades, na sociedade, no mundo como um todo.

Mas qualidade de vida parece ser também um ponto cego incômodo. Não se sabe muito bem o que isso seja, como defini-la, como buscá-la, muito menos como melhorá-la. Qualidade de vida torna-se, assim, um alvo seguro e uma meta incerta. Como buscar e melhorar algo que se desconhece, que insiste em escapar?

Qualidade de vida parece estar em todos os lugares e em lugar algum. Esse intenso jogo atual entre presença e ausência de qualidade de vida indica uma questão urgente que tanto conforta quanto inquieta. Produz muitos sentidos, e parece apontar o sentido. Silencia e faz falar.

Há hoje em dia uma ruidosa falação sobre qualidade de vida, na qual proliferam discursos os mais diversos. Nessa dispersão discursiva, qualidade de vida é associada a diversos assuntos, tais como saúde individual, bem-estar, estilos de vida, felicidade, satisfação, equilíbrio, saúde coletiva, condições de vida, etc. Mas, apesar dessa intensa produção discursiva encontra-se também uma grande dificuldade em se definir qualidade de vida. Desse modo, em torno da questão o que é qualidade de vida? se articula um campo aberto em disputa de significados.

É nesse campo aberto em disputa de significados que transitam os diversos discursos sobre qualidade de vida que proliferam por aí. Mas essa profusão discursiva se dá dentro dos limites de uma certa ordem do discurso, de modo que podemos afirmar que fala-se muito em qualidade de vida hoje em dia, mas não se fala qualquer coisa.

É possível sustentar a constatação de que qualidade de vida é algo sobre o que muito se tem falado, mas, nessa excessiva falação, temos que levar em conta efeitos hegemônicos pelos quais não é qualquer coisa que pode ser dita. Há, enfim, uma produção específica e seletiva ao redor dessa qualidade de vida, de modo que qualquer questionamento que se relacione com esses discursos unicamente a partir de seus significados, de seus conteúdos, de seus lugares e/ou sujeitos de enunciação, é um questionamento que se realiza a partir e dentro dessa ordem do discurso.

A questão dos usos e significados da expressão qualidade de vida se mostra assim enquanto uma questão que apenas faz sentido dentro dessa ordem; se nossos esforços se movessem apenas nesse sentido, estaríamos apenas girando ao redor do estabelecido, nos movimentando apenas com os recursos que essa ordem permite, sem em momento algum questioná-la. Estaríamos indagando essa produção discursiva ao redor da qualidade de vida sem conseguir problematizá-la.

Como argumenta Foucault (1976/1999) o que importa “é a 'economia' dos discursos, ou seja, sua tecnologia intrínseca, as necessidades de seu funcionamento, as táticas que instauram, os efeitos de poder que os sustêm e que veiculam” (p. 67). Torna-se, assim, política e metodologicamente interessante se esforçar para se afastar dessa ordem do discurso e pensar essa produção discursiva ao redor da qualidade de vida a partir de outros elementos. Foucault (1970/2013) afirma que para tanto é preciso optar por três decisões: “questionar nossa vontade de verdade, restituir ao discurso seu caráter de acontecimento; suspender, enfim, a soberania do significante” (p. 51). Aqui começamos a compreender algo sobre a imanência entre saberes e relações de poder, assunto sobre o qual Foucault insistiu tanto e de diversos modos. Se os discursos que encontramos ao nosso redor são produzidos a partir de uma restrita ordem, ordem essa que os sujeita a um significado, a um autor, a uma disciplina, a um contexto, enfim, a qualquer identidade e continuidade possível, isso torna visível que os discursos, muito mais do que simples elementos linguísticos significativos, são práticas que exercem efeitos num campo de relações de forças. Assim, temos de pensar em práticas discursivas, práticas essas que, como qualquer outra prática humana, são contingentes e múltiplas, envolvendo relações de poder e desejo, que são mais importantes do que as relações de representação e/ou de significado – que só se estabelecem em relação àquelas.

Nesse sentido, um trecho do primeiro volume da História da Sexualidade parece ser aplicável aqui ao tema da qualidade de vida, e também nos ajuda a compreender essas relações entre técnicas de saber e estratégias de poder:

Se a sexualidade se constituiu como domínio a conhecer, foi a partir de relações de poder que a instituíram como objeto possível; e em troca, se o poder pôde tomá-la como alvo, foi porque se tornou possível investir sobre ela através de técnicas de saber e de procedimentos discursivos. Entre técnicas de saber e estratégias de poder, nenhuma exterioridade; mesmo que cada uma tenha seu papel específico e que se articulem entre si a partir de suas diferenças. (1976/1999, pp. 93-94)

Dessa forma, a questão “o que esses discursos querem dizer?” só faz sentido dentro de uma ordem do discurso e silencia outra questão, “como esses discursos podem dizer?”. Ao se restituir aos discursos seu caráter de acontecimento, deixamos de questioná-los em suas relações de designação e/ou de representação e começamos a pensar em práticas discursivas em sua dimensão produtiva, como elementos estratégicos num plano de relações de forças. Deslumbra-se, assim, que práticas discursivas não apenas produzem significados, mas produzem significados específicos com efeitos estratégicos de poder, de modo que há em qualquer falação todo um potencial silenciador – somente dizem algo discursos que se inserem de antemão numa ordem do que pode ser dito. Aproximamo-nos então de uma questão política mais relevante, movimentada por um estranhamento diante desses acontecimentos que nos rodeiam e por uma sutil e constante dúvida diante do agora, pela qual podemos perceber a situação contingente e situada dessas presenças e nos questionar “porque esses discursos e não outros?”.

Ao buscar um estranhamento diante dessa ordem do discurso deixamos de nos perguntar pelos significados desses discursos estabelecidos e começamos a indagá-los enquanto práticas, a problematizar seus efeitos hegemônicos, a partir do que a questão identitária “o que é” é substituída pela questão estratégica “como” – como esses discursos são produzidos; como produzem efeitos, e que efeitos produzem? Não tanto o que dizem, mas como dizem e como é possível que o digam.

Para tanto, “é preciso então rachar, abrir as palavras, as frases e as proposições para extrair delas os enunciados” (p. 61), como afirma Deleuze (1986/2013) ao comentar o método de Foucault. Rachar as palavras para extrair os enunciados, a partir do que o que se revela não são seus significados internos e/ou ocultos, mas sua função produtiva num espaço de dispersão.

