O uso de drogas constitui-se como um fenômeno presente ao longo da história (Torcato, 2014). Entretanto, sentidos negativos sobre este uso (danoso, imoral, fraqueza) vêm fundamentando práticas combativas, aparadas pelos discursos moral, religioso e o psiquiátrico asilar. Com estes discursos, pessoas que fazem determinados usos de drogas foram sendo consideradas desviantes da norma, havendo um processo de exclusão social e de ausência de cuidados que as atingem continuamente, principalmente as populações de periferia, pobres e negras (Fernandes & Fuzinatto, 2012; Ministério da Saúde, 2004). Assim, a descrição dos usuários de drogas como antissociais, imorais e criminosos, tem possibilitado o fortalecimento de estratégias de manejo que privilegiam a exclusão/separação do convívio social. Este modo de lidar com as pessoas que fazem uso problemático de drogas tem sido compreendido como única forma possível de tratamento, em que se objetiva a abstinência do consumo (Corradi-Webster, 2013; Fernandes & Fuzinatto, 2012). Em uma rede imbricada de diferentes compreensões sobre o uso de drogas, a distinção entre drogas lícitas e ilícitas constrói um cenário em que as drogas lícitas são vistas como menos prejudiciais, impulsionando ações e reações intensas frente às drogas ilícitas (Corradi-Webster, 2013; Ministério da Saúde, 2004).
No cenário brasileiro de políticas públicas, o modelo proibicionista, que propõe a intervenção do Estado no combate às drogas (produção, venda e consumo), vem ganhando espaço na proposição de atenção aos usuários de drogas por meio do financiamento de diferentes modalidades de internação (voluntária, involuntária e compulsória) (Pitta, 2011). Agravado pelo pouco investimento nos serviços de saúde mental comunitários e pela introdução da temática “drogas” na agenda de campanha de políticos brasileiros, observa-se nos últimos anos respostas sociais e governamentais que parecem divergir do que foi preconizado pela Reforma Psiquiátrica e pela Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas (Corradi-Webster, 2013). Dentre estas propostas, tem ocorrido nos últimos anos um aumento no financiamento público e do número de internações a longo prazo em Comunidades Terapêuticas (Sabino & Cazenave, 2005).
As Comunidades Terapêuticas (CTs) existem há mais de 30 anos e recebem pessoas que fazem uso problemático de drogas. Em 2006, elas passaram a ser consideradas como espaço de tratamento dentro do campo da saúde, sendo a partir de então reguladas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA. (Resolução No. 101 de 2001, 2001). Segundo levantamento em parceria com a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD), em levantamento realizado com instituições governamentais e não governamentais na atenção ao usuário de álcool e outras drogas, das 1.256 instituições que participaram do levantamento, 439 (35%) dessas se denominaram como CTs, demostrando a amplitude das instituições que se intitulam como CTs por seus dirigentes (Secretária Nacional Antidrogas, 2007). Contudo, há ainda imprecisão a respeito do número de CTs no Brasil, tornando difícil dimensionar a atuação destas, bem como a fiscalização das mesmas (Ministério da Saúde, 2007; Ribeiro & Minayo, 2015). Atualmente as CTs já são consideradas parte da Rede de Atenção Psicossocial e são financiadas através de programas do governo (Portaria No. 131, 2012), fazendo também parte do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), por meio da Resolução CONAD (Resolução CONAD Nº 1, de 19 de agosto de 2015) No. 01/2015. Nessa resolução, as CTs são caracterizadas como entidades de acolhimento para pessoas que fazem uso problemático de drogas, em caráter voluntário (Resolução CONAD Nº 1, de 19 de agosto de 2015, 2015).
As Comunidades Terapêuticas são geralmente instituições fechadas, ou seja, os internos ficam reclusos na CT no período estipulado, sendo raras as que trabalham com modelos mais abertos. Essas instituições têm por objetivo a “cura” do indivíduo, entendendo como “cura” a abstinência total das drogas, pois se compreende que apenas dessa maneira ele poderá conviver novamente em sociedade (De Leon, 2003). As CTs mantêm características de autoajuda, disciplina, confrontação e controle intenso (físico e emocional) das pessoas internadas, dentro de um ambiente sem drogas (Sabino & Cazenave, 2005). Uma das atividades fundamentais nas CTs é a laborterapia, compreendida como execução de atividades domésticas e/ou de campo. O trabalho é compreendido nestes espaços não objetivando o aprendizado de ferramentas para serem inseridos no mercado de trabalho, mas como a expressão do valor das pessoas, sendo por meio dele que os usuários de drogas poderiam modificar suas características e identidade, e alcançar a abstinência total. (De Leon, 2003).
Segundo Rui Tinoco (2006), ao longo da história, as CTs brasileiras mantiveram aspectos como o caráter messiânico, a superioridade moral e a hierarquia entre os membros, utilizando de submissão e confrontação pública entre os internos. Estas características foram pautadas no modelo das Comunidades Terapêuticas norte-americanas, que por sua vez tinham grande influência também do modelo dos Alcoólicos Anônimos (AA), marcado fortemente pela espiritualidade no tratamento (Tinoco, 2006). As CTs norte-americanas compreendiam o meio social como de extrema importância para a manutenção da dependência e sugeriam que os usuários fossem afastados do meio em que viviam e levados para as Comunidades, sendo preciso também aderir aos princípios ideológicos destas (Damas, 2013).
Com o aumento do número e da procura por Comunidades Terapêuticas no Brasil, associado a políticas públicas que fomentam esta forma de cuidado, através da inserção destas na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e da criação de formas de financiamento, faz-se necessário estudos que busquem conhecer melhor esse modelo. Assim, este estudo teve como objetivo conhecer e analisar o funcionamento cotidiano de uma CT, considerando aspectos das atividades desenvolvidas, das relações estabelecidas e do processo de intervenção.
