Versões de vulnerabilidade em artigos científicos brasileiros sobre desastres ambientais

Versions of vulnerabilities in Brazilian scientific papers on environmental disasters

  • Mário Henrique da Mata Martins
  • Roberth Miniguine Tavanti
  • Mary Jane Paris Spink
Nesta pesquisa, analisamos versões de vulnerabilidade em artigos científicos brasileiros sobre desastres ambientais. Para alcançar esse objetivo, realizamos uma revisão bibliográfica da literatura disponível em uma base de dados especializada em desastres e saúde e uma revisão reticulada da bibliografia encontrada. Em seguida, descrevemos o conteúdo dos artigos, identificamos os repertórios linguísticos de vulnerabilidade que utilizam e as versões de vulnerabilidade que esses repertórios produzem. Nossos resultados mostram que parte dos artigos não define com clareza o que é vulnerabilidade, mas especificam ou associam as áreas do saber habilitadas a falar sobre o assunto, rotulam pessoas como vulneráveis e hierarquizam vulnerabilidades pelo uso de instrumentos de medição e quantificação. Concluímos que é necessário discutir as formas pelas quais a literatura científica tem produzido versões de vulnerabilidade a partir de repertórios linguísticos de modo a promover diálogos entre campos de saber.
    Palavras chave:
  • Vulnerabilidade
  • Desastre
  • Comunicação e divulgação científica
  • Repertórios linguísticos
In this study, we analyzed versions of vulnerability in Brazilian scientific articles on environmental disasters. To achieve this goal, we carried out a literature review in a database specialized on disaster and health issues and a reticulated bibliographical review in the retrieved articles. We described the article’s content, identified linguistic repertoires of vulnerability and analyzed the versions of vulnerability each group of repertoires performed. Our results show that the majority of authors do not define conceptually what vulnerability is, but they associate areas of knowledge qualified to speak on the subject, label people as vulnerable and rank vulnerabilities through the use of instruments of measurement and quantification. We conclude that it is necessary to discuss the ways by which scientific literature has performed vulnerability versions based on linguistic repertoires in order to encourage dialogue between fields.
    Keywords:
  • Vulnerability
  • Disaster
  • Scientific Communication and Diffusion
  • Linguistic Repertoires

1 Introdução

O objetivo desta pesquisa foi analisar as versões de vulnerabilidade em artigos científicos brasileiros sobre desastres ambientais. Nossa proposta foi discutir a definição e as formas de coordenação das versões de vulnerabilidade produzidas a partir dos usos de repertórios linguísticos em publicações indexadas na Biblioteca Virtual em Saúde – Preparação e Resposta a Desastres de forma a contribuir para a sistematização e reflexão crítica do conhecimento científico produzido na interface entre os campos da saúde e da gestão de desastres.

Do ponto de vista da saúde coletiva, tal análise nos oferece subsídios para que possamos lidar de modo mais eficiente com os determinantes sociais e ambientais relacionadas aos desastres, que acabam por expor determinadas populações a situações de risco de morte ou adoecimento. Erick Noji (2000) respalda este argumento ao afirmar que os estudos sobre desastres têm apontado para uma relação direta entre sua ocorrência e o aumento de agravos à saúde, lesões e óbitos. Mark Kleim (2011), por sua vez, afirma que a exposição a riscos e condições de vulnerabilidade a desastres são fatores a serem considerados no processo de manejo e gerenciamento dos riscos de desastres, sendo necessário seu enfoque por parte das políticas, dos profissionais e dos serviços de saúde. Logo, segundo esses autores, há necessidade de explorar a relação intrínseca entre a ocorrência de desastres, saúde da população e as condições de vulnerabilidade.

A perspectiva teórica que nos orienta para compreender a complexidade nesse campo fundamenta-se em pressupostos da Psicologia Social Discursiva e do movimento construcionista. Alinhamo-nos à proposta de Mary Jane Spink e Benedito Medrado (1999) ao consideramos a linguagem como uma ação social, pautada na produção de sentidos e no uso de repertórios linguísticos. Esses repertórios são definidos pelos autores como palavras ou conjuntos de palavras expressas em termos, conceitos, lugares comuns e figuras de linguagem que circulam socialmente e demarcam as possibilidades para a produção de sentidos.

Esse referencial dialoga com as reflexões de Annemarie Mol (1999) sobre versões e realidades múltiplas. A autora parte do pressuposto de que a realidade não precede as práticas nas quais interagimos porque é produzida concomitantemente aos objetos do mundo. Isso implica assumir que há uma dimensão política na definição do que é real e vice-versa. Desse modo, diferentes práticas moldam versões distintas da realidade. Essas versões não são expressões de vários aspectos de uma realidade única, mas realidades diferentes que se relacionam por meio de coordenações múltiplas.

A relevância desse pressuposto para o presente trabalho é de que a associação dos repertórios a determinados campos da atividade humana produz versões sobre fenômenos que podem coexistir simultaneamente no campo discursivo. A coexistência dessas versões no campo discursivo implica o exercício de jogos de força tendo em vista que competem pelo estatuto hegemônico de verdade. Todavia, a coordenação de elementos para a produção de uma versão e sua manutenção ocorre em práticas, o que implica o estabelecimento de versões que são transitórias e, portanto, não excluem necessariamente umas às outras (Mol, 1999).