Pensar a qualidade de vida a partir do conceito de enunciado parece, então, ser uma possibilidade interessante, justamente por conta da dificuldade em se delimitá-la enquanto unidade discursiva com um significado preciso e idêntico, em oposição à facilidade pela qual essa expressão se dispersa em muitos discursos, em relação a muitos sujeitos, objetos, conceitos e temas, exercendo efeitos diversos. Como, então, pensar a qualidade de vida a partir do conceito de enunciado, e para onde esse movimento pode nos levar?

2 Foucault como um novo arquivista: os enunciados e a análise enunciativa

Gilles Deleuze (1986/2013) inicia seu importante estudo sobre o pensamento de Foucault denominando-o de um “novo arquivista”, uma vez que ele se afasta das preocupações dos arquivistas (as frases e proposições) para se instalar em uma “espécie de diagonal, que tornará legível o que não podia ser apreendido de nenhum outro lugar, precisamente os enunciados” (p. 13). Como entender esses enunciados?

Uma vez que as relações de significação são deixadas temporariamente de lado e que as distintas unidades discursivas que tradicionalmente dominam nossos modos de pensar são um pouco suspensas – uma vez, enfim, que se busque interrogar os discursos neles mesmos, a partir de suas próprias regras de formação – Foucault (1969/2005) afirma que cabe então à análise descrever os enunciados, “nessa descontinuidade que os liberta de todas as formas em que, tão facilmente, aceitava-se fossem tomados, e ao mesmo tempo no campo geral, ilimitado, aparentemente sem forma, do discurso” (p. 90).

Nesse campo geral e aparentemente sem forma do discurso podem ser facilmente encontradas diversas formas, que tradicionalmente são objeto de estudo de diversas disciplinas, como a gramática e a lógica. Entretanto, Foucault argumenta sobre o quanto essas formas, em suas definições rígidas e também excessivas, parecem não ajudar muito na compreensão dos enunciados.

Por exemplo, em qualquer discurso encontram-se facilmente diversas frases. Mas essas frases tradicionalmente remetem a um sujeito e a um objeto específicos, numa clássica estrutura gramatical tal como aprendemos – uma frase é uma relação entre um sujeito e um predicado mediado por um verbo, que é justamente a ação desse sujeito em relação a esse predicado. Além disso, as frases, em sua proliferação, parecem relacionar-se umas com as outras, numa dialética na qual uma parece responder à outra. Tendo em vista essas características, por mais que muitos enunciados se apresentem em frases, não é possível fazer uma analogia entre ambos. Há, aliás, muitas frases que apresentam mais de um enunciado, há enunciados únicos que se apresentam em diversas e distintas frases e, principalmente, há muitos enunciados que não se apresentam em frases.

Outra forma comum ao campo do discurso é a da proposição, tal como definida na lógica enquanto uma sentença que propõe um pensamento e que pode ser avaliada de diversos modos, como incompleta ou completa, verdadeira ou falsa. Nesse sentido, a operação do silogismo lógico seria justamente o procedimento pelo qual se relacionam proposições umas sobre as outras a fim de se compor um raciocínio logicamente correto. Muitas proposições podem conter enunciados, mas os critérios que permitem definir e avaliar as proposições também não são suficientes para se compreender os enunciados. Da mesma forma que ocorre com as frases, uma mesma proposição pode apresentar mais de um enunciado, um enunciado único pode se relacionar com diversas proposições e inclusive pode ocorrer de um enunciado ser apresentado sem relação alguma com uma proposição. Assim, a existência de uma estrutura proposicional definida também não é condição suficiente para a existência de enunciados.

Um enunciado, assim, não pode ser confundido com frases e proposições, uma vez que parece ser mais “tênue, menos carregado de determinações, menos fortemente estruturado, mais onipresente (…) como se seus caracteres fossem em número menor e menos difíceis de serem reunidos” (Foucault, 1969/2005, p. 95). Mas, justo por isso, seria como se “ele recusasse toda possibilidade de descrição” (p. 95). Parece inclusive haver nos enunciados algo como um caráter residual, como se fossem o que sobrasse das frases após sua análise gramatical, ou das proposições, após a análise lógica.

Foucault (1969/2005) reconhece assim a dificuldade em se definir essa categoria que ele se propôs analisar e se pergunta se não “será preciso finalmente admitir que o enunciado não pode ter caráter próprio e que não é suscetível de definição adequada” (p. 95). Os enunciados poderiam apenas ser largamente compreendidos como um conjunto de signos que são emitidos num momento e num lugar e que possuem uma existência material que os torna possíveis de serem repetidos.

Mas, será que com isso podemos entender que sempre que algo é dito ou escrito existe um enunciado? Será que qualquer conjunto de signos é capaz de produzir enunciados? Foucault (1969/2005) aqui se questiona se o “limiar do enunciado seria o limiar da existência de signos” (p. 95), a partir do que ele elabora um conhecido exemplo para pensar essa questão.

Poderíamos escrever aleatoriamente uma série de letras numa folha de papel para tentar mostrar que essa série não forma um enunciado; poderíamos também pegar os teclados de uma máquina de escrever, e esses teclados, apesar de signos dotados de materialidade, não constituiriam um enunciado. Entretanto, se escrevemos numa folha de papel uma série de letras tal qual elas se organizam em um teclado, encontramos aí um enunciado: “o teclado de uma máquina de escrever não é um enunciado; mas a mesma série de letras – A, Z, E, R, T – enumerada em um manual de datilografia, é o enunciado da ordem alfabética adotada pelas máquinas francesas” (Foucault, 1969/2005, p. 97). Um enunciado apresenta assim um arranjo específico, e é possível afirmar que em outro arranjo se encontra outro enunciado, como se nota ao perceber que o enunciado da ordem alfabética adotada pelas máquinas brasileiras é diferente – Q, W, E, R, T.