Estudo qualitativo, conduzido a partir da análise de anotações de diário de campo de visitas realizadas a uma Comunidade Terapêutica do interior do estado de São Paulo. Estas visitas aconteceram em um contexto de construção e análise do campo-tema para um projeto de mestrado da primeira autora, que tratava sobre os sentidos construídos sobre a internação em Comunidades Terapêuticas com pessoas em tratamento por uso de drogas. Neste projeto, realizou-se a análise de entrevistas com pessoas egressas de internações e que estavam em acompanhamento em um Centro de Atenção Psicossocial – álcool e drogas. A pesquisadora optou por realizar as visitas à CT no início de seu trabalho de campo, a fim de compreender melhor o contexto que iria estudar e ter mais recursos para a construção de seu campo-tema. Peter Spink (2003) discute que a construção do trabalho de campo se dá em concomitância com a construção do tema pesquisado, considerando que não existe campo sem tema. Para ele, o campo é composto pelos diferentes encontros e lugares onde se constroem sentidos sobre determinada temática. Assim, a imersão em determinado campo, bem como em um determinado tema, pode contribuir para conectá-lo com outros saberes e ideias, construindo sentidos e realidades sociais, ao ampliar vozes e perspectivas sobre determinado assunto. Segundo este mesmo autor, importa chamar a atenção para um campo-tema perguntando-se sobre como esta imersão pode contribuir para conectá-lo com outros saberes e ideias, ampliando vozes e perspectivas sobre determinado assunto.
Assim, foram realizadas cinco visitas a uma Comunidade Terapêutica, no período de março a abril de 2015. Cada uma destas visitas teve a duração média de três horas. Em uma das visitas as duas autoras estavam presentes e nas outras quatro, apenas a primeira autora. Conversou-se com os coordenadores e profissionais do serviço, sendo estes indivíduos com nível de escolaridade técnico e superior, e também com pessoas que realizavam tratamento neste espaço. Foi realizado o acompanhamento de atividades grupais e laborterapia.
A pesquisadora realizou anotações densas no caderno de campo, referentes ao espaço físico da CT, às conversas conduzidas com profissionais e usuários e às atividades desenvolvidas. Estas anotações foram analisadas, buscando-se compreender características discursivas das atividades desenvolvidas, das relações estabelecidas e do processo de intervenção. Procurou-se também analisar o impacto destas características para a subjetividade das pessoas que fazem uso de drogas, considerando que diferentes discursos históricos e culturais são fundamentais na forma como as pessoas constroem suas práticas e se localizam no mundo, pois incitam e restringem certas possibilidades de descrições a respeito dos fenômenos e de si mesmo e assim, possibilitam ou restringem determinadas ações (Corradi-Webster, 2009; Rasera & Japur, 2005; Willig, 2001). Concorda-se que é por meio das descrições de si que há a formulação da sensação de identidade pessoal, através das experiências vividas que irão caracterizar a pessoa como individualmente única em suas relações (Rasera & Japur, 2005).
A CT visitada era localizada em um município do interior do Estado de São Paulo, na zona rural deste, em local de difícil acesso. Não havia transporte público para esta localidade, portanto, foi necessário o uso de carro. Para chegar até ela foi percorrido em torno de 10 quilômetros de estrada de terra, passando por dois condomínios de chácaras e plantações de cana de açúcar. A estrada de terra estava em condições ruins, com muitos buracos e, em uma visita realizada em dia chuvoso, corria-se o risco de ter o carro atolado na lama que se formava. No lugar, não havia sinal de operadoras para uso de telefones celulares. O espaço da Comunidade era afastado, não havendo vizinhança próxima. Destaca-se que o afastamento social de equipamentos como prisões, antigos manicômios e leprosários, hospitais psiquiátricos e atualmente as CTs, fazem parte de uma construção histórica de exclusão daqueles descritos como desviantes (Bolonhesi-Ramos & Boarini, 2015; Foucault, 1961/1997).
A CT, foco desse estudo, foi fundada por ex-residentes de outras CTs, com o auxílio de um grupo de apoio para familiares de usuários de drogas e do Ministério Público, há aproximadamente 14 anos antes da realização das visitas (1999). A justificativa dada para a criação dessa Comunidade foi atender a lacuna da atenção pública (social e saúde) às pessoas que fazem uso de drogas, algo já registrado na literatura (Machado & Miranda, 2007). Em 2004, o Ministério da Saúde reconheceu a necessidade de ultrapassar o atraso histórico sobre o cuidado às pessoas que precisam de tratamento devido ao uso de drogas, apontando que o descaso de políticas públicas havia contribuído para que o cuidado a estas pessoas ficasse com instituições religiosas e de autoajuda (Ministério da Saúde, 2004).
No período das visitas, a equipe da CT era composta por três coordenadores. Estes tinham passado por tratamento na Comunidade em questão e depois foram convidados a trabalhar como coordenadores, passando por um treinamento oferecido pela Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (FEBRACT). Também faziam parte da equipe um psicólogo, que realizava atendimentos individuais e grupais, uma psicóloga voluntária e uma assistente social. Essa última permanecia no escritório da CT em região central da cidade, sendo responsável pela atividade de recepção dos familiares que buscam internação, pelo cuidado de questões financeiras da internação e pela organização da entrega de insumos, como doces e cigarro. A literatura aponta que as CTs podem ser divididas de acordo com a constituição da equipe e, consequentemente, pelas atividades que oferece. Estas podem ser de três tipos: religiosas, com equipe formada por ex-residentes e religiosos; científicas, com equipe multidisciplinar que inclui profissionais de saúde; e mistas, com equipe formada por ex-residentes e também por profissionais da saúde, oferecendo atividades religiosas (orações, leitura de material de conteúdo espiritual) e outras terapêuticas (Rezende, 2000). No caso da CT visitada, pela constituição da equipe ela se classificaria como mista. Entretanto, chama a atenção o fato dos três coordenadores serem do núcleo de ex-residentes e religiosos, sendo estes, portanto, que ditam as diretrizes para o funcionamento e organização desta. Os profissionais contratados, psicólogo e assistente social, cumprem carga horária pequena, com atividades pontuais e sem poder de negociação e decisão.
