A Invenção do Popular: uma análise discursiva do jornal Meia Hora

The Invention of the “popular”: a discourse analysis of the newspaper Meia Hora

  • Renata Patricia Forain de Valentim
Neste trabalho busco compreende o ponto de articulação onde os discursos se inscrevem nas individualidades e em suas práticas cotidianas. Mais especificamente pretendo analisar como os discursos reforçam (ou rejeitam) em sua circulação, determinados aspectos relevantes às ordenações sociais. Para tanto, foi analisada uma publicação impressa, autodenominada popular, de ampla circulação no estado do Rio de Janeiro, o jornal “Meia Hora”. A coleta e análise dos dados foram orientadas por ferramentas conceituais vindas de diferentes autores que trabalham com análise do discurso, procurando circunscrever como são formatados e difundidos os conteúdos cobertos pela publicação, identificando tanto os dispositivos linguísticos que são utilizados, quanto as formas semânticas, de sentido, que procuram inserir o consumidor destas produções em uma determinada idealização do que seja “popular”.
    Palavras chave:
  • Psicologia Social
  • Análise do Discurso
  • Popular
  • Mídia Impressa
In this work I seek to understand the articulation point where the speeches are inscribed in individuals and in their daily practices. More specifically how the discourses reinforce (or reject), in their circulation, certain aspects relevant to social orders. For this, the newspaper “Meia Hora”, a printed publication largely circulated in the state of Rio de Janeiro/Brazil, was analyzed. Data collection and analysis were guided by conceptual tools coming from different authors who work with speech analysis, seeking to circumscribe as they are formatted and broadcast content covered by the publication, identifying both the linguistic devices that are used as the semantic forms, meaning that seek to enter the consumer these productions in a certain idealization of what is “popular”.
    Keywords:
  • Social Psychology
  • Speech analysis
  • Popular
  • Mass Media

No jornal anda todo o presente.

Oswald de Andrade (1924/s-d, parágrafo 41).

1 Introdução

Dentre as grandes invenções burguesas que alteraram as formas de organização e compreensão da realidade, a difusão em massa da escrita, do som e, posteriormente da imagem, pode ser considerada aquela que ocupa um lugar central e absolutamente necessário para as reflexões psicossociais contemporâneas. No início dos anos 2000, o linguista Dominique Maingueneau (2001), afirma que viver na atualidade significa necessariamente ser bombardeado por uma profusão de imagens, palavras e textos “tão efêmeros quanto invasores” (p. 11). São atividades enunciativas ligeiras, mas que estabelecem toda nossa cotidianidade: jornais, propagandas, guias, panfletos, cardápios, placas, entre tantas outras. Para o autor, as análises destes diversos textos são muitas vezes pouco privilegiadas por se debruçarem sobre manifestações de conjuntos indefinidos, de “massa”. Segundo Michel de Certeau (2014), por se debruçarem sobre aqueles que ele vai chamar de homens “ordinários”.

Para o primeiro autor, estas análises coincidem com o desejo de alguns pesquisadores de estabelecer um espaço de análise do “linguageiro”, onde o privilégio residiria em poder estar no lugar de embaralhamento entre as inevitáveis escolhas e construções individuais e os discursos sociais, com seus gêneros, sentidos e sintaxes que transcendem esse individual.

Esta transcendência, como aponta Walter Benjamin (1936/2012), não significará uma retomada das formas míticas ou da “aura”, que até a modernidade iam além do indivíduo com a intenção de lhe revelar uma verdade. Justamente o que há de singular neste embaralhamento entre as formas individuais e coletivas que aí se inaugura é a construção massiva de discursos variados, que conferem aspectos, qualidades e características à realidade mais mundana. Como nos diz Michel Foucault (1970/1996), discursos construídos fora do espaço de um ritual autossuficiente e autoexplicativo, já inseridos nas condicionantes do sentido, da forma, das relações e referências externas, e que, mesmo recortados em formas subjetivas, não deixam de traduzir o conjunto das demandas sociais.