Diante desses exemplos, Foucault consegue esclarecer uma ou outra coisa, e já conseguimos compreender que os enunciados são conjuntos específicos de signos, produzidos em condições específicas, que podem ser encontrados nos discursos – sejam eles falados ou escritos – e que apresentam uma materialidade. Mas ainda assim a identidade do enunciado continua a escapar e parece ser difícil de ser delimitada. Parece apenas ser possível defini-lo ou dessa forma geral que não deixa muito claro o que ele é ou de uma forma negativa que apenas demonstra o que ele não é – não é o mesmo que as frases, não é o mesmo que as proposições, não é o mesmo que qualquer conjunto de signos, não é o mesmo que qualquer grupamento de objetos materiais. Todas essas dificuldades em se precisar a identidade do enunciado e em defini-lo precisamente enquanto uma unidade levam Foucault (1969/2005) a concluir que:

O enunciado não é uma unidade do mesmo gênero da frase, proposição ou ato de linguagem; não se apoia nos mesmos critérios; mas não é tampouco uma unidade como um objeto material poderia ser, tendo seus limites e sua independência. Em seu modo de ser singular (nem inteiramente linguístico, nem exclusivamente material), ele é indispensável para que se possa dizer se há ou não frase, proposição, ato de linguagem (…). Não é preciso procurar no enunciado uma unidade (…). Mais que um elemento entre outros (…) trata-se, antes, de uma função que se exerce verticalmente, em relação às diversas unidades (…). O enunciado não é, pois, uma estrutura (…) mas sim uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço. (pp. 97-98)

Os enunciados, assim, são grupamentos de signos e são dotados de uma materialidade, mas apresentam um modo singular de existência, “nem inteiramente linguístico, nem exclusivamente material”, pelo qual se constituem menos enquanto uma unidade do que enquanto uma função pela qual se produzem as distintas unidades e suas relações.

A partir dessa concepção de enunciado Foucault (1969/2005) esboça alguns elementos para uma análise dos enunciados e propõe que esta é atravessada por três traços característicos: raridade, exterioridade e acúmulo. O efeito de raridade se relaciona mais ou menos (sem se confundir) com aqueles procedimentos de rarefação discutidos anteriormente. Assim, ao contrário do que a observação imediata atesta – de que há uma grande proliferação discursiva, e, por conseguinte, haveria uma grande quantidade de enunciados – os enunciados são raros e sua produção se dá necessariamente num espaço rarefeito.

Foucault (1969/2005) afirma que as análises de discurso estão tradicionalmente relacionadas com alguma concepção de totalidade e de sentido implícito e unitário, de modo que se busca substituir a diversidade das coisas ditas por uma totalidade que as ultrapassa e lhes confere um sentido único. A análise dos enunciados, por sua vez, segue outro caminho, uma vez que não busca o sentido implícito do que foi dito, nem busca reduzir as diversas coisas ditas a uma totalidade que as englobe e unifique, mas busca antes compreender as condições pelas quais puderam ser produzidos os únicos enunciados que foram formulados.

Assim, para além da proliferação de discursos e da abundância de palavras, frases e proposições ao nosso redor, a análise enunciativa aponta para o curioso fato de que não apenas poucas coisas são ditas, como também, e principalmente, que poucas coisas possam ser ditas. Foucault argumenta que “nem tudo é sempre dito”, não no sentido de que cada formulação esconda em si sentidos ocultos (um não-dito), mas no sentido de que cada formulação discursiva se apresenta como “uma distribuição de lacunas, de vazios, de ausências, de limites, de recortes” (Foucault, 1969/2005, p. 135).

Mas essas lacunas não são decorrentes de uma repressão ou recalque; não há sob os enunciados significados implícitos que precisam ser revelados. Apesar de numa dada conjuntura nem tudo sempre ser dito, num enunciado tudo está manifesto, de modo que “o domínio enunciativo está, inteiro, em sua própria superfície. Cada enunciado ocupa aí um lugar que só a ele pertence” (Foucault, 1969/2005, p. 135). Não se busca, assim, analisar os enunciados como se eles estivessem no lugar de outros, mas se busca compreender os enunciados “como estando sempre em seu lugar próprio” (p. 135). Nesse sentido, Deleuze (1986/2013) afirma que “não há possível nem virtual no domínio dos enunciados; nele tudo é real, e nele toda realidade está manifesta: importa apenas o que foi formulado, ali, em dado momento, e com tais lacunas, com tais brancos” (p. 15).

A análise dos enunciados leva em conta esse efeito de raridade, de modo que busca se ater ao que efetivamente foi dito, na inscrição única do que foi dito, apesar de não pretender ser “uma descrição total, exaustiva da 'linguagem', ou de ´o que foi dito´” (Foucault, 1969/2005, p. 123). Assim, pela análise dos enunciados não se busca contornar o que foi dito para encontrar por trás seus significados ocultos, seus sentidos secretos não revelados, mas antes possibilita uma compreensão das condições pelas quais são exercidas as funções enunciativas em um espaço de raridade e de dispersão.

A análise enunciativa é assim uma análise histórica que se esquiva de qualquer interpretação ao se ater ao nível do que foi dito e nunca perguntar por um não-dito. Não se reconhece então, para a análise enunciativa, nenhum sentido implícito que precise ser interpretado, nenhum enunciado latente que precise ser revelado por trás das palavras, frases e proposições, mas somente enunciados sempre manifestos e que sempre ocupam seu lugar específico, lugar este estrategicamente situado num campo de relação de forças.

Entretanto, para se realizar a análise enunciativa, é preciso “rachar, abrir as palavras, as frases e as proposições para extrair delas os enunciados” (Deleuze, 1986/2013, p. 61). Como compreender a necessidade dessas extrações se, pelo que acabou de ser dito, os enunciados nunca são ocultos? Aqui uma sutileza importante se insinua, pois, por mais que não sejam ocultos, nem por isso os enunciados são imediatamente visíveis, sendo necessária “uma certa conversão do olhar e da atitude” para reconhecê-los. Assim, em seu modo singular de existência, um “enunciado é, ao mesmo tempo, não visível e não oculto” (Foucault, 1969/2005, p. 124).

