Um atleta é pego no doping. Imediatamente sites especializados, programas de TV e jornais esportivos começam a divulgar suas impressões em torno do ocorrido. Retaliações diversas são então dirigidas à sua figura: acusa-se o competidor de ter estragado sua carreira, colocando a perder os patrocínios recebidos, ter fornecido um exemplo moral negativo à sociedade, sendo responsável por não ter escolhido adequadamente sua equipe de apoio.
No entanto, quais outros fenômenos estariam implicados neste acontecimento, para além da infração individual do atleta? Quando o doping é colocado sob a luz da realidade dos lutadores de Mixed Martial Arts (MMA) – símbolos de força e vigor no imaginário popular –, não causa surpresa o aparecimento de declarações como: “eu sabia que esse corpo forte era construído por drogas”; “só assim para suportar tantos golpes violentos”; “isso não é esporte, é um espetáculo que vale tudo”; entre outras afirmações.
Discute-se, neste artigo, o caso de dois atletas profissionais de MMA que fizeram uso de substâncias banidas para aumentar o seu desempenho. O primeiro caso refere-se ao lutador Miguel, 23 anos, atuante em ligas nacionais, e que havia chegado há pouco tempo à carreira profissional. O segundo caso é protagonizado por Thiago, 29 anos, um atleta profissional experiente, recém-contratado por uma importante liga de MMA internacional.
Diferentes momentos na carreira, diferentes profissionais envolvidos na preparação (treinadores, nutricionista, fisioterapeuta e preparadores físicos), diferentes condições socioeconômicas, mas uma prática em comum: eles “escolheram” usar substâncias ilegais para potencializar sua performance.
Objetiva-se, neste estudo, analisar as práticas nas quais os lutadores estiveram envolvidos, evidenciando sua relação ambivalente com o uso de anabolizantes, buscando compreender as consequências pessoais e profissionais deste uso. Deste modo, procura-se refletir sobre a rede de actantes (atores humanos e elementos não-humanos) em que os atletas estão inseridos, colocando em questão o limite do controle destes indivíduos sobre seus corpos e condutas.
A interação e as conversas com os sujeitos da pesquisa deram-se no ano de 2014 em duas academias de MMA, localizadas na cidade de São Paulo. O estudo consistiu em uma análise discursiva e praxiográfica, tal como propõe Mary Jane Spink (1999) e Annemarie Mol (2002). Trata-se de abordagens que levam em consideração o conjunto dos atores, instrumentos, instituições e ambientes que compõem o fenômeno a ser estudado, possibilitando assim sua descrição e compreensão.
Conforme orienta a Resolução CNS/MS n° 466/12, esta pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, recebendo o número de parecer 579.937. Os nomes aqui apresentados são fictícios, visando à garantia do anonimato dos participantes do estudo.
Mediante a análise proposta por este trabalho, pretendemos ressaltar, em consonância com Mol (2002), que um ator é atuado (enacted), ao mesmo tempo em que atua (enact). Esta atuação e seus efeitos não são exclusividade de agentes humanos, mas atributos de espaços, artefatos tecnológicos e acontecimentos. Reflexões que conduzem a questão: será uma escolha exclusiva do lutador o uso de substâncias ilegais (doping)?
O Mixed Martial Arts (MMA) é uma modalidade esportiva de combate que utiliza diferentes técnicas corporais oriundas de múltiplas artes marciais e esportes de combate, tais como: jiu-jitsu, boxe, kickboxer, muai thay, luta greco-romana, kung fu, karatê, entre outras (Correia & Franchini, 2010; Franchini & Vecchio, 2012; Paiva, 2015). No Brasil, o MMA vem ao longo dos anos impondo-se no cenário esportivo e na mídia, conquistando um número crescente de interessados, fãs, praticantes, patrocinadores, levando ao desenvolvimento de produtos esportivos e à organização de novos eventos.
O esporte é composto por dois lutadores competindo em um ringue cujas grades laterais lhe conferem o aspecto de jaula. Espera-se que os lutadores demonstrem suas habilidades em diferentes artes marciais. Esta demonstração destina-se não apenas à vitória sobre o oponente, mas busca cativar o público com o desempenho do atleta, assegurando-lhe um lugar de destaque entre os demais lutadores (Wells, 2012).
O Ultimate Fighting Championship (UFC) é a principal liga de MMA do mundo e têm faturamentos que impressionam. Os números do UFC Rio, na sua 134ª edição, de 27 de agosto de 2011, ajudaram a impulsionar a modalidade no país. Foram mais de 20 mil pessoas presentes no evento, 30 milhões de aparelhos de TV ligados no Brasil, 135 países conectados, 597 milhões de lares no mundo e um impacto econômico de US$ 50 milhões para a cidade do Rio (Vinicius, 2012).
Os eventos profissionais de MMA que atendem a requisitos mínimos para sua prática são registrados mundialmente por um portal on-line chamado Sherdog (www.sherdog.com). Criado em 1997, é considerado um dos principais mapeadores de eventos e resultados de lutas, ainda que haja controvérsias intensas sobre sua legitimidade. Em 2014, no Brasil, foram localizadas 312 ligas que realizaram eventos no respectivo ano. Estas ligas são registradas como empresas, podendo possuir investidores, patrocinadores e incentivos governamentais.
