Problematizações (im)pertinentes: (sobre)vivências das travestis nos serviços de atenção básica em saúde no Brasil

Problematizations (im) pertinent: (about) experiences of transvestites in primary health care in health in Brazil

  • Danielle Jardim Barreto
  • José Augusto Gerônimo Ferreira
  • Leticya Grassi de Oliveira
Apresentamos neste artigo algumas discussões a respeito dos corpos nomeados travestis, e seus atravessamentos históricos e sociais, evidenciando as influências discursivas e essencialistas que os inventaram. Pontuaremos brevemente o processo de subjetivação, na qual tanto pode produzir culturas em massas, normalizando e padronizando identidades uniformizadas, como pode singularizá-las, possibilitando novas vivências, experimentações, desejos e prazeres. Em seguida discutiremos sobre o sistema sexo/gênero/sexualidade e a criação da sociedade cisheteronormativa, pontuando que esse sistema nada tem de natural, sendo estrategicamente implantado para manter o poder e sua hegemonia. Nesse sentido, propomos neste artigo, problematizar as violências psicológicas vivenciadas pelas travestis nas instituições públicas de saúde, instituições que em si, deveriam erradicar todo tipo de violência, mas que acabam contribuindo com sua intensificação.
    Palavras chave:
  • Corpos
  • Travestilidade
  • Saúde Pública
  • Violência Psicológica
We present here some discussions about the appointed bodies transvestites, and its historical and social crossings, emphasizing the discursive and essentialist influences that invented them. Briefly We will briefly outline the process of subjectivation, in which both can produce crops in masses, normalizing and standardizing uniform identities, how can distinguishes them, enabling new experiences, trials, desires and pleasures. Then we will discuss about sex system/gender/sexuality and the creation of heteronormative society, pointing out that this system is not at all natural, being strategically deployed to keep the power and hegemony. In this sense, we propose in this article, discuss the psychological violence experienced by transvestites in public health institutions, institutions which in itself should eradicate all forms of violence, but end up contributing to its intensification.
    Keywords:
  • Bodies
  • Travestilidade
  • Public Health
  • Psychological Violence

1 Apresentação

Os diversos episódios de violências e as estratégias de estigmatização dos corpos e das vidas que estamos vivendo na atualidade, têm negado e coibido a existência de pessoas não-cis e/ou travestis por meio de discursos com bases essencialistas e moralistas. Assim, novas problematizações vêm sendo construídas nos campos da Psicologia, que se reinventa para suprir as necessidades e demandas emergentes, com intuito de prevenir e amenizar as ações que reduzem os seres humanos a abjeções, ou seja, pessoas que experimentam-se como: “corpos cujas vidas não são consideradas ‘vidas’ e cuja materialidade é entendida como não importante” (Prins & Meijer, 2002, p. 161).

Em favor dessas problematizações, encontramos no contexto acadêmico uma gama de possibilidades que permitem problematizar as relações sociais e as normas instituídas. Por meio disso torna-se possível a construção de novos caminhos e novas vivências aos corpos e vidas abjetas. Assim, emerge o desejo de conhecer as travestilidades1, suas experimentações nas relações socializadas e seus direitos cidadãos. Além disso, interessa saber os marcadores sociais que atravessam e compõe essas realidades que socialmente são permeadas de conflitos.

Conflitos estes que são vivenciados pelas travestis desde muito cedo devido à sociedade heterossexista que vivemos, pressupondo a “heterossexualidade como algo supostamente natural ao mesmo tempo em que a impõe compulsoriamente por meios, educativos, culturais e institucionais” (Miskolci, 2011, p. 55). Igualmente se faz a cisnormatividade, agenciamento naturalizado e normalizado que perpassa, regula, estigmatiza e discriminam os corpos que não correspondem ao padrão cissexual imposto, qual seja, o que atribui a designação do sexo de nascimento a sua performatividade de gênero. Portanto cabe ressaltar que tanto a heteronormatividade, quanto a cisnormatividade moldam “a organização social e cria resistência à existência a outras formas de identidades/expressões de gênero. A construção desse termo visa, entre outras coisas, visibilizar o privilégio e legitimidade dado as pessoas não Trans dita como ‘normais’” (Rodriguez, 2014, p. 36).

Assim sendo, ao negar viver sob os limites impostos, as travestis2 são vistas pela sociedade como pessoas subalternas, de vidas precárias e invisíveis. No entanto, destacamos que algumas problematizações vêm sendo realizadas nos campos da Psicologia com almejo da visibilidade social e cidadã, evidenciando as singularidades existentes na travestilidade.

Utilizamos como metodologia o estado da arte, o qual permite através de reflexões teóricas compreender e mapear as questões a serem analisadas, dando aberturas para novas problematizações. Este método contribui para a condução e efetivação da análise elucidando “as restrições sobre o campo em que se move a pesquisa, as suas lacunas de disseminação, identificar experiências inovadoras investigadas que apontem alternativas de solução” (Romanowski & Ens, 2006, p. 39).

Assim, o estado da arte, realizado através do levantamento bibliográfico acerca da temática proposta, contribui com as implicações dessa pesquisa, pois possibilita problematizar através de referenciais, os determinantes envolvidos nas ocorrências de violências psicológicas contra as travestis nas diversas instituições de saúde pública. Para efetivação desse processo optou-se por usar de referência primária, abrangendo com maior especificidade os conceitos abordados. Visto que ao se tratar sobre violência psicológica, compreende-se que a mesma está presente nas diversas instituições e mesmo em meio essa constatação a utilização de materiais secundários por vezes mostrou-se limitados, devido às poucas publicações a respeito desse tema.

De acordo com Wiliam Siqueira Peres (2015, p. 72), as violências permeiam as múltiplas “instituições disciplinares (igreja, família, estado, hospitais)”, inviabilizando algumas existências, suas corporeidades e seu acesso aos bens sociais. A esse respeito, uma das problemáticas levantadas são as violências psicológicas que as pessoas em processo de travestilidades experimentam nas instituições de saúde pública, apontando que na atenção básica essas corporeidades são, muitas vezes, negligenciadas e negadas de direitos por práticas profissionais.

De acordo com o Relatório de Violências Homofóbicas no Brasil (Secretaria de Direitos Humanos, Brasil 2012), as travestis estão mais vulneráveis as violências de todas as ordens, ocupando o ranking com 51,68% dos casos denunciados, nos quais 83% das violências são psicológicas. Assim sendo, evidencia-se que no Brasil a transfobia3 é estrutural, e suas ações desumanizam as “expressões de sexualidades divergentes da heterossexual, atingindo a população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais em todos os níveis e podendo ser encontrada nos mais diversos espaços” (Secretaria de Direitos Humanos, Brasil, 2012, p. 93).

As ocorrências de violências nas instituições públicas de saúde também são citadas pelo relatório e, apontam que nesses espaços as violações de direitos humanos de caráter transfóbico também são frequentes. Essas ações descumprem os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), ao negar direitos, universalidade, igualdade e integridade no atendimento às travestis (Brasil, 1990).

Sob essa ótica, Martha Helena Teixeira de Souza & Pedro Paulo Gomes Pereira (2015) ressaltam que a maioria d@s4 profissionais de saúde “não atentam as especificidades desses sujeitos, desconhecendo as iniciativas governamentais na tentativa de respeitar a diversidade dos usuários” (2015, p. 150). Assim, @s profissionais envolvid@s com esse público são permead@s por valores morais e pela falta de capacitação qualificada e continuada, negando às travestis direito a saúde.