Não oculto, uma vez que se inscreve na dimensão do que foi efetivamente dito. Mas, ao mesmo tempo, não visível, porque não se apresenta imediatamente à percepção cotidiana. Assim, por mais que um enunciado apresente uma forte presença e seja constantemente repetido, “talvez ele seja tão conhecido que se esconde sem cessar” (Foucault, 1969/2005, p. 126). Uma vez que os enunciados são ao mesmo tempo não ocultos e não visíveis, a análise enunciativa se configura enquanto uma tentativa de:

Tornar visível e analisável essa transparência tão próxima que constitui o elemento de sua possibilidade. Nem visível nem oculto, o nível enunciativo (…) não é, em si, um conjunto de caracteres que se apresentariam (…) à experiência imediata; mas não é, tampouco, por trás de si, o resto enigmático e silencioso que não traduz. Ele [o nível enunciativo] define a modalidade de seu aparecimento: antes sua periferia que sua organização interna, antes sua superfície que seu conteúdo. (Foucault, 1969/2005, p. 127)

Esse esforço por se analisar os enunciados em sua superfície e periferia em oposição a sua organização interna e conteúdo apontam para outro traço característico da análise enunciativa: a exterioridade. Foucault (1969/2005) argumenta que tradicionalmente as análises históricas das coisas ditas são fortemente marcadas por uma oposição bem demarcada entre um interior – núcleo interno de significado – e um exterior – pura contingência ou necessidade que vem de fora. O exercício de análise seria assim atravessado por uma tarefa de se resgatar os discursos da sua dispersão para reencontrar neles seu núcleo interno, seu sentido essencial – ou seja, tomá-los em sua exterioridade para reencontrar sua interioridade.

Essa rígida distinção entre um núcleo interior de significado e condições exteriores de existência faz com que as análises de discurso sejam tradicionalmente atravessadas pelo tema de uma “subjetividade fundadora”, como se fosse possível – e necessário – remeter todas as coisas ditas na história a uma outra história, “mais secreta, mais fundamental, mais próxima da origem, mais ligada a seu horizonte último” (Foucault, 1969/2005, p. 137), que seria justamente a história dos pensamentos individuais ou coletivos – uma história das mentalidades. Mas, como argumenta Foucault (1969/2005), “o tempo dos discursos não é a tradução (…) do tempo obscuro do pensamento” (p. 138), de modo que pela análise enunciativa se busca:

Escapar do tema da interioridade, da subjetividade fundadora, do sujeito transcendental, para restituir os enunciados à sua pura dispersão (…), para analisá-los em uma exterioridade (…), para considerá-los em sua descontinuidade (…); para apreender sua própria irrupção no lugar e no momento em que se produziu; para reencontrar sua incidência de acontecimento. (pp. 137-138)

Assim, a partir da análise enunciativa os enunciados são tomados em sua dispersão e exterioridade, de modo que se evita o tema de um resgate dos discursos a um núcleo interno de significado, produto de uma subjetividade fundadora, e se nega a noção de que os discursos sejam apenas uma tradução de pensamentos, individuais ou coletivos, em favor de uma concepção que leva em consideração esses discursos em sua autonomia – apesar de estes não serem independentes, visto se relacionarem com um campo de relações de forças. Os discursos, assim, podem ser analisados sem referência a outras coisas anteriores a eles – como pensamentos e ideias –, mas em referência a outras coisas contemporâneas a eles, que são precisamente as relações de forças pelas quais se determinam e a partir das quais se compõe uma complexa trama de saberes/poderes.

A análise dos enunciados não precisa, então, de nenhuma referência a uma “subjetividade soberana” e se situa, antes, no nível do “diz-se”, uma vez que “não importa quem fala”, ainda que o que seja dito “não é dito de qualquer lugar” (Foucault, 1969/2005, p. 139).

Os enunciados, analisados nesse nível do “diz-se”, não se integram numa grande voz totalizante que diria indiscriminadamente a todos, mas se dispersam num murmúrio anônimo. Assim, da mesma forma que a análise dos enunciados não é uma tentativa de resgatar o núcleo interior de sentido, ela também não se configura como um esforço por retornar à origem muda e misteriosa dos discursos, na qual este núcleo interior estivesse intacto e preservado. Ao se afastar do tema de um núcleo interior de sentido, a análise enunciativa se afasta também do tema da origem e retorno. Não importa então a origem, esse momento distante e secreto do nascimento de uma formulação discursiva, na qual estariam em estado puro seus sentidos e as motivações e propósitos de quem a enunciou, a partir do que começaria o movimento do tempo pelo qual esses sentidos persistiriam ou mudariam, essas motivações seriam lembradas ou esquecidas e esses propósitos respeitados ou deturpados. Da mesma forma que não importa a origem, não importa também a originalidade, de modo que um enunciado não precisa necessariamente ser inédito para compor algo novo, mas, antes, em sua forma singular de acúmulo, os enunciados subsistem, se repetem e se transformam, de modo a exercer efeitos singulares em cada momento.

A análise enunciativa, em resumo, se atém expressamente ao nível do que foi dito, mas não se pretende uma análise exaustiva ou totalizante do que foi dito; não busca extrair do que foi dito um não-dito oculto; não busca resgatar no que foi dito a interioridade de um núcleo de sentido; muito menos busca um retorno ao ponto de origem do que foi dito. A análise dos enunciados, ao considerá-los enquanto função não oculta e não visível produzida num espaço de raridade e de dispersão, leva em conta “a regularidade do enunciado: não uma média, mas uma curva” (Deleuze, 1986/2013, p. 16, grifo original).

O que importa, então, é tornar os enunciados visíveis em sua superfície e em sua periferia, nessa diagonal ou transversal pela qual atravessam distintas unidades discursivas e exerce sua função enunciativa; é determinar o valor desses enunciados, não em função de sua relação com uma verdade, mas em função do plano de relações de forças no qual estrategicamente se situam e apresentam suas presenças lacunares e limitadas; é, enfim, compreender suas condições de existência e os efeitos que produzem enquanto existem.

Os enunciados, enfim, na dimensão de tempo em que subsistem, em sua raridade e exterioridade, em seu modo singular de existência e em sua espessura material, não precisam ser preservados, tais como textos ou conjuntos de documentos guardados num arquivo. Foucault (1969/2005) argumenta que, em vez de possuirmos um grande arquivo que seria o conjunto de documentos nos quais poderíamos resgatar enunciados, temos, “na densidade das práticas discursivas, sistemas que instauram enunciados como acontecimentos e coisas” (p. 146), e são esses sistemas que ele propõe denominar de arquivo:

Trata-se do que faz com que tantas coisas ditas (…) não tenham surgido apenas segundo as leis do pensamento, ou apenas segundo o jogo das circunstâncias (…), mas que tenham aparecido graças a todo um jogo de relações que caracterizam particularmente o nível discursivo. (…) o arquivo não é o que protege (…) o acontecimento do enunciado e [o] conserva (…); é o que, na própria raiz do enunciado-acontecimento e no corpo em que se dá, define, desde o início, o sistema de sua enunciabilidade. O arquivo não é, tampouco, o que recolhe a poeira dos enunciados (…); é o que define o modo de atualidade do enunciado-coisa; é o sistema de seu funcionamento. (pp. 146-47, grifo original)

O arquivo, então, para Foucault (1969/2005), é o “sistema geral da formação e da transformação dos enunciados” (p. 148, grifo original), e é em função dessa proposta que Deleuze (1986/2013) o denomina de um novo arquivista. A análise dos enunciados ao nosso redor se esboça então enquanto uma análise de nosso arquivo. Foucault (1969/2005) ressalta, porém, que “não nos é possível descrever nosso próprio arquivo, já que é no interior de suas regras que falamos”, de modo que nosso arquivo “não é descritível em sua totalidade e é incontornável em sua atualidade” (p. 148).

