— Senhor prefeito — disse K. —, o senhor interpreta a carta tão bem que não resta nada dela senão uma assinatura numa folha de papel em branco. [...]
— Você me compreendeu mal — disse o prefeito. — Eu não estou interpretando erroneamente a carta; a minha leitura não a deprecia, pelo contrário. Uma carta particular de Klamm tem naturalmente um sentido muito mais significativo do que uma carta oficial, mas não tem precisamente o sentido que você lhe atribui.
Franz Kafka – O Castelo, pp. 105-106.
Neste trecho da obra de Kafka, vemos um diálogo entre dois personagens a respeito de uma carta, buscando saber quem é que tem a posse do sentido mais exato expresso no documento. Por que comecei com esse trecho? Sinceramente, não comecei a escrever esse texto com Kafka. Comecei realizando um exercício que tomei gosto em torno do ano 2000, em São Paulo, quando cursava o doutorado. É o exercício de caçar palavras em dicionários e colocá-las em rede discursiva que, além de aumentar as dores musculares nos braços e na lombar, potencializa os efeitos de uma palavra.
Vou lhes mostrar esse exercício e, ao mesmo tempo em que exemplifico, buscarei esboçar um modo de trabalhar com documentos, já que dicionários são documentos. E são documentos, não de palavras que são acolhidas em verbetes em uma aparente camisa de força, mas os dicionários expõem, em sua superfície, regimes de verdade que permitem que uma palavra caminhe em determinada direção e não em outra. Ou seja, inicio propondo que nos debrucemos sobre documentos, sobre um certo tipo de documento, não para descobrir seus verdadeiros sentidos, mas para, na linguagem, ir além dela em busca das práticas de poder que criam determinadas possibilidades de interpretação e de visibilidade.
Vale observar que o dicionário é considerado um inscritor, uma “prova material” de verdade, no caso o que certa imagem (junção de letras/desenhos) e som (sim o dicionário tem som em nossa leitura!), tem como “significado verdadeiro” (fato). Lembremos também que há uma rede intricada de humanos e não humanos que compõem esse inscritor dicionário: uma “rede clandestina”1 (técnicos, costumes, linguistas, etimólogos, tinta, maquinas impressoras, leis, etc.)
Como eu ia dizendo, comecei caçando palavras no dicionário em um movimento de associação livre e, nesse caso, a palavra mote foi “documento”, depois cacei as palavras “inscritores”, “inscrever”, “inscrição” e outras que não tiveram livre acesso ao meu documento “final” (este texto). Vamos dar uma olhada na rede intrincada de possibilidades de potencialização (aumento dos efeitos) da palavra “documento”. A seguir, além de citar o significado da palavra “documento” que consta em dicionário, selecionei palavras utilizadas nessa definição, remetendo-as também ao seu significado. Assim, fiz algumas relações entre a palavra “documento” e as palavras que o definem (Ver figuras 1 e 2). Esse exercício pode continuar de modo interminável e nos ajuda a compreender que a definição dicionarizada e/ou etimológica de uma palavra também se faz em rede com outras palavras em função de seu uso. Temos redes de palavras em uso.
DOCUMENTO: “qualquer escrito usado para esclarecer determinada coisa; por extensão, qualquer instrumento de valor documental (fotografia, peças, papéis, filmes, construções, etc.) que elucide, instrua, prove, ou comprove cientificamente algum fato, acontecimento, dito, etc.” (Houaiss, 2001, p. 1.069).
Como vimos, a palavra “documento” pode ser considerada como uma noção que está intimamente ligada à verdade, a prova (destaque em vermelho na figura 2). Mesmo quando se refere ao órgão genital masculino (Ver figura 1), a palavra/noção “documento” corre nutrida do aspecto de prova, de comprovação de uma verdade e, nesse caso, “documento” aparece como prova de masculinidade.
Figura 1
Significado dicionarizado de documento.
Fonte: Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa
Figura 2
Significado etimológico de documento.