A CT ocupava um espaço amplo, e sua estrutura, com casas, curral, pomar e fogão a lenha, lembravam uma fazenda antiga. Esses espaços eram utilizados ainda com suas mesmas funções, mas compreendidos como parte do processo de recuperação dos que ali estavam internados (laborterapia). Na primeira visita, chamou a atenção o silêncio do local. Apesar desta ter em torno de 15 internos, não se ouvia barulhos. Esta visita foi monitorada por um dos coordenadores. Os internos encontravam-se realizando as tarefas destinadas a cada um, como pintar as cercas, limpar a casa e capinar o terreno. Enquanto andávamos pela Comunidade, o coordenador chamava os envolvidos na tarefa e perguntava a respeito de como o trabalho estava sendo feito e quais seriam os próximos passos, em uma postura muito próxima a de um supervisor no trabalho, buscando manter a continuidade deste e a disciplina. Percebe-se a importância do trabalho neste espaço, emergindo emerge como protagonista do processo de internação. Autores apontam que nas CTs a laborterapia oferece disciplina via confrontação, desenvolvimento de controle e de uma nova identidade corrigida (De Leon, 2003; Sabino & Cazenave, 2005). Nas relações de trabalho estabelecidas neste ambiente também se percebe a relação hierárquica entre os coordenadores e internos, sendo os primeiros os superiores, que sabem e determinam o caminho a ser percorrido e os internos, os subordinados, que devem ser submetidos à norma e a atividade proposta, mesmo que essa se distancie de sua realidade (experiências prévias de trabalho, formação, hábitos de vida e familiares, características do território em que viviam). Desconsidera-se dessa forma, a história de vida cada um e suas características pessoais (Castrillón Valderrutén, 2008).
A CT recebia homens maiores de 18 anos, que chegavam na condição de internação voluntária. O período de internação era de 06 meses, podendo se prolongar por até 09 meses. De acordo com o coordenador, as pessoas internadas poderiam interromper o processo a qualquer momento. O foco do tratamento era a abstinência total da droga, através da desintoxicação, conscientização e ressocialização do usuário. As famílias podiam realizar visitas em um final de semana por mês, além disso, ao longo do tratamento, os usuários podiam realizar duas saídas da CT, uma após 2 meses de tratamento e outra após 04 meses. Estas saídas podiam acontecer caso o usuário mostrasse condições para tal, como vínculo com familiares e bom comportamento na CT. Nestas “saidinhas”, eles passavam alguns dias fora da CT e depois retornavam ao tratamento. O funcionamento da CT visitada vai ao encontro das descrições da literatura a respeito desse modelo de intervenção, sendo descritas como instituições com maior distanciamento social (fechadas), em que o caráter messiânico, de superioridade moral e a forte hierarquia entre os membros prevalece, havendo submissão dos internos conseguida por meio da confrontação, onde o tratamento visa a “cura” do indivíduo por meio da abstinência total das drogas (De Leon, 2003; Esteves, Cardoso, & Corradi-Webster, 2014; Tinoco, 2006). Vale destacar que o repertório “saidinhas” é muito utilizado em prisões, para descrever os períodos específicos, como Natal, em que pessoas em regime semi-aberto e com bom comportamento podem visitar seus familiares. O uso do repertório de prisão na Comunidade Terapêutica ilustra o funcionamento desta como instituição de reclusão e como instituição total, e posiciona os usuários desta como “criminosos” e desviantes (Fossi & Guareschi, 2015; Passos & Souza, 2011).
Em uma das visitas realizadas, um dos coordenadores aborda as mudanças exigidas pela ANVISA para a regularização da CT, possibilitando com isto o cadastro desta no Ministério da Saúde e assim, o recebimento de usuários via programas do governo, como o “Crack é possível vencer”, que financia a internação em CT. Relatou que as mudanças exigidas pelo órgão foram pequenas alterações na estrutura das duas casas em que os usuários ficavam, proibição de criação de animais (porcos, galinhas e vacas) para o consumo próprio dos moradores da CT, dentre outras. O funcionário apontou para as dificuldades advindas da adequação às novas regras, que solicitavam várias mudanças, mas ressaltando que a não criação de animais na CT é algo de difícil cumprimento, pois estes faziam parte da laborterapia e também ajudavam na alimentação dos usuários. Entretanto, segundo ele, o financiamento público era o que mantinha a Comunidade funcionando, suprindo o pagamento dos funcionários, tornando-se imprescindível a adaptação às novas exigências. Durante as visitas um dos coordenadores contou a respeito da demora em chegar a verba vinda do governo e de como, em função disso, a CT estava passando por dificuldades com um número menor de pessoas internadas.
Chama a atenção, nestes relatos, a preocupação do órgão público apenas com características do âmbito da estrutura e das condições físicas da instituição. Não aborda preocupação em melhorar/mudar as atividades que lá eram oferecidas a fim de receber o financiamento ou a fiscalização da inserção do serviço na comunidade. As mudanças eram apenas de ordem física, como trocar uma porta de lugar, trocar as camas, dentre outras. Entretanto, também afirma que foi para cumprir as exigências da ANVISA que atividades de oração e religiosas deixaram de ser obrigatórias, embora ainda houvesse imagens de santos na sala principal e a bíblia era o único livro disponível, além do material dos Alcoólicos e Narcóticos Anônimos. Percebeu-se também haver pressão para participação nos grupos religiosos, uma vez que a não participação era descrita como não adesão e falta de vontade. Mesmo com a inclusão de um profissional de grau universitário (psicólogo) e a não imposição de credo, o modelo de CTs “nasceu” e “cresceu” vinculado principalmente a instituições religiosas, sendo marcada a importância e espaço que as atividades religiosas ocupam (Ribeiro & Minayo, 2015).