Partindo dessas primeiras notas, neste trabalho busco compreender este vértice, este ponto de articulação onde os discursos se inscrevem nas individualidades e em suas práticas cotidianas. Mais especificamente interessa-me como os discursos reforçam (ou rejeitam) em sua circulação, determinados aspectos relevantes às ordenações sociais e produzem aquilo que Certeau (2014) define como sendo um lugar de consumo e de consumidor. Lugar onde, segundo o autor, a disseminação discursiva não pretende deixar espaço para a criação do uso daquilo que é fabricado, buscando inserir de modo apriorístico aqueles que são alvo do discurso, seus receptores, em um lugar específico e predeterminado de recepção.

A ideia, neste caso, é pensar este uso discursivo em uma publicação impressa, autodenominada popular, de ampla circulação no estado do Rio de Janeiro. Pretendo circunscrever, através de ferramentas conceituais oferecidas por diferentes autores que trabalham com perspectivas de análise do discurso, como serão formatados e difundidos os conteúdos cobertos pela publicação, procurando identificar tanto os dispositivos linguísticos que são utilizados, quanto as formas semânticas, de sentido, que procuram inserir o consumidor destas produções em uma determinada idealização do que seja “popular”.

Importante enfatizar que ao utilizar esta reunião de diferentes perspectivas e de diferentes escolas de análise de discurso não tenho a intenção de desconsiderar suas fronteiras e posicionamentos teóricos, políticos e metodológicos diversificados. Esta reunião funciona para este caso porque as categorias que a compõem permitem relacionar os aspectos sociais e interacionais às formas de sua construção enunciativa. Neste caso, a compreensão das formas desta construção transcende um mero exercício de enfileiramento de regras gramaticais para ser a análise de um discurso pensado e construído com o objetivo de potencializar a interação entre o jornal e seus leitores.

Também é necessário ressaltar que não devem ser confundidos os momentos de produção e de consumo destes sistemas de informação. Não há uma aderência hegemônica do público às representações difundidas. Como nos lembra Certeau: “A presença e a circulação de uma representação (...) não indicam de modo algum o que ela é para seus usuários” (Certeau, 2014, p. 39). Assim, a ideia aqui é justamente pensar esta distância entre o enunciador e seu receptor e, de desnaturalizar a ideia de “popular”, trazida pela publicação como seu traço identitário mais próprio.

Minha suposição é a de que esta ideia de popular é apresentada como uma forma que precede a publicação, que a incorpora e difunde como um signo identitário inequívoco. Signo sobre o qual se apoia toda sua produção e cuja significação não precisa ser esclarecida, posto que já é predeterminada, presumida e determina toda forma de relação com seu público leitor, com seus consumidores.

O veículo a ser analisado é o jornal Meia Hora, como já foi dito, de grande tiragem no estado do Rio de Janeiro. Apesar de ser um jornal de circulação regional está em décimo lugar entre as publicações nacionais (ANJ, s/f). Para este trabalho foram analisados os exemplares dos quinze dias que antecederam as olimpíadas no Rio de Janeiro. A escolha deste intervalo deve-se às intervenções espaciais, sociais, políticas e econômicas que cercam qualquer evento desta magnitude, principalmente em um país em desenvolvimento. A realização da olimpíada implicou no esvaziamento de recursos que deveriam ter ido para o cuidado com a saúde e com a educação; famílias foram retiradas de áreas destinadas aos parques olímpicos; houve enorme corrupção e superfaturamento das obras, entre tantos outros casos. Conflitos políticos que foram se potencializando ao longo dos meses em função do processo em curso de impeachment da presidente da república e, de modo concomitante, de um período de profunda recessão na economia do país, com todas as implicações sociais que isso acarreta.

À ameaça destes conflitos mais “familiares” somava-se ainda o temor do terrorismo e a preocupação com o olhar estrangeiro sobre a capacidade de realização do país. Nesse sentido, a ideia foi então a de pensar como o jornal traduziria toda esta complexidade para os seus leitores. Supondo ainda que nos dias que antecedessem os jogos, essa necessidade de posicionamento frente aos conflitos e a necessidade de tradução para aquilo que é circunscrito como “popular” só faria se adensar.