Inspiramo-nos ainda em outras reflexões de Mary Jane Spink e Vera Menegon (2004) e Mary Jane Spink, Vera Menegon, Jefferson Bernardes e Ângela Coêlho (2007), no que se refere às implicações decorrentes das definições científicas na produção de versões que engendram estratégias de governamentalidade. Pautados nesses estudos, consideramos que os repertórios linguísticos utilizados para descrever vulnerabilidade a desastres corroboram para definir versões legitimadas da vulnerabilidade como fenômeno social e histórico e, simultaneamente, delimitam estratégias políticas e de intervenção dos governos para lidar com a vulnerabilidade em situações específicas de desastres ambientais.

Por esses motivos, enfocaremos neste relato de pesquisa os repertórios linguísticos utilizados por pesquisadores em artigos científicos para falar sobre vulnerabilidade, as respectivas versões produzidas a partir da coordenação desses repertórios e seus efeitos políticos. Conforme afirmam Mário Martins e Maria Auxiliadora Ribeiro (2016), a partir desse arcabouço teórico, a análise das versões de vulnerabilidade nos artigos permite discutir implicações éticas e políticas da escolha de repertórios linguísticos na produção de conhecimento sobre assuntos como os desastres.

2 Sobre o gerenciamento de desastres e a noção de vulnerabilidade

As relações entre a produção científica e as práticas de gerenciamento de desastres como forma de governo foram registradas na literatura da área desde o início do século XX. Segundo David Alexander (1997), esses estudos se limitaram ao mapeamento e gerenciamento dos danos sociais e econômicos ocasionados por eventos catastróficos, refletindo a postura conformista do governo frente à natureza incontrolável dos desastres. Entretanto, o alto custo das ações de resposta, o crescente número de vítimas, as implicações para a saúde pública e o aumento da publicidade propiciada pelos novos meios de informação levaram governantes e cientistas a reavaliar sua posição em relação aos desastres incluindo em suas agendas ações para prevenção e redução dos riscos de desastres.

Esse entendimento levou a uma mudança de paradigma na lógica de gestão dos desastres nos últimos anos. Exemplo disso foi há instituição entre os anos 1990 e 2000 da Década Internacional para Redução dos Desastres Naturais (International Decade for Disaster Risk Reduction - IDNDR) declarada pela Organização das Nações Unidas (ONU). E, embora tenhamos terminado a década com o irônico aumento do número e dos custos dos desastres naturais em todo o mundo, a IDNDR possibilitou avanços tanto por meio de um enfoque interdisciplinar na cooperação científica internacional, quanto na ampliação dos conhecimentos sobre prevenção de desastres. Diante desse desafio, tornou-se evidente a necessidade de criar uma cultura global de prevenção de desastres, na qual o termo vulnerabilidade assumiu uma função central, em especial, nos países cujas condições socioeconômicas corroboram para potencializar os danos provocados por esses eventos.

É importante salientar que, apesar de sua centralidade no gerenciamento de riscos de desastres, o termo vulnerabilidade tem sido utilizado de diferentes maneiras. O seu significado muda de acordo com determinados contextos, conceitos e paradigmas aos quais esteja atrelado, o que reflete a pluralidade de atores e perspectivas envolvidas. Alguns autores têm criticado essa pluralidade de noções por coletivos acadêmicos e de pesquisa em virtude de dificultarem o consenso necessário para avançar na questão da redução de desastres. A confusão é exemplificada por Juan Carlos Villagrán de León (2006) quando afirma que o uso do termo vulnerabilidade

Pode abranger desde a noção da predisposição de um sistema a ser afetado ou danificado por um evento externo em certo instante no tempo até a noção de um resíduo de danos potenciais que não podem ser direcionados através da implantação de medidas típicas; ou como condições de incapacidade para lidar com desastres, uma vez que eles ocorreram (p. 8).

Por esse motivo, os órgãos de governo, em parceria com a comunidade científica, têm buscado uma definição comum e compartilhada da vulnerabilidade a desastres. De acordo com a terminologia proposta pela ONU, a vulnerabilidade seria definida como “as características e circunstâncias de uma comunidade, sistema ou patrimônios que a tornam susceptível aos efeitos danosos de um hazard” (2009, p. 30).

Apesar dos esforços, questionamos as formas pelas quais essa definição foi apropriada nos países que enfrentam graves problemas sociais e ambientais. Na América Latina, por exemplo, Allan Lavell (1996), um dos principais especialistas em gestão de riscos de desastres, apontava, no final do século XX, que a vulnerabilidade a desastres nos países latinos era abordada do ponto de vista das estruturas físicas em detrimento das questões humanas, o que poderia ser um impeditivo para ações voltadas às populações. Mais de uma década se passou e essa invisibilidade foi novamente evidenciada por Alfonso Rodrigues Morales (2011), quando salientou que a maioria dos países da região não possuíam mapas de vulnerabilidade a anomalias climáticas a serem utilizados nos planos e programas de saúde pública.