Nesse sentido é necessário retratar a violência vivenciada por essas pessoas na saúde pública, cabendo antes compreender como acontece o processo de subjetivação em nosso contexto de socialização, assim como as influencias que perpassam uma posição ética profissional ao se tratar do atendimento público. Para Félix Guattari & Suely Rolnik (1986/1996) este processo se estabelece a partir das relações capitalísticas, “tornamo-nos assim – muitas vezes em dissonância com nossa consciência – produtores de algumas sequências da linha de montagem do desejo” (Guattari & Rolnik, 1986/1996, p. 12).

Tal fábrica capitalística produtora de subjetividades ordena, classifica e criminaliza, gerando preconceitos, discriminação e processos de estigmatizações vinculados às sexualidades, aos gêneros e aos prazeres sexuais.

Em Thomas Walter Laqueur (2001), compreendemos o processo de criação filosófica, científica e principalmente sociopolítica que inventou e organizou os sexos numa hierarquia. Essas criações produziram discursos de diferenciação do que é ser homem e do que é ser mulher, constituindo significações que atrelavam a corporeidade masculina, sua genitália e seus fluidos como quentes, ativos e potentes, consequentemente, afirmavam sua superioridade à mulher, vista como passiva e com menos calor. Assim, concretizam-se também os discursos sobre a funcionalidade do sexo reprodutivo e não prazeroso e a importância da manutenção da heterossexualidade para a procriação. Deste modo, esses discursos produzidos historicamente pela Biologia essencialista, são aparatos que influenciam no processo de patologização e negligência da existência de algumas subjetividades na contemporaneidade.

Nesse percurso consideramos também as contribuições de Michel Foucault (1976/1999), que esclarece-nos que os processos de subjetivação são compostos pelo disciplinamento e o controle dos corpos, sendo estes processos atravessados pelo dispositivo5 da sexualidade. Este dispositivo é composto por verdades e discursos essencialistas, que agenciam as sexualidades pela lógica da reprodução e não pela intensidade dos prazeres.

De acordo com o mesmo autor, essas estratégias de disciplinamento dos corpos e das sexualidades emergem durante o século XVIII na burguesia, com intuito de criar mecanismos de reprodução do próprio sangue burguês, através do controle de seus corpos, instituindo assim, uma sexualidade própria e saudável.

Inicia-se nesse período o saber científico biomédico que produz saberes que contribuem para o agenciamento e controle das sexualidades permitidas e ensinadas. Esses mecanismos instalaram-se na classe operária através dos discursos disseminados nas relações e instituições sociais a partir do século XIX, com a emergência de corpos disciplinados requeridos pela organização capitalística, sendo necessário “a instauração de uma nova tecnologia de controle que permitia manter sobe vigilância esse corpo e essa sexualidade que finalmente se reconhecia neles” (Foucault, 1976/1999, p. 199). Logo, o que está em jogo não é a intensidade dos prazeres, mas sim a reprodução da espécie normatizada e imprescindível para a produção capitalística.

As estratégias citadas são criadas e agenciadas pelos discursos hegemônicos, disseminadas ao longo da história a todas as classes sociais através de dispositivos específicos, produzindo uma sociedade cisheteronormativa que disciplina e controla as sexualidades a partir da reprodução natural biológica. Deste feito, todas as sexualidades existentes que borram os padrões cisheteronormativos de reprodução constituem-se como abjeções, sendo impossibilitadas de alguns privilégios sociais.

Assim a travestilidade é uma corporeidade que resiste à lógica cisheternormativa, não sujeita a viver sob a norma instituída a seu corpo. No entanto, ao abdicar dessa norma sofre intensos processos de estigmatização, que marcam sua vivência e delimitam lugares específicos de seu trânsito na sociedade (Silva & Ornat, 2010).

Compreende-se melhor esse processo de estigmatização em Erving Goffman (1963/2004), que ressalta que os estigmas são atributos depreciativos, a qual a sociedade julga e naturaliza padrões de comparação com outrem. Para o autor há três tipos específicos de estigmas “as abominações do corpo; as culpas de caráter individual e os estigmas tribais de raça, nação e religião” (Goffman, 1963/2004, p. 7). Por conseguinte, os processos de subjetivação das travestis são atravessados por essas formas de estigmas deixando-as socialmente vulneráveis as violências de todas as ordens.

Nesse sentido, a violência psicológica vivenciada pelas travestis no sistema da saúde pública em atenção básica será um dos objetivos desta análise. Visto que, as produções científicas levantadas que abordam o tema travestilidade denunciam a ocorrência constante de violências a essas pessoas, sendo praticadas até mesmo por psicólog@s capturad@s pela lógica cisheteronormativa. A respeito disso, Martha Helena Teixeira de Souza, Paulo Malvasi, Marcos Claudio Signorelli & Pedro Paulo Gomes Pereira (2015) relatam que há o envolvimento de vários fatores, dentre estes, o despreparo d@s atendentes e especialistas dos serviços de saúde ao público travesti. Segundo @s autor@s isto ocorre constantemente pelo fato d@s servidor@s do sistema de saúde não irem além de sua formação, muitas vezes defasadas de informações, para buscar ferramentas de compreensão do atendimento da travesti.

Assim emerge a necessidade de um comprometimento ético reforçado nas políticas públicas devido à singularidade do público atendido, dado que o cotidiano entre @s usuári@s e os profissionais constituem relações de poder e saber que devem articular espaços de transformações políticas e sociais e não apenas de estigmas, preconceitos e violência como vem acontecendo (Foucault, 1976/1999).

O fato é que durante muito tempo as sexualidades que não se enquadravam a cisheteronormatividade foram oprimidas e negadas de direitos e cidadania, pois eram vistas sob a perspectiva biomédica dogmática como patologias que necessitavam de intervenções curativas, disciplinares e controladoras. Assim, argumenta Gayle Rubin (2012) que as sexualidades “são imbuídas de conflitos de interesse e manobras políticas, ambas deliberadas e incidentais. Nesse sentido o sexo é político” (2012, p. 1). Desta forma, as violências geradas na atualidade são frutos desse processo histórico, sócio, político e cultural de opressão das sexualidades.

Diante este prisma, a cisheteronormatividade produz uma relação de dominação, erradicação e controle das sexualidades que borram os limites impostos, no entanto “O discurso veicula e produz poder; reforça-o, mas também o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo’’ (Foucault, 1976/1999, p. 96). Assim, as pessoas que não se encaixam nessa norma constituem corpos em resistências, os quais iniciam movimentos e lutas sociais a favor dos seus direitos e visibilidade. Os movimentos e lutas sociais agenciados pela comunidade travesti ganham visibilidade social na década de 90, ao criarem estratégias de enfrentamento e prevenção da epidemia HIV/AIDS, conquistando através desses, espaços para sua inserção política (Ministério da Saúde, Brasil, 2013).

Com base nas problematizações aqui ressaltadas, comungamos da ideia de que estas são fundamentais para a formação d@s profissionais em Psicologia, pois vivemos tempos de poucas discussões críticas a respeito da postura ética profissional.