Fonte: Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa
o caso do chamado campo científico, documentos são preparados para evidenciar provas materiais de algum experimento e/ou tornarem-se provas de algum posicionamento do cientista. E, como nos diz Bruno Latour & Steve Woolgar (1979/1997), os documentos científicos “assemelham-se muito com as qualidades exigidas das pessoas que exercem uma profissão literária: saber escrever, persuadir e discutir” (p. 45), onde gráficos, tabelas e números adquirem “valor de argumento” (p. 46). Muitas vezes, quem fornece material (prova) para a elaboração do argumento são os chamados “inscritores”: instrumentos/maquinários/softwares, que possibilitam “uma exposição visual de qualquer tipo, num texto científico” (Latour, 1998/2000, p. 112). Há um modo de ser ciência, marcado pela construção de uma “estrutura que é usada como camada final num texto científico” (Latour, 1998/2000, p. 111). Essa estrutura inclui, por exemplo, maquinário como o espectrômetro (aparelho que é utilizado para identificar partículas presentes numa dada substância, descrevendo trajetórias gráficas diferentes). Podemos considerar que se trata de uma estratégia que usa o “dispositivo de inscrição” (Latour, 1998/2000, p. 111) como característica de um trabalho dito científico. O instrumento produz um “conjunto visual de inscrições” (Latour, 1998/2000, p. 118, grifos no original) e o cientista funciona como o porta-voz desse dispositivo, dizendo sobre o que está inscrito no mostrador do instrumento e, assim torna-se autor. O cientista “fala em lugar do que não fala” (Latour, 1998/2000, p. 119). Mas, nessa estratégia usada pelo cientista, ele e quem lhe dá crédito acredita que o instrumento fala em uma língua que precisa ser traduzida por alguém que a domina. Essa língua, supõem-se, que seja a da natureza. Em outras palavras, utilizam-se instrumentos para analisar o que se passa na natureza. Considera-se que esses instrumentos superdotados, nos fornecem a leitura ótica que os nossos olhos humanos frágeis não podem alcançar, mas, por outro lado, aliamos ao olho da máquina o que temos de melhor e que falta aos inscritores: a inteligência para interpretar. Os documentos científicos assim construídos, buscam o caráter de espelhos da natureza. Esta lida por instrumentos poderosos e interpretados pela nossa superinteligência.
Isabel Stengers afirma que o laboratório é o “lugar onde os fenômenos são inventados como testemunhas fidedignas, capazes de fazer a diferença entre verdade de ficção”. (1993/2002, p. 155). Podemos ampliar a noção de laboratório para os nossos espaços de produção de documentos, sejam os gabinetes acadêmicos, ou qualquer outro espaço onde nos dedicamos a essa escrita que pretende, seguindo os moldes dos modernos laboratórios científicos, ser espaço divisório entre a ficção e a verdade. Assim como os átomos, as moléculas e substâncias químicas passam a ser testemunhas da verdade e do mundo científico, em áreas como a Psicologia os documentos produzidos em “laboratórios argumentativos” passam a ser os inscritores que constituem “encenação mobilizadora” (Stengers, 1993/2002), que não é só retórica, mas podemos dizer que como tal, é política: uma mobilização que busca consolidar certa “paisagem” que remete a uma guerra vitoriosa onde se impõe o bem da verdade científica contra o mal da ficção.
Mas, se duvidarmos dos inscritores como espelhos da verdade e passamos a vê-los como construções de versões humanas sobre o mundo? E se consideramos essas construções limitadas, não porque somos mortais e dependentes de deuses, mas limitadas pelas possibilidades de nossas teorias?
Vamos voltar ao dicionário? Será que o dicionário é um inscrito expelido pelos inscritores da gráfica (impressoras)? Não. Os dicionários podem até ser considerados inscritos, grafados no papel, ou em outros meios como os virtuais, mas a intermediação da máquina, nesse caso, não precisa de porta-voz. A “voz” que emerge na superfície do dicionário pretende se portar sozinha, como se tivesse autonomia em relação à máquina. No caso, então, os inscritores do dicionário perdem esse caráter de fornecer “dados”. Nessa linha de raciocínio os dicionários, (quiçá a maioria dos documentos que pesquisamos), funcionariam como “caixa pretas” (Latour, 1998/2000): a despeito de toda controvérsia que pode gerar, é tratado como uma caixa que contem códigos e sinais que nos revelarão a verdade, como se fosse possível uma estabilidade indubitável nos sentidos e significados.