Do ponto de vista metodológico, a opção pela análise do discurso faz prevalecer o desejo de não reduzir a análise da linguagem ao puro arbítrio de suas regras e nem, como nos lembram Lupicinio Iñiguez e Charles Antaki (1994), tomar o sentido como manifestação direta de um significante, como um conceito que lhe estaria naturalmente subjacente. Aqui, neste caso, a própria construção de tal conceito como descritor do jornal terá de ser revista, levando em conta aquela “dimensão linguageira de seus objetos de estudo” que nos fala Maingueneau (2001, p. 12). Dimensão que se constrói em sociedade, cotidianamente, e que obriga o pesquisador a abrir sua leitura a domínios conexos como a sociologia, a psicologia ou a história, que, se não permitem um campo estável de conceitos e abordagens, permitem uma percepção mais abrangente dos corpos textuais.

Por esse ângulo, ainda segundo Maingueneau, a análise pretendida não deve se limitar nem à organização textual em si mesma, nem à situação comunicacional apenas, mas “procura associá-las intimamente” (2001, p. 12), ligando os enunciados aos seus gêneros, ao lugar social de onde eles emergem, à sua cena enunciativa e aos meios de suas difusão e disseminação. Trata-se, como observa Eni Orlandi (2001, p. 13), de criar condições teóricas e metodológicas de observação, onde o texto não se encontre mais “como uma unidade linguística disponível, preexistente, espontânea, naturalizada, mas o texto em sua forma material, como parte de um processo pelo qual se tem acesso indireto à discursividade”.

Entretanto, como disse, não se deve pressupor uma aderência hegemônica do público a essas representações difundidas, pois a circulação de uma representação não indica o que ela é para seus “usuários” (Certeau, 2014, p. 39). Para compor esta ideia de “popular”, o jornal parece se utilizar daquilo que Charaudeau e Maingueneau (2004, p. 298) vão circunscrever como a figura do leitor ideal ou modelo, que pode tanto ser “a representação que o escrevente teve de fazer de seu leitor”; quanto uma parte integrante de um gênero de discurso ou de um posicionamento.

Onde está implicada a figura do leitor modelo está também a do efeito pretendido. Efeito que “o comunicante pretende e busca produzir junto ao sujeito destinatário por ele suposto e construído de modo ideal” (Charaudeau & Maingueneau, 2004, p. 180), como estratégia de comunicação de um sentido, orientada para seu destinatário. Neste caso, a questão seria justamente pensar qual seria o leitor ideal pressuposto pelo jornal; as características exigidas (ou não) para fazer parte deste circuito discursivo; bem como seus efeitos pretendidos.

Quanto à sua organização, este artigo é composto de quatro partes. A primeira conta um pouco da história do jornal e descreve algumas de suas características mais básicas. Em um segundo momento são descritos os procedimentos metodológicos utilizados na pesquisa. Na terceira parte são trazidos e discutidos seus resultados e, finalmente, em um quarto tempo são tecidas algumas considerações finais.

2 Sobre o Jornal Meia Hora

O jornal Meia Hora circula diariamente, em edição única. Descende de outro jornal também autodenominado de popular, o jornal “O Dia”, vinculado a um grupo de radiodifusão de mesmo nome. O braço jornalístico desse grupo foi inaugurado em 1951 pelo político conservador Chagas Freitas (1914-1991) e até 1983 está muito relacionado à trajetória política de seu fundador, que foi governador do antigo estado da Guanabara e depois do estado do Rio de Janeiro. Entre 1970 e 1982, período inserido no contexto da ditadura militar brasileira (1964-1984), o “chaguismo”, grupo do governador Chagas Freitas, hegemonizou a política local.

Em 1983, último ano de governo de Chagas Freitas no Rio de Janeiro, o jornal “O Dia” muda de mãos e a nova linha editorial enfatiza cada vez mais seu caráter dito “popular”. Em suas páginas figuram esporte, mulheres com pouca roupa e muitas notícias policiais. Em 1990, o jornal finalmente toma sua forma atual, procurando equiparar-se a veículos jornalísticos mais tradicionais e reconhecidos da época como os jornais “O Globo” e “Jornal do Brasil”, e passando a cobrir as notícias políticas, além daquelas relacionadas ao funcionalismo público estadual e federal.