Além disso, em alguns desses países, a discussão sobre ações de prevenção de desastres que permitiriam um debate mais profícuo em relação às noções de vulnerabilidade em circulação é recente e ainda incipiente. Exemplo disso é o Brasil, cuja cultura preventiva nesse âmbito data de poucos anos, apesar da longa história do país com esses fenômenos. Conforme relata Ana Lucia Azevedo (2012), o povo brasileiro tem sofrido com eventos como esses desde o império, quando uma seca matou ao menos 200 mil pessoas entre 1877 e 1879. No presente século, a água continua sendo um fator deflagrador, seja por seu excesso ou escassez, conforme evidenciam os efeitos das enchentes em Santa Catarina no ano de 2008, em Alagoas e Pernambuco no ano de 2010, dos deslizamentos ocasionados pelas fortes chuvas na Região Serrana do Rio de Janeiro em 2011 e da seca no Rio Grande do Sul entre 2011 e 2012. Todavia, apesar das recomendações internacionais e dos indícios recorrentes de desastres, o Brasil tardou em atualizar suas políticas de gestão de desastres.

O compromisso dos representantes nacionais com a promoção de uma cultura de prevenção de desastres ocorreu apenas em abril de 2012, quando foi promulgada a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (Lei n. 12.608). Essa política foi responsável por modificar as diretrizes anteriores para gestão de desastres a partir do enfoque em ações preventivas transversais a todas as etapas de gerenciamento. Entretanto, apesar de ser citada por diversas vezes ao longo do texto da Lei, a noção de vulnerabilidade também não é definida. Entender a produção científica nacional em sua especificidade sobre esse tema é importante em virtude dessa recente entrada do país nas estratégias preventivas, o que pode alterar os modos pelos quais a noção de vulnerabilidade é apropriada na língua nacional, torna-se consensual ou é diversificada em repertórios nas diferentes áreas de conhecimento e na própria Política Nacional de Proteção e Defesa Civil.

3 Métodos e materiais

O método utilizado nesse estudo é de cunho qualitativo, de caráter descritivo e analítico. A técnica de produção de informações foi a revisão bibliográfica, que ocorreu em duas etapas: o levantamento de artigos científicos publicados em base de dados (Ribeiro, Martins & Lima, 2015; Ribeiro, Martins & Silva, 2011) e a revisão reticulada da bibliografia encontrada nesses artigos (Galindo, 2003) segundo critérios previamente estabelecidos.

O levantamento bibliográfico em base de dados foi efetuado na Biblioteca Virtual em Saúde – Preparação e Resposta a Desastres. Este é um portal de informação científica e técnica, desenvolvido pela Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e cujo objetivo é disponibilizar fontes de informação e recursos que subsidiem o trabalho de profissionais da saúde e voluntários que atuam na atenção e enfrentamento de problemas decorrentes de desastres. É um portal de acesso livre que inclui artigos, monografias, teses, revisões sistemáticas, guias de prática, planos de preparação, recursos de editoras, informação para o público, redes sociais, notícias e RSS1. A opção por realizar a busca nesse portal justifica-se em virtude da concentração de trabalhos indexados sobre a temática dos desastres e pela facilidade de recuperação das informações por meio do uso de um vocabulário estruturado trilíngue de descritores nomeado Descritores em Ciências da Saúde (DeCS).

O descritor empregado na busca foi vulner$, sendo o cifrão ($) utilizado para contemplar outros descritores com o mesmo radical (vulnerabilidade a desastres, vulnerabilidade social, análise de vulnerabilidade, vulnerabilidade em saúde, populações vulneráveis), cujo uso individualizado poderia excluir importantes produções. Foram ainda utilizados os seguintes filtros: tipo de texto (artigos), texto completo, idioma (português).

O filtro artigos foi escolhido porque buscamos publicações de ampla difusão. Delimitamos o idioma como português, pois consideramos importante analisar a apropriação dos repertórios de vulnerabilidade e a produção de versões situadas na língua nacional. Para dar conta do critério de nacionalidade, consideramos todos os artigos que tivessem ao menos um autor brasileiro na equipe. Não delimitamos a produção por período em virtude da possibilidade de abordar a produção sobre o assunto desde o início da operação dessa base de dados.

Após a seleção inicial com os descritores, foram excluídos os artigos repetidos, sendo os artigos restantes componentes do corpus inicial da pesquisa. Após a seleção dos artigos na primeira etapa, deu-se prosseguimento à revisão reticulada da bibliografia. Esta técnica se baseia na concepção de bibliografia como uma rede de recursos de legitimação de argumentos. Optamos por seu uso em virtude da possibilidade de identificar artigos de referência que promovem o uso de determinados repertórios linguísticos de vulnerabilidade. Esta revisão consistiu de uma análise das referências bibliográficas encontradas nos artigos selecionados na revisão anterior e da seleção daquelas produções referenciadas que apresentavam a noção de vulnerabilidade ou seus derivados no título, resumo ou palavras-chave, que estabeleciam no corpo do texto alguma discussão sobre desastres e obedeciam aos critérios previamente fixados. Os artigos selecionados na segunda etapa foram adicionados àqueles constituintes da primeira etapa, compondo o corpus final da pesquisa.

O tipo de produção foi definido com base nos métodos de cada artigo, sendo categorizados como revisão da literatura, ensaios, avaliação/desenvolvimento de ferramentas e estudos de caso. As palavras-chave que faziam referência à vulnerabilidade também foram elencadas. Por fim, os conteúdos dos artigos foram descritos, os repertórios obtidos nesses artigos foram selecionados e, em seguida, agrupados em eixos temáticos de acordo com o processo de coordenação referente à determinada versão de vulnerabilidade.