Não totalmente descritível e incontornável em sua atualidade, nosso arquivo é justamente de onde falamos e de onde podemos falar, assim como é por onde transitam os próprios enunciados que nos falam e sobre os quais pretendemos falar. Mas isso não desencoraja nosso exercício de pensamento, muito pelo contrário, lhe confere um ânimo mais intenso, mais vivo e político, uma vez que:

A análise do arquivo comporta, pois, uma região privilegiada: ao mesmo tempo próxima de nós, mas diferente de nossa atualidade, trata-se da orla do tempo que cerca nosso presente, que o domina e que o indica em sua alteridade; é aquilo que, fora de nós, nos delimita. (Foucault, 1969/2005, p. 148)

As análises dos enunciados e do arquivo servem então para nosso diagnóstico e nos potencializam para o exercício de um pensamento crítico que proponha um estranhamento diante daquilo que se diz e se faz atualmente, assim como possibilitam uma problematização dessa atualidade que torne visível tanto seus contornos e limites quanto suas fissuras e possibilidades – uma análise caracteristicamente ético/política.

3 Enunciados de qualidade de vida

É possível agora tentar rachar algumas dessas palavras, frases e proposições que encontramos em abundância nessa ruidosa falação ao redor da qualidade de vida para extrair alguns enunciados e compreender suas condições de existência e os efeitos que produzem.

Essa tarefa implica algumas mudanças de perspectiva, uma vez que o estudo dos enunciados, em sua raridade e dispersão, mostrou não apenas que poucas coisas são ditas, como também que poucas coisas podem ser ditas. Temos assim de contornar essa falação ao redor da qualidade de vida e nos afastar um pouco dessa ruidosa profusão para, ao nos situar no nível de um murmúrio anônimo, deslumbrar o quanto que, por mais que proliferem diversos discursos, poucas coisas são ditas e poucas coisas podem ser ditas sobre qualidade de vida. E, se poucas coisas podem ser ditas sobre qualidade de vida, isso não se dá por conta de sua dificuldade de definição, nem por conta de sua generalização e banalização, muito menos por conta de uma insuficiência no debate técnico/conceitual, mas em função de efeitos próprios ao nível enunciativo no qual essa questão da qualidade de vida é produzida e em função do qual produz sentidos estratégicos e hegemônicos.

Assim, a generalização, banalização, polissemia e dificuldade de definição que atravessam a expressão qualidade de vida não são carências ou obstáculos que dificultam nossa compreensão – e que precisam ser resolvidos –, mas são características próprias ao nível enunciativo no qual a questão da qualidade de vida existe, subsiste e circula; são marcas de sua positividade específica.

Podemos então nos afastar de diversos temas que atravessam o debate em torno da qualidade de vida, como o rastreio da origem dessa expressão, a necessidade de resgatá-la de sua dispersão para reencontrar seu sentido original, a busca pela definição de seu significado interno e a tentativa de delimitação de suas dimensões constituintes. Importa, em oposição a esses temas, compreender as regularidades enunciativas ao redor da qualidade de vida e suas condições de existência; importa acompanhar justamente sua dispersão e os modos pelos quais circula, se repete e se transforma em nossa atualidade; importa, enfim, não tanto as coisas que são ditas ou são entendidas, mas, em relação ao que se diz e se entende, o que se faz em função dessa qualidade de vida, e como isso pode servir para um diagnóstico de nós mesmos e de nossa atualidade.

Tais mudanças de perspectiva implicam não apenas em contornar a ruidosa falação sobre qualidade de vida a fim de extrair alguns poucos enunciados que circulam, se repetem e se transformam, como também mostram que a questão da qualidade de vida não é apenas discursiva, não se caracteriza apenas enquanto um problema especificamente relativo ao nível do que se diz, mas atravessa outras dimensões. Nesse sentido, o estudo dos enunciados também mostrou que os discursos são acontecimentos e coisas, e, antes de serem simplesmente relações significantes de designação ou representação, são práticas produzidas a partir de situações específicas, de modo que o campo discursivo é autônomo e pode ser analisado em seu próprio nível – sem ser mera tradução de pensamentos individuais ou coletivos, sem subordinação a uma intencionalidade ou teleologia, sem depender de sentidos ocultos, implícitos ou totalizantes.

Entretanto, apesar de autônomas, as práticas discursivas não são independentes. Assim, apesar de elas não precisarem ser analisadas em relação a outras coisas anteriores a elas – e que elas apenas reproduziriam, traduziriam ou maquiariam – não é por isso que possam ser analisadas independentemente de qualquer outra coisa, como se estivessem livremente sendo produzidas. As práticas discursivas se relacionam com diversas outras coisas, que são contemporâneas a elas e sem as quais não fariam sentido algum nem exerceriam efeitos. Que coisas são essas?

Trata-se de tangenciar outro domínio, “o do poder enquanto está combinado com o saber” (Deleuze, 1986/2013, p. 23), a partir do que nos aproximamos um pouco mais do tema das relações entre saber e poder, tão caro a Foucault, e que nos é muito útil para pensar a qualidade de vida. Formações discursivas e formações não-discursivas são práticas situadas, que acontecem atravessadas por um plano de relações de forças e que atualizam essas relações – que são estratégicas – em estratos – que são precisamente formas, ou formações. Ou seja, as formações – discursivas e não-discursivas – atualizam num dado momento e num dado local, numa conjuntura específica, as forças informes em formas específicas, que se bipartem em dois tipos, as enunciáveis e as visíveis, “mas essas formas não internam nada, nem interiorizam; são 'formas de exterioridade' através dos quais ora os enunciados, ora os visíveis, se dispersam” (Deleuze, 1986/2013, p. 52).