Nota-se que aspectos relacionados à como o tratamento está ocorrendo, a relação da CT com a sociedade, à sua inserção dentro da Rede de Atenção Psicossocial, o projeto terapêutico dos usuários, entre outras questões importantes sobre o modelo e efetividade do tratamento, não estavam incluídas entre suas preocupações, embora previstas pelo Ministério da Saúde (Portaria No. 3.088, 2011).
Ao abordar o número reduzido de pessoas internados na ocasião, entre 12 a 18 usuários, o coordenador se justifica dizendo que a política daquela CT era a de tentar garantir a participação da família no processo de tratamento e de não haver internações involuntárias ou compulsórias, o que dificultaria as famílias a internarem seus familiares, reduzindo o número de pacientes. Preocupa-se a todo o momento em diferenciar a Comunidade em questão de outras que conhece, apontando que as outras aceitam internações involuntárias, sem considerar como ocorreria o tratamento, valendo-se do desespero dos familiares dos usuários e sem permitir a participação da família durante a internação, dizendo que isto possibilitava atos de extrema violência contra o interno. Justifica dessa forma o porquê dessas CTs receberem mais internos do que a Comunidade visitada. Aponta também, que nessas outras Comunidades haveria maus tratos e que muitas delas colocavam os usuários para arrecadarem dinheiro nas ruas para a Comunidade enquanto estavam em tratamento. Com esta postura, busca mostrar para as pesquisadoras (psicólogas e acadêmicas), que conhecia os problemas que podem ocorrer em CTs, mas que a instituição visitada era diferenciada.
O Conselho Federal de Psicologia (2013) realizou vistoria a Comunidades por todo Brasil e descreveu muitas irregularidades encontradas. Essa realidade de irregularidades também se mostra presente no relato do coordenador, que aponta as consequências destas para os usuários e para a própria CT. Embora haja a regulação legislativa das Comunidades no Brasil, fiscalização realizada pela ANVISA, o número de CTs é incerto e a maneira como estas vem funcionando é desconhecida. A legitimação do Estado sobre esse modelo de tratamento, amparado pela mídia, sustenta a ideia dessa intervenção como modelo “garantido” de sucesso no tratamento. Estando as famílias e as pessoas que fazem uso problemático de drogas em vulnerabilidade e desamparo social, a internação a qualquer custo é uma alternativa frequentemente buscada. Se determinados tipos de violência são explícitos e de mais fácil reconhecimento social, comportamentos impositivos, punitivos e morais podem ser descritos como parte do processo de “cura” (Esteves et al., 2014). Isto será ilustrado mais adiante nos relatos observados em diferentes momentos das atividades na CT (grupo de sentimentos, participação de atividades religiosas).
O forte discurso proibicionista vigente, o pouco investimento nos serviços de saúde mental comunitários e a introdução da temática “drogas” como ponto de impacto politicamente, têm fomentado respostas sociais que divergem do que foi preconizado pelo Ministério da Saúde no documento sobre a política de saúde para usuários de álcool e outras drogas documento (Ministério da Saúde, 2004; Corradi-Webster, 2013). Tem ocorrido nos últimos anos um aumento no financiamento público e no número de internações de longo prazo em Comunidades Terapêuticas, o que parece reproduzir com a temática do uso de drogas um processo já enfrentado pela Reforma Psiquiátrica no campo da saúde mental (Fraga, Braga & Souza, 2006). Assim, no fomento da “guerra às drogas”, os modelos de internação longas acabam sendo construídos como um meio de tratamento inevitável para os que fazem uso de drogas, repercutindo na construção identitária destas pessoas.
Ao longo das visitas à referida CT, funcionários e residentes contaram sua trajetória de vida até o momento em que se encontravam. Na conversa com os pacientes relataram aspectos de suas vidas e de como os comportamentos que levariam ao consumo droga estavam entremeados em seu processo de vida. Contavam que eram pais, filhos, namorados, maridos, narravam sobre onde haviam trabalhado e onde haviam morado. Uma das narrativas registradas, que ilustra parte das histórias ouvida nas visitas, foi a de um dos coordenadores da Comunidade. Ele contou sobre sua vida a partir da infância, na qual descreve que desde pequeno era uma criança difícil, pois não aceitava dividir brinquedos, queria tudo para si, não dividia nada com os irmãos e brigava muito. Ele relaciona esses comportamentos ao consumo de drogas, como se fossem uma predisposição à dependência. Conta que iniciou o consumo ainda bem jovem e descreve-se como irresponsável e como alguém que não pensava em nada. Situa esta história dentro de um momento específico de sua vida, já que após alguns anos de tratamento em CT ele ocupava um novo papel hierárquico, como funcionário, como aquele que deve ensinar, prevenir e acompanhar o tratamento dos residentes. Assim, para dar sentido ao consumo problemático de drogas ele alinhava algumas de suas experiências de vida e descrições de si, colocando-os como preditores do consumo: ser teimoso, não querer dividir e mentir. Determinados sentidos sobre o uso de drogas são utilizados para narrarem a suas próprias histórias, descreverem-se e descreverem o mundo a sua volta. Nesse processo de produção de sentidos, posições são assumidas, dependendo do contexto em que ocorrem. Na CT o coordenador transita sobre diferentes posições: coordenador, dependente, pai, filho. Contudo, a posição de dependente predomina como aquela que o acompanhou, de alguma forma, em todos os momentos, construindo um senso de identidade.
Dessa forma, os usuários se enquadram dentro do esperado socialmente, passam a fazer parte de um grupo, mas as trajetórias de vida ficam apagadas (Castrillón Velderrutén, 2008). A história de vida narrada pelo funcionário e os sentidos atribuídos a elas, foram repetidos por parte dos usuários, que se descreviam como pessoas dependentes e sem controle, sendo que a droga aparecia como a “cereja do bolo” de uma vida desregrada.