4 Resultados e discussões

A busca com o descritor vulner$ na Biblioteca Virtual em Saúde teve como resultado 23 produções, das quais cinco foram excluídas por repetição e outra por não se tratar do objeto deste estudo. Os 17 artigos selecionados passaram pela revisão reticulada da bibliografia e mais 7 artigos foram então recuperados de suas referências, totalizando um corpus de pesquisa de 24 artigos para esta revisão. Na sequência, descrevemos os conteúdos e repertórios linguísticos de vulnerabilidade identificados nos artigos revisados, assim como faremos uma discussão sobre as versões que esses repertórios produzem.

4.1 Descrição dos conteúdos e repertórios linguísticos de vulnerabilidade nos artigos

O primeiro artigo catalogado é de autoria de Breno Fontes (1998) cuja temática versa sobre a intrínseca relação entre deslizamentos, habitação e meio ambiente na cidade de Recife. Este autor define vulnerabilidade como “os elementos já presentes na estrutura social que resultam em uma maior probabilidade de ocorrência de desastres” e “as formas pelas quais as populações enfrentam as situações de risco e os efeitos decorrentes desse estado de organização social” (seção Sobre os desastres, p. 17). Os repertórios utilizados no texto foram: vulnerabilidade física (ou locacional), econômica, social, política, técnica, ideológica, cultural, educativa, ecológica e institucional.

Os artigos de Lúcio Kowarick (2002) e Ulisses Confaloniere (2003) foram os mais antigos recuperados na revisão reticulada. O primeiro analisa a vulnerabilidade socioeconômica e civil no Brasil; o segundo propõe um modelo conceitual de vulnerabilidade social para estudos e intervenções sobre os efeitos da variabilidade climática. Ao não definir vulnerabilidade, Kowarick pressupõe que o conceito seja compreendido de forma uniforme por todos os leitores. Confaloniere, por sua vez, busca explicitar o que entende por vulnerabilidade pautando-se em artigos de língua estrangeira. Os repertórios linguísticos de vulnerabilidade utilizados por esses autores são: vulnerabilidade social, vulnerabilidade econômica, vulnerabilidade social e econômica ou socioeconômica, vulnerabilidade civil, vulnerabilidade social e ambiental e vulnerabilidades.

Norma Valencio é autora de três artigos catalogados em nossa pesquisa e figura entre uma das principais referências nesse campo de estudos. Em seu texto sobre a produção social do desastre, Valencio et al. (2004) focalizam a vulnerabilidade dos cidadãos frente à ameaça das chuvas no interior de São Paulo. Em outro texto, Norma Valêncio et al. (2006) visam demonstrar a contradição das práticas sociopolíticas de gerenciamento de riscos que incrementam a vulnerabilidade de determinados grupos populacionais. Por fim, em texto mais recente, Valêncio (2010) analisa o discurso institucional do Sistema Nacional de Defesa Civil e as práticas desenvolvidas pelos agentes desse sistema no contexto brasileiro. Os repertórios de vulnerabilidade mais utilizados foram vulnerabilidade social, socioespacial, humana, da comunidade, de assentamentos urbanos, bem como populações, pessoas, citadinos, grupos e cidades vulneráveis.

Humberto Alves também é autor de três artigos catalogados em nossa pesquisa, todos via revisão reticulada da bibliografia, sendo outra referência na área. Alves (2006) constrói indicadores ambientais para identificar e caracterizar populações em situação de vulnerabilidade socioambiental em São Paulo. Em outro texto publicado neste mesmo ano, em coautoria com Haroldo Torres (2006) os autores analisam as principais características socioeconômicas e demográficas de famílias pobres moradoras em áreas de risco, em São Paulo, com vistas à identificação das situações de vulnerabilidade socioambiental. Por fim, em texto posterior, o autor em colaboração com Claudia Alves, Madalena Pereira e Antônio Monteiro (2010) analisam as inter-relações entre os processos de expansão urbana e as situações de vulnerabilidade socioambiental em São Paulo. Com exceção da primeira publicação, os autores definem vulnerabilidade como uma situação que engloba a exposição ao risco, a incapacidade de reação e a dificuldade de adaptação frente ao dano. O principal repertório linguístico utilizado pelos autores nessas publicações é o de vulnerabilidade socioambiental, que é definido como “uma cumulatividade de riscos sociais e ambientais” (Alves & Torres, 2006, p. 56) ou “a coexistência ou sobreposição espacial entre grupos populacionais muito pobres e com alta privação (vulnerabilidade social) e áreas de risco ou degradação ambiental (vulnerabilidade ambiental)” (Alves, Alves, Pereira & Monteiro, 2010, p. 43).

As áreas de conhecimento científico com maior número de artigos foram a Economia, as Ciências Sociais e a Psicologia. As duas primeiras são as áreas de formação de Norma Valêncio e Humberto Alves, respectivamente. A Psicologia, por sua vez, teve artigos de diferentes autoras catalogados em nossa pesquisa. Dalila Vasconcelos e Ângela Coêlho (2013) identificaram o perfil e os modos de vida de pessoas que moraram durante muitos anos em uma área de risco à beira de um córrego em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. As autoras utilizam o termo vulnerável, sem defini-lo, apenas uma vez no decorrer do texto ao se referir a um grupo etário que seria mais vulnerável em virtude de seu apego à moradia. Eveline Favero, Jorge Sarriera e Melina Trindade (2014) revisaram e discutiram os conceitos de desastre na perspectiva de autoras da Sociologia e da Psicologia e, embora não definam vulnerabilidade, apontam que uma forma de definir o desastre é associando-o a uma “expressão aguda da vulnerabilidade social” (p. 204). Por fim, Mary Jane Spink (2014) discute a gestão dos riscos de desastres ambientais na perspectiva de pessoas em situações de vulnerabilidade em um estudo de caso no distrito de Jardim Ângela, em São Paulo. A autora define vulnerabilidade como sendo “a predisposição de pessoas, construções e outras materialidades serem afetadas por ocasião de um acidente. A vulnerabilidade está obviamente associada ao uso e ocupação do solo” (Spink, 2014, p. 3746).