A modalidade está envolvida por uma complexa rede de humanos (atletas, técnicos, profissionais de saúde, fãs, entre outros) e não-humanos (octógono, suplementos, anabolizantes, balança para pesagem, rankings classificatórios, premiações). Com isso, concebemos que diferentes objetos não são apenas necessários, mas fundamentais para que a prática do MMA ocorra.
Um evento de MMA profissional pressupõe a existência de um espaço físico, luvas, vaselina para “deslizar” os golpes no rosto, a balança para a pesagem do atleta, o gelo para as contusões, o som do sino ao final do round, apenas para citar alguns elementos. A presença de itens não-humanos, não pode ser encarada como algo secundário que integra o esporte, mas sim componente fundamental para que ele ocorra. Deste modo, ao focalizar neste artigo o processo de ordenação social, resultante da interação entre os humanos e não-humanos, daremos ênfase aos efeitos relacionais produzidos e estabilizados por meio destas interações.
Entre os elementos que compõem a rede de práticas do combate, encontram-se substâncias capazes de alterar o funcionamento do organismo dos atletas, influindo em seu desempenho físico. Tais substâncias são objeto de repressão, entendidas como ameaça ao espírito esportivo, sendo seu uso denominado doping.
A palavra doping deriva do termo dop, oriundo do dialeto sul-africano Kaffir (Palácios, Nicot & Pancorbo, 1991). O termo dop era empregado para denominar um licor estimulante consumido pelos membros das tribos do sul da África, em suas cerimônias religiosas. Com o tempo, foi incorporada pela língua inglesa para identificar a mistura de ópios e narcóticos dada a cavalos em corridas (Palácios et al., 1991).
Posteriormente, o doping incorporou dois novos sentidos: o uso de substâncias ou métodos proibidos para melhorar o rendimento durante as competições esportivas em geral e as consequências deste uso. O desejo de vencer, ou de superar limites a qualquer custo, fez com que muitos recorressem a essas substâncias, o que gerou o aumento de medidas antidopagem em escala mundial (WADA, 2003, 2014, 2015).
Com isto, em 1967, foi criada a Comissão Médica do Comitê Olímpico Internacional (COI) e, em 1999, a World Anti-Doping Agency (WADA), que mesmo financeiramente recebendo contribuições do COI, possui gestão independente. A WADA tem o objetivo de criar e fomentar a cultura esportiva sem dopagem e, para isso, criou o Código Mundial Antidoping em 2004 e o atualizou em 2014, para efeito em 2015 (WADA, 2014). Entre suas atribuições, está ajudar Federações Esportivas Internacionais a realizarem testes de doping, assim como possui a tarefa de gerar uma lista com as substâncias que os atletas não podem utilizar.
Até janeiro de 2015 o UFC, principal liga de MMA do mundo, não seguia os princípios da WADA, optando pelas diretrizes da Comissão Atlética de Nevada (NSAC). A NSAC regulava na ocasião todos os eventos de combate desarmados dentro do estado de Nevada, incluindo o licenciamento e supervisão de promotores, pugilistas, kickboxers, lutadores de artes marciais mistas, entre outros.
Devido Nevada ser um centro de esportes de combate, a NSAC é considerada a comissão atlética mais importante dos Estados Unidos, sendo suas regras seguidas pela maioria das ligas de MMA, dentro e, por vezes, fora dos EUA. No entanto, após sucessivos casos de doping, de atletas considerados da elite do UFC (Wanderley Silva, Jon Jones, Anderson Silva, Nick Dias, entre outros) em 18/02/2015 o UFC decidiu intensificar sua fiscalização e punição, seguindo também os princípios da WADA.
Até 2014, no Brasil, havia duas confederações esportivas que regulamentavam o MMA: (1) a Confederação Brasileira de MMA (CBMMA), surgida em 2011 e reguladora dos principais eventos do país, dentre eles o UFC, e (2) a Comissão Atlética Brasileira de MMA (CABMMA), que surgiu em 2013 e regulava principalmente o MMA Olímpico, dentre outros eventos nacionais.
Sobre o controle de doping, a CABMMA anunciou no início de 2015 a criação de uma coordenação de controle de dopagem suportada por Oficiais Controladores de Dopagem (Doping Control Officers – DCO), que tinham a intenção de seguir o Código Mundial Antidopagem da WADA.
De acordo com Elenor Kunz (1994), o problema do doping no esporte é quase tão antigo como o próprio esporte. O chamado uso de “meios auxiliares”, notadamente de natureza química, para influenciar no rendimento esportivo, já era algo conhecido nas antigas olimpíadas gregas. Para a autora, os mais conhecidos e usados são os anabólicos esteroides, que provocam uma vantagem tão grande sobre os que não o usam que dificilmente um atleta, por mais talentoso e mais dedicado que seja, consegue superar aqueles indivíduos usuários desta substância.