Conrado Ramos (2012) acrescenta que tais problematizações são necessárias para não cair no cinismo, que “é a subjetividade que resulta do mundo desencantado” (p. 169). O sujeito desencantado é vazio e individualista, incapaz de compreender as negligências que corroboram para manutenção das violências transfóbicas. Deste modo, @s profissionais não devem acomodar-se nos moralismos e nos essencialismos que inviabilizam vidas potentes e formas singulares de existir.

Portanto, verificamos a urgência de problematizações acerca da realidade vivenciada pelas travestis no sistema público de saúde, visto que nesses espaços essas corporalidades sofrem constantemente processos de violências psicológicas. Assim sendo, propomos a seguir problematizar o processo de subjetivação e os atravessamentos que compõem esses corpos, entendendo-os a partir de uma visão construcionista de permanentes mudanças e singularizações.

2 O corpo enquanto ação social: breves resgates sobre processos de normalização e de singularização

Assim é o corpo, uma porção de carne, cuja vida é moldada pelas relações socializadas sempre situadas na espacialidade. Estando em constante metamorfose, o corpo pode atingir sua existência singular de forma artística e criativa, sempre em acordo com seus sonhos, desejos, vivências, amores e prazeres, ou pode apenas reproduzir roboticamente a ordem normalizada imposta pelo sistema, continuando em suas mesmices massificadas (Guattari & Rolnik, 1986/1996).

Discussões a respeito desse corpo, assim como de seu sexo, sua funcionalidade e sua representação social atravessaram a produção de saber desde os filósofos gregos à medicina ocidental. Os discursos criados pel@s detentor@s do saber eram reproduzidos e, corporificando seu status de verdade, posteriormente eram engendrados e disseminados no seio da sociedade.

Em Thomas Walter Laqueur (2001) compreende-se que o desejo por desvendar os mistérios do corpo e do sexo, teve início na filosofia arcaica passando pelos conhecimentos empíricos e religiosos. Os procedimentos e estratégias de construção do corpo e do sexo são agenciados em diferentes épocas e contextos, modelando as relações sociais a partir do discurso linguístico, essencialista e biológico. Deste modo, o autor argumenta que:

A visão dominante desde o século XVIII, embora de forma alguma universal, era que há dois sexos estáveis, incomensuráveis e opostos e que a vida política, econômica e cultural dos homens e das mulheres, seus papeis no gênero, são de certa forma baseados nesses “fatos”. A biologia – o corpo estável, não histórico e sexuado – é compreendida como o fundamento epistêmico das afirmações consagradas sobre a ordem social. (Laqueur, 2001, p. 18)

Diante desse exposto, percebe-se que as expressões sociais atreladas a cada sexo são permeados por interesses políticos e de poder. Segundo Foucault (1976/1999), estratégias de disciplinarização e controle das sexualidades e dos corpos foram criados para a fixação e manutenção do poder, produzindo mecanismos disciplinares que agenciam a vida e seu modo de produzir e reproduzir, por meio de práticas sexuais reprodutivas e não prazerosas.

Assim Laqueur (2001) ressalta, que a construção histórica que inventou e organizou o sexo foi engendrada na sociedade pela linguagem, sendo esta responsável por criar, significar e reproduzir verdades essencialistas e naturais. Desta forma, o discurso produz uma diferenciação hierárquica, na qual o homem discursivamente fora construído como forte, potente, padrão, digno, poderoso, ativo, viril, quente e reprodutor, enquanto a mulher era vista como passiva e submissa às ações desse homem. Portanto, ao se assumir as características destinadas a cada sexo agenciam-se a visibilidade e legitimidade aos corpos de acordo com seu papel social.

Os corpos que não se limitavam ou não se identificavam com o padrão construído e aceito, estavam sujeitos a julgamentos moralistas e patologizantes. Assim, nas relações sexuais de sexos iguais o homem ativo que penetra, não era visto socialmente como ameaça a masculinidade, pois estava desempenhando sua função de penetrar, já o “parceiro fraco, afeminado é que tinha problemas profundos, em termos médicos e morais. Seu próprio semblante denotava sua natureza: pathicus, o que era penetrado” (Laqueur, 2001, p. 67). Nesse sentido, as relações sexuais praticadas por pessoas do mesmo sexo, passam a ser rejeitadas culturalmente, pois o contexto político e social até o período do século XVII engendrou na cultura as atividades masculinas e femininas e suas respectivas funções sociais.

Durante séculos as produções discursivas, empíricas e religiosas de dogmática cristã, produziram as normalizações dos corpos e dos sexos, sempre pautados pelos preceitos da Biologia natural e essencialista. Essas normalizações ocasionaram em fixações rígidas que denominou um único padrão de normalidade, padrão esse que tinha como princípio a reprodução da espécie.

Assim sendo, as produções de Foucault (1976/1999) possibilitam na contemporaneidade, problematizações além do naturalismo biológico e moralista criado para explicar e organizar as sexualidades, permitindo discussões a respeito do corpo, do sexo e seus atravessamentos sociais, históricos, políticos e culturais. Ou seja, registrando que esse corpo está em “construção permanente e flexível que lhe conferem marcas que variam de acordo com os tempos, espaços, conjunturas econômicas, grupos sociais, étnicos, sexuais e de expressão de gêneros” (Peres, 2011, p. 71), portanto, devem ser absorvidos a partir de uma visão construcionista e não essencialista.

Sob essa perspectiva, Foucault (1976/1999) evidencia que a materialização dos corpos, sofre constantemente intervenções de normalizações pelas relações de poder e saber, em todas as ordens e níveis sociais. Este fato produz e concretiza significados e valores através dos discursos estabelecidos que mantém e organiza a ordem capitalística.

Nesse viés, Tomaz Tadeu Silva (2013) argumenta que:

Normalizar significa eleger – arbitrariamente – uma identidade específica como parâmetro em relação ao qual as outras identidades são avaliadas e hierarquizadas. Normalizar significa atribuir a essa identidade todas características positivas possíveis, em relação as quais as outras identidades só podem ser avaliadas de forma negativa. A identidade normal é “natural”, desejável, única (p. 83).

Através da normalização de verdades agenciadas nas disputas das relações de saber e poder, são produzidas as identidades fixas e acabadas, que definirão os papéis sociais, os desejos e os prazeres possíveis.

Gilles Deleuze & Félix Guattari (1980/1996) destacam que esse processo não é natural, mas composto de lineamentos que podem tanto normalizar, na qual, o sujeito reproduz a ordem do poder estabelecido, ou singularizar, criando estratégias e autonomia de si próprio. Esses lineamentos são denominados pelos autores como: linha molar; linha molecular e linha de fuga.

Essas linhas atravessam constantemente os indivíduos e as coletividades, sendo engendradas através de discursos históricos e culturais nos modos de produções atuais. As linhas molares, são rígidas e duras, carregam em si discursos e instituições dogmáticos que concretizam verdades absolutas, geralmente são produzidas em igrejas, escolas, mídias, estado, família, enfim, em todas as relações que nos permeiam. Sua ação produz e mantém identidades normalizadas, fixas e acabadas que repetem a ordem estabelecida, “tudo parece contável e previsto, o início e o fim de um segmento” (Deleuze & Guattari, 1980/1996, p. 61).