A lacuna deixada pela migração deste jornal para outros nichos de consumo e público será preenchida pelo lançamento, em 2005 do jornal diário “Meia Hora”. Essa publicação, herdeira direta do jornal “O Dia" e de seus conceitos sobre o que seja o popular, seus anseios e necessidades, é caracterizada em sua própria página da rede social Facebook (Meia Hora, n.d.), como um “tabloide de notícias populares publicado no Rio de Janeiro”; tendo como definição fundamental: “Meia Hora: nunca foi tão fácil ler jornal”; e como missão: “fornecer informação com pitadas de humor num jornal fácil de ler”.

A ênfase no humor irônico, no “fácil de ler” e seu baixo custo (o jornal custa atualmente um real, cerca de um terço de dólar, entre segunda feira e sábado) são o grande trunfo da publicação, que atinge uma parcela de leitores de baixa escolaridade e destina-se a ser o entretenimento dos momentos de transporte. Neste caso, principalmente o transporte ferroviário, utilizado no deslocamento dos trabalhadores desde a periferia até seus locais de trabalho, tempo suficiente para o consumo de suas cerca de 30 ou 40 páginas. Com tiragem média nos dias de semana de 114.036 mil exemplares, o que o torna o terceiro jornal mais lido do estado, sua proposta parece mesmo a de um estilo de publicação destinada àqueles que não possuem amplo acesso à informação.

Ainda sobre o jornal deve-se registrar seu formato de caderno, que facilita a leitura nos veículos coletivos. Possui muitas cores e letras em tamanho maior que o utilizado em outras publicações. Sobre as colunas, apesar de uma aparente diversidade, é interessante notar que elas abrangem temas muito restritos, limitando-se aos mesmos assuntos do cotidiano mais imediato, à violência, ao esporte ou à sexualidade, presentes em quase todas as colunas do jornal. Importante ressaltar também a ausência completa dos temas políticos, mesmo no período de impeachment da presidente brasileira. Quando as notícias aparentemente relacionadas à política surgem, na verdade elas falam de algum escândalo (sexual, policial), ou aparecem ainda relacionadas ao cotidiano mais imediato do leitor, como aumento das passagens ou planos de aposentadoria.

Publica notícias sobre cidades, polícia, esportes e utilidades públicas. Divulga ainda oportunidades de emprego e lazer em textos de poucos parágrafos, curtos. Suas seções se dividem em: Serviço, Geral, Voz do Povo, Polícia, Esporte, Saúde, De Tudo um Pouco, Alto Astral, Tecnologia, Escraaaaacha!, Babado e Mundo. Muitas páginas são destinadas à vida de celebridades, em especial aos domingos. Contém ainda dicionário das palavras consideradas difíceis em cada edição; passatempos, como piadas ou palavras cruzadas; a história do santo católico comemorado no dia; promoções; informações sobre o trânsito fornecidas por (e sob a perspectiva de) motoboys; anúncios; e ainda uma coluna de encontros amorosos.

3 Metodologia

A questão central desse trabalho, como já foi dito, é desnaturalizar a ideia de “popular”, que a publicação define como sendo o seu traço identitário mais próprio, presumido, e identificar os dispositivos linguísticos que constroem esse sentido.

O corpus de análise foi composto pelas manchetes e chamadas internas do jornal “Meia Hora” entre os dias 21 de julho de 2016 e 5 de agosto de 2016. Os resultados desta análise foram distribuídos por três tópicos gerais: A Cotidianidade no Jornal; O Estilo Popular e Estratégias de Diálogo com o Leitor.

A delimitação desse recorte, desse corpus, não se define apenas por critérios empíricos, mas também pelas ferramentas conceituais de escolha da análise do discurso como perspectiva epistemológica. Essa diferença retira a necessidade de uma interpretação exaustiva, que Orlandi chama de “horizontal” ou empírica e positivista, fazendo com que a análise, ao invés disso, se detenha no “processo discursivo”, do qual se podem recortar e analisar estados diferentes do mesmo texto (2012, p. 62).

Neste caso o processo a ser analisado é o do modo de fabricação e funcionamento do sentido de “popular”, que cerca esse produto e esse consumidor e em especial, como também já foi falado, os processos de constituição do “leitor modelo” e seu “efeito pretendido”.