Substâncias | Efeitos | Exemplos |
---|---|---|
Estimulantes | Agem no sistema nervoso, aumentando o estado de alerta, o tempo de reação a estímulos, a sensação de autoconfiança e a capacidade física. | Efedrina; anfetamina; mesocarb; bromantan; cocaína. |
Agentes anabolizantes | Usados para aumento de crescimento, força e potência muscular. Também reduzem o tempo de recuperação do atleta entre as atividades físicas. | Propionato de drostanolona; estanozolol; metandrostenolona. |
Betabloqueadores | Diminuem a frequência cardíaca e a pressão arterial. São usados em esportes que necessitam de precisão e concentração. | Atenolol; propanolol. |
Narcóticos | Aliviam e retraem a sensação de dor e fadiga. | Morfina; metadona; fentanil. |
Diuréticos | Usados por aqueles que têm que atingir determinado peso para entrar em uma categoria específica. Podem mascarar o uso de outras substâncias no exame antidoping. | Clortalidona; furosemida; metolazona; bumetanida. |
Hormônios peptídeos e análogos | Estimulam o desenvolvimento de determinados tecidos e células, potencializando diversas funções orgânicas e atenuando a sensação de dor. | Gonadotrofina coriônica humana; hormônio do crescimento; hormônio adrenocorticotrófico; eritropoetina. |
Tabela 1
Exemplos de substâncias proscritas pela WADA (2014)
A tabela 1 apresenta alguns tipos de substâncias proibidas, de acordo com a WADA (2014).
Estas substâncias são utilizadas frequentemente entre 3 a 6 meses antes do período de competição. Todavia, apesar do aparente consenso sobre a necessidade de se reprimir o uso de drogas no esporte, há um conjunto de pensadores que defende mudanças radicais no modo como é pensado o controle destas substâncias. Eles questionam os princípios sobre os quais se apoia a WADA, ao banir o doping.
A agência considera ilegal a substância que ofereça riscos à saúde do competidor e viole aquilo que denomina “espírito do esporte”. Este espírito é definido como o conjunto de valores, tais quais: honestidade e justiça; dedicação e comprometimento; coragem; respeito pelas regras; trabalho em equipe; caráter e educação; respeito por si mesmo e pelos outros (WADA, 2009).
A WADA considera-o o coração de sua política antidoping e uma meta a ser buscada pelas competições, configurando a base da ética desportiva. Em decorrência deste espírito, o esporte representa mais que o domínio de uma técnica: ele é exemplo de virtude e modelo social (WADA, 2009).
O uso de melhoradores da performance, porém, não contradiz este espírito, dirão os críticos das diretrizes antidoping (Clayton, Foddy & Savulescu, 2004). Conforme apontam, o recurso a substâncias que permitem aos sujeitos alterarem seus corpos e capacidades físicas seria uma continuidade natural de outros comportamentos tradicionalmente aceitos: exercícios físicos, dietas e suplementação.
Nos esportes profissionais, estaria em jogo não apenas a demonstração do potencial biológico inato de cada atleta, mas a coragem, sabedoria e determinação do competidor em superar suas limitações. Para os autores, a manipulação biológica está na base do espírito humano, isto é, “sua capacidade de melhorar a si mesmo, por meio da razão e do julgamento” (Clayton et al., 2004, p. 667).
Megan Clayton et al. procuram refutar o argumento segundo o qual o doping produziria desigualdades e injustiça nas competições. Para eles, esportes são disputas inevitavelmente desiguais. São “loterias genéticas”, dado que competidores possuem organismos com capacidades distintas, não passíveis de serem completamente niveladas pela divisão dos atletas em categorias, como peso, gênero e idade (Clayton et al., 2004, p. 667).
Ademais, as diferenças biológicas desses sujeitos são acentuadas pelos distintos treinamentos recebidos, em virtude de melhores academias, técnicos e programas nutricionais. Liberado o uso de substâncias modificadoras da performance, sairá vencedor “não a pessoa que nasceu com o melhor potencial genético”, mas aquele “com a combinação do potencial genético, treinamento, mente e julgamento” (Clayton et al., 2004, p. 667).
Neste sentido, não haveria em princípio uma distinção essencial entre doping e treinamentos convencionais. O único critério que viria a distinguir entre formas aceitáveis ou não de intervenção sobre o corpo seriam os danos oferecidos à saúde. Uma vez desenvolvidos modos seguros de potencializar o desempenho, estes deveriam ser incorporados no repertório de técnicas disponíveis para a escolha do atleta (Clayton et al., 2004).
Vale ressaltar ainda que, ao definirmos critérios sobre quais riscos para saúde devem ser tolerados ou não, precisamos considerar o fato de os esportes de alto rendimento estenderem o corpo dos atletas ao limite. Estes esportes, por vezes, implicam em graves lesões e comprometimentos físicos, fazendo com que nos questionemos se de fato há uma associação necessária entre saúde e práticas desportivas.
Na contramão das opiniões expressas por Clayton et al., o Conselho Presidencial de Bioética norte-americano, em um relatório emitido em 2003, faz objeções às tentativas de liberação do doping. Ele procura mostrar ser enganosa a aparente indistinção entre doping e práticas tradicionais de treinamento, insistindo em uma diferença qualitativa entre fator humano e tecnologia.
Uma série de inovações tecnológicas foi incorporada ao esporte, sem que elas nos fizessem pensar que as competições são desleais. São inovações como melhores calçados para corrida, raquetes de tênis e bastões de golfe com nanotubos de carbono, bastões de hockey curvos, luvas de baseball maiores, melhores programas nutricionais e de exercícios. Para o Conselho Presidencial de Bioética, estes avanços técnicos atuariam indiretamente sobre o corpo e estariam sob o controle dos sujeitos que a eles se submetem. Por meio deles, os atletas se modificam mediante sua própria atividade e seus esforços autodirigidos (President's Council on Bioethics, 2003).