No entanto, para que ocorra a produção de identidades normalizadas é preciso disciplina e controle dos corpos, essa ação é entendida por Guattari & Rolnik (1986/1996) como produção de cultura de massas, na qual produz “indivíduos normalizados, articulados uns aos outros segundo sistemas hierárquicos, sistemas de valores, sistemas de submissão” (p. 16).

Para os autores, o processo de subjetivação envolve uma produção massificada, ou seja, uma modelação social, na qual a subjetivação será composta sob a influência de vários fatores em conjunto com as relações estabelecidas da lógica cisheteronormativa, disciplinando, controlando e reproduzindo a ordem estabelecida do poder de forma fabril.

Sendo a subjetividade composta e atravessada pelas relações estabelecidas entre indivíduo e a sociedade, onde os corpos estão sujeitos a ações de modelização em moldes normatizadores, por meio das instituições disciplinares, da comunicação linguística, das tecnológicas, das midiáticas, etc, confeccionando corpos dóceis e normalizados.

Essas estratégias agenciadas pelas instituições sociais normatizadoras criam normas que circulam entre os indivíduos e a coletividade que tende a se efetivar a toda população. Sua função é disciplinar e controlar os corpos e seus movimentos, visando à normalização e a regulamentação dos mesmos. Nesse sentido, as estratégias normatizadoras produzem, estabelecem e sistematizam as normas, as leis e as regras de padronização, já as normalizadoras regulamentam os corpos sob o padrão de normalidade instituído. Os sujeitos normais são aqueles que se adequam aos padrões estabelecidos, os que se amoldam as normas impostas, já os que deslizam, ou seja, os que não se sujeitam a esse padrão, são tidos como anormais e desviantes (Veiga-Neto & Lopes, 2007).

Deste feito, o processo de normalização dos corpos e das sexualidades objetiva a manutenção do poder e a reprodução disciplinada de identidades padronizadas, que reproduzirão a ordem estabelecida. No entanto, Foucault (1976/1999) argumenta que as relações de poder e saber produzem corpos resistentes a sua hegemonia, que questionam a segmentaridade e a rigidez dos modos de produções massificados.

Deleuze & Guattari (1980/1996) apresentam esse processo como uma movimentação flexível e maleável dos corpos. Para os autores o questionamento das verdades absolutas agencia uma desterritorialização6, que permite e possibilita novas ações e movimentos, nomeados como moleculares. Sua flexibilidade questiona a existência da universalidade de produção massificada e permite novas conexões.

Desta forma, o processo de subjetivação, tanto pode reproduzir a lógica estabelecida pela normalização das identidades fixas, ou produzir processos de transições, no qual surgem possibilidades de experimentações de novos desejos e prazeres, constituindo “uma espécie de linha de fuga, igualmente real, mesmo que ela se faça no mesmo lugar: linha que não admite qualquer segmento, e que é, antes, como que a explosão das duas séries segmentares” (Deleuze & Guattari, 1980/1996, p. 64).

Esse processo também é nomeado como “revolução molecular”, permitindo aos corpos resistentes iniciar um processo de singularização, que segundo Guattari & Rolnik (1986/1996) os sujeitos captam “elementos da situação, que construa seus próprios tipos de referencias práticas e teóricas, sem ficar nessa posição constante de dependência em relação ao poder global” (p. 46). A revolução molecular produz condições de rompimento com os ideais capitalísticos, emergindo novas possibilidades de vivências, sonhos, desejos, amores, prazeres e expressões.

A singularização traz em seu bojo posicionamentos críticos e valores contrários aos estipulados pela organização capitalista. Em meio aos obstáculos e a invisibilidade social imposta às pessoas que desejam novas experimentações que não seja a estabelecida por esse sistema produtor de subjetividades normalizadas, encontramos corpos resistentes que almejam mergulhar na imensidão de possibilidades permitidas ao seu desejo e ao seu corpo, com intuito de criação singular e potencializadora de uma nova forma de existir (Guattari & Rolnik, 1986/1996).

A vista das problematizações aqui ressaltadas compreende-se que a produção discursiva criou/cria dispositivos de disciplinarização e controle dos corpos, agenciando e regulando a vida, as sexualidades e os prazeres permitidos pela lógica reprodutiva. Assim, as relações socializadas são permeadas por normas instituídas que atravessam as subjetividades e dão visibilidade aos corpos que se sujeitam a reproduzir as normalizações impostas pela sociedade cisheteronormativa.

Deste feito, propomos a seguir problematizar a lógica binária cisheteronormativa, qual seja: - sexo, gênero e sexualidade, entendendo que em nosso processo de subjetivação essa lógica é normalizada pelo dispositivo da sexualidade efetivado pelo biopoder, que segundo Foucault (1976/1999, p. 132) “foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só pôde ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de reprodução e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos”, pautando-se em normas e leis que agenciam, disciplinam e controlam os corpos através do discurso instituído. Nesse sentido, através de uma perspectiva desconstrucionista, pretende-se questionar os atravessamentos naturalizados que essencializam e limitam os corpos e os prazeres.

3 (Des)construindo a lógica sexo, gênero e sexualidade

Ao pensar em lógica do sexo, gênero e sexualidade, devemos compreender o corpo e suas significações culturais, sociais e discursivas de modo construcionista e não essencialista, possibilitando assim, problematizações que questionam a naturalização dos modos de existir (Louro, 1999/2000).

Para o caminhar desse processo, torna-se fundamental as reflexões realizadas por Laqueur (2001) a respeito da invenção do sexo. Em seus estudos, pontua a construção discursiva e o entendimento biológico que criou os dois sexos – macho e fêmea – pois na antiguidade acreditava-se em apenas um único sexo. A partir desta constatação permitiu problematizações sobre o gênero e a influência presente no mesmo, como visibilidade perante a sociedade, pois “ser homem ou mulher era manter uma posição social, um lugar na sociedade, assumir um papel cultural, não ser organicamente um ou outro de dois sexos incomensuráveis.” (p. 19). Isso gerou investimentos nos discursos a respeito das práticas sexuais exercidas, tendo sempre a mulher como inferior ao homem chegando a questionamentos sobre “a própria existência do prazer sexual feminino” (Laqueur, 2001, p. 22).

Assim, ainda é pertinente o conceito biológico, naturalista disseminado pela sociedade, na qual “os órgãos genitais definem se uma pessoa é homem ou mulher, porém a construção da nossa identificação como homens ou como mulheres não é um fato biológico, é social. ” (Jesus, 2012, p. 8), deste modo considera-se que a construção da identificação sexual será a partir de práticas ditas padrões para a aceitação na sociedade.

Vimos que a sociedade capitalística controla, normaliza e naturaliza os corpos e os prazeres permitidos. Partindo desse viés, temos a contribuição de Foucault (1976/1999), com o conceito do dispositivo da sexualidade, ou seja, controle e regulação dos corpos através do sexo, estabelecendo discursos normalizadores relacionados ao poder, nas diversas instituições, como família, igreja, escola, hospitais, “o poder sobre o sexo se exerceria do mesmo modo a todos os níveis. [...] encontrar-se-ia, em escalas diferentes apenas, uma forma geral de poder. ” (Foucault, 1976/1999, p. 82). Desta forma, as relações de poder permeiam as práticas sexuais, na qual promove controle sobre as mesmas, com o intuito de normalizar e disciplinar os corpos.