O artigo de Carlos Freitas, Mauren de Carvalho, Elisa Ximenes, Eduardo Arraes e José Gomes (2012) constado na referência de três outros artigos selecionados nessa pesquisa, sendo, desse modo, o artigo científico mais citado para se falar sobre vulnerabilidade. O objetivo dos autores foi demonstrar como a vulnerabilidade socioambiental cria condições para os desastres e limita as estratégias de prevenção e mitigação e, com esse intuito, resgatam a definição de Humberto Alves e colaboradores (2010). Outros repertórios que apareceram nesse artigo foram: vulnerabilidade das sociedades e comunidades, grupos populacionais mais vulneráveis, condições de vulnerabilidade, áreas mais vulneráveis, país vulnerável, vulnerabilidade às tempestades e ciclones, região vulnerável às ameaças naturais, vulnerabilidades institucionais e organizacionais e vulnerabilidade social.

Clóvis Ultramari (2006) compara os cenários de vulnerabilidade de cidades carentes e cidades que passaram por guerras e desastres naturais. A concepção de vulnerabilidade adotada não é explicitada, apenas é feita referência a vulnerabilidades diversas. O autor faz referência a vulnerabilidades ambientais e populacionais, relacionadas às áreas urbanas e assentamentos pobres. Destacamos ainda o uso do termo em forma de verbo na seguinte frase: “áreas ambientalmente frágeis, que são de grande interesse à produção de água, normalmente apresentam baixo valor imobiliário e, com isso, se tornam sujeitas a invasões, vulnerabilizando a produção” (p. 120).

Tania Braga, Elzira Oliveira e Gustavo Givisiez (2006) avaliaram três metodologias internacionais de mapeamento de risco e de construção de modelos preditivos de vulnerabilidade social a desastres a partir de indicadores sociodemográficos e propuseram diretrizes para adaptação e aplicação destes procedimentos no Brasil. Neste artigo, vulnerabilidade é definida como a susceptibilidade a perigos ou danos. Os repertórios nesse artigo referem-se eminentemente a formas de medir a vulnerabilidade, como por exemplo, metodologias de mensuração da vulnerabilidade, graus de vulnerabilidade, áreas de maior vulnerabilidade, indicadores de vulnerabilidade, modelos preditivos de vulnerabilidade.

O trabalho de André Sobral et al. (2010) consiste de uma revisão bibliográfica sobre a construção e implementação de sistemas de informação e vigilância sobre desastres naturais. Os autores fazem uma distinção entre a vulnerabilidade humana, decorrente da pobreza e da desigualdade social, e a vulnerabilidade da área geográfica, na qual pode ocorrer o desastre, sendo ambas passíveis de serem potencializadas pelas atividades humanas. Além disso, outros repertórios presentes em seu artigo são os ecossistemas vulneráveis e a vulnerabilidade socioambiental.

Emerson Marcelino, Lucí Nunes e Masato Kobiyama (2006) analisam a qualidade dos bancos de dados sobre desastres naturais, tanto em escala global quanto regional. São repertórios em seu artigo: vulnerabilidade da sociedade contemporânea, áreas mais afetadas e vulneráveis aos desastres, vulnerabilidade de cada país, diminuição da vulnerabilidade, vulnerabilidade como pobreza, educação e cultura e vulnerabilidade da população a eventos naturais extremos. Não foi apresentada uma definição do que seria vulnerabilidade.

Rafael Martins e Leila Ferreira (2011) realizaram uma revisão crítica da literatura internacional e nacional sobre a relação entre o tema das cidades e a mudança climática, sem indicar, todavia as bases de dados e os critérios utilizados. Definem vulnerabilidade como “exposição de um sistema a crises, estresses e choques, à capacidade inadequada desse sistema de fazer frente aos impactos decorrentes desses choques (reação) somados à dificuldade de adaptação diante da materialização do choque” (p. 626).

O artigo de Telma Cardoso, Fernando da Costa e Marli Navarro (2012) discute a centralidade da biossegurança no manejo de cadáveres após a ocorrência de desastres e levam em conta a intersecção entre dados de mortalidade e morbidade internacionais. As autoras não definem vulnerabilidade, apenas a associam às situações de desastres. Os repertórios linguísticos utilizados neste artigo foram: vulnerabilidade social, vulnerabilidade de populações e condições de vulnerabilidade.

Eduardo Licco (2013) aborda os fatores preliminares que influenciam na severidade dos desastres naturais, tendo por foco a vulnerabilidade social e os desastres de 2011 na região serrana do Rio de Janeiro. No texto há uma definição vaga de vulnerabilidade como “um conjunto de fatores que pode diminuir ou aumentar os efeitos do contato com os perigos a que o ser humano, individualmente ou em grupo, está exposto nas diversas situações da sua vida como, por exemplo, uma enchente, um assalto, a perda do emprego, uma doença, entre outras” (p. 30). Faz uso dos seguintes repertórios: grau de vulnerabilidade, vulnerabilidade de uma sociedade, vulnerabilidades sociais, reduzir vulnerabilidades, vulnerabilidade física, social, econômica e ambiental a desastres, vulnerabilidades, vulnerabilidade ao fenômeno natural, exposição a vulnerabilidade, pessoas mais vulneráveis da comunidade e vulnerabilidade a efeitos de eventos catastróficos.