Nas histórias narradas, a Comunidade foi descrita também como refúgio para pessoas sem rede de apoio familiar, de saúde ou social. Uma das histórias que chamou a atenção foi a de João (nome fictício), descrito por outros colegas e pelos coordenadores como alguém que apresentava alguma deficiência desconhecida. Eles diziam que este tinha comportamentos de criança e que não percebia a gravidade do que fazia, como por exemplo, ateou fogo em parte da CT visando espantar insetos. Encontrei com João enquanto esse estava capinando parte da Comunidade. Ele contou que na adolescência (aos 15 anos) havia sido preso e o juiz sentenciou a internação em uma CT como alternativa para a reclusão na fundação Casa. A pedido de sua mãe foi internado em uma CT, mas disse que preferia ter sido preso, pois ficou internado nesta até os 18 anos, tendo sofrido maus tratos por não seguir as regras da instituição, algo considerado como mal comportamento. Descreveu uma das alas de uma CT na qual havia ficado anteriormente, em que pacientes que eram internados contra a vontade ficavam dopados, amarrados e sofriam agressões. Ele diz que como era considerado “bom de trabalho”, ajudou a construir outros pavilhões da clínica e que recebia dinheiro para isso. Depois dos 18 anos saiu da internação e voltou para casa, mas após problemas e brigas familiares, foi morar na rua e voltou a usar droga, sendo então internado na CT visitada. Estava internado há oito meses, mas ainda ninguém sabia para onde ele iria quando saísse. Depois de duas semanas, quando voltei à Comunidade, os coordenadores me informaram que o paciente havia ido embora, pois seu tempo de tratamento havia acabado e, além disso, ele estava “aprontando” demais. Diziam que estes comportamentos eram porque tentava forçar sua saída, prometendo continuar o tratamento em um Centro de Atenção Psicossocial do município. Podemos entender similaridades da descrição de Erving Goffman (1961/2001) sobre instituição total, analisando algumas ações, como proibição de visitas no início e as saídas reguladas. Dessa forma, haveria o distanciamento e ruptura dos papéis que a pessoa ocupava anteriormente, de forma que após a internação a pessoa teria muitas dificuldades em retomar esses papéis da mesma forma, assim como se prega na frase proposta pelo AA e repetida na Comunidade sobre evitar pessoas, lugares e situações.
Essa história é perpassada por diferentes questões sociais, familiares, de falta de moradia, de cuidado integral a saúde, dentre outras. Essa trajetória exemplifica muitas histórias de outros pacientes, que passam por vários dispositivos educacionais, jurídicos e da saúde, tendo como resolução temporária das questões o afastamento social (prisão ou internação). Há um senso comum de que todos os usuários de drogas são doentes ou delinquentes e necessitam de internação ou prisão (Pereira, Jesus, Barbuda, Sena & Yarid, 2013). Segundo Howard Becker (1963/2008) há uma compreensão de que pessoas consideradas desviantes, como os usuários de drogas, têm uma mesma história e sempre serão descritos como desviantes, apagando outras possibilidades de descrição e também a singularidade da pessoa. Assim, seus comportamentos e sentimentos passam a ser descritos como relacionados exclusivamente a condição de dependente (impulsivas e/ou abstinentes), impactando em outras possibilidades de percursos. Como conseguir um emprego e lidar com os desafios comuns a essa situação sem ser descrito e se descrever como alguém sem controle e impulsivo? A internação compulsória e a prisão são demonstrativos de como as políticas públicas vêm descrevendo e posicionando as pessoas que fazem uso de drogas, principalmente a população mais pobre.
Nas visitas pude acompanhar parte das atividades realizadas na CT, e também na conversa com coordenadores e usuários foram destacadas as atividades realizadas, e como cada uma destas teria função terapêutica. Semanalmente os internos eram divididos em grupos e cada grupo ficava responsável por determinados trabalhos da fazenda, como o grupo da cozinha, o do curral, da limpeza, dentre outros (atividades de laborterapia). Um dos coordenadores explicou, enquanto um usuário fazia doce de leite, que o processo de fazer o doce ensinaria sobre como na vida nada acontece no tempo desejado pela pessoa, pois tudo tem um tempo próprio a ser respeitado. O coordenador dizia que poucos usuários querem aprender a fazer o doce, pois exigiria as condições descritas anteriormente e devido à impulsividade e a não responsabilização destes (características ditas dos dependentes) esta seria uma tarefa muito difícil. O trabalho teria a função de corrigir as características dos usuários, por meio da normatização daquilo que é considerado desviante (De Leon, 2003).
Além das atividades de laborterapia, as pessoas internadas realizavam todos os dias o Grupo de Sentimentos, do qual pude acompanhar dois deles. Esse grupo consistia em um espaço em que os participantes podiam falar sobre questões ocorridas na Comunidade, desde as questões da organização de produtos que estão faltando, ou algo que precisa ser consertado, até questões pessoais, como conflitos com outro usuário e a experiência do tratamento. Participando do Grupo percebi o quanto esse também se tratava de um espaço de confrontação do comportamento dos usuários, principalmente a respeito da motivação dos usuários para saída da internação antes dos seis meses pré determinados.
No início de um dos grupos, um dos usuários estava apreensivo e me disse que precisava contar-me algo que tinha feito, falando em um tom muito sério. Contou-me que na noite anterior eles haviam visto um filme e ele seria o responsável por guardá-los no final, mas esqueceu de fazê-lo e, caso não assumisse que havia sido ele, todos os outros colegas ficariam sem ver filmes na próxima semana. Ao longo do Grupo esse residente relatou seu feito e disse que havia percebido como foi importante para ele assumir a culpa, pois do contrário, todos os outros seriam prejudicados. Segundo as regras da Comunidade ninguém podia deixar nada na sala de TV. Depois da fala dele todos falaram alto “Força!”. No Grupo de Sentimentos pode-se observar como as normas disciplinares passam a ser vivenciadas pelos internos em uma perspectiva de vigília e punição ou reforçamento dos comportamentos, no qual o grupo se torna também um local de exposição e avaliação, próprio das instituições totais, em que há um apagamento de características da história de vida para fortalecer características do grupo e o controle dos internos (Goffman, 1961/2001).