4 Resultados

Os resultados foram acomodados em três tópicos. O primeiro é A Cotidianidade no Jornal, que se subdivide em Leitor Modelo e A Espacialidade Temática do Leitor Modelo; o segundo é O Estilo “Popular”, que se subdivide em Fácil de Ler e Ironia. O terceiro tópico é Estratégias de Diálogo com o leitor, que se subdivide em Diálogo Direto e Encenação Catártica.

4.1 A Cotidianidade no Jornal

4.1.1 O Leitor Modelo

O leitor modelo é delineado pelo jornal através de contraposições. Ele não é nem o estrangeiro (gringo), nem o terrorista, nem o bandido. Não se confunde com as forças repressivas do estado, como a polícia; tampouco se confunde as forças repressivas marginais, como o miliciano, embora haja inúmeras reportagens sobre ambas. No primeiro caso, a distância em relação ao “gringo” é assegurada pela própria generalização indiferenciada:

Atleta gringo diz que foi sequestrado por fardados. (Atleta gringo diz que foi sequestrado por fardados, 2016).

Gringos sentem na pele o drama que apavora o Rio. (Gringos sentem na pele o drama que apavora o Rio, 2016).

Já a diferença em relação aos “bandidos” se marca de duas formas. Pelo ridículo a que eles são expostos, como no primeiro fragmento, que ironiza o apelido do ladrão, “Anal”. Como também pelo uso de figuras de animalização, caso do segundo fragmento, que compara a sequestradora, presa na rodoviária com uma criança na mala, a uma cobra, uma “jararaca”.

Vai ficar com quem for da sua rodinha Anal! (Vai ficar com quem for da sua rodinha Anal!, 2016).

Jararaca tranca criança em mala e agora tá trancada na cadeia. (Jararaca tranca criança em mala e agora tá trancada na cadeia, 2016).

Deve ser ressaltada, assim como no caso dos “gringos”, a utilização de traços mínimos e reducionistas na categorização das individualidades ou dos grupos. Neste primeiro fragmento a palavra “diferentão”, como definição única de um suposto terrorista; assim como a definição do grupo a que ele pertence, como aquele que “arranca a cabeça dos outros”.

No segundo caso, há a mesma ridicularização: “Manés”; e animalização: “tranca”, que definem os “bandidos”, vão também servir para definir os “terroristas”.

Diferentão da baixada é preso por terrorismo. Ele é acusado de ser parça do bando que arranca a cabeça dos outros. (Diferentão da baixada é preso por terrorismo, 2016).

Manés aplaudiam o estado islâmico. PF tranca dez suspeitos de ligação com o terror. (Manés aplaudiam o estado islâmico, 2016).

Com relação à polícia, a distância diminui. Algumas reportagens relatam de modo solidário a morte de policiais, como no próximo par de fragmentos. No segundo, os policiais chegam mesmo a ser chamados de “poliçada”. Essa ideia de leveza que “poliçada” quer transmitir é reforçada ainda pela locução adverbial de modo: “na boa”.

PM morto na Baixada. Soldado é o 62º executado no ano. (PM morto na Baixada, 2016).

Chefão do CV rodou em favela de São Gonçalo. Poliçada foi na boa e não deu um tiro (Chefão do CV rodou em favela de São Gonçalo, 2016).

4.1.2 A Espacialidade Temática do Leitor Modelo

Apesar da variedade de colunas no jornal, seus temas parecem possuir sempre os mesmos referentes: cotidiano, sexo e violência. Essa característica está presente desde a coluna Mundo, onde os fatos narrados estão mais comumente relacionados à violência e à sexualidade, até às colunas informativas dos assuntos econômicos, que se limita aos indicadores mais básicos e àqueles que influenciam de modo direto no cotidiano do leitor modelo: empregos, o valor da aposentadoria, do dólar e do salário mínimo nacional e regional.

Cabeças foram parar na panela. Assassino cortou partes do corpo de casal com serra e jogou no vaso. (Cabeças foram parar na panela. Assassino cortou partes do corpo de casal com serra e jogou no vaso, 2016).