O ano de 2014 foi aquele com o maior número de artigos catalogados. Raphael Guimarães, Maíra Mazoto, Raphael Martins, Cleber do Carmo e Carmen Asmus (2014) constroem e validam um índice de vulnerabilidade socioambiental para predizer o grau de vulnerabilidade a inundações de municípios do estado do Rio de Janeiro. Os autores equivalem vulnerabilidade a vulnerabilidade socioambiental e fazem referência ao estudo de Carlos Freitas e colaboradores (2012) para fundamentar essa última concepção. Carlos Pereira e Martha Barata (2014), por sua vez, apresentam uma revisão crítica da literatura sobre as experiências de países latino americanos na preparação e adaptação às mudanças climáticas nos setores de saúde. A vulnerabilidade nesse trabalho se refere eminentemente aos equipamentos de saúde, suas construções e serviços, embora não haja uma definição clara do termo. Diego Xavier et al. (2014) descrevem o processo de aquisição e organização de dados sobre desastres coletados pela Defesa Civil no Brasil, disponibilizados pelo Observatório Nacional de Clima e Saúde, para apresentar o potencial dessa ferramenta. Não há definição clara do termo vulnerabilidade embora sejam utilizados os repertórios como aumento da vulnerabilidade, grau de vulnerabilidade socioambiental, vulnerabilidade das populações, áreas mais vulneráveis. Por fim, Neison Freire, Cristine do Bonfim e Claudia Natenzon (2014) analisam a vulnerabilidade socioambiental de populações do Estado de Alagoas após as inundações que sofreram em 2010. Definem vulnerabilidade como sendo “as condições socioeconômicas anteriores a ocorrência dos desastres e a capacidade de enfrentá-lo” (p. 3757).

O artigo mais recente de nossa revisão foi produzido por Luciana Londe et al. (2015). Neste artigo, as autoras analisam as condições socioambientais e de cobertura de serviços de saúde antes e depois das inundações que afetaram Santa Catarina (2010) e Pernambuco (2008). As autoras resgatam diferentes referências que abordam as formas de realizar estudos sobre vulnerabilidade, mas não chegam a definir o conceito. Os principais repertórios utilizados foram: vulnerabilidade socioambiental, vulnerabilidade social, grupos vulneráveis, processo de vulnerabilização, vulnerabilidades socioambientais, vulnerabilidade de moradias, alta vulnerabilidade, vulnerabilidade relacionada a questões de saúde pública, áreas mais vulneráveis.

4.2 Formas de coordenação das versões de vulnerabilidade e seus efeitos políticos

Os autores dos artigos que analisamos fazem usos diversos do termo vulnerabilidade, ora apresentando definições que relacionam esse fenômeno à exposição e susceptibilidade a riscos e danos, ora associando-o a elementos heterogêneos. Todavia, gostaríamos de chamar a atenção para o fato de que a maioria dos artigos não possui uma definição clara ou sequer apresentam uma definição do termo vulnerabilidade. Tudo indica que partem do pressuposto que o termo é de conhecimento geral e seu significado é compartilhado entre autores das áreas de saúde e desastres e possíveis leitores. Essa mesma problemática tem sido identificada em outras pesquisas: “Na leitura dos artigos, muitas vezes nos deparávamos com o uso de “vulnerabilidade” como um termo de sentido imediato, estável e entendido objetivamente pelos pares. Ou seja, a polissemia do termo parecia ser ignorada” (Lima, 2015, p. 13).

Ao mesmo tempo, há o reconhecimento por parte dos autores de que existe mais de uma vulnerabilidade, o que implica especificar de que tipo de vulnerabilidade se está falando. Consideramos que esta é uma estratégia discursiva por meio da qual se define o que vulnerabilidade significa a partir das palavras que são associadas a ela. Os autores associam vulnerabilidade a termos que delimitam campos de conhecimento, áreas ou setores de intervenção governamental e pessoas. Quando o termo associado à vulnerabilidade é um adjetivo que delimita um campo de conhecimento ou área de saber específicos, nós denominamos o processo de compartimentação. Isso porque a partir da associação desse novo termo, cria-se um tipo de vulnerabilidade que passa a referir-se especificamente a esse campo. Foram elencadas nos artigos seis definições da vulnerabilidade por compartimentação: vulnerabilidade social, vulnerabilidade civil, vulnerabilidade climática, vulnerabilidade ambiental, vulnerabilidade humana e vulnerabilidade comparativa.

Por sua vez, quando ocorre a associação de diferentes adjetivos para delimitar campos de conhecimento ou áreas de saber distintas às quais o termo é aplicável mutuamente, nós denominamos o processo de adição. O processo de adição pode ocorrer por meio do uso plural do termo. Kowarick (2002), por exemplo, refere-se às vulnerabilidades como marginalizações sociais e econômicas. Ao falar do processo de desresponsabilização do Estado em relação aos direitos de cidadania, comenta que:

Dessa forma, vêem-se atuações no mais das vezes marcadas pela boa vontade do espírito assistencial, voltadas a resolver problemas emergenciais, descapacitando os grupos a enfrentar suas marginalizações sociais e econômicas, pois essas vulnerabilidades deixam de aparecer como processos coletivos de negação de direitos (p. 23).