Nesse mesmo grupo, outro usuário falou sobre seu retorno da “saidinha” (período de alguns dias em que podem voltar para casa), e disse ter percebido a importância da CT, reforçando que os colegas precisavam ter força e continuar o tratamento. Destaca-se que a terminologia “saidinha” também é utilizada dentro do contexto prisional, quando em regime semi-aberto, os presos tem o direito ter ir para casa aos feriados. Essa similaridade ocorre por se tratarem de dois modelos de instituição fechada. Os métodos de controle usados socialmente para regular o uso de drogas são variados, mas tem em comum o fim do consumo, por meio da abstinência total ou da criminalização, fazendo uso, para tal, das instituições fechadas. Essas instituições legitimam a compreensão da necessidade de “normatização” das pessoas que fazem uso de drogas. Assim, ações em que os direitos das pessoas se encontram “temporariamente” suspensos para “receberem” uma “nova identidade” tem ganhado força, como a internação em CTs (Monteiro, 2013).
Um dos coordenadores perguntou para um participante do grupo se ele gostaria de falar, e este respondeu que não. Neste momento o coordenador, com um tom de seriedade e repreensão, discorreu sobre as orientações que havia dado para que ele não saísse antes do término do tratamento, pois teria o risco de recair. Diz que o participante quis sair e após dois meses, recaiu e teve que voltar. O coordenador enfatizou para o grupo que eles não sabiam o que era melhor para eles no que diz respeito ao tratamento e que o tempo de internação deveria ser respeitado. Continuou contando a história de um ex-residente que foi encontrado em situação de rua e sem consciência, para concluir que os coordenadores determinam a trajetória do tratamento, pois estes sabem o que é melhor para os participantes. O grupo terminou com todos juntos de mãos dadas fazendo uma oração, pedindo força e fazendo o sinal da cruz. As divisões hierárquicas de poder entre residentes e monitores são parte importante para manter funcionamento das instituições totais, sendo a humilhação, culpa, e punição dos internos foram utilizados como forma de controle (Esteves et al., 2014; Goffman, 1961/2001).
A sociedade do controle dispõe de mecanismos para alcançar a docilidade e atuação útil das pessoas, considerando a interiorização da disciplina e do controle como a única garantia da vida humana na sociedade (Foucault, 1987/1999). Recaídas no tratamento são compreendidas pela CT como fraqueza, sendo necessário ter “força” continuamente no tratamento e se manter dentro do que é determinado. Assim, atribui-se aos usuários características de temperamento e de personalidade, contribuindo para posicioná-los como pessoas que precisam de tutela e como indivíduos diferentes dos outros (não usuários) (Corradi-Webster, 2013). Mary Jane Spink (2010) discorre sobre os discursos da vida saudável e da vida de risco e, segundo a autora, há um imperativo moral sobre práticas saudáveis, na qual há um excesso de moralização, potencialmente associados à abordagem da promoção da saúde, não havendo espaço para políticas de Redução de Danos. O modelo de Redução de Danos foca na reabilitação paulatina e possível, propondo uma construção conjunta com os pacientes de estratégias de enfrentamento (Prado & Queiroz, 2012).
Na CT, além do Grupo de Sentimentos, todos participavam de um grupo semanal conduzido pelo psicólogo contratado e também de outro grupo com a psicóloga voluntária. Estes tinham como objetivo oferecer espaço de conversa sobre as dificuldades do tratamento e sobre questões familiares, relacionados somente com a questão do uso de drogas. Outras atividades eram realizadas depois das 16 horas, sendo descritas como atividades de lazer, sendo estas assistir ao telejornal, jogar baralho, ouvir música ou tocar instrumentos musicais. Entretanto, as atividades de lazer não podiam envolver temáticas de descritas como de violência ou de uso de drogas, pois, segundo os coordenadores, isso incitaria o uso de drogas e lembranças do contexto deste. Após as 16 horas também eram realizadas atividades como grupo de oração, missas, grupo dos Alcoólicos Anônimos e Narcóticos Anônimos, todas dentro da CT. Todas essas atividades eram ditas como não obrigatórias, contudo, nenhuma outra atividade era oferecida concomitante a essas. Caso algum usuário não participasse do que era proposto, seria confrontado por outros usuários e pelos coordenadores, que compreendiam esta atitude como “não adesão ao tratamento”, ou até mesmo, como um “mau comportamento”. Assim, embora as atividades não fossem obrigatórias, segundo os coordenadores, todos deveriam participam dessas. O tratamento tinha como foco o uso de drogas do indivíduo e assim as atividades eram consideradas pela CT como criadoras de uma identidade abstinente, sendo pautadas principalmente no trabalho, na religião, na confrontação e na exclusão social, gerando sentimentos de culpa e fracasso no usuário, desconsiderando a complexidade social entorno da questão (Pillon & Luis, 2004; Rezende, 2000).
Vale destacar que o coordenador afirmou que a não obrigatoriedade dessas atividades havia começado há pouco tempo, devido a uma determinação da ANVISA, na qual toda instituição que oferecesse cuidados em saúde deveria ser laica. Entretanto, embora haja a determinação do Estado impondo às Comunidades a proibição da obrigatoriedade de atividades religiosas, há na Comunidade relações de poder e estratégias disciplinares que direcionam para estas atividades. Para Michel Foucault (1987/1999), há os poderes microfísicos que tem seu funcionamento independente do poder do Estado. Nesses sistemas disciplinares, há mecanismos que interiorizam as normas, o que é determinado como esperado, gerando sentimentos de culpa quando as normas não são seguidas.