Como já citado, o controle é regido por estratégias que agenciam a vida e garante a manutenção do poder. Assim, Foucault (1976/1999) ressalta, sobre o biopoder, que tem o intuito do controle dos corpos pelo mecanismo de produção capitalista, ou seja, há um “ajustamento da articulação dos homens à expansão das forças produtivas e as repartições diferenciais do lucro foram, em parte, tornando possíveis pelo exercício do biopoder com suas formas e procedimentos múltiplos” (p. 133). É visto que essa modalidade do poder tem um domínio sobre os corpos e seus prazeres ditando as normas aceitas e as reprovadas pelo discurso cisheteronormativo (Peres, 2015).

Nesse sentido, o sistema impõe a sexualidade “Boa”: normal, natural, sagrada, heterossexual, no matrimônio, monogâmica, para a procriação e não comercial. E a sexualidade “Má”: anormal, antinatural, maldita, homo, bi, sem matrimônio, promíscua, em grupos, comercial, esporádica (Rubin, 2012, p. 19).

Do mesmo modo tanto a masculinidade quanto a feminilidade são impostas desde a infância pela sociedade, que dita às práticas corretas de acordo com o órgão genital. Conforme Analídia Rodolpho Petry & Dagmar Estermann Meyer (2011, p. 195) citam, a heteronormatividade como um dispositivo que:

Visa regular e normatizar modos de ser e de viver os desejos corporais e a sexualidade. De acordo com o que está socialmente estabelecido para as pessoas, numa perspectiva biologista e determinista”. Assim como a cisnormatividade permeia as instituições e as relações sociais acarretando constantes influencias nos corpos e consequentemente a “união e alienação entre sexo-gênero. (Rodriguez, 2014, p. 50)

Este controle produz corpos normatizados, assim como todo processo de sexualidade se constitui dentro dos padrões biologistas naturalistas. Segundo Guattari & Rolnik (1986/1996) há uma ligação entre as máquinas produtivas e as máquinas de controle social, desta forma a sociedade tem o domínio sobre os corpos impondo sua ideologia binária. Sobre este conceito de binarismo os autores ressaltam que para o seu entendimento é necessário compreendermos que a todo o momento há uma segmentaridade presente nos modos de existir e nas relações.

A princípio uma segmentação binária “que se estrutura segundo grandes oposições duais, dentre as quais poderíamos destacar aquelas entre proletários e burgueses, homens e mulheres, adultos e crianças. ” (Peixoto Júnior, 2012, p. 89), ou seja, grandes disparidades duais que estabelecem um discurso potente sobre os indivíduos vindos das grandes máquinas produtoras de subjetividade. Estes discursos enfatizam as regras normalizadoras, na qual as práticas se tornam apenas duas, homem/mulher, ativo/passivo, heterossexual/homossexual (Deleuze & Guattari, 1980/1996).

Deleuze & Guattari (1980/1996) apresentam também, a segmentaridade circular que “num regime flexível, os centros já procedem como nós, olhos ou buracos negros; porém não ressoam todos juntos, não caem num mesmo ponto, não convergem para um mesmo buraco negro central” (Deleuze & Guattari, 1980/1996, p. 79). Desta forma, as relações tornam-se cada vez mais centralizadas, assim como o poder que se estabelece central nas mesmas.

Esses conceitos possibilitam as problematizações e as compreensões dos discursos advindos do contexto sócio, histórico, político, cultural, no qual a discussão de que os gêneros já são estabelecidos antes mesmo do nascimento da criança, visando à lógica do segmento linear, inviabilizando outras possibilidades de expressão de gênero.

Entretanto, as contribuições de Laqueur (2001, p. 23) retratam que “o que o gênero é, o que os homens e as mulheres são [...] não só refletem ou elaboram os ‘fatores’ biológicos como são produtos de processos sociais e culturais”, sendo formado ao longo da vida pelos lineamentos que compõem e atravessam nosso processo de subjetivação. Rubin (2012) também retrata que os estudos feministas atuais, possibilitaram saberes sobre o sexo e consequentemente outras formas de entendimento sobre os fatos sexuais, compreendendo assim sua formação histórica e social, desviando de uma lógica biologista.

Desta forma, as determinações de expressões de gêneros são impostas pela cisheteronormatividade, esses discursos fazem com que o sexo seja naturalizado inviabilizando a lógica do desejo. Seguindo o mesmo pensamento os comportamentos criam “uma circularidade entre causa e efeito e revelando um esforço para manter o paradigma naturalista que estabelece uma continuidade causal lógica entre gênero e desejo sexual” (Jimenez & Adorno, 2009, p. 350). Sendo esse, um ponto chave para compreender a travestilidade, a qual desconstrói a lógica de que o sexo determinará o gênero, que determinará a sexualidade.

Diante dos fatos já mencionados, é visto que a travestilidade foge de todas as normas e padrões estabelecidos pela sociedade cisheteronormativa, sendo punida pela não adequação aos padrões. Ao oposto da lógica biologista, determinista e naturalista que dita apenas duas possibilidades, a travesti - “um corpo aparentemente feminino que tem entre as pernas o órgão sexual masculino, e mais ainda, faz o uso dele” (Peres, 2015, p. 36) - vem com um leque de possibilidades, gerando confusão por embaralhar todos os códigos pré-estabelecidos.

Por conseguinte, Joan Scott (1989/1995) ressalta que o conceito – gênero surge como forma de apontar as organizações sociais, e que o emprego desse termo exalta todo um conjunto de relações, englobando o sexo, mas que não é propriamente determinado por ele, nem destina a sexualidade. Pois, como no caso das travestilidades, suas características se aproximam das características ditas como femininas, mas isso não significa que elas desejam serem mulheres, mas sim travestis (Jimenez & Adorno, 2009).

Borrando todos os conceitos impostos pela cisheteronormatividade, aí vem ela: a Travesti, trazendo consigo além de todos seus apetrechos e seu silicone – muitas vezes inserido por elas mesmas, por serem impedidas de realizar cirurgias na saúde pública – trazem também toda a violência marcada no corpo, violência essa sofrida pelo simples fato de viver o seu desejo, violência vivida pelo simples fato de não serem vistas como humanas. Além de toda essa bagagem, as travestilidades trazem em seu bojo sua ambiguidade que não cabem nas normas. Segundo Fernanda Pivato Tussi (2006, p. 327)

Elas encontram-se num espaço onde há exotismo, preconceito, exclusão, mas ao mesmo tempo são atribuídas a novos valores e olhares presentes na sociedade. (…) Isso demonstra que as travestis se transformam por uma categoria de gênero e não de práticas sexuais.

A travestilidade não se generaliza em um só padrão, mas sim em uma multiplicidade de possibilidades, todavia, é visível a necessidade de uma compreensão mais aprofundada sobre as realidades que permeiam nosso cotidiano, buscando assim cada vez mais informações para além da formação, tanto d@s profissionais da Psicologia, como tod@s profissionais inserid@s no sistema público de saúde que não vêm às pessoas como humanos de direitos.

Contribuindo com esse processo de produção da travestilidade, é necessário discorrermos também sobre os processos de estigmatização e exclusão que essas pessoas vivenciam no decorrer de suas existências, assim como a naturalização desses processos que pune a tod@s que borram as normas estabelecidas pela sociedade cisheteronormativa.