Vejamos mais palavras/noções na forma como constam em dicionário:
INSCRITORES: não existe essa palavra no dicionário de língua portuguesa e nem francesa, língua materna de Latour. Refiro-me aos dicionários consultados até 2004. Mas, temos no dicionário palavras/noções próximos a palavra/noção “inscritores”, que citamos a seguir:
Em qualquer dessas palavras aproximativas, temos a ação de alguém, reconhecidamente como pertencente à “raça humana” ou nossos ancestrais diretos. De todo modo, é reconhecida a ação de um ser vivo, o ser humano. Mas vejam que nem sempre o processo de construção de um documento parece ser realizado exclusivamente pelas mãos humanas. O conceito de Latour & Woolgar sobre inscritores, parece receber uma certa influência da teoria marxista da reificação, entendida, (especialmente, a partir de Georg Lukács), como:
O ato (ou resultado do ato) de transformação das propriedades, relações e ações humanas em propriedades, relações e ações de coisas produzidas pelo homem, que se tornaram independentes (e que são imaginadas como originariamente independentes) do homem e governam a sua vida (Bottomore, 1983/1988, p. 314, destaque meu).
Segundo Houaiss, reificação é:
O processo histórico inerente às sociedades capitalistas, caracterizado por uma transformação experimentada pela atividade produtiva, pelas relações sociais e pela própria subjetividade humana, sujeitadas e identificadas cada vez mais ao caráter inanimado, quantitativo e automático dos objetos ou mercadorias circulantes no mercado (Houaiss, 2001, p. 2.419, destaque meu).
Marx antes de elaborar o conceito de reificação, já se aproximava deste quando elaborou a noção de “fetichismo da mercadoria”, caracterizada pela pouca ou nenhuma importância dada ao processo que foi necessário para desenvolver tal ou qual produto como mercadoria, como se fosse um processo natural. Seria a atribuição de autonomia a um objeto, dando-lhe existência sem levar em conta a atividade humana que deu lhe origem e lhe impulsiona o funcionamento. Latour & Woolgar se referem justamente a isso quando definem o conceito de “inscritores”, ao afirmar que os fenômenos, que são os “objetos” da pesquisa, dependem não do material que o pesquisador tem em mãos para análise, mas de todo o processo que levou o material ao pesquisador. O material é “totalmente constituído pelos instrumentos utilizados” (Latour & Woolgar, 1979/1997, p. 61). Porém, esse processo é, não poucas vezes, ignorado como se o material “caísse do céu” como dádiva de uma descoberta de um sujeito da ciência.
Se Marx utilizava o conceito de “fetiche” para se referir a ordem econômica, e ainda separa humano e natureza ou natureza e cultura, Latour amplia essa noção, advinda da modernidade. Fetiche é produto de uma crença, como por exemplo, se crê que uma fita enrolada no pulso quando se rompe realiza desejos. A modernidade busca se caracterizar como antifetichista, e para isso vai nos fazer “crer” que uma pulseira faz parte de uma realidade (natureza) que não realiza desejos por não ser humana e, portando, separemos a natureza do ser humano. Latour (1999/2001) propõe o conceito de “fatiche” (mistura de fato com fetiche)2 para afirmar que humanos e não humanos são construídos e o importante é traçar as redes e condições pelos quais uns e outros vêm a existir. Os fatos, criados pela ciência moderna, se opõem aos fetiches, separando que é “real” e do que é “imaginação”. Assim ter-se-ia uma natureza transcendente que precisaria ser desvelada, o que Latour contesta já que a natureza também é produzida em laboratórios: não há nem os puros humanos e nem a pura natureza, mas somente híbridos. Portanto, seguindo nessa linha de raciocínio, o dicionário e todos os documentos que utilizamos em nossas pesquisas são híbridos.
Lembro aqui, do personagem de José Saramago em “Todos os Nomes” (1997/2002), também de nome José, funcionário da Conservatória Geral do Registro Civil — onde eram arquivados “obedecendo à lei da natureza, em duas grandes áreas, [...] fichários (ficheiros) de mortos e [...] fichários (ficheiros) [...] de vivos” (p. 13). Esse personagem começa a colecionar recortes de pessoas famosas da cidade e resolve completar seu fichário pessoal, com informações mais confiáveis, contidas nos arquivos de seu local de trabalho, informações compreendidas como “prova documental” (p. 26). Certa vez, ele se depara com o verbete de uma desconhecida, apanhado por engano durante suas investidas, às escondidas, à Conservatória. Bom, Sr. José decide então ir ao encontro dessa pessoa, pois não está claro no verbete se ela continua casada ou se está divorciada, e aí começa uma trama de caça a informações.