É possível também utilizar uma partícula aditiva para associar essas diferentes áreas do conhecimento na qual se fala sobre vulnerabilidade. Às vezes, há vulnerabilidade social e econômica (Kowarick, 2002) vulnerabilidade social e ambiental (Alves e Torres, 2006; Confaloniere, 2003), vulnerabilidade social, econômica e ambiental (Martins & Ferreira, 2011). Esse processo possibilita unificar áreas antes compartimentadas para se falar de um problema que se refere a todas de modo concomitante.

No processo de adição, todavia, não é necessário utilizar sempre o plural ou partículas aditivas para promover associações, tendo em vista que é possível conjugar termos distintos em uma mesma palavra. Esta estratégia é recorrente entre os artigos catalogados, em especial, em virtude de o uso da noção de vulnerabilidade socioambiental ter sido o repertório linguístico mais referido nesses trabalhos (Alves, 2006; Alves et al., 2010; Alves & Torres, 2006; Freitas et al., 2012; Guimarães et al., 2014; Londe et al., 2015; Martins & Ferreira, 2011; Sobral et al., 2010; Spink, 2014; Xavier et al., 2014). A definição de vulnerabilidade socioambiental proposta por Alves et al. (2010), por exemplo, pauta-se na ideia de uma “sobreposição ou cumulatividade de problemas e riscos sociais e ambientais, que se concentram em determinadas áreas, espalhadas por toda a metrópole” (p. 142). Freitas et al. (2012), pautam-se parcialmente na definição de Alves et al. (2010) e redefinem vulnerabilidade socioambiental como

1) os processos sociais relacionados à precariedade das condições de vida e proteção social (trabalho, renda, saúde e educação, assim como aspectos ligados à infraestrutura, como habitações saudáveis e seguras, estradas, saneamento, por exemplo) que tornam determinados grupos populacionais (por exemplo, mulheres e crianças), principalmente entre os mais pobres, vulneráveis aos desastres; 2) as mudanças ambientais resultantes da degradação ambiental (áreas de proteção ambiental ocupadas, desmatamento de encostas e leitos de rios, poluição de águas, solos e atmosfera, por exemplo) que tornam determinadas áreas mais vulneráveis quando da ocorrência de uma ameaça e seus eventos subsequentes. Em síntese, a vulnerabilidade socioambiental resulta de estruturas socioeconômicas que produzem simultaneamente condições de vida precárias e ambientes deteriorados, se expressando também como menor capacidade de redução de riscos e baixa resiliência (pp. 1578-1579).

Ambos os autores salientam formas de somar elementos sociais e elementos ambientais em um mesmo conceito por meio da conjugação de elementos heterogêneos. Todavia, é ainda possível identificar formas de associação mistas, como vulnerabilidade socioeconômica e civil (Kowarick, 2002), vulnerabilidades ambientais (Ultramari, 2006), vulnerabilidades sociais e ambientais (Alves et al., 2010); vulnerabilidades institucionais e organizacionais e também vulnerabilidades socioambientais (Freitas et al., 2012).

Além das definições que criam tipos de vulnerabilidade relacionados a campos ou áreas do saber, os repertórios de vulnerabilidade também produzem versões com outras implicações éticas e políticas. O primeiro efeito que abordaremos é o de rotulação. O que denominamos de efeito de rotulação refere-se à classificação que autores realizam de quem ou quê é vulnerável. Esse nome foi escolhido porque a vulnerabilidade deixa de ser um processo para assumir a função de uma identidade atrelada a determinados grupos ou elementos, de forma que se lhe atribui uma marca, rótulo ou mesmo um estigma. Como nos alerta Fúlvia Rosemberg (1994) sobre os discursos a respeito das famílias pobres na América Latina “o imaginário que informa estas imagens de pobreza, de família pobre é estigmatizante, e que parte e redunda, muitas vezes, em propostas de políticas públicas excludentes, reforçando processos de exclusão social” (p. 35). Logo, esses modos de classificar pessoas e atribuir-lhes características que podem ser naturalizadas com o tempo, afetam os modos pelos quais essas pessoas irão se relacionar com a classificação atribuída e como serão tratadas, a partir dela, por ferramentas de intervenção governamental como as políticas públicas (Hacking, 2001).

Com relação a esse processo, é importante destacar que nos artigos analisados são mais facilmente rotulados como vulneráveis determinados pessoas, grupos e populações. Ou seja, fala-se em vulnerabilidade da população (Confaloniere, 2003; Guimarães et al., 2014; Spink, 2014); população vulnerável (Valencio, 2010); grupo, grupos ou subgrupos vulneráveis (Valencio et al., 2006; Valencio 2010) ou pessoas vulneráveis (Valencio et al., 2006). De acordo com Valencio (2006):

São vulneráveis tanto os grupos que se veem incluídos nos sistemas de produção, acesso e descarte dos bens de consumo correntes – uma vez que as intensidades de suas interações sociais, biológicas e físicas os predispõem a sofrer os efeitos nocivos resultantes – quanto àqueles que estão excluídos dos benefícios dos sistemas supra, mas são obrigados a lidar com os impactos, socialmente mais abrangentes, de seus malefícios (p. 96-97).