A Comunidade Terapêutica visitada foi fundada como uma CT religiosa, contudo, com as novas exigências das políticas públicas e o novo panorama do tratamento para usuário de drogas, ela buscou contratar profissionais, como o psicólogo e assistente social. Também exigiu que os coordenadores participassem de cursos promovidos pelo governo federal, onde são apresentadas explicações científicas para a dependência e descritas as possíveis intervenções. Entretanto, nas visitas, percebeu-se que a base espiritual e a disciplina não foram alteradas, sendo que os aspectos religiosos permeiam as atividades diárias diretamente (missa, orações, grupo do AA) ou indiretamente, como nas atividades de laborterapia. Existe a compreensão de que o trabalho é um valor fundamental de enobrecimento do sujeito, funcionamento típico de uma ética cristã protestante (Raupp & Milnitisky-Sapiro, 2008).
O convívio diário entre as pessoas na Comunidade faz com que as relações estabelecidas sejam intensas, tanto no que concerne a desavenças quanto a relação de afeto entre elas. Um dos coordenadores relatou que os residentes utilizam do jogo de futebol aos domingos para brigarem por desavenças que aconteceram ao longo de toda a semana. Por outro lado, um dos usuários relatou a importância das relações de amizade que estabeleceu com dois residentes que faziam parte do mesmo grupo de tarefas que ele, e de como essa relação o motivou a permanecer em tratamento quando queria desistir. Esse usuário também narrou histórias em que “aprontou” junto com os amigos e por essa razão levaram suspensão (lavar a louça). Afirmava que mesmo com as suspensões ele se divertia e lamentava pelos amigos já terem saído da internação, dizendo sobre a falta que sentiria quando fosse embora. Concorda-se com George de Leon (2003) quando o autor afirma que o propósito de ressocialização da CT, em que essa serviria de espaço de reabilitação das relações, incluindo a vivência de conflitos e busca por alternativas, acaba por considerar apenas aspectos individuais no tratamento, sendo que as pessoas consideradas fora da norma devem ser normatizadas. Nesse processo, ações punitivas são utilizadas como ferramenta de normatização, não havendo espaço para questionamento sobre o que é vivido. Dessa forma, os residentes buscam formas de enfrentamento e vivenciam as punições como se fossem uma “aventura”. Além dessas questões, a fala do interno sobre a falta que sentirá dos amigos que fez dentro da Comunidade aponta para uma questão pendente, que é a continuidade das relações na saída da CT. Com quem os residentes irão se relacionar? Vale lembrar que durante o período de internação os usuários têm raros contatos com o exterior, apenas por meio de visitas quinzenais da família e em algumas saídas. Assim, a rede de apoio social não é fortalecida e não são desenvolvidos vínculos com pessoas fora da Comunidade. Mesmo quando fazem amigos dentro da CT é difícil dar continuidade a estas amizades, já que ao sair, alguns vão para municípios diferentes, e/ou não sabem ao certo onde irão morar e/ou não tem formas de contato (ex. telefones).
Nas conversas com coordenadores e usuários, o tema da busca por controle dos impulsos apareceu recorrentemente, sendo esse colocado como a principal deficiência do dependente. Esta característica é descrita como crônica, sendo, portanto, possível a algumas pessoas se tornar um adicto em recuperação, um ex-dependente, mas impossibilitando de construir uma identidade para além da droga. Um dos coordenadores afirmou que “eu estou tentando ainda ter controle, mas eu ainda fumo muito, sou muito nervoso” (Entrevistado No. 2, abril 17 de 2014). Assim, o tratamento na CT é experienciado como algo que serve para que a pessoa possa se reabilitar socialmente e aprender a conter seus impulsos, ganhando maior controle sobre o uso de drogas. Entretanto, mais do que isso, parece ter a função de tentar reconstruir a própria identidade, pois como foi dito diversas vezes: o uso de drogas é apenas a “cereja do bolo” de comportamentos anteriores. Os coordenadores também falaram de outros comportamentos similares ao uso de droga no que tange à falta de controle, como a alimentação exagerada, o sexo, o manejo de dinheiro e o consumo de cigarro (permitido na Comunidade). Os coordenadores contaram situações em que ilustravam como a falta de controle era uma característica das pessoas dependentes de drogas, explicando que estas sempre teriam problemas com comida, sexo e drogas, e que elas nunca conseguiriam pensar nas consequências, como engravidar, contrair uma doença ou ter problemas de saúde. As pessoas dependentes só pensariam, segundo eles, no prazer imediato adquirido. Relembraram ainda a história de um antigo coordenador que foi descrito como amável, mas que cometia excessos com comidas, mesmo sabendo de seus problemas de saúde e que faleceu devido a esses problemas. Essas descrições são marcadas por uma visão proibicionista e moral do uso de drogas, que veicula por diferentes esferas da nossa sociedade, de forma arraigada em nossa cultura e que atualmente recebe destaque dentre outras formas pela mídia, por meio do pânico social em torno principalmente do “Crack”. Suas práticas impedem a possibilidade de reflexão e são não democráticas, não atendendo as demandas sociais e de saúde, como pobreza, perdas e precarizações da vida (Bolonhesi-Ramos, & Boarini, 2015).
De Leon (2003) descreve que o tratamento em CT é voltado para a aquisição do controle do uso de drogas, mas o controle deve ocorrer a todo comportamento que é considerado excessivo ou pode trazer algum malefício. Vemos assim o lugar de desviante atribuído ao usuário de drogas, em que a função prazerosa da droga e de outros comportamentos é julgada como imoral e danosa ao indivíduo. Dessa forma, deve-se abolir comportamentos e estilos de vida que levem a esse caminho. Há historicamente uma construção pautada na moralidade sobre o uso de drogas, que posiciona o usuário de drogas como desviante (Torcato, 2013). Becker (1963/2008) analise que ações desviantes estão relacionadas na interação entre as pessoas e dependeriam de diferenças entre classes, cor, gênero, do discurso midiático e “campanhas” sobre determinada droga, sendo a caracterização de desvio em primeira instância uma questão de poder político e econômico.
Nas falas, o principal modo de conseguir o controle sobre os impulsos seria através da espiritualidade. Pessoas que tinham passado por internações anteriores em que havia mais atividades espirituais, disseram: “antes o tratamento era melhor devido aos momentos espirituais, já que isso dava força no tratamento” (Entrevistado No. 1, março 13 de 2014) Bem como em outras falas, a continuidade do tratamento fora da Comunidade se daria ao frequentar algum rito religioso. O distanciamento da religiosidade é um dos fatores narrados como fundamental para entender o processo de recaída. Observa-se que o discurso religioso apareceu de forma marcante nas práticas da Comunidade e nos sentidos trazidos nas falas dos entrevistados, sendo um caminho seguro no tratamento e na vida. Com este discurso se prevalece uma visão individualista, em que pessoas com características que predispõem ao desenvolvimento de comportamentos de risco podem ser “salvas” através da espiritualidade e assim, fazer parte da sociedade, sem oferecer riscos a ela. Contudo, oferecendo a espiritualidade como principal ferramenta de enfrentamento não há preparo para pessoa responder a complexidade das demandas sociais, como trabalho, relações familiares e dificuldades do seu território (Ribeiro & Minayo, 2015), recaindo o “insucesso” da internação (recaída e afastamento dos preceitos da CT) sob o indivíduo.
O distanciamento do contexto em que as pessoas viviam é a forma de ajudar a conter esses impulsos, na fala dos coordenadores e do psicólogo. Defendem que depois do término do tratamento na Comunidade seria importante que, por dois anos, a pessoa não administrasse seu próprio dinheiro e pudesse contar com a ajuda de alguém e esperar por três anos para ter um relacionamento amoroso. Para fundamentar essa recomendação eles argumentam que, na maioria dos casos, é no relacionamento amoroso e “com dinheiro na mão” que as pessoas consideradas dependentes recaem. Estas colocações auxiliam na construção de sentidos pelos usuários, que contam histórias em que sentiram um desapontamento amoroso e recaíram ou quando acabaram de receber o salário e gastaram tudo de uma vez comprando drogas. Uma frase que as pessoas falavam enquanto me explicavam o tratamento foi: “é preciso evitar pessoas, lugares e situações que os levem ao consumo”. Embora as recomendações auxiliem as pessoas no cumprimento do objetivo de ficarem abstinentes, a CT não oferece meios e outras possibilidades para a execução destes após a saída, divergindo dos pressupostos da saúde pública a respeito do trabalho no território e em rede, segundo a singularidade de cada pessoa (Portaria No. 3.088, 2011).
O tratamento da Comunidade propõe uma mudança na identidade das pessoas que buscam ajuda, incentivando a uma mudança na forma de agir, de pensar e de sentir, para sanar a “deficiência” das características que os impedem de ter controle sobre suas ações. Essa forma de lidar com a vida e com a dependência está inserida dentro de um contexto e de um momento histórico em que é valorizada a normatização como forma de lidar com pessoas que fazem uso de drogas e que, por essa razão, são consideradas desviantes. Esta compreensão implica em práticas de intervenção que expõem as pessoas a riscos, também leva a um julgamento moral, muitas vezes punitivo, ou reforçamento de comportamento determinados moralmente como adequados. Com esta compreensão corrobora-se a descrição do consumo de droga como um problema essencialmente individual, embora aparentemente se diga que são considerados aspectos sociais e ambientais.
A internação de usuários de drogas em Comunidades Terapêuticas tem sido estratégia cada vez mais utilizada, tornando-se política pública. Entretanto, há pouca literatura que descreve e analisa o funcionamento destas. Por meio da análise de diário de campo de visitas realizadas em uma CT observou-se que as atividades desenvolvidas nestas são basicamente a laborterapia e encontros grupais. Nestes encontros, a crença religiosa cristã é explorada, apesar de a legislação definir que as CTs devam ser laicas. As atividades desenvolvidas têm como finalidade domesticar os usuários, convencendo-os da importância de que assumam sua personalidade impulsiva e dependente, para que então possam lutar para adquirir controle sobre seus comportamentos e ficarem abstinentes. São utilizados repertórios semelhantes ao usados em prisões, posicionando-os como criminosos e desviantes. Ao se conhecer a história de vida dos usuários, percebem-se trajetórias marcadas pelo falta de acesso aos bens materiais e de cidadania, entretanto, estes fatores não são considerados na descrição das narrativas de dependência. Estas narrativas são individualizantes, e colocam o problema como associado à personalidade e ao caráter, sendo, portanto, justificadas as atividades laborterápicas e religiosas.
As relações são hierárquicas, sendo os coordenadores (ex-usuários) imbuídos de autoridade para definir as atividades que serão cumpridas na CT e ditarem o modo como os usuários devem lidar com a vida e com os problemas. Assim, o processo de intervenção posiciona os usuários como pessoas com caráter e personalidade “defeituosas”, tendo como finalidade corrigir suas características, construindo uma nova identidade. A espiritualidade é apresentada como principal recurso nesta reconstrução. Pouco valor é dado para relações familiares ou de amizade. Também não há planejamento da saída da instituição em relação à inserção destes nos meios sociais e trabalho.
A aproximação do campo por meio das visitas a uma CT propiciou uma imersão nas formas de descrição sobre as pessoas que fazem uso de drogas, e como essas descrições impactam no modo como se percebem, no busca por determinado tratamento e na aceitação de estratégias de confrontação e na submissão. Estas descrições individualizam o problema, perdendo-se de vista a complexidade de fatores econômicos, sociais e culturais associados ao uso de drogas. Também se desconsidera a história de vida de cada usuário e suas outras possibilidades de descrição (pais, filhos, maridos, trabalhadores, amigos).
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