Vejam que interessante: um documento público da “Conservatória Geral do Registro Civil”, antes tendo valor de “prova documental”, passa agora a conter informações duvidosas. Esse encontro do Sr. José, absolutamente casual, com uma “fonte” documental, lhe propõe uma busca. Como afirma o personagem: “o acaso não escolhe, propõe” (p. 47). E propôs a busca da verdade.
Do mesmo modo, do encontro de cientistas com os inscritores que lhes expelem determinado gráfico ou traço, resulta a proposição de uma determinada busca, que será relatada em forma de documento. Fiz questão de comparar o conto de Saramago com a pesquisa científica, para reafirmar a semelhança dos dois encontros, na medida em que são produtos literários, como já foi dito acima. Com um detalhe importantíssimo: o argumento passa a ter e ser a estratégia que dá o tom do documento científico. O argumento pode ser entendido como o uso da linguagem para a construção de uma posição, que se corporifica em uma defesa e um ataque: são construídos argumentos que são arraigados na defesa de posições (resistência) e, ao mesmo tempo, se combate os possíveis argumentos contrários (ataque). O argumento é a tentativa de chegar ao significado último, buscando apagar outras possibilidades de sentidos.
Saramago nos ajuda a ampliar o que vimos expondo:
Ao contrário do que em geral se crê, sentido e significado nunca foram a mesma coisa, o significado fica logo por aí, é direto, literal, fechado em si mesmo, unívoco, por assim dizer, ao passo que o sentido não é capaz de permanecer quieto, fervilha de sentidos segundos, terceiros e quartos, de direções irradiantes que se vão dividindo e subdividindo em ramos e ramilhos, até se perderem de vista, o sentido de cada palavra se parece com uma estrela quando se põe a projetar marés vivas pelo espaço afora, ventos cósmicos, perturbações magnéticas, aflições. (Saramago, 1997/2002, p. 135).
Se quisermos ir mais adiante, acompanhando as posições de Saramago afirmaremos: “o mundo não tem sentido” (Saramago, 1997/2002, p. 274) e os documentos, não revelam os sentidos do mundo, mas os constroem, não pela mão de um autor, como se este fosse a fonte de onde emanam os sentidos, mas em rede de articulações onde cada singularidade perde-se na multiplicidade das articulações. Enfim, não há mesmo sentidos, a não ser quando os criamos. Desse modo, os documentos científicos são preparados por escritores que buscam convencer a si e aos leitores, que os seus enunciados são fatos. Essa temática foi amplamente discutida por Latour nas obras que tomo como referência aqui.
A questão que pode ser colocada agora é: podemos “analisar” documentos nos detendo nas palavras que estão lá impressas? Possibilidade há, porém, podemos nos alinhar a uma outra postura que está interessada nos agenciamentos que os documentos disparam. Tomando de empréstimo as discussões de Gilles Deleuze & Félix Guattari (1980/1995) em relação ao livro (que também é uma fonte documental), podemos explicar melhor a postura na qual nos alinhamos em relação a analítica de documentos.
Segundo os autores, um livro não é feito por um autor, mas é construído em linhas de articulação, em redes, uma articulação compartilhada. Essa perspectiva podemos apreciar em Latour e Woolgar, quando realizam um trabalho etnográfico, ao irem em busca da cotidianidade de um Laboratório de Neuroendocrinologia, com um olhar estrangeiro, vendo sendo sacrificados animais3 para que fossem retiradas pequenas fatias de cérebro, tudo minuciosamente registrado, etiquetado, datado, com o apoio de computadores e maquinário que lhes fornecem curvas e retas, que são a matéria-prima, para escreverem artigos/documentos, “revelando fatos”. Latour & Woolgar concluem que não é possível distinguir o fato do movimento de pesquisa que o “descobriu”, isso porque o “fato” só tem essa conotação (“efeito de verdade”) depois que um enunciado o estabilizou como tal (Latour & Woolgar, 1979/1997, p. 199).