Outro processo recorrente no uso dos repertórios de vulnerabilidade é a instrumentalização. A instrumentalização pode ser dividida em dois momentos: 1) o processo de instrumentalização; e, 2) os produtos da instrumentalização. Os processos de instrumentalização fazem referência às medições, avaliações, identificações, determinações, ou mesmo, às cartografias de vulnerabilidade, de modo que nesse processo a versão recorrente é a de vulnerabilidade como um instrumento ou ferramenta. Os produtos da instrumentalização são categorizados como o efeito que essas instrumentalizações produzem, como por exemplo: graus de vulnerabilidade e repertórios comparativos, como maior, menor, elevado, alto, média e baixa vulnerabilidade. Ambos os recursos utilizados no processo de instrumentalização são recorrentes em artigos que visam desenvolver ferramentas, indicadores ou índices de vulnerabilidade (Alves et al., 2010; Braga et al., 2006; Confaloniere, 2003; Guimarães et al., 2014; Marcelino et al., 2006; Sobral et al., 2010; Xavier et al., 2014).

Uma questão decorrente deste uso é que a vulnerabilidade passa a ser estabelecida como um fenômeno quantificável e passível de ser hierarquizado, o que possibilita que determinadas situações sejam julgadas como sendo de maior ou menor vulnerabilidade. Ao se determinar quem é vulnerável se cria um segundo problema, que é saber, dentre aqueles rotulados como vulneráveis, quem está em condição de maior vulnerabilidade. É com base nos critérios aplicados dos instrumentos de medição e quantificação que se estabelece uma hierarquia de intervenção. Dentre aqueles rotulados como vulneráveis há gradações que devem ser consideradas como prioridade para uma política pública. O problema decorre da atribuição de neutralidade da técnica e dos processos de exclusão obliterados pela aplicação de determinados critérios em detrimento de outros. Os autores não defendem a mesma técnica de mensuração ou fazem avaliações com bases nos mesmos critérios: o que produzem são vulnerabilidades diferentes cujo efeito em uma tomada de decisão será também diferente.

Apesar dessas categorias, é importante acrescentarmos que os autores tendem a fazer mais usos de repertórios mistos, nos quais esses processos estão misturados. Pode-se fazer uso de repertórios de compartimentação com efeitos de rotulação ou de instrumentalização. Essa tendência foi encontrada em todos os artigos catalogados e também se relaciona com a busca por definições a partir do estabelecimento de áreas responsáveis pelo uso e abordagem do conceito.

5 Considerações Finais

O objetivo do presente artigo foi analisar as versões de vulnerabilidade a desastres presentes em artigos científicos utilizadas por estudiosos e pesquisadores brasileiros nos campos da saúde e gestão de desastres. A partir de 24 artigos recuperados em nossa revisão da literatura, foi possível identificar que há diversos repertórios utilizados para se falar sobre vulnerabilidade. Contudo, falta clareza em relação ao uso do termo no campo e reflexão sobre os efeitos que esses repertórios podem produzir, seja pela especificação de áreas nas quais o conceito pode ser usado, pela rotulação das pessoas e grupos com o estigma de vulnerável ou pela instrumentalização do conceito por meio de técnicas de quantificação e hierarquização.

Trabalhamos, nesta análise, com foco nos repertórios linguísticos utilizados nesses artigos. Esta análise possibilitou entender as formas de coordenação pautadas em estratégias linguísticas, como a compartamentalização e a adição. Permitiu, também, explorar alguns efeitos desses usos, como a rotulação (ser vulnerável) e a instrumentalização (estar vulnerável). Com base em nosso referencial teórico, é importante discutir essa polifonia linguística a partir da concepção de versões (Mol, 2002).

Mais do que diferenças linguísticas, versões são modos de performar práticas. Conceituar é uma prática performada em distintos contextos. Por exemplo, em certos ramos das ciências sociais, vulnerabilidade é utilizada para falar de desigualdades. Neste campo, ser vulnerável é estar em situações que nos tornam mais propícios a enfrentar agravos, não só de natureza geológica, mas também de inserção na sociedade. A versão de vulnerabilidade utilizada por autores desse campo visa, como objetivo político, denunciar as condições de precariedade em que vivem determinados grupos populacionais pobres e sua discrepância em relação à elite econômica.

No caso das geociências e das ciências naturais, a versão mais frequente é de interação entre fatores geológicos e antrópicos como disparadores de desastres. Há, portanto preferência pelo termo “vulnerabilidade socioambiental”. Há ainda versões que primam pela busca de indicadores em uma estratégia somatória que, ao criar uma pirâmide de “variáveis” pode perder a compreensão da experiência de desastres, mas é altamente valorizada na formulação de políticas. Essas versões coexistem porque são performadas em contextos distintos: são geograficamente distantes, ousando falar de segmentos de saberes disciplinares em termos espaciais.

Por fim, questionamos a necessidade de adoção de um conceito normalizador. Se o fizermos, perderemos justamente a fluidez que marca nossas práticas. Por mais que seja importante estabelecer diálogos entre domínios de saber, ao invés de buscarmos consenso, talvez seja importante, como nos ensinou Richard Rorty (1994), manter a conversação fluindo. Foi esse o objetivo principal deste artigo: discutir as formas como a literatura científica tem produzido versões de vulnerabilidade, procurar entender seus efeitos e abrir espaços para que possa haver diálogo.

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