Ataque a negro nos “states”: só tinha um brinquedo. Deitado e com as mãos para o alto, homem é baleado ao ajudar autista. (Ataque a negro nos “states”: só tinha um brinquedo, 2016).

Essa espacialidade temática restrita também aparece nas reportagens para as “galeras”, grupos específicos que torcem por um time, são aposentados, moram em um determinado bairro ou são apenas “feios”:

Alô aposentados: INSS vai pagar R$ 51 milhões (Alô aposentados: INSS vai pagar R$ 51 milhões, 2016).

Anitta dá moral pra galera: “Feio não tem problema” (Anitta dá moral pra galera: “Feio não tem problema”, 2016).

4.2.1 Fácil de ler

De modo direto, a ideia de uma publicação “fácil de ler” está na página oficial do jornal na internet, exposta como um traço identitário e autodefinidor. Apresenta-se também de modo indireto, através de colunas como aquela chamada “Dicionário”, oferecida ao leitor para que ele entenda as palavras difíceis da edição. Nela aparecem palavras como: “cotejando”, “estagnado” ou “resignação”. (Dicionário, 2016).

Ainda como estratégia de aproximação e identificação do jornal com o seu leitor “modelo” e com as formas mais coloquiais da língua supostamente utilizadas por ele, podem-se identificar diversos “desvios” da forma culta da língua, propositalmente inseridos nos textos:

Deu ruim no Centro. VLT e ônibus bateram. (Deu ruim no Centro. VLT e ônibus bateram, 2016).

Brasil dá show com direito a “flango” chinês. (Brasil dá show com direito a “flango” chinês, 2016).

4.2.2 Ironia

As figuras de linguagem e de construção são comumente usadas para realçar o texto, concentrando discursos múltiplos (Charaudeau & Maingueneau 2004) e possibilitando assim um campo polissêmico ou ambíguo nessa construção. No caso da ironia, figura de construção amplamente usada pelo jornal, uma das características implica em um enunciador que deixa transparecer em sua própria enunciação, a voz de um outro. Neste caso, na maior parte das vezes em que o jornal se utiliza da ironia, ele se utiliza de uma “ironia proverbial” (Maingueneau, 2001, p. 175), onde a voz anônima que transparece é a voz dos ditados populares:

Nem Gabriel Jesus salva a seleção. (Nem Gabriel Jesus salva a seleção, 2016) .

Tava com o fogo olímpico. (Tava com o fogo olímpico, 2016)

4.3 Estratégias de interlocução com o leitor

4.3.1 Em interlocução direta

A forma de uma interlocução direta é buscada por sua capacidade de criar autenticidade (Maingueneau, 2001), como se tivessem sido realmente enunciadas para aquele leitor. O caráter oral reforça essa “espontaneidade” e cria uma ambientação para o “nós”, que posiciona lado a lado jornal e leitor. Aqui o diálogo é potencializado pelo próprio nome da coluna “serviços”, que, sendo polissêmico, pode significar tanto um trabalho (ainda que temporário) a ser divulgado pela coluna; quanto o próprio serviço que a coluna presta a quem está procurando alguma colocação.

É taxista? Vai rodar durante a olimpíada do Rio, mas não desenrola bem outro idioma? (...) Então se liga! (É taxista? Vai rodar durante a olimpíada do Rio, mas não desenrola bem outro idioma?, 2016).

Atenção Rapaziada! (Atenção Rapaziada!, 2016).

4.3.2 Em encenação catártica

Como “encenação catártica”, circunscrevo aquela formulação que procura fazer o leitor se identificar a uma das personagens da notícia (a vítima ou alguém próximo), e que se utiliza da mobilização afetiva que decorre daí. Neste caso, o uso do diminutivo é um dos dispositivos centrais da construção.

Policial executa a ex-mulher a tiros e se mata. Filhinha deles viu tudo (Policial executa a ex-mulher a tiros e se mata , 2016).

Matou seus bebezinhos (Matou seus bebezinhos, 2016).