4 O percurso de estigmatização da existência travesti e a influência do saber científico

Permeadas por relações estigmatizadoras, as travestilidades se encontram vulneráveis as violências de todas as ordens e instituições. Nas instituições públicas de saúde, tema específico desse artigo, não é diferente, nesses locais essas pessoas também são estigmatizadas e discriminadas por julgamentos morais e preconceituosos d@s profissionais e agentes da saúde.

De acordo com Rubin (2012), no contexto do século XIX, todas as pessoas que mantinham condutas sexuais desviantes das estipuladas pela heteronormatividade de cunho prazeroso e não reprodutivo sofreram sanções, a qual, "um estigma extremo e punitivo mantém alguns comportamentos sexuais como baixo status e uma sanção efetiva contra aqueles que as praticam" (Rubin, 2012, p. 16). Ao pertencer às castas de condutas proibidas por essas sanções, as travestilidades acabam sendo inviabilizadas socialmente, e por não limitarem seus corpos aos padrões estabelecidos ao seu sexo biológico são estigmatizadas, discriminadas e excluídas do convívio social.

Jorge Leite Júnior (2008) pontua que a invenção da travestilidade, sofre influência dos discursos médicos e religiosos, tendo a figura do hermafrodita como simbologia desses acontecimentos. Com a insurgência do saber médico o hermafrodita - antes venerado por sua associação com o universo mágico - passou a ser visto como anomalia monstruosa. Surge nesse contexto à noção de um pseudo-hemafrodita ou hemafrodismo-psíquico, corroborando com as definições clínicas e identitárias das práticas científicas patologizantes da época.

O pseudo-hemafrodita se torna figura simbólica das ambiguidades e dos desejos sexuais, antes expressas no corpo pela composição da genitália masculina e feminina passando a ser expressas na mente. Tal expressão era reconhecida nas pessoas, que apresentavam desejos sexuais e perversos ilícitos culturalmente, sendo vistas como psicopatologia, na qual a Psiquiatria seria o carro chefe responsável em produzir resoluções dessas doenças que embaralhavam os códigos de inteligibilidade do que se tinha por feminino e masculino (Leite Júnior, 2008).

Nesse sentido, os discursos da medicina essencialista produziram exclusão e estigmatização das pessoas que não correspondiam ao sistema sexo e gênero imposto, atribuindo a essas, presunções de “doença mental, má reputação, criminalidade, mobilidade social e física restrita, perda de suporte institucional e sanções econômicas” (Rubin, 2012, p. 16).

Assim, ao subverterem a ordem imposta pelo sistema sexo e gênero, as travestilidades sofrem processos de estigmatização em todas as ordens e setores sociais, pois não limitam seus corpos as ordenações biológicas do sexo, não se reduzem a cristalização e a naturalização de uma identidade fixa e acabada. Pelo contrário, elas apresentam uma “multiplicidade de possibilidades na qual nenhuma deve ser tomada como modelo absoluto, evidenciando processualidades infinitas de corpos que tomam a metamorfose como modos de felicidades” (Peres, 2015, p. 36).

Deste feito, ao abdicarem a lógica de padronização, começam a serem inseridas em suas vidas - desde a família as grandes e pequenas conjunturas da sociedade - inúmeras formas de discriminação, punição e correção. Essas violências ocorrem por subverterem e não se adequarem ao padrão de normalidade imposto, por esse motivo são vistas socialmente como diferença, como realidades distintas e desprezíveis. Para Silva (2013) a produção da identidade e da diferença encontra-se ai, na diferenciação entre as duas, numa constante teia de relacionamentos sociais e culturais, sendo engendradas pelos discursos linguísticos que geram a naturalização e a normalização das identidades.

Por meio da diferenciação entre ambas discriminamos e afirmamos a positividade e a negatividade existente entre uma e outra. A vista disso, “as afirmações sobre diferença só fazem sentido se compreendidas em sua relação com as afirmações sobre a identidade” (Silva, 2013, p. 75). Essa diferenciação é permeada por relações de poder e saber, que inclui, exclui e classifica as vidas, demarcando fronteiras e espaços de trânsito dos corpos. De acordo com o mesmo autor “afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, significa fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica fora” (Silva, 2013, p. 83). Esta constante posição binária estabelecerá o que é visível, aceito e bom e consequentemente o que é invisível, errado e mal.

Esse processo ocorre por um sistema de hierarquização, estando em constante produção pela máquina capitalística, que demarca a posição de cada indivíduo na sociedade. Assim “nascer na sociedade capitalística já é padecer de certa punição naquilo que se é, e por aquilo que dificilmente se poderá vir a ser” (Carvalho & Camargo, 2015, p. 118). Desta forma, as pessoas que atravessam as fronteiras estabelecidas, como as travestis, são punidas socialmente por não se limitarem a determinação hegemônica do poder.

Em Goffmam (1963/2004) esse processo de punição social é nominado como estigma, ou seja, atributos e estereótipos indesejáveis socialmente que marcam a vida e os processos de produção de subjetividade em relação às outras identidades normalizadas. Para o autor, essa marcação ocorre em relação às normas identitárias de comparação, que culminam na exclusão social e na inviabilização de cidadania aos corpos estigmatizados.

Nesse sentido, ao ultrapassarem as determinações naturalizadas e permitidas pelo sistema sexo/gênero, as travestilidades recebem os “diversos estigmas relacionados às sexualidades e as expressões de gênero, que se intensificam mais ainda quando se compõe com outras categorias, como classe social, raça e etnia, geração” (Peres, 2011, p. 80), tornando-a assim, um corpo sem voz e sem vez, que foge das classificações impostas, e por cruzar a fronteira são consideradas abjetas, sendo excluídas em todas as instâncias da sociedade, as travestis sofrem constantemente perdas afetivas, financeiras, morais, espaço na família, na escola, na saúde e até mesmo a um espaço a luz do dia.

Esses processos excludentes são frequentes em suas realidades, marcando suas vidas pela precariedade advinda da estigmatização sofrida. De acordo com Richard Miskolci, “vidas precárias seriam a de todos/as que aprenderam a se compreender a partir da injúria, da experiência de serem ofendidos por estarem sob a suspeita ou serem sujeitos comprovadamente fora da norma heterossexual” (2011, p. 54).

Assim são constituídas socialmente as travestilidades. Uma vida precária e abjeta que aos olhos da sociedade cisheteronormativa é vista como pessoas invisíveis, e quando se tornam visíveis sofrem constantes processos de estigmatização e discriminação que negam direitos fundamentais a sua cidadania.

Nas instituições públicas de saúde, tema que discutiremos a seguir, estes processos estigmatizadores e excludentes são frequentes em suas realidades, nas quais, permeados pelos preceitos da Biologia essencialista e dos valores dogmáticos cristãos naturalizados, @s médic@s e @s profissionais acabam negligenciando o atendimento as travestilidades, gerando a essas pessoas sofrimentos psicológicos advindos dos julgamentos morais e patológicos. De acordo com o Art. 7 da Lei 8.080 de 1990 estas ações de negligencias ferem os princípios básicos do Sistema Único de Saúde (SUS) que prevê que o atendimento seja universalizado a todos os humanos, em sua integridade física e moral, longe de preconceitos e discriminações.