Os autores até tentaram compreender o que estava escrito nos documentos, mas era uma linguagem muito específica e, se o fizessem, não seria um olhar estrangeiro, na medida em que discutiriam o teor dos artigos e não se interessariam sobre o modo como foram fabricados os artigos. Eles foram cartografando a cotidianidade dos pesquisadores e, repetindo, só puderam ter essa perspectiva etnográfica porque lançaram um olhar estrangeiro sobre o Laboratório. É esse olhar que nos interessa agora, porque foi além da análise da linguagem e mergulharam no que chamaram de “micro-sociologia dos fatos”. Além de caracterizarem “historicamente” o contexto de produção dos artigos que eram publicados pelos pesquisadores do Laboratório, buscaram as práticas sociais que também levavam a que os artigos pudessem ser escritos. São nessas práticas cotidianas que se veiculam “regimes de verdade”, baseados em dispositivos que regulam os saberes. Esses dispositivos funcionam como critérios e práticas, que sustentam não só um conjunto de saberes, mas a maneira como são construídos: porque procurar no cérebro determinado material? O que se procura? Que negociações que são feitas com colegas de trabalho para dar tal ou qual rumo à procura? etc... São construídos dispositivos que tornam visíveis o que os pesquisadores dizem procurar. Por exemplo, no trabalho de Foucault sobre a loucura, é possível perceber que não existiria o louco sem o nascimento da clínica, sem o olhar médico que separa o normal do patológico, sem a psiquiatria, sem a vigilância, sem a confissão (no caso o doente falando sem sentido racional, ou tendo ações consideradas desrazoadas).
Quando vamos a busca de documentos e os colocamos à mão para pesquisar, não podemos esquecer que eles foram elaborados sob dispositivos. Voltando a Deleuze & Guattari (1980/1995), não há diferença entre aquilo de que um documento fala e maneira como ele é feito. A materialidade do documento, que passa a ser o que buscamos pesquisar, não se restringe a linguagem dos sentidos e significados:
Não se perguntará nunca o que um livro [documento] quer dizer, significado ou significante, não se buscará nada compreender num livro [documento], perguntar-se á com o que ele funciona, em conexão com o que ele faz ou não passar intensidades, em que multiplicidades ele se introduz e metamorfoseia a sua, com que corpos sem órgãos ele faz convergir o seu (Deleuze & Guattari, 1980/1995, p. 12).
As materialidades dos documentos são tanto os agenciamentos que lhe fazem existir, quanto os agenciamentos que eles produzem: o que o documento solicita, o que seleciona e exclui, o que seleciona e inclui, o que requer, o que produz. Toda literatura é um agenciamento (Deleuze & Guattari, 1980/1995, p. 12). E, acatando a proposição de Latour & Woolgar (1979/1997), que os documentos científicos têm qualidades semelhantes à da literatura em geral, importam os seus agenciamentos, mais que do que seus estilos. Nesse sentido, são práticas discursivas, se as entendemos como:
Conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício de uma função enunciativa. (Foucault, 1969/2000, p. 136)
Os documentos não materializam o mundo porque não são “a” imagem dele. Mas, fazem rizoma com o mundo (Deleuze & Guattari, 1980/1995, p. 20). Rizoma? ... Bom, em vez de ficar explicando rizoma, resolvi “fotografar” um: o lugar onde escrevi maio parte desse documento. Essa rede rizomática em que eu estava inserido, visível e, ao mesmo tempo, clandestina, propiciou certa perspectiva e a construção de um outro documento que é este texto.
Vou lhes mostrar a imagem e encerrar, com uma dúvida que têm me perseguido e eu a ela: documentos têm como matéria-prima a linguagem?
A resposta não é simples mas poderia ser afirmativa, se o conceito de linguagem também for agenciado como o fez Nietzsche, ao afirmar que “a linguagem é a coisa mais cotidiana de todas” (1896/1999, p. 89). Nessa proposta conceitual não haveria separação entre linguagem e cotidiano.
Com essa frase de Nietzsche e a noção de rizoma, lhes mostro a imagem das condições de produção desse documento, tomando-a como um rizoma4. Vejamos que um texto se faz em relação as suas condições de produção que incluem desde as motivações a escrita até as redes de humanos e não humanos que liga o inscritor-computador ao cotidiano da produção (sala com bicicleta, estantes, mesa, cadeira, livros, telefone, criança, computador, textos, patinete, etc.). Quantas coisas entrelaçam-se em rizoma em uma escrita! (Ver figura 3).
Figura 3
Rede de atuantes humanos e não humanos
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