Conseguimos assim nos movimentar de outra maneira ao redor da questão. Deixamos de nos confundir tanto com uma ruidosa falação sobre qualidade de vida para nos aproximarmos de um nível enunciativo rarefeito e disperso no qual são produzidas algumas poucas coisas que podem ser ditas sobre qualidade de vida – de modo que não importa apenas o que dizem, mas, principalmente, como dizem e que condições possibilitam que o digam. Deslocamos também nossa questão para além de um campo estritamente discursivo, uma vez que não importa apenas essas condições de enunciação da qualidade de vida, como também as condições de visibilidade pelas quais certas coisas específicas passam a ser vistas. Uma vez que tanto as condições de enunciação quanto as de visibilidade são atravessadas por um plano de relações de forças, conseguimos nos afastar também das apresentações – tão recorrentes – da qualidade de vida enquanto um tema natural ou a-histórico (qualidade de vida sempre foi uma preocupação humana) ou enquanto um tema exclusivamente técnico (qualidade de vida é um conceito que instrumentaliza pesquisas em diversas áreas, mas sua generalização é um obstáculo a sua precisão, sendo assim preciso resgatar essa expressão de sua banalização no senso comum), para situar a qualidade de vida enquanto uma questão nossa que atravessa singularmente nossos modos de pensar e de agir.

Com isso não negamos a relevância dos diversos estudos atuais em relação ao conceito de qualidade de vida, muito menos ignoramos que as pessoas, ao longo da história, se preocuparam de diversos modos com a produção de uma vida com qualidades. Mas essa preocupação geral – ou virtual – se atualiza hoje em dia de modos específicos em termos de uma qualidade de vida sobre a qual é necessário falar (constantemente, em certos termos, a partir de certas condições), que é urgente pesquisar (muito, em várias áreas, a partir de certos problemas, com certos interesses), que precisa ser definida (precisamente, tanto para guiar as pesquisas quanto as condutas), e em função da qual a vida é gerida, de modo que essa qualidade de vida pode ser situada enquanto uma questão especificamente nossa, que atravessa de maneira singular nossa atualidade. Assim, sua problematização, antes de ser técnico/conceitual, é principalmente ético/política.

Após todas essas voltas, podemos retornar a toda àquela ruidosa falação com outra postura. O que escutamos?

…é importante ter qualidade de vida...

… é preciso melhorar a qualidade de vida...

...é preciso se cuidar para ter qualidade de vida...

...é preciso investir em qualidade de vida...

...saúde é qualidade de vida, é o bem-estar de uma pessoa...

Enunciados em dispersão, que circulam, se repetem, se atravessam e se transformam. Temos aqui um esboço de um espaço associado de enunciados de qualidade de vida. Tal qual o estudo dos enunciados mostrou, não existe enunciado livre e sem localização, uma vez que “um enunciado tem sempre margens povoadas de outros enunciados” (Foucault, 1969/2005, p. 110). Mas isso não significa que cada um desses enunciados é formado, e, depois de formado, se relaciona com outros. O espaço associado faz parte intrínseca das regras de formação de cada enunciado, de modo que a relação com outros enunciados é constituinte da formação singular de cada um.

Temos aqui então uma fina e complexa trama na qual cada um desses enunciados, em sua singularidade, chama pelos outros, se direciona aos outros, se movimenta ao redor dos outros, mas isso não quer dizer também que eles constituam, juntos, uma totalidade, um conjunto unitário, muito menos que todos reproduzam, cada qual a sua forma, um sentido único e implícito que os englobe. Deleuze (1986/2013) comenta que um espaço associado forma um grupo ou uma família de enunciados, mas o que forma essa família não é uma homogeneidade que une enunciados heterogêneos, mas, antes, são “regras de passagem ou de variação, de mesmo nível, que fazem da 'família' um meio de dispersão e de heterogeneidade” (pp. 17-18). Assim, um espaço associado não é um conjunto acabado e fechado; seriam, antes, multiplicidades:

Eis o que é um grupo de enunciados, ou mesmo um enunciado sozinho: multiplicidades. (…) O essencial do conceito [de multiplicidade] é a constituição de um substantivo tal qual o 'múltiplo' deixe de ser o predicado que se pode opor ao Um, ou que se pode atribuir a um sujeito referido como um. A multiplicidade permanece totalmente indiferente aos problemas tradicionais do múltiplo e do um e, sobretudo, ao problema de um sujeito que a condicionaria, pensaria, derivaria de uma origem, etc. (…) Há apenas multiplicidades raras, com pontos singulares, lugares vagos para aqueles que vêm, por um instante, ocupar a função de sujeitos, regularidades acumuláveis, repetíveis e que se conservam em si. (p. 25)

“Multiplicidades raras com pontos singulares”, esses enunciados compõem uma trama móvel na qual se articulam e variam diversos conceitos, temas e objetos que atravessam distintas formações discursivas, em diversos saberes; circulam numa dispersão anônima com “lugares vagos” que aceitam diversas posições possíveis de sujeito; e, em suas “regularidades acumuláveis”, passeiam por vários lugares, por vários meios sociais, atualizando relações de forças de forma singular em cada lugar. Podemos, assim, ver esses enunciados em focos locais de saberes/poderes.

É importante ter qualidade de vida diz, por exemplo, um médico em um consultório, um administrador público ao assumir um cargo, um jornalista em uma reportagem de revista, um psicólogo em uma empresa, um epidemiologista em uma pesquisa, uma notícia na internet, uma conversa informal, uma pessoa a sós consigo mesma. É importante ter qualidade de vida, dizem para nós, dizemos aos outros.

Diversas posições possíveis e variáveis de sujeito, de modo que esse enunciado circula por vários lugares distintos – clínicas, empresas, internet, pesquisas acadêmico/científicas, bancas de revistas, políticas públicas, casas, ruas, etc. –, atravessa formações discursivas diversas – medicina, psicologia, nutrição, jornalismo, guias, gestão pública, administração de empresas, dicas de saúde, economia, etc. – e se articula com variados conceitos e temas – saúde individual, bem-estar (well-being), felicidade, alegria, satisfação, estilos de vida saudáveis, saúde coletiva, bem-estar (well-fare), promoção, prevenção, gestão de riscos, condições de vida de um lugar, de uma região, de uma cidade, ou de uma situação de emprego, em um ambiente de trabalho, o equilíbrio entre a vida e o trabalho, etc. Esse grupamento de posições de sujeito e de temas e conceitos articulados constitui, por sua vez, o espaço correlativo desses enunciados, que, como podemos observar em relação a essa família de enunciados de qualidade de vida, é bem vasto.