Em contrapartida, o Conselho acredita que a modificação biotecnológica do corpo – por meio de anabolizantes, estimulantes, ou mesmo terapias genéticas que visam à reconstrução direta dos músculos – ameaça violar o principio fundamental da prática esportiva: o fator humano.
Estas modificações seriam “menos inteligíveis, no sentido de serem menos conectadas à nossa própria atividade autoconsciente e esforço” (President's Council on Bioethics, 2003, p. 128). O desempenho e conquistas obtidos por estes meios seriam devidos, portanto, mais aos procedimentos técnicos que aos indivíduos que deles se valem.
Além da perda da autenticidade da performance, o doping ocasionaria outras consequências sociais negativas. Entre elas, está a possível escalada química decorrente da liberação de substâncias ilegais (President's Council on Bioethics, 2003). O medo de serem suplantados por adversários que recorrem a melhoradores do desempenho levaria os competidores a fazerem uso de drogas proscritas, incentivados por seus técnicos e patrocinadores.
Um caso histórico que ilustra esta questão é o da equipe feminina de natação da Alemanha Oriental que, após sair vitoriosa das Olimpíadas de 1976, processou o governo, acusando-o de forçar as atletas a usarem anabolizantes (Clayton et al., 2004). Porém, no atual contexto do esporte profissional, as fronteiras que separam vítimas e réus são mais difusas. Em um cenário em que as competições se tornaram negócios milionários e o uso de substâncias bastante difundido, pressões a favor do doping são multilaterais e nem sempre assumem um caráter coercitivo, confundindo-se com o próprio desejo e escolha do atleta em sair vitorioso (President's Council on Bioethics, 2003).
Para pesquisar os fenômenos que emergiram neste estudo, foi necessário abrir nossa “caixa de ferramentas” (Latour, 2005/2012; Spink, Brigagão, Nascimento & Cordeiro, 2014), selecionando técnicas diversas para observar, registrar e refletir sobre os acontecimentos.
Neste trabalho, utilizamos como recurso metodológico, a análise de conversas no cotidiano, proposto por Mary Jane Spink (1999), e a praxiografia de Annemarie Mol (2002). Conforme metáfora de Bruno Latour (2005/2012, p. 213), operar no campo de pesquisa implica transformarmo-nos em “formigas míopes”: vasculhando, questionando, interagindo e trabalhando intensamente.
As pesquisas científicas buscam esquivar-se das conversações no cotidiano, apoiadas em uma tradição cartesiana que acaba por enrijecer estes diálogos, controlá-los, negá-los ou até mesmo eliminá-los do exercício da ciência (Batista, Bernardes & Menegon, 2014, Spink, 1999). No entanto, analisar conversações permite reconhecer a diversidade de sujeitos que operam na construção do conhecimento, possibilitando uma articulação mais estreita entre saber e experiência.
Não é possível seguir, todo o tempo, os atores com gravadores e roteiros pré-determinados de entrevista. Ademais, o que é falado em uma entrevista produz ressonâncias distintas quando reproduzido fora do contexto da conversação. Isso autoriza dizer que o conhecimento é uma construção ininterrupta e novas informações são comunicadas a cada momento que se revisita a entrevista realizada. O processo de conversação nem sempre é pacifico, formas de resistência podem emergir, repelindo a estrutura preparada inicialmente pelo entrevistador (Spink, 1999; Batista et al., 2014).
O método praxiográfico, elaborado por Annemarie Mol, auxiliou-nos em nossa análise das conversações. De acordo com a autora, este método consiste em atentar-se para as circunstâncias e práticas que “tornam as coisas visíveis, audíveis, tangíveis, perceptíveis” (Mol, 2002, p. 33). Isto significa determinar a rede de elementos e gestos que conferem realidade a certo acontecimento, permitindo que ele seja conhecido e vivenciado por um conjunto de indivíduos.
A praxiografia tem como fundamento filosófico a Teoria Ator-Rede, cujo principal proponente é Bruno Latour. Esta teoria adota em sua abordagem conceitos-chave, tais como rede, actante, ator, elementos humanos e não-humanos. Latour (2005/2012) compreende as relações entre ciência, sociedade e tecnologia em termos de conexões múltiplas e dinâmicas, as quais não possuem um centro, mas se espalham de forma capilarizada, formando uma rede sempre aberta a incorporar novas associações.
Estas associações podem ser entre atores humanos, mas também incluir elementos não-humanos, como máquinas, artefatos técnicos, medicamentos, para citar alguns exemplos. Na medida em que tais atores e elementos produzem efeitos de realidade, Latour (2005/2012) refere-se a eles pelo termo actantes, isto é, seres que atuam, criando efeitos sobre o mundo.
Apoiando-nos nestes referenciais metodológicos, escolhemos para nosso estudo o caso de dois atletas envolvidos com o uso de substâncias ilegais, intensificadoras do desempenho esportivo. Estes atores não foram eleitos por nós. Foram eles que nos escolheram ao contar suas histórias, medos, dúvidas e expectativas, enquanto estávamos no campo em pesquisa.