5 Saúde pública X violência psicológica: reflexões sobre as vivências das travestilidades na atenção básica

Os discursos normatizadores inseridos pela sociedade cisheteronormativa produzem muito mais que palavras, eles produzem a vida e o que nela há, mudando os modos como os "indivíduos são levados a dar sentido e valor a sua conduta, aos seus deveres, aos seus prazeres, aos seus sentimentos e sensações, aos seus sonhos" (Foucault, 2006/2012, p. 188). Sob essa perspectiva acreditamos que o pensamento crítico de Foucault (1976/1999) possibilita na contemporaneidade problematizarmos a vida e as sexualidades de modo construcionista, de forma complexa e heterogênea, agenciando reflexões sobre a regulação e a normalização dos corpos, os controles sobre os sexos, o gênero e as sexualidades, assim como as formas permitidas e instituídas dos prazeres sexuais e suas influências no estabelecimento de relações entre os indivíduos estigmatizados e os profissionais que atuam na saúde pública.

De acordo com Souza et al. (2015), o sofrimento psicológico é presente na vida de uma travesti desde muito cedo, quando ela nem sequer iniciou as modificações corporais e a estética feminina, sendo punidas em diversos contextos, por sua aparente condição homossexual afeminada. Com as modificações do corpo em uma estética feminina as violências se intensificam a outras instituições sociais, segundo os mesmos autores, "uma das maiores experiências de sofrimento se dá quando a violência cotidiana é efetuada por instâncias que deveriam amenizá-la ou erradicá-la" (Souza et al., 2015, p. 771) como no caso das instituições públicas de saúde.

Desta forma, pensar a realidade vivenciada pelas travestis nesse sistema de saúde nos remete a um pensar histórico e uma contextualização, evidenciando as estratégias criadas pelas relações discursivas de saber e poder que estigmatizam, negligenciam e inviabilizam essas pessoas de seus direitos básicos na saúde.

Atravessadas por violências cotidianas inclusive nas unidades básicas de saúde, onde buscam atendimento e amenização de suas dores físicas e psicológicas, as travestis acabam novamente sendo violentadas pelo descaso profissional, a influência da identidade de gênero “nas questões referentes à saúde/doença pode ser percebida em muitas dimensões, entre as quais o acesso aos serviços e políticas públicas" (Souza & Pereira, 2015). Assim tanto as travestis como toda população LGBT, por não se adequarem a lógica binária de sexo, gênero e sexualidade, "tem seus direitos humanos básicos agredidos e muitas vezes se encontra em situação de vulnerabilidade" (Cardoso & Ferro, 2012, p. 553).

A vista disso é visível que desde as primícias das transformações das travestilidades, seus espaços de transição na sociedade começam a ser demarcados, limitados e violentados pela norma. De acordo com Rubin (2012) a produção dessas violências é regida pelos discursos vinculados pela categoria médica e das ciências psicológicas, que durante séculos produziram saberes que classificaram os comportamentos sexuais inadequados pela sociedade cisheteronormativa como doença e inferioridade mental, influenciando nos modos de atendimentos as travestilidades na contemporaneidade.

No Brasil tem-se como referência de classificação a essas “inferioridades mentais”, o CID 10 e o DSM V, onde o termo é entendido pela perspectiva de Disforia de gênero, o qual ocorre na maioria das vezes com pessoas do sexo masculino e raramente no sexo feminino. Este fato refere-se a uma transformação do travestismo fetichista habitual em autoginecofilia, ou seja, “(excitação sexual associada ao pensamento ou à imagem de si mesmo como uma mulher) e outras formas mais gerais de problemas sociais, psicológicos ou do desenvolvimento” (American Psychiatric Association, 2014, p. 501).

São através desses meios científicos que @s profissionais se espelham para lidar com os diversos modos de existência, não as compreendendo como expressões de gênero, mas sim como uma patologia. Esse entendimento faz com que a prática realizada, quando realizada, seja de intuito curativo não as tratando como humanos de direito, a começar pela negação do nome social previsto na Carta dos Direitos Usuários da Saúde, acarretando uma barreira no atendimento (Souza & Pereira, 2015).

Referente ao tratamento hormonal e cirúrgico, o direito ao acesso na saúde pública está vinculado a um diagnóstico médico de transexualismo. Nesse sentido, as pessoas que desejam as modificações corporais, hormonais e cirúrgicas, necessariamente precisam apresentar um conjunto de características, atribuídas pela lógica biomédica como patológicas, que neguem o órgão genital do sexo de origem (Barbosa, 2013).

De acordo com Larissa Pelúcio (2011), as travestis não desejam a remoção cirúrgica da genitália masculina, elas reivindicam apenas tratamentos hormonais e cirúrgicos com acompanhamento médico e assepsia correta. No entanto para que isso ocorra, a sua vivência e forma singular de experimentar o mundo deve ser arbitrariamente diagnosticada e enquadrada nos moldes dos desvios de normalidade.

Nesse sentido, as experiências de exclusão, negligencia e patologização vivenciadas pelas travestis nos sistemas básicos de saúde fazem com que as mesmas não solicitem esses serviços, pois sabem que terão seus direitos agredidos. Assim as travestilidades procuram alívio as suas dores em outros locais, utilizando-se de outros meios. Segundo Michele Rodrigues Cardoso & Luís Felipe Ferro (2012):

As travestis ficam à mercê do uso indiscriminado de hormônios e das bombadeiras, termo utilizado para a rede ilegal de pessoas que oferecem a essa população o serviço de modificações corporais através da aplicação de silicone. (p. 561)

Diante essa realidade precária oferecida as travestilidades, suas vivências acabam sendo empobrecidas de possibilidades. No entanto, mesmo nas misérias de oportunidades constituem-se como corpos resistentes, pois não se alinham a ordenação imposta pelo biopoder. A vista disso um dos marcos importante que vem dando visibilidade a essas pessoas são os movimentos e lutas sociais agenciados por elas próprias, nos quais reivindicam direitos e condições de cidadania.

De acordo com Peres (2015), as primeiras estratégias de visibilização social das travestilidades tiveram início na década de 90, a princípio com o intuito de prevenção das DST/HIV/AIDS. Posteriormente houve a construção de espaços, através das demandas, para discutir outras problemáticas como a luta por seus direitos enquanto cidadãs e a denúncia das violações dos mesmos. Visando também nestes espaços exercícios de empoderamento, que auxiliariam no enfrentamento dos preconceitos cotidianos e na inserção das travestis no meio social, assim como na reivindicação de políticas públicas especificas a essas pessoas.

Nesse sentido, os movimentos e lutas sociais organizados pelas próprias travestis no Brasil visam sua visibilidade social, reivindicando e criando estratégias de luta por direitos, cidadania, acesso aos bens sociais e qualidade de vida (Peres, 2015).

Através da militância, esses grupos começaram a ganhar força e autonomia, tecendo possibilidades de enfrentamento para desconstruir os estigmas e dar início ao exercício da cidadania. Por meio das lutas diárias enfrentadas ao longo de décadas, as minorias7 sexuais por meio dos movimentos sociais e das reivindicações conquistam alguns direitos básicos. Dentre estes um bem específico, instituída pelo Ministério da Saúde e nominada como “a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais Travestis e Transexuais (LGBT)” é uma importante ferramenta para o acesso e inclusão dessas pessoas na saúde pública.

Esta política é instituída pela Portaria nº 2.836, de 1º de dezembro de 2011, e pactuada pela Comissão Intergestores Tripartite (CIT), conforme Resolução nº 2 do dia 6 de dezembro de 2011, na qual norteia o Plano Operativo de Saúde Integral LGBT, visando à inclusão e o acesso das minorias sexuais ao Sistema Único de Saúde (Ministério da Saúde, Brasil, 2013).

Torna-se previsto por lei uma política que integra essa população vulnerável pelos processos de estigmatização e exclusão, com o intuito de acesso a direitos e redução das desigualdades sociais. No entanto, mesmo com a implementação dessa política e a exigência de seu cumprimento, ainda é constante os processos de negligencias e violação de direitos as travestis nas unidades básicas de saúde.

Peres (2011, p. 70) ressalta que "se para buscar atendimento para suas dores físicas já é difícil, buscar atenção para suas dores existenciais parece quase impossível, e isso, cada vez mais impede a efetivação do direito a saúde para todos". Constata-se, que a realidade violenta vivenciada pelas travestis nos sistemas públicos de saúde, tem afastado essas pessoas dessas instituições, pois sabem que nesses lugares serão discriminadas, estigmatizadas e negligenciadas por sua estética travesti e por sua singularidade rejeitada pela sociedade cisheteronormativa.

Nesse sentido, é necessário ressaltar que há uma falta de informação, ou como alega Ramos (2012), um cinismo por parte d@s profissionais da saúde sobre a política nacional de atendimento integral a população LGBT, além disso, poucos trabalhos informativos e preventivos são feitos nas instituições públicas de saúde a respeito dos direitos fundamentais das minorias sexuais.

Segundo Peres (2015), é através do empoderamento social e político que as travestilidades ganham força para os movimentos e lutas. Através destas relações de poder que surgirá um contra, uma estratégia de poder hegemônico tornando-as assim corpos resistentes, como cita Michel Foucault, "onde há poder há resistência” (Foucault, 1976/1999, p. 91).

Em meio a toda negligencia e estigmatização praticada as pessoas travesti, é necessário que @s profissionais repensem suas práticas e seus conhecimentos a respeito dos direitos humanos, uma vez que somos regidos pela sociedade que impõe e controla os corpos e os saberes. Assim, cabem as instituições de saúde pública implementar capacitações sobre as diversidades sexuais e os direitos humanos aos seus profissionais, para que tenham compreensão acerca das realidades travestis e de toda categoria LGBT, visando a ampliação do direito a saúde a todos e a qualidade do atendimento pautada no respeito as pluralidades existentes (Mello & Patto, 2012).

6 Considerações Finais

Por meio das contribuições do estado da arte, pode-se compreender ao longo deste trabalho que as realidades vivenciadas pelas travestis nas instituições de saúde pública são permeadas por discriminação e estigmatização que negam a essas pessoas o direito pleno a cidadania.

Vimos que tal processo de exclusão se dá pela manutenção dos discursos instituídos, da sociedade cisheteronormativa, que normaliza e naturaliza um único modo de vida, ou seja, o que corresponde à ordem do poder hegemônico e produz subjetividades normatizadas. Nesse sentido, as vidas que borram os limites impostos constituem-se em vidas empobrecidas, inviáveis e invisíveis.

De acordo com Souza et al. (2015) a violência está presente cotidianamente na vida das travestis, negligenciando e delimitando espaços de sua transição na sociedade. Ao ser replicado por instituições e profissionais "os processos de violência simbólica atuam naturalizando as representações dominantes" (2015, p. 774). Neste sentido, na manutenção de seu trabalho, médic@s e profissionais da saúde acabam muitas vezes classificando as travestilidades em "mecanismos complexos de patologização, criminalização e exclusão" (Souza at al., 2015, p. 774), gerando a essas pessoas, sofrimentos psicológicos advindos do não reconhecimento de suas singularidades.

No entanto, as travestis iniciam a construção da sua identidade, guiadas pelos seus desejos e prazeres. Judith Butler (1999) ressalta sobre a performatividade, na qual, desloca-se a noção de identidade natural e imposta, para a ideia de um tornar-se, uma transformação. A travesti agencia essa transformação, mesmo em meio ao caos proporcionado pelas relações estigmatizadoras, e mesmo as margens da sociedade, subvertendo a realidade normalizada imposta cria suas próprias estratégias de vivências e trânsito social.

A vista disso percebe-se que as ações de luta das travestis aos estigmas, ao preconceito e a negligencia são constantes. Assim faz-se necessário a@s profissionais da saúde embarcar no compromisso com a profissão e com @s usuári@s, pois é a partir de novas práticas, acerca de um novo olhar as multiplicidades existentes, e a compreensão das mesmas, que podemos pensar em respostas aos impasses, fortalecendo e expandindo “novas práticas, novos movimentos para contra-atacar as políticas tradicionais, afirmando os direitos humanos como direitos de todos, em especial dos miseráveis de hoje” (Coimbra, 2001, p. 146).

Pensando nessa atuação ética e crítica, Sandra Maria da Mata Azerêdo (2002, p. 16) cita que “é preciso querer saber das verdades do outro e não ficarmos presos à mesmice de nossas verdades, tantas vezes apoiadas em privilégios”. É necessário olhar para as pessoas, em seus contextos e seus processos históricos, proporcionando a elas, que estão jogadas as margens, acesso aos seus direitos e possibilidades de construção de sua cidadania.

Para tanto cabe a@s profissionais inserid@s nas políticas públicas o engajamento e compromisso ético com sua “ciência” e com as pessoas que serão atingidas por ela. Em outras palavras, a problematização sobre as ações dos saberes éticos e científicos devem ser constantes, não sendo condizentes com práticas essencialistas e redutoras, que consideram a performatividade como patologia e que violentam as formas plurais de existir, de se expressar e de viver no mundo.

O decorrer do trabalho possibilitou também a compreensão de que são necessárias pesquisas a respeito das travestilidades, que lutam pelo direito a vida e a cidadania, ao respeito na escola, na saúde e pelo direito de viverem a luz do dia. Desta forma, salientamos aqui o envolvimento d@s profissionais da Psicologia com a ciência que se prega, para que cada vez mais se comprometa nos seus ambientes de atuação promovendo saúde e qualidade de vida a todos os humanos de direitos.

De acordo com Sylvia Leser de Mello & Maria Helena Souza Patto (2012, p. 20), @s psicólog@s devem estar em constantes reflexões a respeito de suas práticas para que elas não contribuam com os discursos essencialistas e reforce "o preconceito delirante, a opressão, o genocídio e a tortura”, ou seja, com práticas não condizentes a ética profissional.

Assim, poderemos articular meios estratégicos de promoção de direitos e cidadania. Portanto, enquanto profissionais étic@s devemos “fortalecer e facilitar a ação transformadora de uma sociedade em função da igualdade e da justiça social, dar voz aos silenciados e incorporar o saber popular” (Montero, 2009, p. 207, tradução nossa).

Ressaltamos ainda, que enquanto profissionais atuantes nas políticas públicas e regid@s pelo código de ética profissional, não devemos ser condizentes com nenhum ato de violência, que vise à diminuição das pessoas e a essencialização das vidas. Pelo contrário, devemos ser articuladores de novas possibilidades e pluralizadores de novas existências, problematizando os modos de subjetivação hegemônicos e as complexidades envolvidas na travestilidade.

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