É importante ter qualidade de vida, e isso pode se relacionar com a importância de uma pessoa ser feliz, estar satisfeita com sua vida; pode ser também a importância de uma pessoa conseguir ter bem-estar nas diversas áreas que compõem sua vida, seja nas suas relações pessoais, na sua saúde corporal e emocional, no seu trabalho, em relação a suas aspirações e desejos, etc.; pode ser também a importância de uma pessoa se cuidar e se esforçar para conquistar esse bem-estar, levar estilos de vida saudáveis, comer “bem”, praticar exercícios regularmente, “não se estressar”, “se harmonizar”. É importante ter qualidade de vida, e essa importância não gira exclusivamente ao redor de sujeitos individuais e suas vidas pessoais, mas também se movimenta ao mesmo tempo para fora dessas individualidades para se direcionar a coletividades e situações, a lugares, regiões, cidades, ou até mesmo à sociedade pensada como um todo.

É importante ter qualidade de vida pode se relacionar assim com uma coletividade que compartilha uma situação de vida, como a importância da qualidade de vida nas pessoas que vivem com câncer ou com aids, por exemplo; ou numa situação de emprego, como a importância da qualidade de vida na rede pública de ensino, ou nos serviços de saúde pública, ou nas empresas de telemarketing, por exemplo; mas pode ser também em relação ao lugar onde se vive, como a importância da qualidade de vida que uma região oferece, ou mesmo uma cidade inteira, ou até a qualidade de vida na nossa sociedade.

Nesses focos locais de saberes/poderes, qualidade de vida pode estar relacionada tanto a indivíduos quanto a coletividades, tanto a pessoas quanto a lugares, tanto a situações de vida quanto a estruturas sociais, tanto a estilos de vida quanto a condições de vida. Isso não são simplesmente confusões, muito menos contradições ou incoerências entre dicotomias, são movimentos próprios desses enunciados em circulação e dispersão, atravessando simultaneamente e singularmente diversas práticas e temas, atualizando de formas específicas relações de forças numa trama móvel.

É importante ter qualidade de vida, e isso pode ser tanto uma constatação quanto uma prescrição, uma contestação ou uma ordem, uma vontade, uma necessidade ou uma obrigação. Nesse sentido, interessante o comentário de Deleuze (1986/2013) de que “os enunciados de uma mesma formação discursiva passam da descrição à observação, ao cálculo, à instituição, à prescrição” (p. 17).

É importante ter qualidade de vida, e esse enunciado chama quase que instantaneamente por outro, é preciso melhorar a qualidade de vida, uma vez que a enunciação dessa importância frequentemente vem acompanhada de uma constatação da pequena ou mesmo da falta de qualidade de vida atual, seja da vida de uma pessoa individual, de uma situação de vida de uma coletividade, de um lugar onde se vive, de uma região da cidade, de um ambiente de emprego, da sociedade inteira, etc. É importante ter qualidade de vida, mas temos pouca, ou nenhuma, ou poderíamos ter mais, então é preciso melhorar a qualidade de vida.

Em seus atravessamentos, esses enunciados apontam assim tanto para a presença quanto para a ausência da qualidade de vida, que é importante, mas que falta, ou que é importante, e justo por isso pode ser melhorada, aumentada, intensificada. É preciso melhorar a qualidade de vida, e isso pode se relacionar tanto à necessidade de uma pessoa se esforçar e se cuidar para melhorar sua qualidade de vida quanto à necessidade de se melhorar as condições de vida de uma região ou de uma cidade ou da sociedade inteira.

É preciso melhorar a qualidade de vida se relaciona assim tanto à necessidade de uma pessoa mudar seus estilos de vida quanto à necessidade de se transformar as relações sociais para mudar as condições de vida. Circula tanto por práticas individualizantes quanto por práticas coletivizantes, é enunciada tanto enquanto imperativo individual quanto como necessidade social, é tanto um convite à mudança e à liberação quanto um instrumento de governo e de dominação, é ao mesmo tempo hegemônico e contra-hegemônico... Mais uma vez, não é contradição muito menos incoerência, são enunciados em dispersão e transformação, de modo que se configura um terreno móvel em disputa, relações abertas de forças que se atualizam em formas específicas e passageiras. Aqui se torna muito pertinente a observação de Foucault (1976/1999) de que:

É justamente no discurso que vem a se articular poder e saber. E, por essa mesma razão, deve-se conceber o discurso como uma série de segmentos descontínuos, cuja função tática não é uniforme nem estável. Mais precisamente, não se deve imaginar um mundo do discurso dividido entre o discurso admitido e o discurso excluído, ou entre o discurso dominante e o dominado; mas, ao contrário, como uma multiplicidade de elementos discursivos que podem entrar em estratégias diferentes. (…) é preciso admitir um jogo complexo e instável em que o discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e também obstáculo, escora, ponto de resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta. (pp. 95-96)

Em seus múltiplos movimentos, o enunciado é preciso melhorar a qualidade de vida acaba por chamar ao mesmo tempo, com a mesma intensidade, tanto por é preciso se cuidar para ter qualidade de vida quanto por é preciso investir em qualidade de vida. Pois para melhorar a qualidade de vida é preciso investir em qualidade de vida, e, mais uma vez, isso pode ser um investimento a nível pessoal, no sentido de ser importante uma pessoa investir em qualidade de vida, o que implicaria em um investimento tanto financeiro – de comprar produtos melhores, alimentos melhores, etc – quanto um investimento afetivo/emocional/espiritual – investir tempo em si, investir consciência em si, em se cuidar – no que esse enunciado se vincula ao espaço correlato do enunciado é preciso se cuidar. É preciso investir em qualidade de vida, e isso é se cuidar. É preciso se cuidar, e se cuidar é investir em qualidade de vida, em si. Circularidades do espaço associado de enunciados.

É preciso se cuidar, e isso tem se vinculado cada vez mais a uma espécie de gestão de si, em um padrão hegemônico e individualizante pela qual as pessoas são cada vez mais responsabilizadas a gerir suas vidas de modo a evitar os diversos riscos a que estão sujeitas e aumentar e potencializar suas capacidades, compreendidas como recursos.