Daremos ao primeiro, o nome fictício de Miguel. Com a idade de 22 anos, e usuário de anabolizante, é profissional de MMA há menos de 1 ano. Vivia em uma comunidade periférica de São Paulo e sempre tinha dificuldades para conseguir ir aos treinamentos, pois frequentemente estava sem dinheiro para o transporte e para sua alimentação. No momento do uso da substância, Miguel havia descoberto que sua namorada estava grávida. Afirma jamais ter consumido qualquer substância ilegal antes, consumo para o qual dizia também não possuir dinheiro.
Atribuiremos ao segundo atleta o nome de Thiago. Com 29 anos, era profissional experiente de MMA, tendo sido recentemente contratado para uma importante liga de MMA. Thiago era casado, possuía uma filha de 2 anos, apartamento e carro próprios. Usufruía de situação financeira e social estáveis, mas temia perder um combate e ser demitido da liga de MMA. Este temor para ele justificava-se, pois, conforme dizia, “já não era jovem e não podia perder essa oportunidade”. Havia usado, por várias vezes, substâncias ilegais ao se preparar para uma luta, mas estava tentando, a cerca de 2 anos, “manter-se sem elas, pois temia muito os efeitos colaterais”. Segue, portanto, a discussão dos referidos casos.
Em um cenário permeado por ideais de força, domínio de si, masculinidade, superação e resistência, característico do MMA, não surpreende que valores como poder de escolha individual e autonomia sejam exaltados e perseguidos. Mas no contexto dos modernos esportes de combate, o que significa ser autônomo e capaz de escolher?
A problematização da escolha do lutador, pelo uso de substâncias ilegais (doping), apoia-se nos estudos de Annemarie Mol (2008). Em pesquisa conduzida sobre a relação de pacientes com o tratamento de diabetes, Mol salientou dois modos de os indivíduos lidarem com sua doença. De um lado, ela identifica a lógica do cuidado, entendida como práticas que levam em consideração as necessidades dos pacientes, oferecendo a eles uma atenção individualizada. De outro lado, há a lógica da escolha, definida como práticas que visam, sobretudo, atender as necessidades do mercado, compreendendo o paciente como um consumidor, dotado de direitos.
Guardadas as diferenças entre os contextos da pesquisa de Mol e deste estudo, buscamos analisar o doping a partir da lógica da escolha, elucidando os fatores que motivam o consumo de substâncias pelos lutadores. Trata-se de investigar, a partir de conversações, a multiplicidade de actantes da rede que permeia o MMA, na qual encontram-se elementos humanos e não-humanos.
Miguel estava diante de uma luta importante. Tais lutas não são facilmente agendadas. Há uma demanda significativa de lutadores procurando por combates e, ainda que o MMA tenha obtido destaque nos últimos anos, os eventos sofrem de dificuldades frequentes para oferecer oportunidades a todos os atletas.
Somando-se a isto, o combate de Miguel seria televisionado, transformando-se em alvo de patrocinadores, e suscitando nele a esperança de conseguir comprar o enxoval do primeiro filho que estava a caminho. Um combate sabidamente perigoso, posto que a derrota em sua modalidade poderia significar não apenas lesões importantes, mas tanto a possibilidade de não mais ser convocado para lutas futuras, quanto a exclusão definitiva da academia em que treina. Uma derrota entra para o currículo do lutador, em seu Sherdog e, portanto, nunca é esquecida.
Neste momento, entra em jogo um poderoso actante para assegurar a vitória: as substâncias ilegais. Tomar ou não tomar, questiona-se o lutador.
Miguel: Eu não quero tomar. Eu sei que é uma luta importante e eu não posso perder, mas eu não quero tomar. Sabe, posso confessar uma coisa? Eu morro de medo de tomar injeção… Mas o mestre me falou que, se eu não tomar, eu não tenho chance… Eu sei, sou magro, não tenho musculatura, mas será que vai adiantar tomar essa “parada” aí se eu não me alimentar direito? Porque eu treino 8 horas todos os dias e não me alimento direito, né? Não tenho dinheiro para comer na rua e às vezes não dá tempo de fazer a marmita. Eu não sei o que faço… Não quero tomar, mas não posso perder. O pior de tudo isso é que o mestre falou que sou “menininha”, porque eu tenho medo de tomar, daí agora todo mundo está dando risada de mim (Miguel, entrevista pessoal, 10 de janeiro de 2014).
A fala de Miguel nos aponta para a contradição entre a vulnerabilidade (medo de usar o anabolizante e de tomar injeção) e o lugar de invulnerabilidade destinado aos homens nesse cenário (todo mundo dando risada do lutador porque ele não queria tomar).
A exacerbação da virilidade, força e poder tem caracterizado os esportes de combate, posicionando-os como esportes masculinos (Bourdieu, 1984/2003, pp. 136-153; Brito & Paula, 2013). Compartilhando desta percepção, Adriano Nascimento et al. (2011), ao estudar a virilidade e competição em duas tradicionais revistas de artes marciais, Tatame e Grace Jiu-jitsu, concluiu que ambas as publicações servem para a construção e a manutenção de representações sociais de lutadores ideais, ancoradas em referências tradicionais do masculino, segundo as quais ser melhor lutador é também ser melhor homem.
A equivalência efetuada entre homens e invulnerabilidade, parece ter levado Miguel a se adequar a um determinado ideal de masculinidade, que desconsidera sua insegurança e ambivalências, vinculando o “vencer” e o “perder” a uma força ou fraqueza de ordem individual. Deste modo, não se contesta a lógica esportiva que naturaliza o consumo de substâncias proibidas, ainda que elas sejam condenadas por diretrizes desportivas.
Outro aspecto presente na fala do lutador evidencia a cruel realidade vivenciada por um atleta para manter-se em sua modalidade esportiva. Sem alimentação básica necessária, treinando por oito horas diárias e tendo na vitória de curto prazo, a única possibilidade de continuar em sua profissão. Aqui Miguel se posiciona de modo contestatório: “faz sentido usar um anabolizante, mas não se alimentar corretamente?”.
Após uma semana, quando voltamos à academia de MMA, notamos que o lutador não havia ido treinar. Perguntamos sobre ele para outros atletas e ouvimos apenas que teria tomado algumas medicações e não estava passando bem. Entramos em contato pelas redes sociais com o atleta, mas não conseguimos retorno naquela semana. Após dez dias, ele entrou em contato:
Miguel: O fulano (nome do mestre do lutador) não te contou? Eu quase perdi minha perna! Ele me aplicou uma injeção que era para me dar força, só que necrosou o líquido, porque não circulou, ficou parado. Daí fiquei com muita febre, meu lado esquerdo ficou totalmente parado por 4 dias. Daí fui ao médico e fui operado às pressas, porque se eu demorasse mais dois dias iria perder a minha perna. Não vou poder lutar! Não sei quando vou poder voltar a treinar. (Miguel, entrevista pessoal, 25 de janeiro de 2014).
Entrevistadora: Mas como foi isso? Você havia falado que não queria usar. (Entrevistadora, 25 de janeiro de 2014).
Miguel: E eu tenho escolha? Se eu não tomasse, eu iria perder, porque o “cara” (adversário) era bem mais forte do que eu. Mas eu também nem tive chance de escapar. Quando cheguei à academia estava lá o mestre com a injeção e já foi falando para eu parar de “viadagem” e deixar que ele aplicasse logo. (Miguel, entrevista pessoal, 25 de janeiro de 2014).
O mestre a que Miguel se refere é seu professor de MMA, especialista na arte marcial tailandesa Muay Thai (que combina chutes, cotoveladas e socos). Pela gravidade do relato, contatamos o mestre de Miguel para entender o que havia ocorrido.
Mestre: É, ele não vai lutar mais. Eu apliquei uma parada nele para ver se ele ganhava algum peso e um pouco mais de força e disposição para treinar e acho que deu uma reação e ficou meio ruim. Vomitou, teve febre e teve que ficar internado. Eu acho que ele ficou mesmo com medo da injeção. Vê se pode… Um negão daquele tamanho e com medo da injeção! Com certeza foi isso que fez com que desse problema na aplicação da injeção. (31 de janeiro de 2014).
Miguel nos aponta para as consequências do uso de uma substância sem prescrição, sem controle médico e sem uma aplicação adequada. Em seu relato novamente há um endosso quanto à virilidade do atleta que toma a injeção de anabolizante e a “viadagem” de quem a teme. Não sobra espaço para a contestação. O adversário é mais forte e é necessário ficar como ele para que se tenha a possibilidade de lutar em condições igualitárias.
Vale dizer que o estímulo do mestre ao uso de anabolizantes ia além da possibilidade de vitória de Miguel. Para ele o que estava em jogo era a reputação de ser um “mestre de vencedores” e, no curto espaço de tempo, o dinheiro que receberia caso o atleta saísse vitorioso (a premiação financeira de Miguel seria dividida com ele).
Ao ser questionado sobre o que aconteceu com Miguel, o Mestre pareceu naturalizar o uso sem qualquer controle do anabolizante, acreditando que daria mais força e disposição e parecendo desconsiderar as questões socioeconômicas do lutador, como a falta de alimentação adequada.
No mais, está implicada no discurso do Mestre a dimensão ético-racial de sua relação com o atleta: “um negão daquele tamanho” não deve temer. Neste sentido, a força e o tamanho dos negros seriam incompatíveis com o medo de uma “simples injeção”, medo responsável pelo líquido não ter circulado devidamente. Se efeitos indesejáveis ocorreram, trata-se de culpabilizar o atleta, seja por sua compleição física, sua ambivalência ou sua dificuldade em dizer “não” ao mestre, colocando em risco sua própria perna.
Desta forma, o relato nos permite problematizar a questão da escolha pelo doping. Em que medida o atleta de fato opta por usar a substância, ou é pressionado pela rede de atores e elementos que o circunda? Miguel evidencia que o ato de escolher possui motivações que ultrapassam o sujeito e colocam em xeque o ideal de autonomia individual.
Quando o conhecemos, Thiago estava prestes a ter uma luta importante. Caso vencesse, poderia ser admitido em uma liga de MMA de destaque, realizando o seu sonho de ser reconhecido como um profissional de “elite”, como ele mesmo gostava de dizer. Thiago era um atleta classificado como “peso-pesado”, o que significa ter mais de 100 kg. Sua altura, força e vitalidade causaram impacto à primeira vista. Despertava respeito e receio. No entanto, este estereótipo foi derrubado assim que fizemos o contato inicial, sendo gentil, educado e cortês em todas as interações.
Thiago era também um lutador experiente. Já havia lutado em diversas ligas nacionais e internacionais. Havia usado muitas substâncias consideradas proibidas, quase sempre compradas no mercado ilegal. Tinha uma filha de 2 anos e, desde então, evitava tomar qualquer tipo de anabolizante, pois temia adoecer no futuro. Como agora ele estava pleiteando lutar na principal liga de MMA, temia também ser pego nos testes antidoping.
Thiago: eu não quero tomar mais nada. Já tomei muita coisa, mas ouvi dizer que isso aí dá câncer, né? Sei lá… Melhor não abusar. (Thiago, entrevista pessoal, 25 de maio de 2014).
Observamos parte significativa da preparação de Thiago para uma luta, que incluía treinamentos técnicos, condicionamento físico, atendimentos com profissionais de saúde (nutricionista, fisioterapeuta e psicólogo) e diferentes interações com a mídia. Thiago sempre nos contava sobre seus medos, ansiedades e dilemas com a equipe.
Thiago: O problema é que cada um fala uma coisa. Se eu seguir 100% o que o professor de Boxe fala, eu não faço o que o professor de Jiu-Jitsu pede. Se eu fizer o que o fisioterapeuta pede, eu não faço o que o preparador físico manda. Ás vezes, temos que seguir a nossa cabeça mesmo. Você acredita que uma vez meus professores brigaram quando eu ganhei uma luta? Porque um achava que eu tinha que ganhar de um jeito e outro achava que eu tinha que ganhar de outro. Mas não é a mesma coisa? Daí eu faço mesmo o que é melhor para mim. (Thiago, entrevista pessoal, 25 de maio de 2014).
A experiência de Thiago o faz contestar as múltiplas tecnologias de gestão de um atleta de alto rendimento e os desafios por elas suscitados. Michel Foucault (2006/2008), em suas análises sobre a biopolítica, mostra como a emergência do neoliberalismo conduz à transposição da lógica econômica para as diversas as esferas da vida privada.
A relação dos sujeitos com seus corpos e condutas passa a ser pensada a partir de categorias e racionalidades próprias à gestão de capital e à administração empresarial. Tal relação submete-se um cálculo que procura extrair dos corpos e dos comportamentos, sua máxima eficiência e performance. Uma “generalização da forma econômica”, a qual opera enquanto “princípio de decifração das relações sociais e dos comportamentos individuais” (Foucault, 2006/2008, p. 334).
Os indivíduos são então representados socialmente como empresas, unidades produtivas cujo desempenho deve ser potencializado, em uma relação de concorrência permanente com seus pares. O atleta é tomado como capital humano, o qual se espera que seja competitivo e supere, incessantemente, seus próprios limites e de seus adversários.
Sem utilizar qualquer tipo de substância ilegal, Thiago ganhou seu combate e seu contrato com a liga de MMA. Após 3 meses, recebe convite para lutar por esta liga, em uma categoria de peso chamada “meio-pesado” (+83.9kg e -92.9kg). A partir deste momento, o gerenciamento de seu peso passou a fazer parte de seu cotidiano, já que, no momento do convite, Thiago estava com cerca de 120 kg.
Thiago: Estou feliz pra caramba! É a principal luta da minha carreira! O problema agora será controlar o peso. Porque não vou emagrecer muito. Vou desidratar cerca de 10 kg na semana do combate e recuperar antes da luta. (Thiago, entrevista pessoal, 25 de maio de 2014).
No MMA, é comum os atletas combinarem a redução de massa corporal com a desidratação (perda de líquidos do corpo), para que possam se enquadrar em uma determinada categoria de peso, normalmente abaixo do seu peso habitual. Há uma intensificação dessa combinação na semana que antecede o combate, onde se diminui o consumo de carboidratos, como pães e bolachas, sem diminuir a intensidade dos treinamentos.
Pode-se também treinar com capas de chuva, blusas pesadas e calças de frio, ou embrulhado em plásticos. Há o uso de diuréticos, assim como a ingestão de água destilada, para tentar reduzir os sais no sangue. É comum também a desidratação do corpo em saunas ou banheiras quentes, sem ingerir nenhum líquido no período. A desidratação tem sido descrita pela literatura com um dos momentos mais agressivos para o corpo do atleta e que pode colocar sua vida em risco (American College of Sports Medicine, 1999; Franchini, Brito & Artioli, 2012; Pahl, Vaziri, Akbarpour, Afrasiabi & Friis, 1988).
Tudo isso para que, no momento da “pesagem”, os árbitros chequem se os lutadores estão de acordo com a categoria em disputa. Caso não estejam, os atletas veem-se diante de três alternativas: ganharem mais algumas horas para perder o peso, não receberem o valor combinado por sua luta ou serem proibidos de lutar. Após a pesagem, os atletas tentam recuperar parte do que perderam, voltando a ingerir líquidos, carboidratos em grandes quantidades e, por vezes, recebendo aplicação de soro intravenoso.
Thiago tinha 3 meses para perder 20 quilos, deixando 10 quilos para a semana do combate, durante o processo de desidratação. Os dias passavam e o peso continuava inalterado e, com ele, a angústia de Thiago.
Thiago: Não estou conseguindo baixar meu peso. Eu falo para o treinador que estou fazendo tudo certinho. Tudo o que me mandam, mas eles não acreditam em mim, pensam que estou comendo como um louco, mas não veem o quanto eu treino e o quanto me privo de comer. Mas eu tenho certeza que a partir da semana que vem às coisas vão começar a mudar. Vou começar a emagrecer com certeza. (Thiago, entrevista pessoal, 8 de junho de 2014).
Na semana seguinte, fomos novamente conversar com o Thiago, mas antes que isso fosse possível, tivemos um contato inesperado com um dos seus patrocinadores.
Patrocinador: Eu falo para ele que ele tem que ser determinado! E ele não está sendo. Colocou na cabeça que não consegue e daí não baixa mesmo o peso. Deve também estar abusando. Fala para ele, por favor, que é a cabeça que manda em tudo? (Patrocinador, entrevista pessoal, 8 de junho de 2014).
Thiago: Não é assim! Eu estou tentando, estou tentando! O que quer que eu faça? Fique em jejum absoluto? Daí eu vou emagrecer mesmo, quando estiver morto. (Thiago, entrevista pessoal, 8 de junho de 2014).
Quando ficamos sozinhos, Thiago falou sobre sua angústia, frustração e medo de não conseguir baixar seu peso. Estava também indignado com o patrocinador, que gerenciava sua vida e acreditava “tudo saber”. Após duas semanas, um mês antes de sua luta, encontramos novamente com o atleta.
Thiago: Estou baixando o peso. Estou bem mais aliviado agora! (Thiago, entrevista pessoal, 8 de junho de 2014).
Entrevistadora: Que bom! Como você está conseguindo? (Entrevistadora, entrevista pessoal, 8 de junho de 2014).
Thiago: Então, eu passei em um nutricionista “top” que me receitou umas “paradas” que estão dando certo. (Thiago, entrevista pessoal, 8 de junho de 2014).
Entrevistadora: Você sabe que pode ser pego nos exames antidoping, não é? (Entrevistadora, entrevista pessoal, 8 de junho de 2014).
Thiago: Não tem risco! O nutricionista sabe como burlar isso. Já me deu remédio que vai camuflar isso, se acontecer. (Thiago, entrevista pessoal, 8 de junho de 2014).
Entrevistadora: E você sabe que isso pode fazer mal para sua saúde, não é? (Entrevistadora, entrevista pessoal, 8 de junho de 2014).
Thiago: Ah, tá vendo? Cada um fala uma coisa. Ele é um nutricionista bem caro, ele é que trouxe as paradas. Preciso confiar nele. Ele deve saber esse lance aí. Ele é um nutricionista caro. (Thiago, entrevista pessoal, 8 de junho de 2014).
Precisa-se confiar que o profissional sabe, aliás, ele é caro e deve ser bom. Ponto final. O risco do adoecimento é deixado de lado, aliás, a ilusão do corpo forte e do emagrecimento, se contrapõe à “distante” doença. Atende-se a reivindicação do patrocinador. Atende-se a necessidade de peso cobrada pela liga de MMA. E mais uma vez não se escolhe, se deixa ser escolhido.
Anabolizantes, injeções, necroses, rankings, balanças e pesos. Elementos não-humanos que têm agência e se articulam a agentes humanos: patrocinador, mestre, lutador, nutricionista, preparadores físicos. Associados, estes objetos criam realidades, atuam e são atuados em rede. Estas conexões múltiplas e difusas possibilitam compreender a conduta do atleta, reconhecendo nele um sujeito que não age sozinho, mas conjuntamente a outros elementos.
A complexidade desta rede coloca em xeque o estatuto da escolha como fruto de decisão autônoma e centrada no indivíduo. Diferentemente do ideal de sujeito que realiza o cálculo racional entre várias opções disponíveis, os atletas atuaram e foram atuados, motivados por desejos individuais, assim como pela pressão do contexto social em que estavam inseridos.
Todavia, ainda que o desfecho dos dois casos apresentados tenha sido o consumo de substâncias ilegais, os atletas resistiram, expuseram seus medos e tentaram subverter a lógica de consumo instituída. Houve questionamento dos lutadores sobre o uso destas substâncias e suas consequências para a saúde.
A participação em uma competição de MMA é a possibilidade de sustento para atletas, treinadores e outros profissionais. Assim, pressões são exercidas sobre eles para demonstrarem rendimentos que satisfaçam o público, a liga de MMA, os patrocinadores e a academia na qual estão vinculados. As substâncias ilegais, que os auxiliariam, oferecendo a possibilidade de vencer, suportar as dores, a exaustão e a diminuição rápida do peso, apresentam forte apelo aos envolvidos na prática esportiva.
Antes vilãs, elas passam a ser percebidas como aliadas e, neste momento, o lutador precisa colaborar. Precisa ser dócil e não questionar o que está tomando e seus efeitos colaterais. No entanto, ao final do espetáculo, grande parte destes actantes sai de cena, deixando ao atleta a responsabilidade individual pela escolha de consumir a substância. Uma escolha feita, nos dois casos apresentados, em troca da esperança de obter “sucesso na carreira”, ainda que em detrimento da saúde e da reputação.
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