Essa identificação, que o jornal procura estabelecer entre o leitor e as personagens da notícia, pode ser inserida no que Teun Van Dijk (2010, p. 234) denomina de manipulação. Segundo o autor, por manipulação deve-se compreender uma influência deslegitimada que se dá por meio do discurso. Na manipulação, diferentemente da persuasão, aos receptores é delegada uma posição muito mais passiva. O instrumento básico para que isso aconteça, ainda segundo Van Dijk, é o conhecimento do enunciador acerca das crenças dos receptores. No caso acima descrito, a crença da “infância feliz”, da pureza infantil que deve ser preservada e que foi definitivamente perdida em uma situação trágica.

5 Considerações Finais

A ideia deste trabalho foi pensar os dispositivos linguísticos e as formas semânticas, de sentido, que são utilizados para produzir um consumidor muito específico: o leitor de um jornal considerado “popular”. A suposição foi a de que esta ideia de popular precede a publicação, que a incorpora e difunde como um signo, sobre o qual se apoia toda sua produção e cuja significação não precisa ser esclarecida.

Como já ressaltei, a presença e a circulação desta definição que o jornal toma para si, não implica de nenhum modo o que ela é para seus leitores. Seria necessário fazer uma segunda pesquisa para saber deles qual é seu conceito de popular, sob quais bases ele se constrói, e como eles categorizam aquilo que o jornal difunde como tal.

O intuito aqui foi mesmo o de entender como é, por parte da publicação, construída esta ideia e identificar quais são os elementos presentes no jornal que seriam capazes de defini-la. Circunscrever quais são as práticas e as operações discursivas que são dirigidas aos leitores e que crescem em importância na mesma medida em que reduzem o espaço de interlocução, de crítica ou de criação, retirando do público o poder de se atribuir uma linguagem própria e produzindo aquilo que Certeau (2014) vai definir como sendo um lugar de consumo e de consumidor.

Com isso busco compreender melhor o ponto de articulação onde os discursos se inscrevem nas individualidades e em suas práticas cotidianas. Mais especificamente naquilo que é postulado pela publicação e acaba por surgir como um lugar, “capaz de ser circunscrito como um próprio e, portanto, capaz de servir de base a uma gestão de suas relações com uma exterioridade distinta.” (Certeau, 2014, p. 45).

A opção metodológica pelas ferramentas oferecidas pela análise do discurso adotou as categorias de leitor modelo e efeito pretendido como dispositivos teóricos de circunscrição e análise do corpus textual da pesquisa. O uso da ideia leitor modelo pode se dar em dois planos: no primeiro, as características do texto nos deixam entrever a representação que o enunciador teve de fazer de seu leitor e de suas competências textuais; no segundo, o leitor modelo é parte integrante de um gênero discursivo ou de um posicionamento (Charaudeau & Maingueneau, 2004).

Já o efeito pretendido diz respeito, como o próprio nome já mostra, aos efeitos que quem comunica quer produzir no seu destinatário. Diretamente ligado à ideia de leitor modelo, o conceito de efeito pretendido é formulado em função desse destinatário ideal e aos efeitos que se ambiciona, tanto na esfera da comunicação, quanto na esfera da interpretação. (Charaudeau & Maingueneau, 2004).

O que pode ser depreendido da leitura do jornal é um posicionamento que se pretende cúmplice do leitor. Uma proximidade que se inscreve nas formas diretas de abordagem ou se apoia em uma linguagem muito própria, com muitas interjeições, gírias e “erros” gramaticais propositalmente construídos e que, por suposição, remeteriam às formas discursivas de seus leitores.

Não que estas formas não estejam efetivamente presentes no discurso oral dos consumidores e em seus círculos comunicacionais. Aí, entretanto, sua presença não está concentrada. Ela se dilui no meio dos demais gêneros discursivos utilizados nas interações sociais diárias. Na publicação, esta presença é maciça, única. Essa uniformidade faz com que os textos tomem a configuração de um pastiche caricatural, necessariamente redutor das complexidades e das definições, produtor de um número finito de enunciados.

Por conta das questões relacionadas acima, a territorialidade temática construída para esse leitor é estreita. Os assuntos são selecionados por sua capacidade de mobilização afetiva, nunca por sua qualidade ou capacidade de criar os tais espaços de interlocução, crítica ou criação relacionados acima. Estes enunciados consistem em por em cena a informação, de modo que ela construa um espetáculo que sensibilize o espectador, como em uma catarse, apoiada nas crenças populares e nas emoções coletivas, capturando o leitor e fazendo com que ele experimente determinadas emoções. (Charaudeau & Maingueneau, 2004).

Para Charaudeau (2000) essa manipulação é a própria essência da comunicação midiática, que na mesma medida em que informa, captura. Garante a veracidade do que veicula através de fotos ou de narrativas, que transmitem a convicção de que a realidade é mesmo aquela que está sendo mostrada e a reverbera, amplificando os matizes do incompreensível, do insólito, do desconhecido ou do trágico. (Charaudeau, 2000).

Nesta construção, a mobilização afetiva aparece também na onipresença das ironias proverbiais, que mobilizam os “recursos simbólicos” e a afetividade a eles relacionada (Van Dijk, 2010, p. 236). De modo um pouco mais radical que Michel de Certeau, Teun Van Dijk associa esta mobilização às formas de controle, que buscam reproduzir as formas sociais de poder. Formas de manipulação social que chegam cotidianamente, de modo persuasivo, através de um estilo de informação que não preza pela imparcialidade ou relevância dos fatos, segundo o autor: “ilegítima em uma sociedade democrática porque (re)produz ou pode (re)produzir desigualdade” (p. 239). Neste caso, uma desigualdade da capacidade de crítica e de avaliação da realidade, que decorrem da falta (ou do enviesamento) da informação: “assim a manipulação, socialmente falando, é uma forma discursiva de reprodução do poder da elite que é contra os melhores interesses dos grupos dominados e que (re)produzem a desigualdade social” (p. 240).

Bem antes das reflexões de Van Dijk, Theodor Adorno e Max Horkheimer (1944/1985) na clássica obra “Dialética do Esclarecimento”, já ressaltavam esta manipulação e a importância dela ser veiculada de modo “fácil”. Pretensamente dirigida a um público “popular”, que trabalha nos estágios mais árduos da produção, esta facilidade na leitura iria ao encontro das associações costumeiras, que não demandam nenhum empenho extra para serem decifradas. Um determinado tipo de leitura “que para continuar a ser um prazer não deve mais exigir esforço (...), tem de mover-se nos trilhos gastos das associações habituais” (p. 128).

Para estes autores, nesta construção estaria a marca mais fundamental dos dispositivos linguísticos difundidos em larga escala: sua identificação às necessidades do trabalho no capitalismo tardio. Imaginados como lugares de alheamento, refúgio ou repouso, seriam na verdade extensões de atividades mecanizadas e acríticas; formas familiares porque copiadas do mundo do trabalho ou do escritório.

Um último ponto a que é necessário retornar diz respeito ao recorte temporal do estudo, que foi realizado nos últimos quinze dias antes dos Jogos Olímpicos, ocorridos na cidade do Rio de Janeiro entre os dias 5 e 21 de agosto de 2016. Como disse, a questão era perceber sua possível influência nas “traduções” das notícias e analisar os dispositivos encontrados pelo jornal para realizar isso. Essa questão não foi verificada. Embora a temática do terrorismo aparecesse e a prisão de supostos terroristas fosse noticiada, não houve nenhum tratamento diferente do jornal para estes fatos, que acabaram por ser inseridos nos dispositivos costumeiros do jornal.

6 Referências

Adorno, Teodore & Horkheimer, Max (1944/1985). Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro.: Jorge Zahar.

Alô aposentados: INSS vai pagar R$ 51 milhões (2016, 29 julho). Meia Hora, p. 2.

Anitta dá moral pra galera: “Feio não tem problema” (2016, 31 julho). Meia Hora, p. 1.

Andrade, Oswald de (1924/s-d). Manifesto Pau-Brasil. Recuperado de http://www.passeiweb.com/estudos/livros/manifesto_pau_brasil

ANJ- Associação Nacional dos Jornais (s/f). Maiores Jornais do Brasil. Disponível em http://www.anj.org.br/maiores-jornais-do-brasil

Ataque a negro nos “states”: só tinha um brinquedo (2016, 22 julho). Meia Hora, p. 21.

Atenção Rapaziada! (2016, 31 julho). Meia Hora, p. 18.

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