É preciso se cuidar, mas isso pode ser tanto esse imperativo quanto um conselho de alguém querido, pode ser tanto uma opressão quanto um carinho, uma responsabilização individual ou uma preocupação de um outro, um dever ou uma ajuda. São sutis esses níveis enunciativos, apontam para várias direções, como vetores móveis.

Desse modo, investir em qualidade de vida pode também não ter nada a ver com a agência específica de pessoas individuais na gestão de suas vidas e estar mais relacionada a outros tipos de gestão – gestão de empresas, de cidades, de pesquisas –, no que essa importância de investimento seria um elemento em diversas estratégias organizativas, políticas ou científicas. É preciso investir em qualidade de vida, e isso pode se relacionar tanto com uma empresa que precisa investir em qualidade de vida para manter sua competitividade no mercado quanto com uma gestão pública que precisa investir em qualidade de vida para melhorar as condições de vida em uma cidade. Pode ser tanto a importância de se investir em pesquisas sobre qualidade de vida para aprimorar as estratégias de cuidado em saúde e assistência quanto em se investir em políticas públicas de promoção de qualidade de vida; podem ser tanto programas de qualidade de vida em uma organização quanto programas de qualidade de vida em uma região de uma cidade.

Investir em qualidade de vida se aproxima assim muito fortemente da noção de promover qualidade de vida. Investir para promover, seja numa empresa para promover bem-estar no seu ambiente organizativo, ou para promover cuidados em saúde entre seus funcionários, ou para promover uma maior conciliação entre a vida profissional e a vida pessoal, de modo a alcançar um equilíbrio que promova bem-estar e qualidade de vida; seja numa região ou coletividade que é alvo de políticas públicas de prevenção e promoção de qualidade de vida; seja na vida de uma pessoa individual que se cuida, que investe em si, para se prevenir de problemas e promover bem-estar e qualidade de vida.

Investir para promover, cuidar para promover, cuidar para prevenir, prevenir para promover... Nesses atravessamentos múltiplos, qualidade de vida gira ao redor do tema da saúde de diversos modos. De alguma forma, parece que qualidade de vida é justamente a saúde, ou, que saúde é justamente qualidade de vida, uma vez que saúde não seria apenas ausência de doenças ou quantidade de anos vividos, mas a qualidade de vida e o bem-estar de uma pessoa. Nessa equivalência, investir ou promover qualidade de vida seria investir em ou promover saúde; cuidar de si seria cuidar de sua saúde; melhorar a qualidade de vida seria melhorar a saúde; e saúde aqui seria atravessada por esses movimentos simultâneos individualizantes e coletivizantes, no sentido de promover a saúde individual e a saúde coletiva, a saúde de uma pessoa e de uma região, a saúde numa situação de vida ou numa situação de emprego, os estilos de vida que afetam a saúde e as condições de vida que promovem ou não saúde, etc.

Mas essa equivalência entre qualidade de vida e saúde não se sustenta totalmente e se desfaz em alguns outros movimentos, de modo que parece que, se saúde é qualidade de vida, qualidade de vida não seria apenas saúde, uma vez que essa saúde – seja a saúde física/corporal ou a saúde psicológica/emocional de uma pessoa, seja a saúde/condições de vida de uma região – seria apenas um dos aspectos da qualidade de vida. Parece assim que qualidade de vida e saúde se atravessam de diversos modos, e qualidade de vida pode ser justamente saúde, mas pode ser também algo mais que saúde, algo maior que saúde, ao passo em que saúde poderia ser tanto qualidade de vida quanto apenas um dos elementos constitutivos dessa qualidade de vida.

Interessantes esses movimentos que observamos nesse espaço associado de enunciados de qualidade de vida; interessantes e sutis, sutis e complexos. Particularmente interessante essa ideia da qualidade de vida como algo a mais. Parece haver algo nessa qualidade de vida pela qual ela se configura como algo a mais: é algo a mais na vida, é algo a mais na saúde, é algo a mais no trabalho, é algo a mais no cuidado, na assistência, é, enfim, algo a mais na situação atual, e algo que a qualifica, a melhora, a intensifica, e precisa justamente ser continuamente melhorada e intensificada. Qualidade de vida parece ser um algo a mais que demanda um investimento intenso, que convida a um trabalho diário, que exige um cuidado constante, que convoca a falar, a pensar, a pesquisar, a se preocupar, a organizar, a agir, etc.

Qualidade de vida parece assim ser um algo a mais que mostra que sempre é possível mais; parece ser um algo a mais que demanda por mais. Essa qualidade de vida, enquanto algo a mais, poderia ser pensada como algo como uma mais-valia? Uma mais-valia de vida, uma mais-valia de saúde, uma mais-valia da situação atual? Como compreender essa presença, ou, como compreender esse sistema limitado de presenças e esses movimentos que atravessam tantos aspectos de nossa atualidade? Para compreender esses enunciados e os efeitos que produzem temos que compreender que forças são essas que, em suas relações, são atualizadas nessas formas. Quais as condições de possibilidade dessa qualidade que vida que se apresenta como um algo a mais possível?

Desse modo, antes de buscar uma delimitação do que seja essa qualidade de vida sobre a qual tanto se tem falado e em função da qual tanto se tem agido, o objetivo deste texto foi traçar um percurso por entre o que se diz e o que se faz, no sentido de “rachar as palavras e as coisas” (Deleuze, 1990/2008, pp. 105-117) para tornar visíveis alguns enunciados de qualidade de vida.

Esse percurso por alguns enunciados de qualidade de vida pode contribuir para uma análise crítica dessa questão ao tornar visíveis alguns movimentos que possam ser interessantes para pensarmos, nem tanto o que seja essa qualidade de vida, mas como, em função dos mecanismos pelos quais essa questão é produzida, se articula atualmente um potente dispositivo que nos captura ao investir na vida e na sua intensificação, ao determinar suas qualidades e os modos certos de alcançá-las, ao anunciar, na sujeição a essas determinações, uma maior felicidade e uma vida mais plena, liberta das indeterminações que possam incomodá-la.

4 Referências

Deleuze, Gilles (1990/2008). Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34.

Deleuze, Gilles (1986/2013). Foucault. São Paulo: Brasiliense.

Foucault, Michel (1976/1999). História da Sexualidade I – A Vontade de Saber. RJ: Graal.

Foucault, Michel (1969/2005). A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

Foucault, Michel (1970/2013). A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola.